22-7-2005

 

JUDITH TEIXEIRA

(1880 - 1959)

 

LINKS:

A poesia sáfica de Judith Teixeira, por Adelto Gonçalves

Cais de Poemas (pequena biografia)

Una escritora vanguardista de los años 20, de Alicia Perdomo H.

Martim de Gouveia e Sousa, Régio e Judith Teixeira: um encontro, uma voz e uma "brasa ardente" de que alguém se lembrará, em Presenças de Sérgio: actas do 8.º Encontro de Estudos Portugueses, ed. literária de António Manuel Ferreira. ISBN 972-789-079-2

LIVROS:

Martim Lourenço Ramos de Gouveia e Sousa, Judith Teixeira: Originalidade Poética e Descaso Literário na Década de Vinte, Tese de Mestrado, Universidade de Aveiro, 2001. (Esta tese não se encontra na BNL, nem na Faculdade de Letras de Lisboa)

Garay, Rene Pedro, Judith Teixeira : o modernismo sáfico português, Universitária Editora, 2002,  ISBN: 972-700-444-X

Garay, Rene P., Judith Teixeira, a voz sáfica do primeiro modernismo português, em Percursos de Eros: representações do erotismo, coord. António Manuel Ferreira, Universidade de Aveiro, 2003, ISBN 972-789-096-2

Judith Teixeira, Poemas. Conferência de Mim. Em que se explicam as minhas razões Sobre a vida, sobre a estética, sobre a moral.  Lisboa. & etc., Edições Culturais do Subterrâneo. 1996.

Judith Teixeira, Decadência, Instituto Superior Politécnico, Viseu, 2002, ISBN 972-8765-00-2, ed. de Martim L. Ramos de Gouveia e Sousa.

António Manuel Couto Viana, Judith Teixeira, in Coração Arquivista, Lisboa, Verbo, sem data, pgs. 198-208. - Pode ser lido aqui.

POEMAS:

 

 A Bailarina Vermelha

 A Estátua

 A minha amante

 A minha colcha encarnada

 A mulher do vestido encarnado

 A Outra

 A Sesta

 Adeus

 Ansiedade

 Ao Espelho

 Arlequim

 As tuas mãos

 Ausência

 Bailados do Luar

 Confissão

 Conta-me contos

 Contrição

 Crepúsculo

 Delírios Rubros

 Duma carta

 Fim

 Flores de Cactus

 Ilusão

 Incoerência

 Insónias

 Liberta

 Madrugadas

 Mais Beijos

 Maus Presságios

 Minha Vida!

 Nada

 Ninguém

 O Anão da Máscara Verde

 

 

 

 O Fumo do meu Cigarro

 O meu chinês

 O meu Destino

 O Outro

 O Palhaço

 O Poemeto das Sombras

 O Relógio

 Onde vou?

 Outonais

 Outono

 Perfis Decadentes

 Podes Ter os Amores que Quiseres…

 Por Quê?

 Predestinada

 Primavera

 Quando, Não Sei…

 Quatro Cantigas de Tristeza

 Quem és?

 Rajada

 Remorso

 Ressurgimento

 Rosas pálidas

 Rosas Vermelhas

 Ruínas

 Saudade

 Sem Culpa…

 Sinfonia Hibernal

 Sonhando

 Sonho

 Última frase

 Vaticínio

 Venere Coricata

 Volúpia

 

 

 

 

Madrugadas

 

Pálida, emocionada

numa ânsia de ternuras —

entrava de madrugada,

no teu quarto às escuras...

 

Meu olhar de alucinada,

só traduzia loucuras...

Cantava em mim a alvorada

num trinado de venturas...

 

Depois dizia-te adeus,

saudosa dos beijos teus

fitando-te a boca exangue...

 

E num frémito de louca

cravava na tua boca

um beijo rubro de sangue!

 

Na Serra – Maio – Hora Intensa

1919

 

 

Ressurgimento

 

Passei o dia triste meu amor...

Foi um domingo inteiro de agonia.

Tudo empalidecera em mi derredor,

ficou a latejar a dor sombria!

 

Que doloroso e cálido sabor,

nos lábios me abrasava todo o dia!

Sentia ter bebido a própria dor,

dor imprecisa, negra nostalgia...

 

No silêncio do morno entardecer,

bebi a angústia que me fez sofrer,

e se fundiu em pranto, diluída...

 

E agora, amor, a minha angústia acalma,

purificada na dor, a minha alma,

vai ressurgir de novo para a vida!

 

Mês dos Cravos – Sol-Posto
1920

 

 

 

Flores de Cactus


Flores de cactus resplandecentes,
Espelhantes, encarnadas!
Rubras gargalhadas
De cortesãs…
Embriagam-se de sol,
Pelas doiradas manhãs,
Viçosas e ardentes!

Bela flor imprudente!
Brilha melhor o sol rutilante
Nas suas pétalas vermelhas…
É sugestivo
O ar insolente
E petulante,
Como se deixam morder
Pelas doiradas abelhas!

Nascem para ser beijadas
E possuídas
Pelo sol abrasador…
Lascivas,
Predestinadas
Para os mistérios do amor!

Eu gosto desta flor pagã
E sensual,
Que num místico ritual
Se entrega toda aberta
Aos beijos fulvos do sol!

Oh! Flor do cactus enrubescida!
No teu vermelho, há sangue, há vida…
- E eu tenho uma enorme sede de viver!

Agosto. Meio Dia

1921

 

 

Fim

 

Asa negra que esvoaça...

Negros dias ensombrados!

Roubaram-me toda a graça

aos meus olhos macerados!

 

Nevrótica, fim de raça...

Os meus nervos delicados

vão sucumbindo à desgraça

dos tristes degenerados!

 

Trago nos nervos a morte!

sou uma sombra em recorte

de tristeza e de ruína...

 

Uivou dentro em mim a dor...

só lhe perco o som e a cor

em orgias de morfina!

 

Setembro – Tarde Negra

1921

 

 

Delírios Rubros

 

Quebro as nervos teu torturas

como contas ressequidas,

crispados por amarguras

nas minhas noites perdidas!

 

Ando na vida às escuras...

Se estendo as mãos doloridas,

abrasam-me mordeduras

de bocas encandescidas!

 

Sempre a fúria dos desejos,

a gritar pelos teus beijos

incendiando o meu sangue...

 

Traz-me o vento em seus clamores

presságios de novas dores —

e eu fico desfeita, exangue!

 

Outono – Poente Roxo

1921

 

 

Maus Presságios

 

 

Asas agoirentas, pretas,

vêm sobre mim poisar,

de sombrias borboletas

em redor a voltejar...

 

Tristes como violetas!...

Trouxeram-me a soluçar

nas asas negras, inquietas,

um mau presságio, de azar!

 

Meu pobre coração chora

em ânsia que me apavora...

- Que estará p’ra acontecer?...

 

E uma voz entrecortada

diz-me ao longe desgarrada:

- Adeus!... Partir!... Esquecer!

 

Outono — Hora Inquieta

1921

 

 

Insónias


A noite vai adiantada
na penumbra do meu boudoir…
Sobre o meu coxim
de seda encarnada,
pobre de mim!
não posso descansar!

Revolvem-se em convulsões
sombras escuras!
São almas, são corações,
são desventuras!

Oiço chorar…
Escalda-me a cabeça!
Lá fora o vento não cessa
de ulular…
Que intraduzível anseio!
Busco, procuro, tacteio…
Nada! Nada!

A seda desmaiada!
O meu vestido…
E o vento a uivar!
Outro gemido…
E eu a procurar,
a procurar…

Olho em redor…
– É junto a mim,
é sobre o meu coxim
que geme a dor!

Despedaçam-se ilusões
dolorosamente!
Rasgo o cetim que me veste,
em convulsões,
perdidamente!

E o vento sempre a uivar…
Outro grito espavorido!
Sinto latejar a Dor…
É dentro do meu vestido!
Foi aqui que a Dor gemeu…
É no meu ser, dentro de mim.
– Sou eu! Sou eu!

Inverno – O vento bate com fúria nas janelas
1921

 

Outono

 

Anda o sol amarelo, adoentado

e pelas tardes, quando deixa o céu,

vai roxo de tristeza e magoado

cansado do ardor que despendeu.

 

As árvores, num gesto desvairado,

têm o ar de alguém que se rendeu

à força dum destino desgraçado...

- Não é só delas, esse gesto é teu!

 

A ventania veio desgrenhar

espectros outonais no teu olhar!

- Abre teus braços para o meu carinho.

 

Esperemos o Inverno sem temê-lo,

e quando a neve rir no teu cabelo,

os meus hão-de ficar da cor do linho!

 

Sol-Posto

1921

 

 

Duma Carta


Escrevi-te ontem
somente para dizer
das minhas mágoas e do meu amor…
O Sol morria…
Tudo era sombra em redor
e eu…, ainda escrevia…

A pena sempre a correr
sobre o papel,
deixava cintilações,
nas pedras do meu anel!

E a pena corria…
Nem precisava ver, o que escrevia!

Anoitecera.
…………………………………………
Como eu em toalha de altar
A mesa
revestiu-se de luar!…

Nascera a lua.
E a pena, nos bicos leves,
dizia ainda:
– Sou tua!
Por que é que me não escreves?
Mas o papel acabou
e a pena continuou:
Por que é que me não escreves?
O meu amor é todo teu.
Só eu te sei amar!
– Só eu!…

Janeiro
1922

 

 

        A Estátua


O teu corpo branco e esguio
Prendeu todo o meu sentido…
Sonho que pela noite, altas horas,
Aqueces o mármore frio
Do alvo peito entumecido…

E quantas vezes pela escuridão
A arder na febre de um delírio,
Os olhos roxos como um lírio
Venho espreitar os gestos que eu sonhei…

- Sinto os rumores duma convulsão,
A confessar tudo que eu cismei

Ó Vénus sensual!
Pecado mortal
Do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
Num tormento,
A singular razão dos meus cuidados

Fevereiro - Noite luarenta

1922

 

 

Quem és?

 

Quem és tu companheiro dos meus dias?

Nunca te vi, apenas te pressinto.,.

Só conheço o anseio e as agonias

que fazem do teu ser, meu labirinto.

 

Quis desvendar-te em minhas nostalgias,

acordada por todo o meu instinto...

E procurar os dogmas que trazias,

para encontrar-te dentro do que eu sinto.

 

Quem és? - quem és que reges meu destino?...

Que estás até nas horas que eu malsino

e que vives nesta ânsia de buscar-te?!...

 

 

Eu sou — responde o singular tormento —

Eu sou a fria dor do Entendimento,

à luz fria da Verdade, a iluminar—te!

 

Fevereiro

1922

 

 

Liberta

Noutros cenários a minha alma vive!
Outros caminhos..
Por outras luzes iluminada!
- Eu vim daquele mundo onde estive
tanto tempo emparedada…

Andavam de negro
As minhas horas…
A esquecer-me da vida-
Não me encontrava!
Meus sonhos amortalhados
Em crepúsculo,
A noite não os levava!

.............................

Um entardecer triste e doloroso
Enrubesceu o céu!
E o meu olhar ansioso
Fundiu-se no teu !

.............................

E as tuas lindas mãos,
Esguias e nevróticas,
Pintam-me telas rubras
Bizarras e exóticas
De largos horizontes…

.............................

Hoje, ergue-me a ânsia enorme
De outras horas viver!
- Sensualizando a vida,
Descobrindo novas fontes
De dor e de prazer…

- Orgias de estranha cor
de que tu fosses somente
o extraordinário inventor!

 

Abril - Crepúsculo

1922

 

 

Primavera

 

Nos vinhedos, aloiram-se, distantes,

sob o orvalho cristalino,

os pâmpanos rosados,

e onduleiam—se num ritmo divino

os prados verdejantes

em tons esmeraldados...

 

E músicos estúrdios, os pardais,

andam a revolver-se na poeira doirada

a chilrear seus esponsais

desde os primeiros risos da alvorada!

 

Estua arfando a terra inteira

na seiva de miríades de vidas

rompendo — a desabrochar...

E o grande Semeador

que fez a sementeira,

também deu às pombas pretas doloridas,

o anseio sagrado

de noivar!

…………………………………………………………..

E o meu coração, o mago feiticeiro da melancolia,

esse nostálgico rouxinol,

anda a ensaiar um hino de alegria,

- embriagado de sol!

 

Maio

1922

 

 

 

A minha amante

 

Dizem que eu tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!…
Eles sabem lá o que há de sublime
Nos meus sonhos de prazer…
De madrugada, logo ao despertar,
Há quem me tenha ouvido gritar
Pelo teu nome…

Dizem —e eu não protesto—
Que seja qual for
o meu aspecto
tu estás
na minha fisionomia
e no meu gesto!

Dizem que eu me embriago toda em cores
Para te esquecer…
E que de noite pelos corredores
Quando vou passando para te ir buscar,
Levo risos de louca, no olhar!

Não entendem dos meus amores contigo—
Não entendem deste luar de beijos…
—Há quem lhe chame a tara perversa,
Dum ser destrambelhado e sensual!
Chamam-te o génio do mal—
O meu castigo…
E eu em sombras alheio-me dispersa…

E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…
Que és tu que doiras ainda,
O meu castelo em ruína…
Que fazes da hora má, a hora linda
Dos meus sonhos voluptuosos—
Não faltes aos meus apelos dolorosos
—Adormenta esta dor que me domina!

 

Junho - Poente

1922

 

 

 

Rosas Vermelhas

 

 

Que estranha fantasia!

Comprei rosas encarnadas

às molhadas

dum vermelho estridente,

tão rubras como a febre que eu trazia...

- E vim deitá-las contente

na minha cama vazia!

 

Toda a noite me piquei

nos seus agudos espinhos!

E toda a noite as beijei

em desalinhos...

……………………………………..

A janela toda aberta

meu quarto encheu de luar...

- Na roupa branca de linho,

as rosas,

são corações a sangrar...

……………………………………..

Morrem as rosas desfolhadas...

Matei-as!

Apertadas

às mãos-cheias!

……………………………………..

Alvorada!

Alvorada!

Veio despertar-me!

Vem acordar-me!

…………………………………….

Eu vou morrer...

E não consigo desprender

dos meus desejos,

as rosas encarnadas,

que morrem esfarrapadas,

na fúria dos meus beijos!

 

Junho - Madrugada - Céu em Fogo

1922

 

O Meu Destino


Vivo de inquietações…
De sombrios desejos…
As minhas ambições,
andam traduzidas
nos rúbidos lampejos,
dos meus olhos em fogo!

Não cedem à agonia do meu rogo…
Andam fugindo ao meu destino.
Nem sentem os meus nervos estalar!
E os meus braços desgarrados
procuram em desatino –
sem nada encontrar!

Rasgo nas mãos doloridas,
escorrendo de luar,
as sombras espavoridas
que me ensombram o olhar!

Anda a loucura a desgrenhar-me –
o corpo e o pensamento…
As minhas horas, vão escurecendo
no destrambelho dos meus cuidados…
E eu vou andando
vagarosamente
os olhos roxos de sombra,
amargurados
demandando
tristemente,
o caminho,
do negro labirinto,
onde se perdem
os alucinados!

Julho – Sol-Posto
1922
 

 

 

 

    Por Quê?

Que tens dentro de ti
estranho obreiro?
Que silêncio angustioso
traduzem
os teus Crepúsculos doentes
– Bizarro caminheiro
do infortúnio!
Onde foste ouvir a dor
dos teus Poentes?

Que rumor imenso,
que tragédia contas
em cada cor?
Que grãos de incenso,
queimas tu, em cada Alvor?

Ó romeiro da desgraça!
Predestinado sonhador
de noites sem estrelas!
Trágico e errante…
Porque pintas tu sempre, um Céu distante,
nas mortificadas cores
das tuas telas?

Julho – Céu nublado
1922
 

 

 

Venere Coricata

 

                           “Ante o quadro de Tiziano Vicelli”

 

Risca-se numa luz esbraseada

sobre uma pele negra e rebrilhante

a linha do seu corpo estonteante

recortando a nudez estilizada..,

 

Cintilações de cor avermelhada,

vem envolver-lhe a curva provocante!

E na boca perversa de bacante,

agoniza uma rosa ensanguentada!

 

Num amplexo quimérico cingida,

revolve-se na luz enrubescida,

em espasmos de luxúria, irrealizados...

 

Contorce-se num ritmo de desejos...

E a luz vai-lhe mordendo todo em beijos

o seio nu, de bicos enristados!

 

Estio – Poente Rubro

1922

 

 

 

A Outra

 

A Outra, a tarada,

aquela que vive em mim,

que ninguém viu, nem conhece,

e que enloirece

à hora linda do poente

pálida e desgrenhada –

 

Vem contar-me, muitas vezes,

na sua voz envolvente,

incoerente

e desgarrada —

A estridência da cor,

a ânsia do momento...

 

A rubra dor

do sensualismo,

no ardor de cada paroxismo.

 

Não há angústia maior

que essa tragédia interior: —

A intransigência

dos seus nervos,

irreverentes servos

da sua inconsciência!

 

E é sempre a mesma dor angustiada

em cada sensação realizada...

 

Todo o seu canto morre num clamor!…—

Nada é verdade.

Só existe a Dor!

Nada mais subsiste,

— Mesmo o prazer

e a sensualidade

só na Dor existe!

 

Agosto

1922

 

A Sesta

 

O sol em calmaria sufocante,

abrindo as grandes asas luminosas

adejou sobre a serra culminante

abrasando-lhe as faces pedregosas…

 

Subindo luminoso, mais brilhante

abrangeu as planícies argilosas

emudecendo a fonte sussurrante –

e sequioso, anda, a sorver as rosas!...

 

As abelhas, zumbindo nos silvados,

lembram pingos de fogo, condensados,

a refulgirem sob as suas asas…

 

E descansando à sombra dos sobreiros

o encalmado rancho dos ceifeiros

foge aos seus beijos rubros como brasas!

 

Agosto

1922

 

 

 

Ao Espelho

 

As horas vão adormecendo

preguiçosamente...

E as minhas mãos estilizadas,

vão desprendendo

distraídamente,

as minhas tranças doiradas.

 

Reflectido no espelho

que me prende o olhar,

desmaia o oiro vermelho

dos meus cabelos desmanchados,

molhados

de luar!

 

Suavemente, as mãos na seda,

Vão soltando o leve manto...

Meu lindo corpo de Leda,

fascina-me, enamorada

de todo o meu próprio encanto...

…………………………………….

 

Envolve-se a lua

em dobras de veludo

nos páramos do céu

e eu vou pensando,

 

no cisne branco e mudo

que no espelhante lago adormeceu...

………………………………………

Volta o luar silente...

E a minha boca ardente

numa ansiedade louca

procura ir beijar

o seio branco e erguido,

que no cristal do espelho ficou reflectido!…

 

Impossíveis desejos!

Os meus magoados beijos

encontram sempre a própria boca

banhada de luar

álgido e frio –

Dizendo em segredo

às minhas ambições,

o destino sombrio

das grandes ilusões!

 

Noite de Agosto

1922

 

 

Nada

 

Descobri a cor rubra, dentro dos sentidos...

Amortalhei a alma – depois esmaguei

o coração, em tristes dias denegridos

e perdi-me nas horas, que eu mesma tracei...

 

Agora, iniciada, junto aos meus ouvidos

mal chega a viva dor, do que eu me separei!

Destruí a Beleza, deixando vencidos

a paixão e o amor; que assim repudiei...

 

Destruí a paixão…sensualizei a Dor

- fiquei, silenciosa e só, vendo passar

os tristes funerais do meu perdido amor—...

 

Hoje tenho desejos confusos, internos...

Ódios dentro de mim, fúrias a estrebuchar —

e torturadas ânsias, abrem-me os infernos!

 

Agosto – Noite

1922

 

 

Ruínas

 

Tombei do divino altar

do Enlevo, em que eu vivia...

Crenças e fé que eu sentia,

Eu vi tudo soçobrar!

 

Ficou-me o peito a sangrar,

Da chaga onde me roía,

A Hidra, que eu não podia,

Desprender, para esmagar!…

 

 

Fechei os olhos febris

macerados, espavoridos... —

Nem a própria Morte os quis!

 

Já não sinto as crueldades,

dos meus tormentos volvidos...

—Mas tenho tantas saudades!

  

Agosto Quando o Sol Morre.

1922

 

 

Ansiedade

 

Minha Mãe! Minha Mãe! quero dormir –

e o vento não me deixa descansar...

Este silvo não deixa de se ouvir...

Parece a voz d’alguém que anda a penar!

 

Vem agora, escutar o retinir

dos vidros... começou a trovejar.

Fecha a janela, Mãe! Vem-me cobrir.

Mãe! sinto frio, até no teu olhar!

 

Foge-me tudo, que eu procuro e quero!

Vem perseguir-me a lenda de «Ahasveros»...

Mãe! — expulsou-me o próprio coração...

 

Fui até pela Dor repudiada...

Mãe! quero regressar -  voltar ao Nada —

e perder—me na grande Escuridão!

 

Noite – Setembro

1922

 

 

 

A mulher do vestido encarnado


Ameigam teu corpo airoso
requebros sensuais,
e o teu perfil
felino e vicioso
diz-nos pecados brutais…
– Paixões preversas
onde o crime é gozo!

Carne que a horas se contrata,
e onde a tísica já fez guarida;
– vendida por suja prata
em tanta noite perdida…

Ó farrapo de luxúria
que acendes quentes desejos
até à fúria,
na febre de longos beijos!…

Perderam-se tantas, tantas
mocidades
nos teus olhares diabólicos,
que nem tu já sabes quantas!

E ninguém te perguntou
ainda, mulher perdida
que desgraçado amor foi esse
que te arrastou
a essa vida, negra vida!

E às vezes,
cuspindo sangue
em noites de guitarrada,
a tua boca tão mordida,
cantando, à desgarrada,
fala do amor crueldade
– um amor todo ruína,
uma amor todo saudade!

Ó farrapo de luxúria
que acendes quentes desejos
até à fúria,
na febre de longos beijos!

Outubro
1922

 

 


Crepúsculo

 

Lá vem a noite, as serras contornando;
É esta a hora negra dos vencidos!…
Ao longe, o arvoredo baloiçando
toma aspectos bizarros, contorcidos…

Em ladainhas fúnebres, rezando,
descem dos montes já escurecidos,
as aves agoirentas, voejando
sobre os casais, na sombra adormecidos…

Hora em que se erguem maldições atrozes…
e em que os sinos, ao longe, são as vozes
indefinidas de miséria e dor!…

Hora dos neurasténicos, dos tristes…
Hora em que eu sinto bem que ainda existes,
nesta saudade duma dor maior!

Outubro
1922
 

 

Última frase

Minha alma ergueu-se para além de ti...
Tive a ânsia de mais alto
—abri as asas, parti!

Outubro

1922


 

O Relógio

 

No seu tic-tac, o relógio antigo,

vai baloiçando num ritmo dolente,

como um forçado, preso a um castigo

num trabalhar cansado e indif’rente.

 

Não o detém nem o sorriso amigo

de quem a hora passa alegremente...

Para quem vive a vida, sem abrigo

arrasta a marcha dolorosamente.

 

Tic-tac e o momento vai, prossegue...

Dum som ao outro som que logo segue

quanta tragédia desigual se passa.

 

Quanta alegria nesse breve instante!

Quanta alma a evolar-se já distante...

E quantas vão nascendo p’ra desgraça!

 

Outono

1922

 

 

Conta-me Contos

 

Vem! Vem de mansinho…

Deixa-me ficar

nesta penumbra, nesta meia luz.

Senta-te amor, devagarinho…

Assim… Eu quero escutar

essa música dolente,

que a tua luz traduz!

 

Vem contar-me contos…

Conta-me a vida dos ciganos

nómadas, errantes.

Dize-me dos orientais

que têm paixões brutais

e dos seus haréns,

 as cenas sensuais…

 

Dá, meu amor,

dá alegria, põe muita cor

nessas novelas…

Vem contar-me coisas belas!

Veste as ciganas bronzeadas

de lenços de ramagens!

Dá tons vivos às imagens…

Veste-as de cores encarnadas!

 

Fala-me dessas tribos selvagens

enfeitadas com penas multicores

e coisas esquisitas,

desenhando tatuagens

no peito das favoritas!

- Dize-me dos teus amores…

 

Enche de luz e de estridor

a minha alcova sombria!

Dá-me alegria…

Incendeia meu sangue arrefecido!

E depois meu amor…

Depois… deixa-me sonhar…

Delirar,

num sonho belo, rubro, colorido!

 

Tarde de Outono

1922

 

 

 

Predestinada

 

Sou amargura em recorte
numa sombra diluída...
Vivo tão perto da morte!
Ando tão longe da vida...

Quis vencer a minha sorte,
Mas fui eu que fui vencida!
Ando na vida sem norte,
Já nem sei da minha vida...

Eu sou a alma penada
de outra que foi desgraçada!
—A tara da desventura...

Sou o Castigo fatal
dum negro crime ancestral,
em convulsões de loucura!

 

Novembro - Tarde Cinzenta

1922

 

 

A minha colcha encarnada


Perfumes estonteantes,
atiram-me embriagada
sobre os cetins roçagantes
da minha colcha encarnada!

Em espasmos delirantes,
numa posse insaciada -
rasgo as sedas provocantes
em que me sinto enrolada!

Tomo o cetim às mãos cheias.
Sinto latejar as veias
na minha carne abrasada!

Torcem-me o corpo desejos
mordendo o cetim com beijos
numa ânsia desgrenhada.

Noite de Dezembro - Horas de Febre

1922

 

 

Quatro Cantigas de Tristeza

 

1

 

Abre sempre de mansinho,

as minhas cartas, amor...

no roxo do rosmaninho

vai oculta a minha dor.

 

 

2

 

As saudades que eu te envio

nas cartas que vou mandando,

são como as águas do rio,

já nascem tristes, chorando.

 

3

 

As saudades dime eu te enVio

nas minhas cartas, meu Bem,

nascem sempre ao desafio

mal uma vai, outra vem!

 

4

 

Não me mandes mais saudades

nas cartas que me escreveres...

Já tenho tantas saudades!

- Guarda as tuas, se puderes...

 

Inverno – Sol Posto

1922

 

 

Sonho

 

 

Tive  esta noite um sonho torturado,

        estranho e singular;

Alguém, sobre o meu peito magoado

        prendia o seu olhar...

 

E pálido, dizia-me a tremer:

        - Abre teu peito tanto

que meus olhos tua alma possam ver,

        já morta há não sei quanto!

 

- É morta, sim! Mas vai ressuscitar!

        Erguem-na meus desejos!

Vai reviver à luz do meu olhar

        na febre dos meus beijos!

 

E no mistério dessa noite escura

        - minha alma cor de lírio

vieram profanar-te a sepultura

        meus sonhos de delirio!

 

Inverno

1922

 

 

O Anão da Máscara Verde


As árvores seculares
do meu jardim,
em murmúrios de segredo –
falam de mim,
riscando no horizonte
longas figuras de medo…

O silêncio fala
balançando os esguios esqueletos
das árvores desgrenhadas!
Apagaram-se as velas perfumadas
do lampadário da minha sala…
As aves em voos inquietos
passam caladas!
……………………………………
Infinitamente só,
as horas vão adormecendo…
……………………………………
Estranha visão!
Do espelho para mim,
vem deslizando
lívido de luar
um fulvo Anão, de máscara verde
vestido de arlequim…
As mãos a suplicar,
num gesto que se perde…

Nos olhos cintilantes, infernais,
eu leio confissões rudes, brutais!
– Estende os braços revestidos de oiro…
E as suas mãos esguias
vêm desprender o meu cabelo loiro!…

Álgida madrugada de luar…
Infernal tentação!
Eu não posso desfitar…
a boca rubra e incendiada
do meu Anão!

Quero fugir a este inferno!
– Os olhos dele…
Um abismo sem fim!
Um labirinto!…
– E o meu cabelo a arder
nas mãos do arlequim! –
Não! Não!
Foi um desejo apenas
e que eu desminto!
E rasgo-lhe com fúria
as vestes de cetim.
……………………………………
Olho ainda o espelho
pálida e cansada…
E já longe,
iluminado de luar
álgido e frio,
o meu Anão de olhar sombrio,
lá está
a contar
o meu segredo
num murmúrio sem fim,
ás árvores do Medo
do meu jardim!


Inverno – Meia-Noite
1922

 

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