22-7-2005
JUDITH TEIXEIRA
(1880 - 1959)
LINKS:
A poesia sáfica de Judith Teixeira, por Adelto Gonçalves
Cais de Poemas (pequena biografia)
Una escritora vanguardista de los años 20, de Alicia Perdomo H.
Martim de Gouveia e Sousa, Régio e Judith Teixeira: um encontro, uma voz e uma "brasa ardente" de que alguém se lembrará, em Presenças de Sérgio: actas do 8.º Encontro de Estudos Portugueses, ed. literária de António Manuel Ferreira. ISBN 972-789-079-2
LIVROS:
Martim Lourenço Ramos de Gouveia e Sousa, Judith Teixeira: Originalidade Poética e Descaso Literário na Década de Vinte, Tese de Mestrado, Universidade de Aveiro, 2001. (Esta tese não se encontra na BNL, nem na Faculdade de Letras de Lisboa)
Garay, Rene Pedro, Judith Teixeira : o modernismo sáfico português, Universitária Editora, 2002, ISBN: 972-700-444-X
Garay, Rene P., Judith Teixeira, a voz sáfica do primeiro modernismo português, em Percursos de Eros: representações do erotismo, coord. António Manuel Ferreira, Universidade de Aveiro, 2003, ISBN 972-789-096-2
Judith Teixeira, Poemas. Conferência de Mim. Em que se explicam as minhas razões Sobre a vida, sobre a estética, sobre a moral. Lisboa. & etc., Edições Culturais do Subterrâneo. 1996.
Judith Teixeira, Decadência, Instituto Superior Politécnico, Viseu, 2002, ISBN 972-8765-00-2, ed. de Martim L. Ramos de Gouveia e Sousa.
António Manuel Couto Viana, Judith Teixeira, in Coração Arquivista, Lisboa, Verbo, sem data, pgs. 198-208. - Pode ser lido aqui.
POEMAS:
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Podes Ter os Amores que Quiseres…
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Pálida, emocionada
numa ânsia de ternuras —
entrava de madrugada,
no teu quarto às escuras...
Meu olhar de alucinada,
só traduzia loucuras...
Cantava em mim a alvorada
num trinado de venturas...
Depois dizia-te adeus,
saudosa dos beijos teus
fitando-te a boca exangue...
E num frémito de louca
cravava na tua boca
um beijo rubro de sangue!
Na Serra – Maio – Hora Intensa
1919
Passei o dia triste meu amor...
Foi um domingo inteiro de agonia.
Tudo empalidecera em mi derredor,
ficou a latejar a dor sombria!
Que doloroso e cálido sabor,
nos lábios me abrasava todo o dia!
Sentia ter bebido a própria dor,
dor imprecisa, negra nostalgia...
No silêncio do morno entardecer,
bebi a angústia que me fez sofrer,
e se fundiu em pranto, diluída...
E agora, amor, a minha angústia acalma,
purificada na dor, a minha alma,
vai ressurgir de novo para a vida!
Mês dos Cravos – Sol-Posto
1920
Flores de Cactus
Flores de cactus resplandecentes,
Espelhantes, encarnadas!
Rubras gargalhadas
De cortesãs…
Embriagam-se de sol,
Pelas doiradas manhãs,
Viçosas e ardentes!
Bela flor imprudente!
Brilha melhor o sol rutilante
Nas suas pétalas vermelhas…
É sugestivo
O ar insolente
E petulante,
Como se deixam morder
Pelas doiradas abelhas!
Nascem para ser beijadas
E possuídas
Pelo sol abrasador…
Lascivas,
Predestinadas
Para os mistérios do amor!
Eu gosto desta flor pagã
E sensual,
Que num místico ritual
Se entrega toda aberta
Aos beijos fulvos do sol!
Oh! Flor do cactus enrubescida!
No teu vermelho, há sangue, há vida…
- E eu tenho uma enorme sede de viver!
Agosto. Meio Dia
1921
Asa negra que esvoaça...
Negros dias ensombrados!
Roubaram-me toda a graça
aos meus olhos macerados!
Nevrótica, fim de raça...
Os meus nervos delicados
vão sucumbindo à desgraça
dos tristes degenerados!
Trago nos nervos a morte!
sou uma sombra em recorte
de tristeza e de ruína...
Uivou dentro em mim a dor...
só lhe perco o som e a cor
em orgias de morfina!
1921
Quebro as nervos teu torturas
como contas ressequidas,
crispados por amarguras
nas minhas noites perdidas!
Ando na vida às escuras...
Se estendo as mãos doloridas,
abrasam-me mordeduras
de bocas encandescidas!
Sempre a fúria dos desejos,
a gritar pelos teus beijos
incendiando o meu sangue...
Traz-me o vento em seus clamores
presságios de novas dores —
e eu fico desfeita, exangue!
1921
Asas agoirentas, pretas,
vêm sobre mim poisar,
de sombrias borboletas
em redor a voltejar...
Tristes como violetas!...
Trouxeram-me a soluçar
nas asas negras, inquietas,
um mau presságio, de azar!
Meu pobre coração chora
em ânsia que me apavora...
- Que estará p’ra acontecer?...
E uma voz entrecortada
diz-me ao longe desgarrada:
- Adeus!... Partir!... Esquecer!
Outono — Hora Inquieta
1921
Insónias
A noite vai adiantada
na penumbra do meu boudoir…
Sobre o meu coxim
de seda encarnada,
pobre de mim!
não posso descansar!
Revolvem-se em convulsões
sombras escuras!
São almas, são corações,
são desventuras!
Oiço chorar…
Escalda-me a cabeça!
Lá fora o vento não cessa
de ulular…
Que intraduzível anseio!
Busco, procuro, tacteio…
Nada! Nada!
A seda desmaiada!
O meu vestido…
E o vento a uivar!
Outro gemido…
E eu a procurar,
a procurar…
Olho em redor…
– É junto a mim,
é sobre o meu coxim
que geme a dor!
Despedaçam-se ilusões
dolorosamente!
Rasgo o cetim que me veste,
em convulsões,
perdidamente!
E o vento sempre a uivar…
Outro grito espavorido!
Sinto latejar a Dor…
É dentro do meu vestido!
Foi aqui que a Dor gemeu…
É no meu ser, dentro de mim.
– Sou eu! Sou eu!
Inverno – O vento bate com fúria nas janelas
1921
Anda o sol amarelo, adoentado
e pelas tardes, quando deixa o céu,
vai roxo de tristeza e magoado
cansado do ardor que despendeu.
As árvores, num gesto desvairado,
têm o ar de alguém que se rendeu
à força dum destino desgraçado...
- Não é só delas, esse gesto é teu!
A ventania veio desgrenhar
espectros outonais no teu olhar!
- Abre teus braços para o meu carinho.
Esperemos o Inverno sem temê-lo,
e quando a neve rir no teu cabelo,
os meus hão-de ficar da cor do linho!
Sol-Posto
1921
Escrevi-te ontem
somente para dizer
das minhas mágoas e do meu amor…
O Sol morria…
Tudo era sombra em redor
e eu…, ainda escrevia…
A pena sempre a correr
sobre o papel,
deixava cintilações,
nas pedras do meu anel!
E a pena corria…
Nem precisava ver, o que escrevia!
Anoitecera.
…………………………………………
Como eu em toalha de altar
A mesa
revestiu-se de luar!…
Nascera a lua.
E a pena, nos bicos leves,
dizia ainda:
– Sou tua!
Por que é que me não escreves?
Mas o papel acabou
e a pena continuou:
Por que é que me não escreves?
O meu amor é todo teu.
Só eu te sei amar!
– Só eu!…
Janeiro
1922
A Estátua
O teu corpo branco e esguio
Prendeu todo o meu sentido…
Sonho que pela noite, altas horas,
Aqueces o mármore frio
Do alvo peito entumecido…
E quantas vezes pela escuridão
A arder na febre de um delírio,
Os olhos roxos como um lírio
Venho espreitar os gestos que eu sonhei…
- Sinto os rumores duma convulsão,
A confessar tudo que eu cismei
Ó Vénus sensual!
Pecado mortal
Do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
Num tormento,
A singular razão dos meus cuidados
Fevereiro - Noite luarenta
1922
Quem és tu companheiro dos meus dias?
Nunca te vi, apenas te pressinto.,.
Só conheço o anseio e as agonias
que fazem do teu ser, meu labirinto.
Quis desvendar-te em minhas nostalgias,
acordada por todo o meu instinto...
E procurar os dogmas que trazias,
para encontrar-te dentro do que eu sinto.
Quem és? - quem és que reges meu destino?...
Que estás até nas horas que eu malsino
e que vives nesta ânsia de buscar-te?!...
Eu sou — responde o singular tormento —
Eu sou a fria dor do Entendimento,
à luz fria da Verdade, a iluminar—te!
Fevereiro
1922
Noutros
cenários a minha alma vive!
Outros caminhos..
Por outras luzes iluminada!
- Eu vim daquele mundo onde estive
tanto tempo emparedada…
Andavam de negro
As minhas horas…
A esquecer-me da vida-
Não me encontrava!
Meus sonhos amortalhados
Em crepúsculo,
A noite não os levava!
.............................
Um entardecer triste e doloroso
Enrubesceu o céu!
E o meu olhar ansioso
Fundiu-se no teu !
.............................
E as tuas lindas mãos,
Esguias e nevróticas,
Pintam-me telas rubras
Bizarras e exóticas
De largos horizontes…
.............................
Hoje, ergue-me a ânsia enorme
De outras horas viver!
- Sensualizando a vida,
Descobrindo novas fontes
De dor e de prazer…
- Orgias de estranha cor
de que tu fosses somente
o extraordinário inventor!
Abril - Crepúsculo
1922
Nos vinhedos, aloiram-se, distantes,
sob o orvalho cristalino,
os pâmpanos rosados,
e onduleiam—se num ritmo divino
os prados verdejantes
em tons esmeraldados...
E músicos estúrdios, os pardais,
andam a revolver-se na poeira doirada
a chilrear seus esponsais
desde os primeiros risos da alvorada!
Estua arfando a terra inteira
na seiva de miríades de vidas
rompendo — a desabrochar...
E o grande Semeador
que fez a sementeira,
também deu às pombas pretas doloridas,
o anseio sagrado
de noivar!
…………………………………………………………..
E o meu coração, o mago feiticeiro da melancolia,
esse nostálgico rouxinol,
anda a ensaiar um hino de alegria,
- embriagado de sol!
Maio
1922
Dizem que eu
tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!…
Eles sabem lá o que há de sublime
Nos meus sonhos de prazer…
De madrugada, logo ao despertar,
Há quem me tenha ouvido gritar
Pelo teu nome…
Dizem —e eu
não protesto—
Que seja qual for
o meu aspecto
tu estás
na minha fisionomia
e no meu gesto!
Dizem que eu
me embriago toda em cores
Para te esquecer…
E que de noite pelos corredores
Quando vou passando para te ir buscar,
Levo risos de louca, no olhar!
Não entendem
dos meus amores contigo—
Não entendem deste luar de beijos…
—Há quem lhe chame a tara perversa,
Dum ser destrambelhado e sensual!
Chamam-te o génio do mal—
O meu castigo…
E eu em sombras alheio-me dispersa…
E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…
Que és
tu que doiras ainda,
O meu
castelo em ruína…
Que
fazes da hora má, a hora linda
Dos
meus sonhos voluptuosos—
Não
faltes aos meus apelos dolorosos
—Adormenta esta dor que me domina!
Junho - Poente
1922
Que estranha fantasia!
Comprei rosas encarnadas
às molhadas
dum vermelho estridente,
tão rubras como a febre que eu trazia...
- E vim deitá-las contente
na minha cama vazia!
Toda a noite me piquei
nos seus agudos espinhos!
E toda a noite as beijei
em desalinhos...
……………………………………..
A janela toda aberta
meu quarto encheu de luar...
- Na roupa branca de linho,
as rosas,
são corações a sangrar...
……………………………………..
Morrem as rosas desfolhadas...
Matei-as!
Apertadas
às mãos-cheias!
……………………………………..
Alvorada!
Alvorada!
Veio despertar-me!
Vem acordar-me!
…………………………………….
Eu vou morrer...
E não consigo desprender
dos meus desejos,
as rosas encarnadas,
que morrem esfarrapadas,
na fúria dos meus beijos!
Junho - Madrugada - Céu em Fogo
1922
Vivo de inquietações…
De sombrios desejos…
As minhas ambições,
andam traduzidas
nos rúbidos lampejos,
dos meus olhos em fogo!
Não cedem à agonia do meu rogo…
Andam fugindo ao meu destino.
Nem sentem os meus nervos estalar!
E os meus braços desgarrados
procuram em desatino –
sem nada encontrar!
Rasgo nas mãos doloridas,
escorrendo de luar,
as sombras espavoridas
que me ensombram o olhar!
Anda a loucura a desgrenhar-me –
o corpo e o pensamento…
As minhas horas, vão escurecendo
no destrambelho dos meus cuidados…
E eu vou andando
vagarosamente
os olhos roxos de sombra,
amargurados
demandando
tristemente,
o caminho,
do negro labirinto,
onde se perdem
os alucinados!
Julho – Sol-Posto
1922
Por Quê?
Que tens dentro de ti
estranho obreiro?
Que silêncio angustioso
traduzem
os teus Crepúsculos doentes
– Bizarro caminheiro
do infortúnio!
Onde foste ouvir a dor
dos teus Poentes?
Que rumor imenso,
que tragédia contas
em cada cor?
Que grãos de incenso,
queimas tu, em cada Alvor?
Ó romeiro da desgraça!
Predestinado sonhador
de noites sem estrelas!
Trágico e errante…
Porque pintas tu sempre, um Céu distante,
nas mortificadas cores
das tuas telas?
Julho – Céu nublado
1922
Risca-se numa luz esbraseada
sobre uma pele negra e rebrilhante
a linha do seu corpo estonteante
recortando a nudez estilizada..,
Cintilações de cor avermelhada,
vem envolver-lhe a curva provocante!
E na boca perversa de bacante,
agoniza uma rosa ensanguentada!
Num amplexo quimérico cingida,
revolve-se na luz enrubescida,
em espasmos de luxúria, irrealizados...
Contorce-se num ritmo de desejos...
E a luz vai-lhe mordendo todo em beijos
o seio nu, de bicos enristados!
1922
A Outra, a tarada,
aquela que vive em mim,
que ninguém viu, nem conhece,
e que enloirece
à hora linda do poente
pálida e desgrenhada –
Vem contar-me, muitas vezes,
na sua voz envolvente,
incoerente
e desgarrada —
A estridência da cor,
a ânsia do momento...
A rubra dor
do sensualismo,
no ardor de cada paroxismo.
Não há angústia maior
que essa tragédia interior: —
A intransigência
dos seus nervos,
irreverentes servos
da sua inconsciência!
E é sempre a mesma dor angustiada
em cada sensação realizada...
Todo o seu canto morre num clamor!…—
Nada é verdade.
Só existe a Dor!
Nada mais subsiste,
— Mesmo o prazer
e a sensualidade
só na Dor existe!
1922
O sol em calmaria sufocante,
abrindo as grandes asas luminosas
adejou sobre a serra culminante
abrasando-lhe as faces pedregosas…
Subindo luminoso, mais brilhante
abrangeu as planícies argilosas
emudecendo a fonte sussurrante –
e sequioso, anda, a sorver as rosas!...
As abelhas, zumbindo nos silvados,
lembram pingos de fogo, condensados,
a refulgirem sob as suas asas…
E descansando à sombra dos sobreiros
o encalmado rancho dos ceifeiros
foge aos seus beijos rubros como brasas!
Agosto
1922
As horas vão adormecendo
preguiçosamente...
E as minhas mãos estilizadas,
vão desprendendo
distraídamente,
as minhas tranças doiradas.
Reflectido no espelho
que me prende o olhar,
desmaia o oiro vermelho
dos meus cabelos desmanchados,
molhados
de luar!
Suavemente, as mãos na seda,
Vão soltando o leve manto...
Meu lindo corpo de Leda,
fascina-me, enamorada
de todo o meu próprio encanto...
…………………………………….
Envolve-se a lua
em dobras de veludo
nos páramos do céu
e eu vou pensando,
no cisne branco e mudo
que no espelhante lago adormeceu...
………………………………………
Volta o luar silente...
E a minha boca ardente
numa ansiedade louca
procura ir beijar
o seio branco e erguido,
que no cristal do espelho ficou reflectido!…
Impossíveis desejos!
Os meus magoados beijos
encontram sempre a própria boca
banhada de luar
álgido e frio –
Dizendo em segredo
às minhas ambições,
o destino sombrio
das grandes ilusões!
Noite de Agosto
1922
Descobri a cor rubra, dentro dos sentidos...
Amortalhei a alma – depois esmaguei
o coração, em tristes dias denegridos
e perdi-me nas horas, que eu mesma tracei...
Agora, iniciada, junto aos meus ouvidos
mal chega a viva dor, do que eu me separei!
Destruí a Beleza, deixando vencidos
a paixão e o amor; que assim repudiei...
Destruí a paixão…sensualizei a Dor
- fiquei, silenciosa e só, vendo passar
os tristes funerais do meu perdido amor—...
Hoje tenho desejos confusos, internos...
Ódios dentro de mim, fúrias a estrebuchar —
e torturadas ânsias, abrem-me os infernos!
Agosto – Noite
1922
Tombei do divino altar
do Enlevo, em que eu vivia...
Crenças e fé que eu sentia,
Eu vi tudo soçobrar!
Ficou-me o peito a sangrar,
Da chaga onde me roía,
A Hidra, que eu não podia,
Desprender, para esmagar!…
Fechei os olhos febris
macerados, espavoridos... —
Nem a própria Morte os quis!
Já não sinto as crueldades,
dos meus tormentos volvidos...
—Mas tenho tantas saudades!
Agosto — Quando o Sol Morre.
1922
Minha Mãe! Minha Mãe! quero dormir –
e o vento não me deixa descansar...
Este silvo não deixa de se ouvir...
Parece a voz d’alguém que anda a penar!
Vem agora, escutar o retinir
dos vidros... começou a trovejar.
Fecha a janela, Mãe! Vem-me cobrir.
Mãe! sinto frio, até no teu olhar!
Foge-me tudo, que eu procuro e quero!
Vem perseguir-me a lenda de «Ahasveros»...
Mãe! — expulsou-me o próprio coração...
Fui até pela Dor repudiada...
Mãe! quero regressar - voltar ao Nada —
e perder—me na grande Escuridão!
Noite – Setembro
1922
Ameigam teu corpo airoso
requebros sensuais,
e o teu perfil
felino e vicioso
diz-nos pecados brutais…
– Paixões preversas
onde o crime é gozo!
Carne que a horas se contrata,
e onde a tísica já fez guarida;
– vendida por suja prata
em tanta noite perdida…
Ó farrapo de luxúria
que acendes quentes desejos
até à fúria,
na febre de longos beijos!…
Perderam-se tantas, tantas
mocidades
nos teus olhares diabólicos,
que nem tu já sabes quantas!
E ninguém te perguntou
ainda, mulher perdida
que desgraçado amor foi esse
que te arrastou
a essa vida, negra vida!
E às vezes,
cuspindo sangue
em noites de guitarrada,
a tua boca tão mordida,
cantando, à desgarrada,
fala do amor crueldade
– um amor todo ruína,
uma amor todo saudade!
Ó farrapo de luxúria
que acendes quentes desejos
até à fúria,
na febre de longos beijos!
Outubro
1922
Lá vem a noite, as serras contornando;
É esta a hora negra dos vencidos!…
Ao longe, o arvoredo baloiçando
toma aspectos bizarros, contorcidos…
Em ladainhas fúnebres, rezando,
descem dos montes já escurecidos,
as aves agoirentas, voejando
sobre os casais, na sombra adormecidos…
Hora em que se erguem maldições atrozes…
e em que os sinos, ao longe, são as vozes
indefinidas de miséria e dor!…
Hora dos neurasténicos, dos tristes…
Hora em que eu sinto bem que ainda existes,
nesta saudade duma dor maior!
Outubro
1922
Minha alma
ergueu-se para além de ti...
Tive a ânsia de mais alto
—abri as asas, parti!
Outubro
1922
No seu tic-tac, o relógio antigo,
vai baloiçando num ritmo dolente,
como um forçado, preso a um castigo
num trabalhar cansado e indif’rente.
Não o detém nem o sorriso amigo
de quem a hora passa alegremente...
Para quem vive a vida, sem abrigo
arrasta a marcha dolorosamente.
Tic-tac e o momento vai, prossegue...
Dum som ao outro som que logo segue
quanta tragédia desigual se passa.
Quanta alegria nesse breve instante!
Quanta alma a evolar-se já distante...
E quantas vão nascendo p’ra desgraça!
Outono
1922
Vem! Vem de mansinho…
Deixa-me ficar
nesta penumbra, nesta meia luz.
Senta-te amor, devagarinho…
Assim… Eu quero escutar
essa música dolente,
que a tua luz traduz!
Vem contar-me contos…
Conta-me a vida dos ciganos
nómadas, errantes.
Dize-me dos orientais
que têm paixões brutais
e dos seus haréns,
as cenas sensuais…
Dá, meu amor,
dá alegria, põe muita cor
nessas novelas…
Vem contar-me coisas belas!
Veste as ciganas bronzeadas
de lenços de ramagens!
Dá tons vivos às imagens…
Veste-as de cores encarnadas!
Fala-me dessas tribos selvagens
enfeitadas com penas multicores
e coisas esquisitas,
desenhando tatuagens
no peito das favoritas!
- Dize-me dos teus amores…
Enche de luz e de estridor
a minha alcova sombria!
Dá-me alegria…
Incendeia meu sangue arrefecido!
E depois meu amor…
Depois… deixa-me sonhar…
Delirar,
num sonho belo, rubro, colorido!
Tarde de Outono
1922
Sou amargura
em recorte
numa sombra diluída...
Vivo tão perto da morte!
Ando tão longe da vida...
Quis vencer
a minha sorte,
Mas fui eu que fui vencida!
Ando na vida sem norte,
Já nem sei da minha vida...
Eu sou a
alma penada
de outra que foi desgraçada!
—A tara da desventura...
Sou o
Castigo fatal
dum negro crime ancestral,
em convulsões de loucura!
Novembro - Tarde Cinzenta
1922
A minha colcha
encarnada
Perfumes estonteantes,
atiram-me embriagada
sobre os cetins roçagantes
da minha colcha encarnada!
Em espasmos delirantes,
numa posse insaciada -
rasgo as sedas provocantes
em que me sinto enrolada!
Tomo o cetim às mãos cheias.
Sinto latejar as veias
na minha carne abrasada!
Torcem-me o corpo desejos
mordendo o cetim com beijos
numa ânsia desgrenhada.
Noite de Dezembro - Horas de Febre
1922
Abre sempre de mansinho,
as minhas cartas, amor...
no roxo do rosmaninho
vai oculta a minha dor.
2
As saudades que eu te envio
nas cartas que vou mandando,
são como as águas do rio,
já nascem tristes, chorando.
3
As saudades dime eu te enVio
nas minhas cartas, meu Bem,
nascem sempre ao desafio
mal uma vai, outra vem!
4
Não me mandes mais saudades
nas cartas que me escreveres...
Já tenho tantas saudades!
- Guarda as tuas, se puderes...
Inverno – Sol Posto
1922
Tive esta noite um sonho torturado,
estranho e singular;
Alguém, sobre o meu peito magoado
prendia o seu olhar...
E pálido, dizia-me a tremer:
- Abre teu peito tanto
que meus olhos tua alma possam ver,
já morta há não sei quanto!
- É morta, sim! Mas vai ressuscitar!
Erguem-na meus desejos!
Vai reviver à luz do meu olhar
na febre dos meus beijos!
E no mistério dessa noite escura
- minha alma cor de lírio
vieram profanar-te a sepultura
meus sonhos de delirio!
Inverno
1922
O Anão da Máscara
Verde
As árvores seculares
do meu jardim,
em murmúrios de segredo –
falam de mim,
riscando no horizonte
longas figuras de medo…
O silêncio fala
balançando os esguios esqueletos
das árvores desgrenhadas!
Apagaram-se as velas perfumadas
do lampadário da minha sala…
As aves em voos inquietos
passam caladas!
……………………………………
Infinitamente só,
as horas vão adormecendo…
……………………………………
Estranha visão!
Do espelho para mim,
vem deslizando
lívido de luar
um fulvo Anão, de máscara verde
vestido de arlequim…
As mãos a suplicar,
num gesto que se perde…
Nos olhos cintilantes, infernais,
eu leio confissões rudes, brutais!
– Estende os braços revestidos de oiro…
E as suas mãos esguias
vêm desprender o meu cabelo loiro!…
Álgida madrugada de luar…
Infernal tentação!
Eu não posso desfitar…
a boca rubra e incendiada
do meu Anão!
Quero fugir a este inferno!
– Os olhos dele…
Um abismo sem fim!
Um labirinto!…
– E o meu cabelo a arder
nas mãos do arlequim! –
Não! Não!
Foi um desejo apenas
e que eu desminto!
E rasgo-lhe com fúria
as vestes de cetim.
……………………………………
Olho ainda o espelho
pálida e cansada…
E já longe,
iluminado de luar
álgido e frio,
o meu Anão de olhar sombrio,
lá está
a contar
o meu segredo
num murmúrio sem fim,
ás árvores do Medo
do meu jardim!
Inverno – Meia-Noite
1922
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