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Judith Teixeira

 

 

 

 

Alguém se recorda deste nome: Judith Teixeira? Não será fácil, sobretudo aqueles que, embora interessados pela nossa poesia, se satisfazem apenas consultando compêndios da especialidade que lhes orientam as leituras: as histórias, os ensaios, as antologias. Judith Teixeira não foi notícia em qualquer deles. Mas publicou obras, mas causou escândalo, E o primeiro destes teria sido o seu sonetilho «Fim», incluído no segundo número de Contemporânea, de José Pacheco, com aquele aparato gráfico tão característico da revista. É preciso transcrevê-lo para se compreender o mais que adiante se dirá sobre a poetisa e a sua poesia:

 

Asa negra que esvoaça...

Negros dias ensombrados!

Roubaram-me toda a graça

aos meus olhos macerados!

 

Nevrótica, fim de raça...

Os meus nervos delicados

vão sucumbindo à desgraça

dos tristes degenerados!

 

Trago nos nervos a morte!

Sou uma sombra em recorte

de tristeza e de ruína..,

 

Uivou dentro em mim a dor...

Só lhe perco o som e a cor

em orgias de morfina!

 

Não vinha datado, mas no volume Decadência, em que iria incluir-se, a autora assinalou: «Setembro - Tarde Negra 921.» Aliás, raras são as poesias dos três livros de Judith Teixeira (Decadência Castelo de Sombras e Nua) que não tragam um breve comentário sobre a estação, mês, ano e hora da sua criação: «Tarde cinzenta»; «Inverno - Hora ignorada», « Fevereiro - Noite luarenta»; «Inverno - Noite - Hora inquieta»; «Julho - Céu nublado»; «Novembro - Hora das visões»; «Inverno - O vento bate com fúria nas janelas»; «Madrugada - Céu em fogo»; «Noite de Dezembro - Horas de febre»; «Na Serra – Maio - Hora intensa»; « No meu boudoir – Noite - Junho “; «Manhã de Outono nublada e fria»; «Fim do Outono--Quando o sol morre»; etc., etc... A maioria faz referência ao Sol posto, ao entardecer, à noite. E porque não? Trata-se de uma poesia nocturna, dionisíaca, que poucas vezes a alegria solar veste de luz. A sombra devia ser-lhe propícia ao nascimento.

Na conferência De Mim, publicada em 1926, em que Judith Teixeira decide «explicar» as suas «razões sobre a Vida, sobre a Estética, sobre a Moral», lê-se a seguinte afirmação: «desde a apreensão feita há anos do meu livro Decadência (...) ». Embora tal livro tenha vindo a lume em 1922, a segunda edição é de 1923 e esta data traz-me à lembrança o célebre «escândalo» da intervenção «dos estudantes das escolas superiores de Lisboa» contra a chamada «literatura de Sodoma», em que se viram envolvidos Fernando Pessoa, o seu heterónimo Álvaro de Campos e Raul Leal (o principal visado), em confronto com Pedro Teotónio Pereira, então presidente da Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências. Vou dar a palavra a este último, transcrita do primeiro volume das suas Memórias:

«Por volta de 1923, atravessámos uma época particularmente perigosa, porque se procurou, em vários sectores, celebrar com foguetes essa corrente literária que era importada pelo Sud-Express.

Dentro do País surgiram de repente meia dúzia de livros de homens e mulheres já nesse tempo havidos por estranhos, e tiveram lugar várias manifestações que davam a impressão de se estar ensaiando o terreno para mais ousados cometimentos.»

O que se passou é bem conhecido e estou em crer que Decadência faria parte da lista de obras apreendidas pelo Governo Civil lisboeta, depois da pressão feita pelos estudantes junto dos livreiros. Lá, ele figuraria entre as Canções, de António Botto (origem, talvez, da infeliz reacção), e de Sodoma Divinizada, de Raul Leal. (É, igualmente, de 1923, a «série de impressões animatográficas» Sachá, de Francisco Manuel Cabral Mettelo, a que Pessoa louvou a elegância, e onde se retrata uma alta-roda lisboeta decadente, homossexual e cocainómana.) O facto a que se refere Judith Teixeira devia ter ocorrido, pois, durante o acto estudantil «morigerador», a que nem Júlio Dantas foi poupado (mas o ilustre académico já tinha sido morto PIM!, anos antes, por Almada!). Adivinho o escândalo que terão motivado, numa sociedade ainda embalada pelos castos ritmos da Lua de Londres e da Judia (e apesar da bomba chamada Orpheu mas isso era literatura, não de Sodoma, mas «de manicómio»!), versos como estes, dedicados a uma cigana:

 

Tremem meus nervos doentes,,.

Não repelem a visão,

Sentindo os agudos dentes

Virem morder-me inclementes

Numa infernal perversão!

 

 ou a poesia A Estátua:

 

o teu corpo branco e esguio

prendeu todo o meu sentido...

Sonho que pela noite, altas horas,

aqueces o mármore frio

do alvo peito entumecido...

 

E quantas vezes pela escuridão,

a arder na febre dum delírio,

os olhos roxos como um lírio,

venho espreitar os gestos que eu sonhei...

…………………………………………………

Sinto rumores duma convulsão,

a confessar tudo o que eu cismei!

…………………………………………………

 

Ó Vénus sensual!

Pecado mortal

do meu pensamento!

Tens nos seios de bicos acerados,

num tormento,

a singular razão dos meus cuidados!

 

E mais, muitas mais, como A Minha Colcha Encarnada:

 

 

Perfumes estonteantes

atiram-me embriagada

sobre os cetins roçagantes

da minha colcha encarnada!

 

Em espasmos delirantes,

numa posse insaciada -

rasgo as sedas provocantes

em que me sinto enrolada!

 

Tomo o cetim às mãos cheias..,

Sinto latejar as veias

na minha carne abrasada!

 

Torcem-me o corpo desejos...

mordendo o cetim com beijos

numa ânsia desgrenhada!

 

E as «orgias de morfina» a droga a que a poetisa chamava «a minha amante» («Dizem que eu tenho amores contigo / Deixa-os dizer! ... / Eles sabem lá o que há de sublime, / nos meus sonhos de prazer ») que indignação terão causado, assim confessadas, com soberano despudor! (Na longínqua Macau, outro poeta, Camilo Pessanha, ia sumindo-se, aos poucos, «como faz um verme», sorvendo a fundos haustos pelo longo cachimbo de bambu o ópio da evasão.) Pasmo que qualquer dos poemas citados não tenha merecido à sensibilidade e cultura de Natália Correia a inclusão na sua Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, onde alguns talvez menos autênticos se coligiram. E pasmo que Judith Teixeira não esteja presente na Antologia da Poesia Feminina Portuguesa que a cultura e sensibilidade de António Salvado organizaram. Porque, apesar da frouxidão e desleixo da forma (quase sempre), há uma personalidade poética original («O que não sei é ser banal» diz a escritora) a distinguir e a prezar. Mais a mais, ela é a nossa única poetisa «modernista» (Violante de Cisneiros é um criptónimo de Côrtes-Rodrigues e Fernanda de Castro, com ser moderna, nunca foi «modernista». Muito menos Florbela, Virgínia Vitorino, Laura Chaves... as mulheres-poetas da época). O segundo livro de Judith Teixeira, Castelo de Sombras, apresentava-se muito mais discreto que o primeiro. Em tudo. Decadência era um volume fascinantemente luxuoso, num formato de livro de arte, em excelente papel e com apurado arranjo tipográfico, tendo a enriquecê-lo a gravura da capa, a cores, da autoria do pintor «modernista» Carlos Porfírio, que foi o director de Portugal Futurista. Castelo de Sombras mantinha o bom gosto gráfico, o grande formato (embora menor que o de Decadência), mas o conteúdo perdera ousadia, «a vertigem sagrada da luxúria» que exigia Raul Leal, o profeta Henoch, para o mais sublime culto estético. («A luxúria é uma força! “ gritava Valentine de Saint-Point, com quem Judith Teixeira se identifica, proclamando na sua conferência De Mim: «A luxúria é uma fonte dolorosa e sagrada de cujo seio violento corre, cantando e sofrendo, o ritmo harmonioso das nossas sensações!»)

Sem dúvida, a nova obra apresentava uma forma mais perfeita, em serenidade, sem a convulsão de variada métrica, e, caso curioso!, apesar do seu título sombrio, o Sol raiava muito frequentemente neste livro voltado a um exterior campestre, rico de cor. («E o meu coração, / o mago feiticeiro da melancolia, / esse nostálgico roussinol, / anda a ensaiar um hino de alegria, / -  embriagado de sol»; «Custódia doiro em luz vai refulgindo / na seda azul dum grandioso altar / ergueu-se agora rútila, espargindo, / seus raios luminosos pelo ar. . . “; “O Sol em calmaria sufocante, / abrindo as grandes asas luminosas / adejou sobre a serra culminante / abrasando-lhe as faces pedregosas».) De vez em vez, até um leve misticismo aflora, com esboços de drama («Rezava quando o sono me venceu»; «O céu negro e plangente está chorando / sobre o rosto bendito de Jesus»; «Senhor!, de que me serve este suplicio, / se nem Tu conseguiste na agonia / igualar corações no sacrifício?!...») Uma sombra a pairar neste Castelo (Decadência já dela dava sinais) é, ainda, a de António Botto. Leia-se, como exemplo, a poesia Duma Carta:

 

Escrevi-te ontem

somente para dizer

das minhas mágoas e do meu amor…

O Sol morria...

Tudo era sombra em redor

e eu... ainda escrevia...

 

A pena sempre a correr

sobre o papel,

deixava cintilações

nas pedras do meu anel!

 

E a pena corria...

Nem precisava ver o que escrevia!...

 

Anoitecera.

……………………………………

 

Como em toalha de altar

a mesa

revestiu-se de luar!...

 

Nascera a Lua.

 

E a pena, nos bicos leves,

dizia ainda:

Sou tua!

Porque é que me não escreves?

Mas o papel acabou,

 a pena continuou:

Porque é que me não escreves?

O meu amor é todo teu.

Só eu te sei amar!

—Só eu!...

 

Em 1926, Judith Teixeira dava à estampa o terceiro e último volume de versos: Nua, Poemas de Bizâncio. (Taça de Brasas, anunciado, nunca chegou a publicar-se. E existirá, ainda, o manuscrito?)

Eis o seu melhor livro, creio. A ele se refere a autora, na citada conferência, classificando-o da se­guinte maneira: «magnólia ardente, bizarra e exótica, em que eu pus toda a sinceridade da minha consciência de mulher e de artista, e toda a verdade da minha sensibilidade constantemente sequiosa de beleza». Trata-se de um regresso ao dramatismo, ao frenesim pagão de Decadência, à mesma personalidade luxuriosa e original. Sem a novidade do primeiro e a quase modéstia do segundo, mais clássico na apresentação (o grande formato subsistia, bem como o cuidado gráfico), este volume trazia um retrato da autora, assinado por Guilherme Filipe outro «modernista». O pintor transmite-nos um belo rosto de mulher, de olhos macerados e cabelo curto, moda recente na época. Faz parte do retrato, e em destaque, um daqueles bonecos de boudoir feminino, vestido de pierrot. (E porque não o boneco chinês, de «olhos de seda / traçados em viés», que vivia «Sobre uma almofada / de cetim bordada, / pintado a cores» e foi para Judith Teixeira motivo de poesia?)

Nua tinha, como dedicatória: «Aos braços delgados, e brancos, e nus da minha Quimera em cujas curvas da Perturbação e do Sonho musical eu descobri o ritmo selvagem e sonoro de viver!» Braços delgados, brancos, nus, bem como as mãos esguias e pálidas, são predicados do ser amado («curva leve do teu corpo esguio»; «mãos esguias / pálidas»; «lívido a desmaiar / ar quebrado, indeciso»; «mãos luarentas e alongadas»; «mãos de doente / mãos de asceta»...) E, no entanto, a poetisa aspira (cesariamente) a um corpo de amor saudável («E eu que amo e quero a rubra cor dos sãos»), a ponto de confessar, a um dado momento do poema Domínio:

 

- Eu quero sol, Senhor!, mais sol na minha vida!

E para quê?

Vê lá:

Para abrasar a doce rosa-chá

da tua carne de Outono,

pálida e arrefecida!

………………………………………………………….

 

Hei-de arrancar

dos páramos do céu

essa hóstia de oiro refulgente!

E passá-la da minha boca

rútila e criminosa

para a tua boca esfíngíca

e indiferente,

numa lúcida

e expressiva

comunhão!...

Como se em carne viva

eu te desse o meu próprio coração,

 

E será então

que o teu corpo raro

de vencido

há-de tombar sob a ânsia viva

do meu querer..,

o teu corpo endoidecido

em loucas vibrações

de sangue e seda,

em labareda,

…sob a garra feroz das minhas sensações!

 

Sim, era necessária essa «comunhão» para que a poetisa pudesse cantar em plenitude o corpo amado. Disse-o em prosa: «Não sei cantar os amores débeis. Adoro o Sol, amo a Cor, quero a Chama, bendigo a Força, exalta-me o Sangue, embriaga-me a Violência, deliro com a Luta, sonho com os gritos rebeldes do Mar!” Enfim, uma confissão futurista. Nenhuma outra escritora portuguesa a fez. Todavia, esta adoração ao Sol raro se manifesta na sua poesia de profunda nocturnidade, salvo, como disse já, in Castelo de Sombras.

No estudo de José Régio António Botto e o Amor admite-se que muitos dos versos do autor de Canções tenham sido escritos, afinal, «de Narciso para Narciso»; que o vulto masculino que ali se desnuda e louva não passe da própria imagem do poeta no espelho. É possível, também, que a mulher que Judith Teixeira muita vez desenha sensualissimamente seja apenas o fruto de uma atitude narcisista, porque, depois de nos cantar tantos contactos decadentes, comenta a poetisa: «Amor’s perversos! ... / Amor’s que eu nunca tive e não terei.» No entanto, não deixa ela de criar uma alta poesia de amor que deveria ocupar posição de realce na antologia Alma minha gentil, da responsabilidade de Régio e Serpa. Não resisto a transcrever um poema que bem pode garantir a minha afirmação:

 

MAIS BEIJOS

 

Devagar...

outro beijo... outro ainda...

O teu olhar, misterioso e lento,

veio desgrenhar

a cálida tempestade

que me desvaira o pensamento!

 

Mais beijos!...

Deixa que eu, endoidecida,

incendeie a tua boca

e domine a tua vida!

 

Sim, amor...

deixa que se alongue mais

este momento breve!...

que o meu desejo subindo

solte a rubra asa

e nos leve!

 

É irresistível: leio as poesias de Judith Teixeira e, separando muito trigo de muito joio, penso-as merecedoras de melhor sorte do que o silêncio, a ignorância, a que têm estado votadas.

E chegou a ocasião da pergunta: «Onde nasceste, onde brincaste, ó bela?» Nenhuma indicação. Nenhuma data. Onde ir buscá-las? Reserve-se, pois, esta tarefa aos pesquisadores de biografias. Eu fico por aqui. E com pena de não poder e saber ir mais longe.

 

(12 de Novembro de 1974)

 

 

in António Manuel Couto Viana, in Coração Arquivista, Lisboa, Verbo, 197?, pág. 198-208,