10-6-2009

Pedro Nunes

(1502 - 1578)

 

Pedro Nunes, que assinava Pero Nunez, nasceu em 1502 em Alcácer do Sal, pelo que, nos seus livros em latim, aparece como Petrus Nonius Salaciensis; Salacia era o nome romano da cidade. O ano do seu nascimento é ele mesmo quem o diz: “Exempli gratia, sit anno Domini 1502., quo ego natus sum, datum tempus 60. dierum, …..” (Pag. 135, 2.ª coluna, De arte atque ratione navigandi, edição de Coimbra, 1573). Os biógrafos que indicaram anos hipotéticos de nascimento, tinham feito mal o trabalho de casa.

Sobre a sua biografia, são poucos os dados existentes. Desconhece-se o nome de seus pais e sobre os seus estudos pairam bastantes dúvidas. Pedro Nunes era judeu, o que não tem grande discussão, pois é o próprio Damião de Góis que, na Crónica do Rei D. Manuel I o chama “Português de Nação”, o que na altura queria dizer cristão novo, descendente de judeus, como é sabido (*). Que os seus biógrafos se admirem de ele nunca ter sido perseguido pela Inquisição, diz bem da natureza perversa daquele Tribunal.

Não há dúvida, porém, que Pedro Nunes beneficiou toda a vida da protecção da Corte, quer do Infante D. Luis, de quem foi nomeado “mestre”, como diz Damião de Góis, quer dos Infantes D. Henrique e D. Duarte, que, segundo ele, Pedro Nunes, foram também seus discípulos e do próprio Rei D. Sebastião que iria assistir às lições dos tios. As excepcionais benesses em rendimentos e mercês diversas, que lhe foram conferidos ao longo da vida, são disso boa prova.

Alguns dados da sua vida chegam-nos dos processos da Inquisição de seus netos, denunciados como judaizantes, Matias Pereira (Pr. n.º 4724, de Coimbra - online) e Pedro Nunes Pereira (Pr. n.º 8298, de Lisboa), presos em 1623. Ficaram presos respectivamente 8 e 9 anos, admirando-se António Baião de como ainda saíram vivos. Mas, de lá saíram "apaixonados", isto é, desolados, desanimados da vida, tanto assim que não chegaram a casar-se.

Na pesquisa de dados sobre Pedro Nunes, é preciso ter muito cuidado com as homonímias, pois o nome Pedro ou Pero Nunes era bastante vulgar na época. Alguns autores chegaram mesmo a confundir o Pedro Nunes, professor universitário, preceptor dos Príncipes e Cosmógrafo-Mor do Reino, com Pedro Nunes, Vedor e Desembargador que desempenhou funções na Índia e foi depois o último Reitor da Universidade em Lisboa, cargo para que foi eleito em 10 de Novembro de 1536. Existe até um documento de 21 de Janeiro de 1537 (MCCCLXXXV) – sobre a licenciatura do bacharel Manuel de Noronha, que menciona ambos, embora diferenciando-os bem: um é o doutor Pero Nunez, do Conselho e desembargo do dito senhor (o Rei) e Chanceler em sua corte da casa do Cível, Reitor do Estudo e Universidade de Lisboa, e o outro é o doutor Pero Nunez, nomeado doutor examinador.

Sobre os seus estudos na juventude, sabemos pelas declarações na Inquisição de seu neto Pedro Nunes Pereira, que, com pouca idade, terá ido estudar para a Universidade de Salamanca, onde, no ano de 1523, se casou com D. Giomar de Areas, folha de Pedro Fernandes de Areas, vizinho da dita cidade de Salamanca.  Refere Joaquim Veríssimo Serrão, que não existem livros de claustro entre 1512 e 1526 e isso explicaria a falta de documentos respeitantes às suas matrículas. Não concordo, porém, com quem apenas o indica como estudando em Salamanca poucos anos. Naquela época, sabidos uns rendimentos de gramática e de latim, ia-se para a universidade por volta dos 15 anos. Sabemos que, em meados dos anos 20 do Século, Pedro Nunes, conhecia Filosofia, a Medicina da época, Matemática, Álgebra e Geografia: tudo isso exige muitos anos de estudo. Por isso deve ter ido para a Universidade por volta de 1517.

J. Veríssimo Serrão regista a sua presença em Salamanca como leitor substituto de cadeiras de Artes, daí concluindo que já era bacharel em 1526. Põe, porém, em dúvida a afirmação do neto de que o avô fora leitor de uma cadeira, por não haver nenhum registo de tal facto. Supõem alguns autores que, desde 1526, até aparecer em Lisboa em 1529, Pedro Nunes poderá ter frequentado outra Universidade em Espanha, nomeadamente a de Alcalá de Henares. Seja como for, pelo que dele conhecemos, podemos bem afirmar que não esteve parado e que continuou certamente a estudar, tal a bagagem de conhecimentos que depois demonstrou possuir.

Por despacho de 16 de Novembro de 1529, foi nomeado Cosmógrafo Régio, com o rendimento anual de 20 000 reais; o documento identifica-o como bacharel, certamente em Medicina. Logo a seguir, em 20 de Novembro, concorre para leitor da cadeira de Filosofia Moral, que começou a leccionar em 4 de Dezembro. Leccionou depois Lógica pela saída do regente desta cadeira.

Em 16 de Fevereiro de 1532, tira os pontos para o exame para o grau de licenciado e doutor em Medicina. Feito o exame com êxito, a 3 de Março, tomou o grau de doutor.

A 6 de Abril de 1532, um despacho manda que o doutor Pedro Nunes pare de dar a cadeira de Lógica, por não ter ouvintes e passe a dar a cadeira de Metafísica.

No final do ano lectivo 1531/1532, Pedro Nunes abandonou a Universidade; mais tarde, foram-lhe contados para sua reforma três anos de docência em Lisboa de “um curso de Artes com algumas Matemáticas” (sic).

J. Veríssimo Serrão fala nesta época de um documento de Salamanca, datado de 22 de Março de 1532, de Pedro Nunes, médico, a justificar um curso de medicina naquela Universidade.  Também estes anos da vida de Pedro Nunes, até 1544, data em que foi nomeado professor em Coimbra, são algo misteriosos. Talvez aquele documento pudesse ter sido pedido por um procurador. Ou será que naqueles anos, Pedro Nunes fez vaivém entre Portugal e Espanha, enquanto aprofundava os seus estudos e escrevia os seus livros?

Embora não leccionasse, Pedro Nunes pertencia à Universidade de Lisboa; e o certo é que ele fez parte do corpo de examinadores de diversos doutorandos, durante esses anos:

          - Jerónimo Fernandes – 10 de Novembro de 1532

          - Diogo Lopes – 15 de Fevereiro de 1534

          - Luis Nunes – 17 de Novembro de 1537

          - Manuel de Noronha – 22 de Janeiro de 1537 

Pedro Nunes teria já começado a escrever apontamentos para os Príncipes anos antes; e, como era costume da época, terá mesmo divulgado textos em manuscritos. Dirá mais tarde no Tratado de Álgebra em espanhol (1567), que o teria escrito trinta anos antes. E, de facto, Jacques Pelletier, em 1557, já tinha ouvido falar desse Tratado (Anexo 1).

Foi neste intervalo, entre Lisboa e Coimbra, que ele escreveu e publicou a Tratado da Esfera. Por que não o escreveu ele logo em latim, que (pode dizer-se) era o inglês da altura, isto é, a língua universal para homens de ciência? Como mera hipótese, pode aventar-se que ele precisaria ainda de aperfeiçoar o seu latim, o que terá feito, após a sua publicação em português, encetando então a tradução e ampliação dos textos em latim.

 

Tratado da esfera e outros, German Galharde impressor, Lisboa, 1-12-1537

 

Contém:

- Tratado da Esfera, tradução com anotações do livro Tractatus de Sphæra, escrito em 1233 por John of Holywood ou Johannes de Sacrobosco.

- Teórica do sol e da lua, tradução das teóricas de Georg von Peuerbach (1423 – 1461)

- Tradução do primeiro livro da Geografia de Ptolemeu

Dois tratados que o mesmo autor fez sobre a arte de marear:

- Tratado sobre certas dúvidas da navegação

- Tratado que o Doutor Pero Nunez Cosmographo del Rey nosso Senhor fez em defensam da carta de marear; cõ o regimento da altura – é dedicado por Pedro Nunes ao Infante D. Luis.

No final do livro, uma décima laudatória da autoria de Jorge Coelho (? – 1563):

 

Georgii Coelii Epigramma

 

Qui cupis e terris arcana incognita cæli

      Noscere: et ignoto pandere vela mari.

En tibi qui summum reserat sublimis olympum.

      Per medios fluctus hoc duce tutus eris.

Haud mirum ingenii tot opes florere libello.

      Nobilis egregium condidit author opus.

Si darum Alcide durat per sæcula nomen.

      Quod cælum potuit sustinuisse humeris.

Non minor et Petri vincenda est gloria Nonni

      Cuius mens terras æquora et astra capit.

 

 

 

Epigrama de Jorge Coelho

 

Ó tu, que desejas desde a terra conhecer os mistérios incógnitos do céu

E abrir as velas ao mar desconhecido

Eis aqui quem sublime descobre o sumo Olimpo

E com o qual, por guia, serás seguro através das ondas.

Nem admira que tantas riquezas de engenho desabrochem num livrinho.

O nobre autor deixou uma obra egrégia

Se dura através dos séculos o nome ilustre de Alcides

Que pôde sustentar o céu com os ombros,

Não admira que se celebre a glória de Pedro Nunes

Cuja mente abrange as terras, os mares e os astros.

Tradução do P.e Serafim Leite, S. J. em A. Fontoura da Costa (1869-1940), Pedro Nunes, (1502-1578), Agência Geral do Ultramar, Lisboa, 1969.

 

 

 

Entre as anotações a Sacrobosco, uma com o título “Anotações sobre as derradeiras palavras do Capítulo dos Climas”, foi mais tarde traduzida por Elias Vinet e incluída nalgumas edições do Tratado da Esfera de Sacrobosco, com o título “Petri Nonii Salaciensis annotatio in extrema verba capitis de climatibus” (ver Bibliografia).

 

Há um pequeno opúsculo de 12 páginas com o título Astronomici introductorii de sphæraepitome per Petrum Nonium Salaciensem. É um resumo em latim do Tratado da Esfera. Desconhece-se a data da impressão.  Está online aqui.

 

Como é natural, a obra deverá ter tido pouca repercussão: em Portugal, deveria haver muito pouca gente que percebesse de que é que se tratava e não foi conhecida no estrangeiro.  Pedro Nunes terá aperfeiçoado o seu latim e passou a escrever nessa língua.

Em Janeiro de 1542 acabou a impressão por Luis Rodrigues, de Lisboa,  do livro que o tornou conhecido na Europa, como também se constata da carta de Jacques Pelletier (Anexo 1): o  De Crepusculis.

Após a dedicatória a D. João III, datada de 15 de Novembro anterior, um poema de um homem da Corte, D. António Pinheiro (? - 1582), Bispo de Miranda e de Leiria:

 

 

Antonii Pinarii in laudem operis Carmen

 

 

Cinthia quæ rapidis nocturna crepuscula bigis

          Proferat, aut rutilos Sol ubi pungit equos

Quam certis medius constet regionibus aer

         Æthereo quæ sint sydera fixa polo

Omnia sollerti vestigans ordine Petrus

         Nonnius Hercules dat  tibi lector ope

Tolle humiles animos, terrarumque exue curis

         Pectora,  non magnus magna libellus habet.

 

Poema de António Pinheiro em louvor da obra

 

Quais as sombras nocturnas que a Lua espalha com o seu carro veloz? Onde é que o sol faz brilhar os seus cavalos rutilantes? Qual a atmosfera em certas regiões medianas? Quais os planetas pendurados no céu etéreo? Tudo isso te dá Pedro Nunes, estudando com sábia lógica, dando-te as respostas, leitor, como um Hércules. Ergue a tua mente humilde, levanta ao alto o teu coração, liberto dos cuidados terrenos: sendo embora um pequeno livro, contém coisas muito grandes.

 

 

 

Como o título refere, a segunda parte do livro contém uma tradução corrigida de um texto outrora traduzido do árabe Alhazen (965 – 1038) por Gérard de Crémone. Alhazen é o nome vulgar de Abu Ali Al Hasan Ben Al Hosain Ben Al Haytham.

Diz Pedro Nunes que encontrou o texto deste árabe tão deturpado e cheio de erros, que teve mais trabalho em o corrigir, do que em compor a parte do livro por ele redigida.

Foi no livro De Crepusculis que Pedro Nunes teve a ideia da construção de um instrumento que permitisse a leitura de subdivisões da escala principal com maior precisão. Foi uma ideia teórica, que ele parece não ter posto em prática na construção de um instrumento.

Cristóvão Clávio (1538 – 1612), Jesuita, concebeu e descreveu no seu Astrolabium, publicado em 1593, um instrumento mais simples, conhecido por clavier. Este padre estudou em Coimbra por algum tempo, onde poderá ter tido conhecimento dos livros de P. Nunes.

Depois disso, Pierre Vernier (1580 – 1637), construiu a chamada “escala de Vernier”, que se aplica a diversos instrumentos.

Esta sequência de cientistas deu origem a um problema académico de saber como se deve chamar o instrumento: Nónio, Clavier ou Vernier.

 

Um enigmático manuscrito

 

Em 1944, Joaquim Moreira de Carvalho, da Universidade de Coimbra, teve conhecimento da existência de um manuscrito importante de Pedro Nunes na Biblioteca Nazionale Centrale, em Florença na Itália, com a cota Codice Palatino 825. Tinha sido doado pelo Cosmógrafo-Mor do Reino de Portugal, Luis Serrão Pimentel (1613 – 1679) ao príncipe herdeiro da Toscana, Cosme de Médicis (1642-1723) aquando da visita deste a Portugal, iniciada em 9-1-1669 e que durou cerca de dois meses. Fora dado ao Cosmógrafo pelo neto do autor, de nome Matias Pereira, que desbaratou sem proveito dois “caixões” (como se dizia na altura) de livros e manuscritos do avô.

Só no final de 1952, é que Joaquim de Carvalho publicou o manuscrito, dando-lhe o título de “Defensão do tratado de rumação do globo para a arte de navegar”. Na Biblioteca, ao manuscrito, foi dado o título de “Alcune dimostrazioni in difesa della sua dottrina sulla curva lossodrometica descritta dalle navi nelle lunghe navigazioni oblique al meridiano o all’equatore”.

Em 2003, Stefania Elena Carnemolla, investigadora italiana,  inseriu numa publicação periódica (Nuncius -  Annali di storia della scienza) uma nova transcrição do manuscrito, referindo-se à primeira como “un primo, incerto tentativo di edizione, non scevra, quest’ultima di diverse inesattezze legate alla lettura paleografica del testo in questione”, apreciação nada lisonjeira do trabalho de Joaquim de Carvalho.

No manuscrito, diz Pedro Nunes que leu o tratado escrito por um Bacharel sobre o rumar do globo, com o propósito de criticar “o que sobre isso escrevi na obra que dirigi a V. Alteza” (o Príncipe D. Luis).

Quem seria o tal Bacharel? Com toda a evidência, parece ser Diogo de Sá que, em 1549, publicou em Paris o “De Navigatione Libri tres, Quibus Mathematicæ disciplinæ explicantur: ab Jacobo à Saa Equite Lusitano nuper in lucem editi” De facto, conforme refere  Luciano Pereira da Silva, o segundo livro  de Diogo de Sá introduz um diálogo entre um Matemático e um Filósofo, e bastantes das falas do Matemático são a tradução latina do que Pedro Nunes escrevera no seu Tratado da Defenção da Carta de marear. É o próprio Pedro Nunes que, no manuscrito, disso se queixa: “Dizem mal de meus tratados aproueitando-se delles & usando muitas uezes de minhas próprias palauras, & querendo falar em tudo, danão tudo. Tenho determinado por esta Rezão, acabando de alimpar algũas obras que escreuy, pasar meus estudos aa philosophia, e a largarlhes as mathematicas no estudo das quaes perdi a saúde irremediauelmente. “

Pensando-se que o texto se deverá considerar datado de pouco antes de 1544, isso não obsta a que Pedro Nunes conhecesse já a obra de Diogo de Sá em manuscrito. Deverá ter tido uma fúria ao ler as críticas do Bacharel, ainda por cima escritas em latim, e, por isso susceptíveis de uma difusão bastante mais extensa do que o seu Tratado da Esfera escrito em português.

Como exemplo do estilo do livro de Diogo de Sá, eis um pequeno trecho:

 

 

Et utilitas quam dicis circulum maiorem afferre, erit illi qui ambulare in mari semper voluerit, neque ad unam neque ad alteram partem sese convertens. Et non solum hoc tibi dico esse non posse, sed etiam esse deridendam hominis levissimam vanitatem. Quando quidem mihi dicas velim, hos angulos, quis nam in pelago mihi indicabit, ad modum æqualitatis et inæqualitatis illorum ambulandum? Si mihi dixeris quia acus ipsa amplius facere non potest, quod intra navem, suum leste aut quemlibet alterum rumum ostendere, ut per illum guberner. Si autem dixeris navem eos angulos mihi demonstraturam, longe falleris opinione. Nam id navis prestare nequit, præterquam quia commissa vento qui illa defert, per illud procedet iter per quod acus per quem libet rumorum suorum eam detulerit. Quis igitur mihi hos angulos ostendet et nunqid petam mare, ut mihi eos demonstret? Dicet mihi quod ubique mare est et idem, et in se aliquid horum monstrare non potest. Igitur hos angulos quærere non possum, nisi in hyddrographia. Pergito ergo ad eam, et invenies quod omnes rumi leste oeste, quadraturam faciunt cum rumis artici anctartici in omni parte, et in toto itineris processu. Et sic omnes rumi cum quolibet suorum contrariorum, et omnium rectorum absque aliqua inæqualitate. Quod si hoc ita est, quomodo aut per quem probare poteris, quod qui leste oeste abierit, sciat se rotam mutaturum qualibet hora, iuxta mutationem quam nobis faciunt meridiani cum circulo per quem pergimus?  Quando quidem notum est, huiusmodi navigationi amplius deservire non posse, nisi ad per mare ambulandum angulos faciendo.

 

 

E a utilidade que tu (o Matemático, Nunes) dizes que um grande círculo pode proporcionar, será apenas para quem quer andar sempre no mar, sem se decidir a ir para um lado ou para outro. E eu dir-te-ei não só que isso é impossível, mas também que demonstra uma vaidade leviana do homem perfeitamente risível.

Se me dissesses que a própria agulha de marear mais não pode fazer do que, dentro do navio, mostrar o rumo de leste ou um qualquer outro rumo, para que por ele me dirija; se além disso me dissesses que o navio me vai demonstrar quais são esses ângulos, estarias certamente errado.  O navio não tem tal possibilidade, pode apenas, empurrado pelo vento, seguir no caminho dado pela agulha em cada um dos seus percursos. Quem então me mostrará tais ângulos? O mar dir-me-á que o mar está por todo o lado, e por si não me poderá indicar nenhum deles. Logo tais ângulos não os posso procurar em mais nenhum lugar, senão nos mapas. Vai então ao mapa e verás que todas as linhas leste-oeste são sempre em todo o lado perpendiculares aos rumos ártico-antártico, ao longo de todo o percurso, e o mesmo acontece com todos os rumos e contra-rumos, fora de qualquer desigualdade. E sendo assim, como podes provar que quem vai de leste para oeste, saiba que deve mudar a sua rota de hora a hora de acordo com a mudança observada do ângulo dos meridianos em relação ao grande círculo pelo qual navegávamos? Sendo esta a situação, navegar desta maneira não serve para mais nada do que peregrinar pelo mar a fazer ângulos.

 

 

 

 

Nesta altura, já Pedro Nunes tomara consciência de que teria de escrever em latim para que a sua obra fosse conhecida. Por isso é que já havia escrito o De Crepusculis nessa língua.

Por Alvará de 16 de Outubro de 1544, Pedro Nunes foi mandado para a Universidade de Coimbra para reger a cadeira de Matemáticas. Vencia um ordenado de cem mil reais por ano.

Pedro Nunes manteve, porém, o cargo de Cosmógrafo e a sua ligação à Corte em Lisboa. Em 22 de Dezembro de 1547, foi nomeado Cosmógrafo-mor do Reino e esteve ausente de Coimbra na primeira parte do ano lectivo 1547/1548. Segundo Teixeira de Carvalho, ele era chamado com frequência a Lisboa para “entender nas cartas de marear e no exame dos pilotos” das naus que partiam para terras distantes. Havia então, um outro professor que leccionava em regime de substituição.

Entretanto, publicara em 1546 novo livro, o De Erratis Orontii Finaei, Regii Mathematicarum Lutetiae Professoris. Esta obra tem dezanove capítulos e nela  refuta os crassos erros de Oronce Finé (1494 – 1555), Professor do Collège de France.

O Prof. Fernando Taveira da Fonseca anota as ausências de Pedro Nunes em Lisboa:

          - Em 21 de Março de 1553, regista-se que fora chamado à Corte; é substituído pelo mestre António do Souto;

          - Em Novembro de 1553, apresenta ao Reitor uma carta dizendo que o Rei lhe dissera para se deslocar a Lisboa para falar com ele; partiu a 15 de Novembro, sendo substituído por Francisco Calado;

          - Em 1556, esteve na Corte de 21 de Maio a 20 de Julho;

          - A 23 de Fevereiro de 1557, vai de novo ao Reitor Afonso do Prado apresentar uma carta de El-Rei mandando-o ir a Lisboa.

Pedro Nunes conseguiu uma determinação Real para que ele, embora ausente, vencesse o seu vencimento por inteiro e não apenas dois terços, como era da praxe.

O período entre Outubro de 1557 e 9 de Fevereiro de 1558 foi o último de professorado efectivo de Pedro Nunes. A 12 desse mês de Fevereiro, apresentou ele uma carta do Rei, em que este o destacava para coisas do seu serviço, pelo espaço provável de quatro anos. De novo, ficou a substituí-lo mestre Pero de Sousa.

Já a 20 de Dezembro de 1557, Pedro Nunes apresentara ao Conselho da Universidade um Alvará Real (de D. Catarina, Regente do Reino, pelo falecimento de D. João III, em 11 de Junho de 1557) determinando como seria contada a sua futura aposentação: três anos de regência em Lisboa, mais treze anos em Coimbra e ainda os quatro anos em que “há-de residir na Corte, entendendo nas cartas de marear e exames dos pilotos e outras coisas do seu serviço”. Além disso, a sua pensão seria de oitenta mil reais, sem embargo de os estatutos preverem apenas quarenta, isto é, metade do salário.  Do mesmo modo, a Universidade ficava obrigada a pagar-lhe o seu salário integral de professor de Matemática, nos quatro anos em que estaria ao serviço da Corte. Pagava de má vontade, mas pagava.

Foi assim que Pedro Nunes se jubilou em 4 de Fevereiro de 1562. Continuou a viver em Coimbra, até que D. Sebastião o chamou para Lisboa em 1572, passando a residir no Palácio Real. Diz-se que, passados dois anos, regressou a Coimbra, onde viveu até à morte.

Entretanto, Pedro Nunes trabalhara assiduamente para que as suas obras viessem a público em latim. E foi assim que em Setembro de 1566, saiu da tipografia de Sebastian Henric Petri, em Basileia, a sua Opera, que compreende

 

-       Petrus Nonius Salaciensis ad Lectorem; Praecipuae Sententiae prioris libri - Praecipuae Sententiae posterioris libri; Praecipuae ex iis quae in Theoricas planetarum, Georgii Purbachii annotavimus

-       Rerum Astronomicarum Problemata Geometrica.

-       1.ª De duobus problematis circa nauigandi artem Petri Nonii Salaciencis, Liber unus

-       2.ª Petri Nonii Salaciencis de regulis & instrumentis, ad varias rerum tam maritimarum, quam &coelestium apparentias deprehendendas, ex Mathematicis disciplinis. Liber II

-       3.ª Annotationes in Aristotelis problema mechanicum de motu navigii ex remis

-       4.ª In theoricas planetarum Georgii Purbachii annotationes aliquot, per Petrum Nonium Salaciensem

As primeiras duas partes são a tradução para Latim revista e aumentada dos primeiros dois livros do Tratado da Esfera.

A quarta parte são anotações à obra de Purbáquio Theoricæ Novæ Planetarum, de que ele traduzira uma parte para Português, a Theorica do Sol e da Lua, incluída no mesmo Tratado da Esfera.

O volume tem 307 páginas.

 

A edição, embora bem apresentada (a Tipografia tinha muito prestígio), saiu com muitos erros, dada a ausência do Autor para rever os textos. Teve, porém, muita repercussão na Europa.

 

Em 1567, foi publicado em Antuérpia, o Livro de Álgebra, em língua Castelhana, cuja impressão ocorreu em por duas Tipografias

          - En Anvers. En casa de la Biuda y herederos de Juan Stelsio

          - En Anvers. En casa de los herederos de Arnoldo Birckman a la Gallina Gorda.

 

Em face dos erros da edição de 1566, decidiu Pedro Nunes recorrer aos serviços do tipógrafo de Coimbra, António Mariz, onde podia à vontade proceder a uma aturada revisão dos textos.

Primeiro, foram impressos o De Crepusculis e o De Erratis Orontiis Finaei em que foi aposta a data de 1571, mais tarde emendada à mão para 1573.

Depois, os mesmos textos da edição de Basileia, sendo aposta no final a data de 1572, que aparece por vezes emendada à mão para 1573. Esta última é de facto a data constante do rosto da edição.

Já depois da morte de Pedro Nunes, em 1592, a Tipografia HenricPetrina procedeu a mais uma edição da obra de Pedro Nunes, juntando-lhe desta vez o De Crepusculis e o De erratis Orontii Finaei, totalizando 439 páginas.

 

Já no sec. XX, procedeu-se à edição das Obras de Pedro Nunes, com tradução portuguesa dos originais em latim e abundantes comentários; começou a ser publicada em 1940 pela Academia das Ciências de Lisboa. Saíram os seguintes volumes:

Vol. I - Tratado da Sphera & Astronomici Introductorii de Spaera Epitome, 1940.

Vol. II - De Crepusculis, 1943.

Vol. III - De Erratis Orontii Finaei Regii Mathematicarum Lutetiae Professoris, 1960.

Vol. VI - Libro de Algebra en Arithmetica y Geometria, 1950.

Por sua vez, a Fundação Gulbenkian procedeu a partir de 2002 às edições seguintes:

1.º v.: Tratado da Sphera : astronomici introdvctorii de spaera epitome. - XXXVIII, 320 p. .

2.º v.: De crepusculis. - 2003. - X, 431 p. . –

3.º v.: De erratis orontii : finae regii mathematicarvm lvtetiae professoris. - 2005. - X, 409 p.

4.º v. – De arte atque ratione navigandi, 2008, 805 p.

Nas suas obras, Pedro Nunes fala de diversos estudos que não chegaram até nós, alguns que teria mesmo concluído em manuscrito; os próprios netos testemunharam que desbarataram o espólio do avô. Para um elenco muito completo, ver o texto de Henrique Leitão, no Catálogo da Exposição da BNP, de 2002.

Terminada a descrição das obras publicadas por Pedro Nunes, regressemos à sua biografia. Como antes referido, Pedro Nunes casara em Salamanca em 1523 com D. Guiomar Areas, de quem teve seis filhos:

1 - Briolanja, que casou com Manuel da Gama Lobo em 29 de Março de 1566;

2 – Isabel da Cunha, que casou com João Pereira de Sampaio, fidalgo da casa d’El-Rei, de quem teve três filhos: Matias Pereira de Sampaio, Pedro Nunes Pereira, este formado em Cânones e Rui Pereira de Sampaio, que faleceu em Roma;

3 – Francisca, freira no Convento de Lorvão;

4 – Pedro Areas, que emigrou para a Índia, onde faleceu.

5 – Apolónio Nunes, que foi para a India como seu irmão;

6 – Guiomar, a filha mais nova, que viveu com o pai até ingressar no Convento de Santa Clara em circunstâncias rocambolescas, de que falaremos a seguir.

Todos os netos de Pedro Nunes faleceram sem deixar descendência.

Foi grande preocupação de Pedro Nunes ter os filhos e filhas “arrumados”, como diz Joaquim Martins Teixeira de Carvalho (1861-1921). Conseguiu que fossem dadas tenças às filhas e benesses também aos genros. Enviou os dois filhos para a Índia, onde foram nomeados funcionários.

Restava-lhe em casa a filha mais nova, Guiomar, a quem constituiu um dote apetecível. Apareceu um pretendente, Heitor de Sá e foi celebrado o contrato de casamento. Porém, a mãe e os irmãos do noivo, que era órfão de pai, não haviam sido informados e, quando souberam, não gostaram da coisa; trataram até, de lhe arranjar outra noiva e mandaram o rapaz para Montemor-o-Velho por uns tempos. Regressado de lá, terminou o noivado com Guiomar.

Isto passa-se no final de 1577, estando já Pedro Nunes alquebrado pelos anos. Muito dorido pela atitude do moço, foi queixar-se ao Bispo D. Manuel de Menezes. Este mandou chamar Heitor de Sá e quando este não apareceu, recorreu à excomunhão para o obrigar.

Houve reunião na Igreja de S. João de Almedina para se resolver o caso. Teixeira de Carvalho apresenta provas de que esta ocorreu em 17 de Janeiro de 1578. Estava o Bispo, Guiomar, acompanhada pelo seu irmão Pedro, e Heitor de Sá com parentes seus. Guiomar defendia o contrato de casamento. Heitor negava que alguma vez tivesse prometido casar com ela. Guiomar pediu para falar com o noivo infiel em privado. Levantou o braço como se fosse dar-lhe uma bofetada, mas pegou numa faca afiada e fez-lhe um golpe que lhe retalhou a cara. Grande alvoroço na Igreja. O Bispo prendeu Guiomar e o irmão no aljube.

Heitor de Sá foi socorrido e (seguindo sempre Teixeira de Carvalho) levou onze pontos naturais.

Por pressão dos Sás, veio de Lisboa um Corregedor para decidir sobre o crime. Aproveitando a ausência do Bispo, foi ao aljube e tirou de lá os presos e pô-los no castelo, fora do alcance da justiça eclesiástica. O Bispo excomungou o corregedor e as nove pessoas que o acompanhavam e mandou fechar as igrejas da cidade, que assim permaneceram encerradas durante 10 dias, quando era tempo de Quaresma.

Veio por fim um Alvará real, entregando o caso ao julgamento do Bispo e mandando que os presos voltassem ao aljube, o que aconteceu em 21 de Fevereiro. O Bispo vencera. E tratou ele de resolver o caso pedindo a uma irmã sua Abadessa em Santa Clara que acolhesse lá como freira a D. Guiomar. Souberam disso os Sás e juraram que só morta é que ela entraria no Convento. O Bispo julgou então o caso e multou D. Guiomar em trinta cruzados que Pedro Nunes pagou, ao mesmo tempo que arranjava para a filha um generoso dote para entregar ao Convento que a ia receber.

E como entrou D. Guiomar no Convento? Foi no dia 21 de Março, dentro de uma canastra, das que eram usadas para transportar géneros para as freiras. E lá recebeu ela o hábito em Santa Clara em 23 de Março, Domingo de Ramos. Ficou depois conhecida como D. Guiomar, a que deu a cutilada.

Durante séculos, foi referido, contado e cantado o feito de D. Guiomar; descreveram-no Duarte Nunes de Leão (liv. citado – pag. 147 v.), Francisco Leitão (liv. cit. pag. 509 v.), João Franco Barreto (manusc. cit.), Alberto Pimentel (liv. cit. pag. 216), Teófilo Braga, liv. cit. pag. 205).

Muito conhecidas esta trova

 

Senhora Dona Guiomar

Moradora na Calçada

Que destes a cutilada

Senhora Dona Guiomar

Que moráveis na Calçada;

Mereceis tença d’El-Rei

Pois destes a cutilada.

 

e esta quadra

 

Foi mui grande o valor dela,

E pouca a vergonha dele,

Mas se ela ficou sem ele,

Ele não ficou sem ela.

 

mas há mais poemas…

 Segundo António Baião e é verosímil, a inimizade dos Sás que denunciaram os netos de Pedro Nunes à Inquisição vinha já da afronta feita a Heitor de Sá, parente deles, 55 anos atrás!...

A saúde de Pedro Nunes já não deveria estar muito boa, mas aumentaram os seus achaques com este episódio, a que ele não achou piada nenhuma. E faleceu a 11 de Agosto do mesmo ano de 1578.

  

A loxodromia – as curvas loxodrómicas

  

Pedro Nunes não utilizou, nem inventou a palavra loxodromia, nem refere as curvas loxodrómicas. Veremos adiante como o vocábulo apareceu. Mas todos os autores são unânimes em afirmar que ele descobriu o conceito. Aponta W.G.L. Randles as expressões que ele usa, aqui postas em itálico:

 

Pag. 167: “E quanto ao comprimento do caminho andam muito mais do que eles cuidam: como na figura que se segue parece, porque vão fazendo grandes rodeios, e quando sem tomar a altura por estimação do caminho que têm andado, querem fazer seu ponto: lançam em linha direita, o que têm andado por rodeios: e ficam os lugares em mais lonjura do que têm.

 

Pag. 168 … mas a conta há-de-se fazer por uma certa maneira de linhas curvas, como parece o nordeste desta figura, e não por linha direita, como a carta mostra.

  

Pag. 183 - …vendo Ptolomeu que o caminho que se faz por uma rota não é por círculo maior, que é o direito e contínuo: pois sempre fazemos com os novos meridianos ângulo igual ao com que partimos; o que era impossível fazer círculo maior se por ele fôssemos: antes é uma linha curva e irregular.

 

Ou seja: se a agulha de marear corta todos os meridianos sob o mesmo ângulo constante, porque o globo é esferóide, o percurso resultante não é uma recta mas sim uma curva. Esta é a curva loxodrómica, de loxodromia = rumo em curva, por oposição a ortodrómica = rumo a direito. A palavra loxodromia foi adoptada por Willibrord Snel van Royen para traduzir para latim o livro de Simon Stevin – Wisconstighe  Ghedachtenissen (1608), nesta página, por exemplo:

http://www.library.tudelft.nl/digitresor/?bookname=Wisconstige%20Ghedachtenissen%20deel%202&page=140

 que usava a palavra holandesa cromstreek, isto é, rumo em curva. Para traduzir para latim, Willibrord Snel van Royen, traduziu as palavras para grego, obtendo λοξοδρομία e ορθοδρομία, limitando-se depois a inseri-las no texto com o alfabeto latino, no livro Hypomnemata mathematica Lyon, 1605-1608, pag. 151 (imagem 515 do software)

http://archimedes.mpiwg-berlin.mpg.de/cgi-bin/toc/toc.cgi?dir=stevi_hypom_529_la_1605;step=thumb

Este era o procedimento habitual de quem escrevia em latim. André de Resende, para pôr em latim Vila Viçosa, que chamou Calípole, traduziu primeiro para grego καλή πόλη.

Em oposição ao “rumo em curva” existe o rumo em grande círculo, que é possível ao longo do Equador ou de norte para sul ao longo de um mesmo meridiano.  Por isso, o diferencial entre as curvas ortodrómicas e loxodrómicas é muito menor quando o percurso segue um mesmo meridiano (o percurso segue a mesma longitude)  do que quando atravessa muitos meridianos (o percurso segue a mesma latitude). Atente-se aos números que aponta James Alexander:

 

 

Percurso

Ortodrómica    

Loxodrómica

 
 

 

Nova Iorque a Pequim 

Nova Iorque a Canberra   

 

11 019 km.

16 230 km.

 

14 380 km.

16 408 km.

 

                                                                                                 .                         

Diz W.G.L. Randles que Simon Stevin seguiu o raciocínio de Pedro Nunes:

 

 

De iis quæ præmitti debent ad ducendum eas lineas in globo quas nautæ rumbos appellant  Cap. 21

 

Inter initia prioris libri ostendimus eam lineam, quam navis suo curso citra meridianum aut æquinoctialem describit, circularem non esse, sed ex exiguis quibusdam maximorum circulorum segmentis constare. Quanquam advertimus  non sine ratione dici posse inflexam quandam lineam esse alterius formæ instar helicæ duabus  confectam motionibus. Navis enim lationem dum citra meridianum tum æquinoctialem cursum tenet, ex duabus lationibus, a duobusve motoribus provenire, fortasse quispiam suspicabitur. Una latio est, qua navis ipsa in illius maximi circuli plano secundum longitudinem posita, qui in optatam horizontis partem spectat, vel flatu, vel remis impellentibus, in longum fertur. Altera vero in latus sit, sive obliquum, qua gubernator clavum tenens, nautica acu docente, navem ipsa ínterim detorquet, atque eo deflectit, quo prora spectabat, cum illiusmodi cursus institueretur. Idest quoniam mutato loco in novos incidit meridianos, et subinde in novos horizontes:  ea id circo arte in consumiles horizontum partes cursum dirigit. Quare si res ita se habeat, descripta línea quam rumbum dicimus, necque circularis erit, nec ex circularibus conflata. Nobis tamen aliter videtur. Navem enim animadvertimus  aliquandiu in longum ferri, anteaquam in latus deflectat: et id circo eiusmodi lineam ex exiguis segmentis maximorum circulorum constitutum esse, arbitramur. Nam cur navis perpetuo in latus deferri cogetur, si quanquam in máximo circulo quo flatus spirat, brevi tamen currículo versetur, alio proram spectare gubernator minime sentit?

 

Dos pressupostos necessários para traçar no globo aquelas linhas a que os mareantes chamam rumos. Cap. 21

 

No princípio do livro primeiro demonstrámos que a linha que o navio descreve com o seu curso – exceptuando o meridiano ou a equinocial – não é circular, mas sim formada por pequenos segmentos de círculos máximos. Advertimos, contudo, que se pode dizer, não sem razão, que é uma certa linha curva resultante de dois movimentos, como uma hélice.

Com efeito, pode haver quem conjecture que o movimento do navio, quando navega sem ser ao longo de um meridiano ou da equinocial, resulta de duas componentes ou de dois agentes motores. Uma das componentes é aquela com que o navio segue, impelido pelo vento ou pelos remos, quando orientado, no sentido do comprimento, no plano do círculo máximo que passa pelo ponto de destino. A outra é a que se faz para o lado, ou de través, com a qual o timoneiro, segurando o leme e seguindo as indicações da agulha de marear, desvia o navio em direcção ao ponto para onde a proa apontava quando  se fixou a rota. Assim, mudando as posições do navio, este cai em novos meridianos e em novos horizontes. Pelo que, se as coisas forem assim, a linha percorrida, a que chamamos rumo, não será circular nem composta por circulares. Mas a nós parece-nos que as coisas se passam de forma diferente.

Com efeito, damo-nos conta de que o navio avança a direito durante algum tempo antes de ser desviado para o lado, e por isso pensamos que uma linha deste tipo  é constituída por pequenos segmentos de círculo máximo.  Por que motivo se é obrigado constantemente a desviar o navio para o lado, se estando ele apenas por breve período no círculo máximo em que o vento sopra, o piloto não se apercebe de que a proa já está apontada de forma diferente? (Obras, vol. IV, 2008, pags. 466-467).

 

 

 

Por isso, na navegação, é preciso corrigir o rumo da agulha, para que o navio mantenha a sua rota no percurso mais curto. Tudo isto intuiu Pedro Nunes, embora lhe faltassem os conhecimentos matemáticos para esses cálculos. Como refere Raymond d’Hollander, para a exactidão dos cálculos a fazer, houve que esperar, por um lado, a descoberta dos logaritmos por Neper em 1614, e por outro, a descoberta do cálculo diferencial e infinitesimal em 1676 por Leibniz.

 

A explicação de Pedro Nunes estava já no Tratado da Esfera:

  

É verdade que todos os lugares têm a sua própria rota pela qual se correm, e isto mesmo terão  os lugares  que estão num paralelo, mas a sua rota não se tirará do círculo menor, mas será um círculo maior que por quaisquer dois lugares do globo se pode lançar, pela arte que Teodósio para isso traz, e por outra ainda mais leve se pode lançar, e o espaço do círculo maior que fica entre os dois lugares, é menor que o espaço do paralelo que fica entre os mesmos lugares como matematicamente se pode demonstrar, e este é outro proveito de ir pelo círculo maior que é andar menos caminho, mas quem por ele for saiba que lhe convém mudar a rota cada hora, segundo a mudança que fazem os ângulos da posição dos lugares, os novos meridianos com o círculo pelo qual íamos, e a invenção e subtileza disto que já é grande, consiste em saber quanta quantidade cresce ou diminui estes ângulos no processo do caminho, sobre a quantidade do ângulo ou rota com que partimos e quem desta forma andar irá caminho direito, nem se pode andar direito senão com esta mudança de rotas, tanto quanto convém. E se isto assim é como nos mostra a carta todas as rotas em linhas direitas sem as tais rotas que nunca se mudam, o que verdadeiramente não pode ser pelo que tenho dito,  e vão sempre forçando a agulha, e inclinando-a para que faça o mesmo ângulo com a linha de norte sul. E não entendem os navegantes que todas as linhas direitas estão na carta sem cortaduras dos círculos maiores e horizontes e indo sempre em uma rota, inclinando-a ao lugar do horizonte para onde vão, é impossível que vão pelas tais linhas direitas, e eles fazem sua conta por elas como se por elas fossem.

 

Refere ainda R. d’Hollander que está errada a crítica que Stevin faz a Pedro Nunes no cap. II (página acima citada na versão latina), sendo ainda mais de lamentar que três séculos mais tarde (1915) Hermann Wagner tivesse cometido o mesmo erro e desconsideração do trabalho de P. Nunes.

  

CONCLUSÃO

 

Como diz R. d’Hollander, a contribuição teórica para a navegação de Pedro Nunes era demasiado adiantada para o seu tempo. Os instrumentos da época não tinham a precisão necessária, a matemática da altura também era não apenas insuficiente, mas também demasiado complicada. Coube a outros o mérito de desenvolver as suas ideias e descobertas.

Para além disso, as suas teorias eram de aplicação prática muito difícil, e os marinheiros da altura recusavam-se a fazê-lo.

Teve o mérito enorme de ter razão e, ao publicá-las em latim, conseguir divulgá-las no mundo da época. Deverá ser, sem dúvida, o cientista português do Sec. XVI mais citado internacionalmente.

 As obras de Pedro Nunes têm hoje, na minha opinião, um interesse reduzido. Serão úteis para os bibliófilos e bibliólogos, assim como para quem quiser fazer a história das matemáticas, da geografia ou da náutica, mas ninguém irá já estudar por elas. Para concluir isso, basta ler os artigos do Jesuíta H. Bosmans sobre o Libro de Álgebra, citados na Bibliografia; aquelas equações são hoje insuportáveis. As traduções serão úteis, quando muito, para quem quer fazer a história das ciências e não sabe latim.

Entretanto, estão hoje disponíveis em versão electrónica todas as antigas edições do Sec. XVI.

 

(*) Já se escreveu que a designação “Português de nação”, utilizada por Damião de Góis para qualificar Pedro Nunes, não pode significar que ele tinha sangue judeu na família e era portanto cristão-novo, porque a mesma expressão é utilizada por seu neto no processo da Inquisição de Coimbra n.º 4724 (Imagem 116), o que equivaleria a uma confissão de impureza de sangue, se tivesse esse significado. Não podemos esquecer, no entanto, que Damião de Góis escreveu antes de 1566 (data da publicação da Crónica) e Matias Pereira escrevia em 1623. Penso que se poderá colocar a seguinte hipótese: Matias Pereira tinha formação universitária e conhecia certamente a Crónica d’El-Rei D. Manuel I e a referência a seu avô. Utilizando na sua defesa escrita a mesma expressão, ele pode ter querido tirar a carga negativa do texto de Damião de Góis, dando-lhe então o significado inofensivo de Português de nascimento. No processo da Inquisição, alguém anotou à margem da linha onde está a expressão: xnovo.

 

 

 

OBRAS DE PEDRO NUNES online

 

1537

Tratado da sphera com a Theorica do Sol e da Lua e ho primeiro liuro da Geographia de Claudio Ptolomeo Alexa[n]drino. Tirados nouamente de latim em lingoagem pello Doutor Pero Nunez cosmographo del Rey Do[m] Ioão ho terceyro deste nome nosso Senhor. E acrece[n]tados de muitas annotações e figuras per que mays facilmente se podem entender ... German Galharde emprimidor 1-12-1537

Faculdade de Ciências-Porto - http://www.fc.up.pt/fa/index.php?p=nav&f=books.0225.0

 

 

1542

 

Petri Nonii Salacie[n]sis, De Crepusculis liber unus, nu[n]c rece[n]s & natus et editus. Item Allacen Arabis vetustissimi, de causis crepusculorum liber unus, a Gerardo Cremonensi iam olim latinitate donatus, nunc vero omniu[m] primum in lucem editus, Luis Rodrigues em Lisboa, em Janeiro de 1542

Faculdade de Ciências-Porto -  http://www.fc.up.pt/fa/index.php?p=nav&f=books.0272.0

 

 

1546

 

De Erratis Orontii Finaei, Regii Mathematicarum Lutetiae Professoris. Qui putauit inter duas datas lineas, binas medias proportionales sub continua proportione inuenisse, circulum quadrasse, cubum duplicasse, multangulum quodcunque rectilineum in circulo describendi, artem tradidisse, & longitudinis locorum differentias aliter quàm per eclipses lunares, et[iam] dato quouis tempore manifestas fecisse. Petri Nonii Salaciensis Liber vnus Conimbricae, 1546, ex Officina Joannis Barrerii et Joannis Aluari.

 Istituto e Museo di Storia della Scienza - http://fermi.imss.fi.it/rd/bd?lng=en

 Universidade de Sevilha  - http://fondosdigitales.us.es/books/digitalbook_view?oid_page=221861

 

 

1566

 

Petri Nonii Salaciensis opera, quae complectuntur, primum, duos libros, in quorum priore tractantur pulcherrima problemata. In altero traduntur ex mathematicis disciplinis regulæ & instrumenta artis navigandi, quibus varia rerum astronomicarum circa coelestium corporum motus explorare possumus. Deinde, annotationes in Aristotelis problema mechanicum de motu navigii ex remis. Postremo, annotationes in planetarum theoricus Georgii Pvrbachii, quibus multa hactenus perperam intellecta, ab allisq[ue]; praeterita exponuntur. Quae quemadmodum mole exigua viduntur, ita virtute ingentia, lector candide, intelliges, 1566 - Basileæ, ex Officina HenricPetrina, mense septembri

 

Faculdade de Ciências-Porto - http://www.fc.up.pt/fa/index.php?p=nav&f=books.0227.0

 

Herzog August Bibliothek - http://diglib.hab.de/drucke/17-astron-2f/start.htm

 

Universidade de Sevilha  - http://fondosdigitales.us.es/books/search/digitalbook_view?oid_page=373935

 

1567

 

Libro de algebra en arithmetica y geometria / compuesta por el Doctor Pedro Nuñez, cosmographo mayor del rey de Portugal, y cathedratico jubilado en la cathedra de mathematicas en la Universidad de Coymbra. - En Anvers : En casa de los herederos d'Arnoldo Birckamn a la gallina gorda, 1567. - [16], 341 f. : il. ; 8º (18 cm)

Faculdade de Letras - Lisboa - http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFL036744/ULFL036744_item1/

Universidade Complutense de Madrid - http://alfama.sim.ucm.es/dioscorides/consulta_libro_b.asp?ref=b22138456

 

 

1573

 

De erratis Orontii Finaei regii mathematicarum Lutetiae professoris    

Edição de Antonius a Marijs Coimbra – 1571

Fundación San Millán de la Cogolla – La Rioja España  - http://www.fsanmillan.org/biblioteca/libro.jsp?libro=185

 

Petri Nonni Salaciensis De Crepusculis, Liber unus, secunda Editio

Coimbricæ, Excudebat Antonius a Marijs, 1571

Fundación San Millán de la Cogolla – La Rioja España  - http://www.fsanmillan.org/biblioteca/libro.jsp?libro=186

 

Petri Nonii Salaciensis De arte atqve ratione navigandi libri dvo. Eivsdem in theoricas planetarum Georgij Purbachij annotationes, & in problema mechanicum Aristotelis de motu nauigij ex remis annotatio vna. Eivsdem de erratis Orontij Finoei liber vnus. Eivsdem de crepusculis lib. I . Cum libello Allacen de causis crepusculorum.
In: Petri Nonii ... De crepvscvlis liber vnvs. Item Allacen arabis vetustissimi, de causis crepusculorum liber vnus, à Gerardo Cremonensi iam olim latinitate donatus, & per eundem Petrvm Nonium denuò recognitus.

De duobus problematis circa nauigandi artem Petri Nonii Salaciencis, Liber unus

Petri Nonii Salaciencis de regulis & instrumentis, ad varias rerum tam maritimarum, quam &coelestium apparentias deprehendendas, ex Mathematicis disciplinis. Liber II

Annotationum in Theoricas Planetarium Georgij Purbachij

Conimbricæ, ex Officina Antonij de Marijs, Anno M D LXXII

Fundación San Millán de la Cogolla – La Rioja España  - http://www.fsanmillan.org/biblioteca/libro.jsp?libro=184
 

European Cultural Heritage Online - Berlim - http://echo.mpiwg-berlin.mpg.de/ECHOdocuView/ECHOzogiLib?url=/mpiwg/online/permanent/library/Z4QGS2VT/index.meta&pn=1&mode=texttool

 

 

Edição em conjunto- Coimbra – 1573.

É o conjunto das três obras antes referidas, com as datas  alteradas à mão.

 

Petri Nonii Salaciensis de arte atque ratione navigandi libri duo. Eiusdem in theoricas planetarum Georgij Purbachij annotationes, & in problema mechanicum Aristotelis de motu navigij ex remis annotatio una. Eiusdem de erratis Orontij Finoei liber unus. Eiusdem de crepusculis lib. I cum libello Allacen de causis crepusculorum De arte atque ratione navigandi libri duo. Conimbricæ, in ædibus Antonij a Marijs, Universitati Typographi,  Anno 1573

Faculdade de Ciências-Porto - http://www.fc.up.pt/fa/index.php?p=nav&f=books.0203.0  

Universidade de Coimbra - http://web.bg.uc.pt/Bibliotecadigital/Obras/R-58-5/R-58-5_item1/P241.html 

 

 

1592

 

Petri Nonii Salaciensis opera: quae complectuntur primum, duos libros, in quorum priore tractantur pulcherrima problemata: in altero traduntur ex mathematicis disciplinis regulæ & instrumenta artis navigandi, quibus varia rerum astronomicarum circa coelestium corporum motus explorare possumus. Deinde, annotationes in Aristotelis problema mechanicum de motu navigii ex remis: item in Georgii Pvrbachii planetarum theoricas annotationes, quibus multa hactenus perperam intellecta, ab allisq[ue] praeterita exponuntur. Eiusdem, de erratis Orontii Finoei liber unus. Postremo, de crepusculis lib. I. cum libello allacen de causis crepusculorum. Quae quemadmodum mole exigua videntur, ita virtute ingentia, lector candide, intelliges (1592) -  Basileæ, per Sebastianum HenricPetri

Faculdade de Ciências-Porto - http://www.fc.up.pt/fa/index.php?p=nav&f=books.0228.0

 

 

LINKS:

 

Noniana, de Henrique Leitão – 2000

http://scientia.artenumerica.org/noniana/noniana.html

 

Associação Portuguesa de Matemática

http://www.apm.pt/gt/gthem/PedroNunes/PedroNunes.htm

 

João Filipe Queiró

http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/HistUniv.pdf

 

Estudos sobre Pedro Nunes:

http://pedronunes.cienciaviva.pt/estudos/

  

Luciano Pereira da Silva - O Tratado da Sphera de Pedro Nunes

http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc/pensamento/astronomialusiadas/cap02.pdf

 

Fernando Taveira da Fonseca – Pedro Nunes na Universidade – I – Lisboa

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4992.pdf

 

 

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