16-12-2007

 

Os "judeus" de Tondela

 

 Arlindo N. M. Correia                      

 

 Não consta que tivesse havido muitos judeus em Tondela, porque não terá sido dos lugares onde se refugiaram os vindos de Espanha nos finais do sec. XV e princípios do sec. XVI. Por isso, a expressão “judeus de Tondela” bem se pode aplicar a uma família de pai, mãe, dois filhos legítimos e mais dois filhos naturais do primeiro, que sofreram os rigores da Inquisição de Coimbra (e alguns também de Lisboa), por volta do terceiro decénio do sec. XVIII; são mesmo os únicos pretensos judaizantes moradores em Tondela que constam dos arquivos da Inquisição. Aliás, essa expressão aparece nos depoimentos de algumas testemunhas.

Um dos filhos naturais - o João Pereira - acabou mesmo por morrer no cárcere e não será por acaso que foi o único que foi torturado.

A expressão do título deve ser considerada entre aspas, porque não estão em causa judeus praticantes, mas sim cristãos novos [1], que a Inquisição quis transformar… em judeus.

De facto, nessa altura, a Inquisição funcionava como uma “fábrica” de judeus, pois os presos não tinham outro remédio se não confessar convicções judaicas, mesmo que as não tivessem, ao mesmo tempo que denunciavam praticamente todos os cristãos novos que conheciam, para salvar a própria pele. Se o não fizessem, não se conseguiriam salvar da fogueira ou do degredo para além-mar.

Os presos utilizavam alguns estratagemas para tornar as denúncias menos gravosas para os denunciados. Um truque era denunciar os que já se encontravam presos, já não lhes acontecia mal pior. Outro era fingir que não os conheciam, através de expressões como “filho não sei de quem”, “casado não sei com quem”, etc.  Muitas vezes, aproveitava-se também para denunciar os inimigos. Mas penso que nenhum dos denunciados de que vamos falar tinha já uma verdadeira prática judaizante. No sec. XVIII, não havia já sinagogas em funcionamento, nem práticas religiosas em casas particulares, mas apenas o labéu de cristãos novos que acompanhava todos os descendentes de judeus.

 

Vejamos agora os personagens principais da história:

PAI: Francisco Pereira Dias [2], nascido por volta de 1672 em Mirandela, mercador de profissão, mas também rendeiro;

MÃE: Inês da Fonseca Furtado [3], nascida em 1675, em Lisboa, mas de família originária de Trancoso, filha de Álvaro da Fonseca, mercador e de Ana Mendes Furtado;

FILHOS LEGÍTIMOS: Gaspar Lopes Pereira [4], nascido em 1700 e Álvaro da Fonseca [5], nascido em 1701, ambos naturais de Molelos, solteiros, estudantes de Medicina, em Coimbra.

FILHOS NATURAIS:  João Pereira [6], nascido em 1698 e Tomás Pereira ou Tomás Gomes [7], nascido em 1699, filhos de Ana Gomes, cristã velha, de Molelos.

A família residia em Molelos, quando nasceram os filhos e ali foram baptizados e educados como católicos. Foram padrinhos de Gaspar Lopes Pereira, o Desembargador Manuel de Figueiredo e Dona Úrsula de Loureiro. Mais tarde foram viver para Tondela, com os filhos legítimos e, passados alguns anos, o pai levou para a sua companhia também os filhos ilegítimos.

A família deveria viver razoavelmente, já que mantinha os dois filhos do casal a estudar Medicina em Coimbra.

Eram todos cristãos novos, isto é, descendentes de judeus (os filhos ilegítimos eram meios cristãos novos, em virtude de sua mãe ser cristã velha [8]).  

Em Tondela, vivia um irmão inteiro do pai, António Pereira Dias, casado com Catarina Henriques ou Catarina Dias, que tinham sete filhos pequenos. Tinham mais dois irmãos, João Pereira Dias, casado com Isabel Rodrigues, residentes em S. João de Areias e Branca Carlos, casada com um médico chamado Joseph Rodrigues, residentes em Miranda [9].

Inês da Fonseca Furtado tinha apenas uma irmã, Isabel Furtado [10], casada com Mateus Guterres Pacheco, residindo ambos em Trancoso.

Não resulta claro quem primeiro denunciou a família. Mas afigura-se verosímil, que tenham sido membros da família Rodrigues Brandão, de Viseu, filhos de Francisco Rodrigues Brandão [11] e de Guiomar Rodrigues [12], ainda parentes por parte desta última, de Inês de Fonseca Furtado. Os pais tinham estado presos na Inquisição de Coimbra, de 1698 a 1702. Em 24 de Outubro de 1724, quando os pais já tinham ambos falecido, foi preso o filho Lopo Rodrigues Brandão [13] e sucessivamente, passaram pelos cárceres da Inquisição mais sete irmãos inteiros:

Leonor Mendes Henriques [14]

Fernando Rodrigues Portelo [15]

João Rodrigues Brandão [16]

Mariana Henriques Portela [17]

Mécia Henriques [18]

Gaspar Rodrigues Brandão [19]

Isabel Rodrigues Henriques. [20]

Esta última era a mulher de João Pereira Dias, já antes referido como residente em S. João de Areias.

Em 17 de Maio de 1725, Lopo Rodrigues Brandão denunciou como judaizantes a Francisco Pereira Dias, a mulher deste, Inês e os dois filhos, Gaspar e Álvaro. As acusações nestes processos são praticamente sempre as mesmas: “ disseram ser crentes na Lei de Moisés para salvação de suas almas, que guardam o sábado do trabalho, que fazem o jejum no Dia Grande [21] nada comendo nem bebendo de estrela a estrela, que, quando rezam o Padre Nosso, não dizem Jesus no fim e que não comem carne de porco, lebre,  coelho e peixe de pele”.

Em 2 de Junho de 1725, são presos Francisco, a mulher Inês e os filhos Gaspar e Álvaro. Temos a referência de que Gaspar foi trazido de Tondela para Coimbra pelo familiar do Santo Ofício, Doutor António Dias Alves. 

Após uma tímida negação inicial, depressa todos passaram às confissões. Inês da Fonseca denunciou o marido e os dois filhos que todos se encontravam já presos; depois, os cunhados António Pereira Dias e João Pereira Dias (e o filho deste, Francisco) e as cunhadas Catarina Henriques e Isabel Rodrigues, Lopo Rodrigues Brandão e irmão, Fernando Rodrigues Portelo; e ainda António Navarro Oróbio, de Trancoso, seu parente, que já estivera preso nesse ano. Em sessões posteriores, acusou Leonor Mendes e filha, Maria Henriques, de Trancoso; Manuel Pinheiro, a filha, Maria Furtada e a sobrinha, Ana Mendes, todos de Trancoso. Noutra sessão, sua irmã, Isabel Furtada e o cunhado Mateus Guterres; Gaspar Rodrigues Brandão e as irmãs deste, de Viseu; Branca da Silva, e as irmãs, Brites e Ana Maria, de Trancoso; Ana Mendes e irmã Grácia Guterres, de Trancoso; Luzia Mendes e filha Branca Rodrigues, de Trancoso. 

Apesar da longa lista de denúncias, Inês da Fonseca Furtado não denunciou os seus enteados, João e Tomás, que ainda não estavam presos. Seriam o marido e os filhos a fazê-lo.

Assim, foi Inês da Fonseca ao auto da fé no Pátio de S. Miguel em Coimbra a 30 de Junho de 1726 e após a abjuração em forma, o termo de soltura e segredo e o termo de ida e penitências, foi libertada a 11 de Julho de 1726. As custas do processo foram de 3$325 rs.

As denúncias feitas pelo filho Gaspar Lopes Pereira são ainda mais extensas. Incluem toda a sua família, a família Rodrigues Brandão, os cristãos novos das famílias Rodrigues Ferro,  Oróbio, Pinheiro Ferro e finalmente seus meios irmãos, João Pereira e Tomás Gomes.

As denúncias são praticamente sempre iguais: “Há X anos, no lugar de ….. em casa de….., encontrando-se ele confitente com F…..  estando ambos sós, entre práticas se declararam por crentes na lei de Moisés, para salvação de suas almas, e por sua observância disseram que faziam as mesmas cerimónias.

Nos depoimentos do Gaspar, alguns dos encontros são na Feira Franca de S. Mateus, em Setembro, ou na feira de Nossa Senhora da Ribeira, no domingo de Ramos, a uma légua de Santa Comba Dão.

Francisco e o filho Gaspar foram ao auto da fé de 25 de Maio de 1727 e libertados a 6 de Junho seguinte. O filho Álvaro da Fonseca só foi ao auto da fé de 29 de Maio de 1728 [22].

No processo de Gaspar, foram contadas 6$226 rs. de custas.

 

Os processos dos filhos ilegítimos de Francisco Pereira Dias, Tomás Gomes e João Pereira, meios cristãos novos, são mais complexos. Presos, respectivamente, em 14 e 19 de Maio de 1727, após várias denúncias do pai, dos meios irmãos e também de membros da família Rodrigues Brandão, continuaram a negar toda e qualquer crença judaica durante muito tempo, e indicaram testemunhas de defesa que não valeram de muito. Ao fim de alguns anos de cárcere, foram transferidos para Lisboa (João em 6-6-1731, Tomás em 29-3-1732), onde ambos começaram a confessar o que os inquisidores queriam ouvir. De facto, desde o reinado de D. Pedro II, que se tinha adoptado a prática de transferir para Lisboa os réus que haviam de ser justiçados  [23].

Ambos eram analfabetos ou quase, pois apenas assinavam o nome, e mal.

No processo de Tomás Gomes, há uma denúncia de 21 de Junho de 1727, de Fr. Caetano Lobo, OP, acusando-o de, com alguns amigos, terem morto um cão e o terem posto numa cruz.

Tomás indicou como testemunhas de defesa, Padre Faustino Esteves de Sobral, de Molelos, mas natural de Tondela, de 54 anos, Francisco Antunes, lavrador, natural e morador em Tondela, de 40 anos, António Gomes, natural de Molelos e residente em Tondela, também de 40 anos, D. Elena Caetana Pereira Telles, casada com Caetano Luis de Barros, natural e moradora em Tondela, de 50 anos. Todos declararam que ele era bom cristão e não tinha crenças judaicas, mas isso de nada serviu. Mais tarde, foram ainda ouvidos, Caetano Luis de Barros Monteiro, Sargento Maior do concelho de Besteiros, de 56 anos, natural do Porto e residente em Tondela, Padre Estêvão Rodrigues, natural e morador em Molelos, de 36 anos, e Estêvão Ferreira de Pinho, casado, residente em Molelos. Este último declarou que o pai do Réu, Francisco Pereira Dias era rendeiro do senhor Pedro Correia de Lacerda. Mariana Ribeira, mulher de Manuel João, de Molelos, de 50 anos declarou saber que o Réu tinha inimizades com a madrasta Inês da Fonseca, mas não sabia que haviam resultado em ódios. João Rodrigues, cirurgião, natural e morador em Molelos, disse que o pai do Réu tirara à mãe deste, Ana Gomes, umas fazendas que esta trazia de renda. Ouvidos ainda Manuel da Costa, boticário, de 47 anos, residente em Tondela, Manuel Dinis, casado, natural e morador em Tondela, de 50 anos, Paulo Fernandes, natural e residente em Molelinhos, Licenciado Padre Manuel Alves Leal, de 60 anos e Licenciado Padre Francisco Esteves Coentro, de 39 anos,  ambos naturais e moradores em Tondela e Cipriano Pires do Vale, barbeiro, de 36 anos, natural e morador em Tondela.

Transferido Tomás para Lisboa, escrevem os Inquisidores em 11 de Janeiro de 1732 que o Réu “está convicto no crime de heresia e apostasia, como herege e apóstata da nossa Santa Fé Católica, convicto negativo e pertinaz, devia ser entregue e relaxado à justiça secular, e que incorreu em sentença de excomunhão maior, confiscação de todos os seus bens para o Fisco e Câmara Real e nas mais penas de Direito”.

Só em 31 de Março de 1732 é que ele “dá a volta” e inicia as confissões e as denúncias, que se prolongam por seis sessões.

Foi condenado a cárcere e hábito penitencial perpétuo. Há muito, porém que este adjectivo “perpétuo” era uma ficção jurídica, pois cárcere perpétuo com remissão era só de 3 anos, sem remissão, era de 5 anos, mas em ambos os casos podia ser reduzido [24].

Transcrevendo da sentença final antes do auto da fé: “Recebem o Réu Tomás Pereira ao Grémio e União da Santa Madre Igreja, como pede. Comandam que em pena e penitência das suas culpas vá ao auto público de fé na forma costumada, nele ouça sua sentença e abjure seus heréticos erros em forma: terá cárcere e hábito penitencial perpétuo; será instruído nos mistérios da fé necessários para a salvação da sua alma. Cumprirá as mais penas penitenciais e espirituais que lhe forem impostas; e mandam que da excomunhão maior em que incorreu seja absoluto in forma ecclesiæ.

 

Foi ao auto da fé na Igreja de São Domingos, em 6 de Julho de 1732, na presença do Rei D. João V, dos Infantes e da Corte, bem como dos Inquisidores.

Saiu da cadeia depois do termo de ida e penitências de 14 de Julho de 1732.

A conta de custas foi de 15$350 rs.

 

Referirei agora o processo de João Pereira com mais algum detalhe.

 

PROCESSO DE JOÃO PEREIRA NA INQUISIÇÃO DE COIMBRA

 

Foi preso em 19 de Maio de 1727, com a idade de 28 anos.

O processo inicia-se com a transcrição de denúncias constantes já de outros processos na Inquisição:

 

Testemunho de Lopo Rodrigues Brandão em 6-6-1727: Há três para quatro anos, na cidade do Porto, em conversa com João Pereira se declararam ambos crentes e observantes da Lei de Moisés, para salvação de suas almas. Fazem o jejum do dia grande.

Test. de Gaspar Lopes Pereira, estudante de Medicina,  em 13-5-1727: Há cinco anos, na cidade de Coimbra, na Rua da Matemática, onde morava, encontrou-se com seus dois meios-irmãos João Pereira e Tomás Gomes. Estando os três entre práticas, se declararam crentes e observantes da Lei de Moisés, para salvação de suas almas. Fazem o jejum do dia grande no mês de Setembro.

Test. do pai Francisco Pereira Dias, de 6-6-1727: Há quatro anos em Tondela, em sua casa, conversando com seu filho João Pereira, entre práticas, se declararam ambos crentes e observantes da Lei de Moisés, para salvação de suas almas. Fazem o jejum do dia grande no mês de Setembro, e rezam o Padre Nosso sem dizer Jesus no fim.

Test. de Isabel Furtado, casada com Matheus Guterres Pacheco, natural e residente em Trancoso, cunhada de Francisco Pereira Dias (irmã da mulher), de 7-6-1727: Há cerca de dez anos em Molelos, encontrando-se em casa de seu cunhado com João Pereira, entre práticas, se declararam crentes e observantes da Lei de Moisés, para salvação de suas almas.

Test. de Álvaro da Fonseca, também estudante de Medicina, em 21-5-1728, preso em 2-6-1725, foi ao auto da fé de 29-5-1728: Há cerca de seis anos, em Molelos, estando ele com seu meio irmão João Pereira, entre práticas, se declararam crentes e observantes da Lei de Moisés, para salvação de suas almas. Fazem o jejum do dia grande no mês de Setembro.

Test. de João Rodrigues Brandão de 24-11-1727, foi preso em 25-1-1725: Há cinco para seis anos, no lugar de Botulho, estando com João Pereira e Thomás Gomes, entre práticas, se declararam todos crentes e observantes da Lei de Moisés, para salvação de suas almas.

Test. de Gaspar Rodrigues Brandão, em 13-11-1727, preso em 29-11-1724, natural e morador na cidade de Viseu. Há seis anos, no Botulho, esteve com João Pereira e Thomás Gomes e todos três se declararam crentes e observantes da Lei de Moisés, guardando o jejum do dia grande e os sábados do trabalho, e rezavam o Padre Nosso sem dizer Jesus no fim.

 

 

Diligência que se fez ex officio em 2 de Dezembro de 1726 sobre o crédito de testemunhas

Igreja de Santa Maria de Guimarães – Trancoso

P.e João de Carvalho Figueira, cura na Igreja de Santiago,  67 anos

P.e Inácio Mendes Álvares, natural e morador em Trancoso, 55 anos

P.e João da Silva Esteves, cura na Igreja de S. João Baptista, em Trancoso, 52 anos

 

Todos abonaram a idoneidade da testemunha Isabel Furtado, irmã da madrasta do Réu.

 

 

Deprecada (Comissão) para Tondela, em 14 de Janeiro de 1727, para aferir do crédito das testemunhas que tinham deposto contra o Réu

Licenciado Padre Manuel Simões do Vale, 69 anos, natural e morador em Tondela

Licenciado Padre Manuel Vaz Leal, 56 anos, natural e morador em Tondela

Bernardo Álvares, casado, Capitão dos auxiliares e familiar do Santo Ofício, de 59 anos

Licenciado Padre Francisco Esteves Coentro, natural e morador em Tondela, de 35 anos

Padre Faustino Esteves de Sobral, natural e residente em Tondela, de 51 anos.

Licenciado Padre Constantino António Álvares, natural e residente em Tondela, de 30 anos

 

Todos abonaram a idoneidade do Pai do Réu e dos filhos legítimos daquele.

  

Vem depois o Inventário dos bens do Réu que, neste caso, não tinha quaisquer bens.

 

A pag. 16 do processo, a Genealogia, em 1 de Julho de 1727. Era preciso dizer o nome dos pais, avós, tios, primos, naturalidade e residência. Se era baptizado e crismado.

Disse ser natural e morador em Molelos [25]. Tem 28 anos de idade.

Por parte do pai tem 6 tios: António Pereira Dias, João Pereira Dias, Luis, Ana, Mécia e Branca [26].

Por parte da mãe tem 4 tios: António Gomes, Isabel Gomes, Maria Gomes e Mariana Gomes.

Disse ter sido baptizado na igreja de Molelos, sendo padrinhos Domingos Fernandes Tendeiro e Maria Gomes. Não era crismado.

Tem prática de cristão.

Foi mandado pôr-se de joelhos e dizer o Padre Nosso, Ave Maria, Salve Rainha, o que soube dizer.

Só sabe escrever o seu nome [27] e não acabou de aprender a ler.

Nunca saiu do Reino, mas esteve em Lisboa, Porto e Viseu.

Nunca foi preso, nem apresentado no Santo Ofício.

Disse estar preso por ter sido falsamente denunciado por seu pai e por seus meios irmãos.

 

INTERROGATÓRIO IN GENERE [28], 5  de Julho de 1727

Aqui o Réu era perguntado se tinha reflectido sobre as suas culpas e se tinha algo a declarar para a tranquilidade da sua consciência.

Disse ser católico praticante e não ter quaisquer práticas judaicas. Por isso, tinha a sua consciência tranquila.

 

INTERROGATÓRIO IN SPECIE [29], 3  de Junho de 1728

Aqui foi interrogado se tinha reflectido nas suas culpas e se tinha alguma outra declaração a fazer.

Disse que não tinha culpas a confessar e que todos os testemunhos contra ele eram falsos.

 

ADMOESTAÇÃO ANTES DO LIBELO, 23 de Julho de 1728

Os inquisidores advertiram o Réu que, tendo sido diminuto [30] nas suas confissões, o promotor do Santo Ofício pretendia apresentar ao Tribunal o libelo acusatório e por isso, pediram-lhe que reflectisse se não queria confessar todas as suas culpas, para a salvação da sua alma.

 

LIBELO ACUSATÓRIO – 24 de Julho de 1728:

O Réu ouviu a leitura do libelo acusatório.

As acusações omitem o tempo, e os lugares bem como o nome dos participantes:

Porque em outro certo lugar se achou ele Réu se achou ele Réu de certo tempo a esta parte com certa companhia de sua nação, aonde entre práticas, ele Réu e a dita companhia se declararam por crentes na lei de Moisés, para salvação de suas almas, e por sua observância disseram que faziam as mesmas cerimónias.”

Porque sendo ele Réu admoestado muitas vezes nesta Mesa para confessar suas culpas, continua a negá-las  e cego, pertinaz e obstinado as nega, o Réu é declarado herege e apóstata. Incorreu em excomunhão maior e na confiscação de todos os seus bens, e é relaxado à justiça secular.”

 

O Tribunal nomeou Procurador do Réu para o defender o Licenciado Luis de Sousa de Carvalho, que foi apresentado em 24 de Julho de 1728.

Na mesma data, o dito Procurador entregou a defesa e indicou as testemunhas do Réu.

 

Em 5 de Outubro de 1728, partiu deprecada (chamavam-lhe comissão) para Tondela para o Reitor da Igreja, Padre Silvério Pereira Teles.

 

Inquirição de testemunhas de 14 de Outubro de 1728

 

Foi inquirente  Silvério Pereira Telles, Reitor da Igreja da vila de Tondela, Bacharel em Cânones, Arcipreste do Arciprestado de Besteiros e Comissário do Santo Ofício.  Nomeou escrivão o Padre Bernardo Pereira da Cunha [31], natural e residente em Tondela, o qual prestou juramento.

 

António Gomes, lavrador e vinhateiro, natural de Molelos e morador em Tondela, de 40 anos, mais ou menos.  Conhece o João Pereira há cerca de 25 anos e sempre o teve na conta de bom cristão.  Tem obras de cristão, guarda os domingos. Não guarda os sábados, não tem crenças judaicas e não tem trato com cristãos novos. Sabe que ele se ausentou durante alguns anos para a cidade de Lisboa. Morou em Tondela com seu pai pelo espaço de 12 anos mais ou menos.

João Fernandes, oficial de sapateiro, natural e morador em Tondela, de 37 anos. Conhece o João Pereira e sempre o considerou católico romano. Tem obras de cristão, é caritativo, não sabe que tivesse trato com cristãos novos, nunca o viu em coisas judaicas. Sabe que o João Pereira ficou em Tondela até que o pai foi preso.

 Maria de Santo António, mulher de João Fernandes.  Tem cerca de 50 anos.  Mesmo depoimento.

 Catarina Simoa, natural de Molelos e residente em Tondela, de 40 anos. Mesmo depoimento.

 

 

Deprecada (Comissão) a Viseu.

Inquirente o comissário do Santo Ofício, José Pereira de Mesquita Cabral Almeida,  Cónego Prebendado da Sé de Viseu. Escrivão:  P.e Manuel Rodrigues de Carvalho.

Inquirição em 25 de Fevereiro de 1730

João Rodrigues Brandão, natural e morador em Viseu, de 33 anos. Lembra-se de haver testemunhado contra Isabel Henriques, do Porto,  Francisco Pereira Dias e mulher Inês da Fonseca, de Tondela e seus filhos. Contra Mateus Guterres, da vila de Trancoso e os irmãos dele. Ainda contra os dois filhos bastardos de Francisco Pereira Dias.  Confirmou totalmente o anterior depoimento.

Gaspar Rodrigues Brandão, natural e morador em Viseu, filho de Francisco Rodrigues Brandão e de Guiomar Rodrigues. Ratificou totalmente o depoimento anterior em que denunciara como judaizante João Pereira.

 

 

Deprecada (Comissão) para o Abade de Santa Maria de Guimarães, Trancoso, Diogo Furtado da Costa Mendonça. Escrivão: P.e Manuel Luis, Presbítero do hábito de S. Pedro.

Inquirição de 2 de Março de 1730

Lugar de Cótimos, freguesia de Moreira, concelho de Trancoso

 

Isabel Furtado, mulher de Mateus Guterres, ratifica todo o depoimento anterior, em que denunciou João Pereira

 

Deprecada a Tondela. Inquirente, Silvério Pereira Telles, escrivão o Padre Bernardo Pereira da Cunha.

Inquirição de 2 de Março de 1730

 

Francisco Pereira Dias, de 54 anos mais ou menos.  Seu filho João Pereira esteve sempre em casa dele em Tondela e só pelo espaço de um ano é que fugiu para Lisboa. Ratificou todas as anteriores declarações, em que o acusou de judaísmo.

 

Deprecada a Tondela . Além do inquiridor e do escrivão, são testemunhas os Padres Manuel Vaz Leal e Constantino António Alvarez, naturais e residentes em Tondela.

 

Inquirição de 10 de Julho de 1730:

 

Álvaro da Fonseca, de 24 anos,  Ratifica totalmente as anteriores declarações.

Gaspar Lopes Pereira, de 25 anos, estudante de medicina, Idem.

 

PUBLICAÇÃO DA PROVA DA JUSTIÇA

Foram referidas as culpas do Réu, que ele continuava a negar. A peça tem a data de 5 de Março de 1731.

 

ALEGAÇÕES DA DEFESA, em 6 de Março de 1731. Contraditou as afirmações de diversas testemunhas, alegando serem seus inimigos.

 

Nomeação de testemunhas de defesa em 9 de Março de 1731.

 

Inquisição de Lisboa – 30 de Março de 1731 – Depoimento de Simão de Sousa e de sua mulher Susana Ferreira. O réu esteve 6 meses em casa deles, haverá nove anos.

 

Deprecada a Tondela para as contraditas

Inquirição de 5 de Abril de 1731:

 

P.e Estêvão Rodrigues, de Molelos – 33 anos. Conhece o réu, mas nada diz sobre a prática religiosa. Diz que ele esteve algum tempo em casa de sua mãe, em Molelos.

 João Rodrigues, cirurgião, de Molelos, de 50 anos. Não tem conhecimento de inimizades do Réu com seus meios irmãos.

 Estêvão Ferreira de Pinho, natural e morador em Molelos, Lavrador, de 52 anos. Idem, idem

 Luis Álvares de Carvalho, inquiridor, natural da freguesia de S. João de Canelas, Bispado do Porto e residente em Tondela, de 52 anos. Pouco sabe: apenas que os dois irmãos estiveram em Lisboa e voltaram depois para Tondela para casa do pai, até que este foi preso com os filhos legítimos.

 Maria Dias, filha de Luzia Fernandes, do Carril, de 25 anos, mulher de João Lopes, natural e residente em Tondela. Não tem conhecimento de dúvidas ou diferenças de que resultassem ódios ou inimizades.

 António Gomes, casado, de 45 anos, natural de Molelos e residente em Tondela. Sabe que um dia o Francisco Pereira Dias deu umas pancadas no filho Tomás, por encontrar umas coisas fechadas numa canastra. No dia seguinte, o Tomás e o João fugiram para Lisboa, onde estiveram parte de 2 anos. A tia do Réu, por afinidade, Isabel Rodrigues, disse-lhe que fosse pedir dinheiro ao pai. Este respondeu que fosse trabalhar como ele fazia. Quando a madrasta  Inês da Fonseca saiu em auto da fé, pediu ela ao João Pereira que lhe levasse um almude de vinho e algum dinheiro e fosse buscá-la, o que ele nada quis fazer.

 Caetano Luis de Barros Monteiro, Sargento Mor dos Concelhos de Besteiros e Guardão, familiar do Santo Ofício, natural do Porto e morador na vila de Tondela, de 55 anos.  Conhece o Réu e o irmão e sabe que viveram uns 12 anos em Tondela em casa do pai. Sabe que saiu de casa do Francisco Pereira Dias uma criada prenhe, a qual dizia a uns que o filho era do irmão do Réu, Tomás e a outros que do pai dele. Não sabe se isso originou conflitos entre eles.

 D. Elena Caetana Pereira Teles, mulher de Caetano Luis de Barros Monteiro, natural e moradora na vila de Tondela, de 54 anos. Sabe que de casa do pai do Réu saiu uma criada prenhe, e que por isso, o pai se agastou com o Réu e seu irmão. Mas entende que não ficaram inimigos.

 Patronilha, solteira, de casa do Reitor, de 56 anos, natural e moradora na vila de Tondela – Mesmo depoimento que a testemunha anterior.

 João Lourenço, casado, natural de Tonda e residente em Tondela, de 46 anos. Nada sabe sobre a vida do Réu.

 

Inquirição de 6 de Abril de 1731:

 

Manuel da Costa, boticário, natural e residente em Tondela, de 53 anos. Sabe que, quando a madrasta saiu em auto da fé, pediu ela ao Réu que lhe levasse algum dinheiro e fosse buscá-la e que ele nada fez, mas não sabe se ficaram inimigos.

 João Fernandes, oficial de sapateiro, natural e residente em Tondela, de 40 anos. Ouviu dizer que Isabel Rodrigues, de S. João de Areias, mulher de João Pereira Dias, ameaçara o pai do Réu. Mas só por ouvir dizer, não sabe se é verdadeiro.

 Maria Henriques, mulher de António Gomes, natural e moradora na vila de Tondela, de 36 anos. De ouvir dizer, sabe que a madrasta pediu ao Réu e a seu irmão à saída do auto da fé que lhe fossem levar dinheiro e buscá-la e eles não quiseram ir.

 

Pag. 144 - Peça de 17 de Março de 1731 – Os Inquisidores rejeitam as contraditas

 

Deprecada (Comissão) a Tondela

Inquirição de 4 de Abril de 1731

P.e Manuel Simões do Vale,de 70 anos,  natural e morador em Tondela. Nada sabe de inimizades. Sabe que o Réu se ausentou para Lisboa e que o pai foi depois buscá-lo.

P.e Manuel de Matos, natural e residente em Tondela, de 64 anos. – Idêntico depoimento

Domingos Ferreira, alfaiate, de 46 anos, mesmo depoimento

Dionísio Álvares, lavrador, de 39 anos, mesmo depoimento

Licenciado Padre Manuel Vaz Leal, natural e morador em Tondela, 61 anos. – mesmo depoimento

P.e António Simões, natural e morador em Tondela, de 41 anos – mesmo depoimento

 

Deprecada (Comissão) a Tondela

Inquirição de 30 de Abril de 1731

 

P.e Estêvão Rodrigues, natural e morador em Molelos, de 35 anos

Estêvão Ferreira de Pinho, lavrador, 55 anos, natural e morador em Molelos. 

P.e Faustino Esteves Sobral, 55 anos, natural e morador em Tondela

António Gomes, lavrador, natural de Molelos e residente em Tondela, 45 anos

Francisco Antunes, lavrador, natural e morador em Tondela, de 45 anos

Manuel Gomes Meireles, lavrador, natural e morador em Tondela, 52 anos.

João Rodrigues, cirurgião, natural e morador em Molelos, de 50 anos

Natália Francisca, mulher de Francisco Antunes, natural de SantOvaia de Cima, freguesia de Canas, moradora em Tondela, de 45 anos.

Ana Maria, viúva que ficou de Manuel Domingos, ferrador, natural e moradora em Tondela, de 36 anos

Foram interrogados sobre  art.º 1.º da coarctada [32]. Todos declararam não saber mais nada do que aquilo que constava já do processo.

 

Deprecada em Viseu , para aferir do crédito das testemunhas ouvidas em Viseu

Inquirição de 12 de Maio de 1731:

 

Licenciado João da Cruz de Oliveira, natural e morador em Viseu, 60 anos

José da Silva de Azevedo, Capitão da ordenança da cidade de Viseu, donde é natural, 45 anos.

P.e Manuel Rodrigues Carção, presbítero na Catedral de Viseu, de 63 anos.

Manuel Coelho da Corte, boticário, natural e morador em Viseu, 47 anos

José Rodrigues de Sampaio, alfaiate,  natural e morador em Viseu, 48 anos

Manuel Ferreira Samarra, casado, alfaiate, natural e morador em Viseu, 52 anos

 

Todos abonaram a idoneidade dos irmãos Gaspar, João e Lopo Rodrigues Brandão: o testemunho  destes merece todo o crédito.

 

Processo concluso em 19 de Maio de 1731

 

Sendo o Réu convicto pertinaz e negativo, a 19 de Maio de 1731, é mandado à tortura ainda na Inquisição de Coimbra. Determinam os Inquisidores:   “E fica só resultando contra o Réu vehemente presunção, a qual antes de outro despacho, deve purgar no torno com três tratos espertos, podendo-os sofrer a juízo do médico e cirurgião e arbítrio dos Inquisidores. [33][34]

  

30 de Maio de 1731 – Processo concluso

A 6 de Junho de 1731 é transferido para a Inquisição de Lisboa, para os Estaus.

 

Já em Lisboa é julgado: “Herege apóstata da Santa Fé Católica, convicto, negativo, e pertinaz, seja entregue e relaxado à justiça secular, servatis servandis; excomunhão maior, confiscação de todos os seus bens e demais penas de direito”.  

Este arrazoado dos Inquisidores é notificado ao Réu a 7 de Junho de 1731.

 

CONFISSÃO

Finalmente, a 12 de Junho de 1731, João Pereira decide confessar tudo o que lhe exigem:

 

 Há 13 ou 14 anos, em Tondela, em casa de seu tio, António Pereira Dias, mercador, e de sua mulher Catarina Henriques, esta disse-lhe que se passasse para a Lei de Moisés, que guardasse o jejum do Dia grande, em Setembro, estando sem comer nem beber de estrela a estrela , que dissesse o Padre Nosso sem dizer Jesus no fim, que guardasse o sábado de trabalho, como dia santo. E não comesse carne de porco, lebre, coelho e peixe de pele; ela Catarina assim procedia.

 Há cerca de nove anos com seu pai e madrasta praticaram todos as cerimónias judaicas.

Há oito anos, em Coimbra, com seu meio irmão, Gaspar Lopes Pereira, conversando revelaram-se ambos como crentes da Lei de Moisés.

Há oito anos, em Tondela, com o meio-irmão Álvaro da Fonseca, a mesma coisa.

Há dez anos em S. João de Areias em casa de seu tio direito, João Pereira Dias , cristão novo, irmão inteiro de seu pai, casado com Isabel Rodrigues, filha de Francisco Rodrigues Brandão e de Guiomar Rodrigues   “entre práticas, se declararam crentes na Lei de Moisés, para salvação de suas almas”…

Há sete anos, no Porto, na Ribeira, em casa de Lopo Rodrigues Brandão, irmão inteiro de Isabel Rodrigues,  idem.

Há onze anos, em Tondela, em casa de seu tio direito António Pereira Dias, irmão inteiro do pai, casado com Catarina Henriques, que depois vieram viver para Lisboa, idem.

Há sete anos também em casa do seu tio António Pereira Dias, com os filhos deste,  Gaspar e João, idem.

Há dez anos, em Molelos, com o irmão inteiro Tomás Pereira, idem.

Há doze anos, em Trancoso, em casa de Mateus Guterres Pacheco, casado com Isabel Furtado, estando os dois sós, se afirmaram ambos crentes na Lei de Moisés.

 

CRENÇA em 12 de Junho de 1731

Nesta peça do processo, o Réu confirmou as crenças que possuía na Lei de Moisés e aquelas da Religião Católica em que não acreditava.

 

Admoestação antes do libelo  em 12 de Junho de 1731.

 

Acusação  na mesma data: considerado  herege e apóstata da nossa Santa Fé Católica, ficto, falso, simulado, confitente diminuído, e impenitente.

 

Sentença – 13 de Junho de 1731 – degredado 5 anos para o Reino de Angola

 

14 de Junho de 1731 – Concluso

 

14 de Junho de 1731 – Sentença: “Vá ao auto da fé, seja recebido no Grémio da Igreja com cárcere e trabalho perpétuo, e degredado 5 anos para Angola. Que seja absoluto da excomunhão maior que sobre ele impende in forma ecclesiæ.”

 

Foi ao Auto da fé que se celebrou na Igreja do Convento de São Domingos a 17 de Junho de 1731, estando presente El-Rei D. João V, os Infantes, a Corte e os Inquisidores.

 

Abjuração em forma

Termo de segredo – 18 de Junho de 1731

Termo de ida e penitência  - 22 de Junho de 1731

 

Entretanto, o Réu deu entrada no Hospital Real de Todos os Santos (hoje, Hospital de S. José)  em 30 de Agosto de 1731 e aí faleceu a 3 de Outubro do mesmo ano.

 

Conta de custas, 13$945 reis.

 

 

 

À LAIA DE CONCLUSÃO

 

1. Constata-se uma grande diferença entre os processos da família legítima e dos filhos naturais nos casos a que nos referimos neste texto. Os pais e os filhos legítimos depressa deixaram de negar as práticas judaicas, por saberem que não deixariam de ser atormentados enquanto o não fizessem. Certamente disso teriam conhecimento por informação dos seus parentes que já tinham passado pelos calabouços da Inquisição.

Os filhos ilegítimos estavam sem dúvida mais afastados da linhagem judaica e sentir-se-iam incomodados se confessassem convicções que nunca haviam tido. Com menos educação, não conheciam tão bem como os outros membros da família, os meandros da Inquisição. Foi a desgraça deles, sobretudo do João Pereira, que acabou por morrer no cárcere.

O que aconteceu depois, à família, não sabemos. Em 1730, já Francisco Pereira Dias mudara a residência da família de Tondela para S. João de Areias. Já não se sentiriam bem morando em Tondela, depois do que haviam sofrido nos cárceres da Inquisição em Coimbra. Ficamos também sem saber se algum dos filhos acabou a sua formatura em Medicina.

  

2. O mistério da Inquisição.

Alguns historiadores têm-se mostrado perplexos sobre o que movia os inquisidores.  Assim, Rafael Valladares, em A Independência de Portugal, pag. 102, pergunta-se: “Que interesses servia o Santo Ofício em Portugal? Esta pergunta já foi colocada em várias ocasiões, sem que ninguém tenha conseguido dar a resposta que ela merece. É certo que o tribunal actuava, em princípio, por razões de ordem religiosa, embora saibamos que o Santo Ofício era movido, também, pelas ancestrais rivalidades entre a Inquisição e a Companhia de Jesus, e ainda por conflitos de vária ordem, alguns deles de carácter social. Mas na acção inquisitorial pesaram, também, razões de alta política.

Na realidade, os motivos da actuação da Inquisição foram variando ao longo dos tempos. Com razão, um recente Congresso Luso-Brasileiro sobre a Inquisição se chamou “Tempo, razão, circunstância”. Mas, para além dos simples interesses materiais do confisco dos bens dos Réus, da corrupção dos funcionários, do fanatismo dos inquisidores, há que ter em conta a procura do poder, puro e simples, como se vê do retrato que faz do Inquisidor-Geral, D. Francisco de Castro, o Prof. António Borges Coelho na primeira comunicação do Congresso antes referido [35]. A prisão de Duarte da Silva [36] e a condenação à fogueira de Manuel Fernandes Villa-Real [37], que, por coincidência, foram ambos ao auto da fé de 1 de Dezembro de 1652, constituíram desafios directos à autoridade do Rei D. João IV. Aliás, alguns autores consideram que também a escolha da data do auto-da-fé, 1 de Dezembro, aniversário da Restauração, foi uma afronta directa a D. João IV.

 

BIBLIOGRAFIA

 

António Baião, Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa, 3.ª ed., Lisboa, Seara Nova, 1972-1973, 3 vols.

 

António Borges Coelho, A Inquisição e os seus fantasmas: a morte de um Inquisidor Geral, in Inquisição portuguesa: tempo, razão e circunstância, Coordenação de Luis Filipe Barreto, José Augusto Mourão, Paulo de Assunção, Ana Cristina da Costa Gomes, José Eduardo Franco, ... [et al.], Editora Prefácio, Lisboa – S. Paulo, 2007, ISBN 978-989-8022-20-2, pags. 7-19.

 

Arlindo Camillo Monteiro, Il peccato nefando in Portogallo ed il tribunale dell'Inquisizione. - Roma : Leonardo Da Vinci, [1928?]. - 64, [1] p. ; 23 cm. - Sep. "Rassegna di Studi Sessuali e di Eugenica", [S.l.], 6 (2-3) 1926 e 7 (1) 1927

 

Brian Innes – Tortura na política e na religião, da Antiguidade aos nossos dias, Editorial Inquérito, 2001

 

Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e linguagem, Rio de Janeiro, Documentário, 1977

 

J. Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Clássica, Lisboa, 1975.

 

Inquisição portuguesa: tempo, razão e circunstância, Coordenação de Luis Filipe Barreto, José Augusto Mourão, Paulo de Assunção, Ana Cristina da Costa Gomes, José Eduardo Franco, ... [et al.], Editora Prefácio, Lisboa – S. Paulo, 2007, ISBN 978-989-8022-20-2

 

Rafael Valladares, A independência de Portugal, Guerra e Restauração, 1640-1680, Prefácio de Joaquim Romero Magalhães, Tradução de Pedro Cardim, A esfera dos livros, Lisboa, 2006, ISBN 989-626-042-7

 

Francisco Manuel Alves, Reitor de Baçal,  Memórias archeológico-historicas do districto de Bragança ou repositório amplo de notícias chorographicas, Volume V Os judeus no distrito de Bragança, Tip. Geraldo da Assunção, Bragança, 1925

 

Cecil Roth (1899 1970), The Spanish Inquisition, New York, The Norton Library, 1964, 316 pag. ISBN 0-393-0-0255-1

 

Inventário dos processos da Inquisição de Coimbra, 1541-1820, 2 vols. , leitura e introdução de Luís de Bívar Guerra, Paria, Centro Cultural Português, 1972, Fundação Calouste Gulbenkian

 

 

 

 

[1]  Cristãos novos eram “os que de judeus se tornaram cristãos e os que deles descendiam por linha de pai e mãe”. Quando recebiam o baptismo já adultos, chamavam-se “baptizados em pé”. Cf. Elias Lipiner, pag. 32 e 53-55.

[2]  DGARQ, Inquisição de Coimbra, Processo n.º 7315. Ao processo refere-se o Padre Francisco Manuel Alves, Reitor do Baçal, no volume V das Memórias archeológico-históricas do districto de Bragança com a seguinte referência: Auto de 25 de Maio de 1727 – Francisco Pereira Dias, mercador, natural de Mirandela, morador em Tondela.

Na Torre do Tombo, existe ainda o maço 19, n.º 4, da Inquisição de Coimbra, com mais de um cento de folhas, com os autos de confisco, as arrematações, as reclamações de créditos e outros documentos relativos aos bens de Francisco Pereira Dias e esposa (em mau estado).

[3] DGARQ, Inquisição de Coimbra, Processo n.º 7316. Não foi possível examinar este processo, por se encontrar em mau estado

[33] Em Coimbra, chamavam Torno ao Potro (ou cavalete), “espécie de cama de ripas onde, ligado o paciente com diferentes voltas de corda nas pernas e braços, se apertavam aquelas com um arroxo, cortando-lhe as carnes” – João Lúcio de Azevedo, pag. 140. O torno seria o próprio arroxo. Tratos espertos eram puxões, de repente e de abanão; tratos corridos eram mais lentos e progressivos, mas igualmente dolorosos. Cf. Elias Lipiner, pag. 113. 

[34] Sobre a tortura na Inquisição (sec. XVIII), leia-se o que escreveu António Nunes Ribeiro Sanches:

A tortura é uma espécie de leito tecido de cordéis, de cuja madeira saem 8 ou 16 cordas; duas ou quatro para cada perna e outras duas ou quatro para cada braço; cada corda é confiada a um guarda para que a retese com um torniquete; e tão lindamente as repuxam, à ordem dos Senhores Inquisidores, que as cordas muitas vezes estalam e rompem; e então, segundo ouvi dizer, quando a corda quebra, é que se sentem as mais horríveis dores; mas, quebrada uma, logo metem outra em seu lugar. Isto dura até o desgraçado não poder já gritar, porque lhe falecem as forças; então o Médico que assiste a seu lado, toma-lhe o pulso e, se nota que este lhe falta, ordena que suspendam a tortura. São horripilantes os gritos que soltam estes infelizes; um médico conheci eu, o qual, antes de entrar na Inquisição, tinha uma voz tão fina que correspondia, falando, à nota de Mi; submetido, porém, à tortura da Inquisição gritou tão medonhamente que adquiriu a voz de tenor; de sorte que, saindo de lá, ninguém o conhecia pela voz; ficou, porém, tão debilitado das pernas e braços, que algumas vezes nem podia escrever caracteres inteligíveis.

As cordas (da tortura) penetram tão fundo nos braços, que eu vi os sinais delas à maneira de cicatrizes, em toda a volta dos braços, em vários homens, mulheres e raparigas.

Uma pobre mulher que tinha sofrido a tortura de dezasseis cordas, ficou tão maltratada que, passados dois anos, caindo doente de uma pleurisia e querendo-a sangrar, ainda que lhe tivessem lancetado muito bem as veias de ambos os braços, não saiu delas sangue; porque as veias estavam cortadas pelas cordas e já cicatrizadas. E assim morreu essa mulher sem que fosse possível extrair-lhe mais do que uma ou duas onças de sangue.

Os infelizes que sofreram a tortura, homens e mulheres, ficam, pelo menos durante os primeiros seis meses, incapazes de fazer uso das mãos: alguns desses vi eu que nem podiam segurar a colher para comer a sopa. Isto sucedeu a um médico. Restabelecem-se algum tanto metendo as mãos nas goelas das rezes recentemente degoladas, enquanto escorre o sangue fresco. Fazem isto durante quatro ou cinco meses.

 

António Nunes Ribeiro Sanches, em Arthur Viegas, “Ribeiro Sanches e os Jesuítas – amigo ou inimigo?”, in Revista de História, vol. 9, 1920 , pag. 85

 

[37] Manuel Fernandes Villa-Real (1608-1652), também cristão novo, foi escritor e desenvolveu importante actividade diplomática nas capitais europeias a favor da Restauração. Regressado a Portugal, foi condenado à fogueira pela Inquisição. Os Judeus consideram-no um mártir da fé judaica. Ver Ramos Coelho (1832-1914), Manuel Fernandes Villa Real e o seu processo na Inquisição de Lisboa, Lisboa, Empreza do Ocidente, 1894, 78 pags. MF 6486 da Biblioteca Nacional de Lisboa. (online aqui)