História da Ilha da Madeira (cont.)
Há depois uma outra espécie de jogo que é a Caça dos Touros, jogo que também se faz em Itália, sobretudo na cidade de Roma. No entanto, como se faz de uma maneira em Portugal e de outra em Itália, penso que não seja impróprio contar o modo como lá se faz. Entram primeiro em campo os nobres Cavaleiros a Cavalo, ricamente vestidos com as armas de haste na mão, mas sem escudos. E tendo percorrido uma e duas vezes o campo, fazendo uma belíssima exibição de si aos espectadores, param, enquanto sai um Touro ferocíssimo, em volta do qual se põem atiçando-o com gritos, com interjeições, ora de um lado, ora do outro, E vão também contra ele, mas raras vezes, pois isso é expor-se a demasiado risco e perigo; pois com maior dificuldade se pode ferir na cabeça o Toiro, de frente; e também porque facilmente poderia acontecer que ele com os cornos não só ferisse o Cavalo, mas também deitasse por terra Cavalo e Cavaleiro. Também não se pode facilmente voltar-lhe as costas e pôr-se-lhe na frente, empurrando todavia o Touro para a frente com grande valentia. Quando o Touro é atingido , os Cavaleiros põem-se logo a correr e em fuga. E fogem com tanta destreza e arte, que não se afastam muito; mas fazem-no de tal maneira, que dão tempo aos Touros para seguir os cavalos; e às vezes encostam-se-lhes de tal modo que parece terem os cornos nas garupas. Então acontece que, vendo-se os Cavaleiros perseguidos pelo Touro, sem possibilidade de correr para muito longe, esforçam-se por atingir o Touro na cabeça e depois correr rapidamente para lhes fugirem. E, se acontece que um cavaleiro está em perigo, há logo outros que, arremetendo a zagaia contra o Touro de outro lado, o fazem afastar-se do primeiro. De facto é da natureza dos Touros, ferir o que primeiro se lhes põe à frente; e ao atacar, fecham os olhos, de modo que facilmente são enganados. Por isso, costumam os Cavaleiros, não tanto por elegância, quanto para enganar os Toiros, colocar uma certa bandeirola de seda na ponta das suas zagaias.
Quando, pelo tempo ou por outra razão, não lhes é permitido exercitar-se nestes jogos, há os que jogam à bola, aos dados, às cartas e outras espécies de jogos que mais lhe agradam. É, porém, maior o número daqueles que se dedicam a cortejar as damas. Acontece também, que se comportam tão delicados, mais do que convém a homens viris. Têm muitos cuidados com a barba e com as cabeleiras, perfumando estas e aquela com preciosos perfumes. E não só usam pentes para pôr em ordem os cabelos; mas usam também como as senhoras aqueles ferros, com que põem os cabelos encaracolados. Nem cuidam disso somente em Casa; mas, saindo à rua, fazem com que os pajens que os acompanham levem o que precisam para pentear as cabeleiras e limpar as roupas. Se querem ir à Corte para cortejar as damas, ou para visitar algum amigo, não saem de casa sem primeiro belamente se enfeitarem, limpos e perfumados. Aí, ainda antes de uma hora, fingem ter de sair para falar a alguém, ou fazer alguma sua necessidade e vão ao negócio do pente e da escova. Tendo-se limpo de novo, voltam ao cortejamento e às conversas. De modo que quase em cada hora se penteiam e limpam. Mas não podem trazer toda a espécie de fatos; pelo contrário, é-lhes proibido por lei Real trazer veludo, outras sedas ou ouro, excepto saiotes e chinelas. Esta lei foi feita pelo Rei para que os nobres não se endividassem e ficassem pobres por fazerem despesas supérfluas; e também para que o dinheiro não fosse levado para fora do Reino por mercadores forasteiros; e porque os nobres portugueses se dedicam a imitar os seus Reis. Por isso, ele, para dar exemplo aos outros, é o primeiro a observar rigorosamente esta determinação. Para confirmação disto, recordo-me eu ter visto o Rei João de Portugal, quando ele tomou por esposa a irmã do Imperador Carlos V, vestido de puro pano, de cor azul, sem nenhum ornamento. Assim o vestir dos nobres Portugueses, como dos Madeirenses, apresenta uma certa solenidade, pois trazem sempre certas capas compridas (que eles chamam capuchos) de cor preta sem orla ou qualquer enfeite; são simples e fechadas todas em volta.
Agora é tempo que fale ainda da Plebe; embora já tenha tocado nalgumas coisas em geral, quer dos portugueses, quer dos Madeirenses. Parece-me que a plebe da Madeira seja um pouco mais livre que a de Portugal, porque se não dedica tanto a exercícios mecânicos e a negócios vis, já que os escravos se encarregam da maior parte de tais exercícios; e tudo o que ganham é lucro para o patrão. Da plebe espera-se que tenha conhecimentos da arte de marear; dar-se à transacção de mercadorias; atender à agricultura; reverenciar os nobres; e servindo-os, adquirir-lhes a deferência e o favor; aprender a manejar as armas para delas se servirem na guerra; saber música para atender aos amores; dançar; lutar; e fazer a caça dos Touros. Nestes dois últimos exercícios, creio que superam de longe todas as outras nações. As Caças dos Touros são feitas pela plebe e por gente vil a pé, mas com grande destreza e coragem. Na verdade, não vão atacar o Touro com armas, pelo contrário é proibido por lei que alguém se atreva a ferir o Touro com a espada ou com lança, ou com outra espécie de armas, excepto se for para ajudar a alguém cuja vida for posta em perigo, ou então quando for dado sinal para o matar; este dá-se à hora em que deve acabar o espectáculo, e quando o Touro está já cansado, isto é, de tal maneira que não só não se atreve a atacar qualquer pessoa, mas nem sequer se sabe defender ele mesmo. Os que entram em campo a caçar o Touro são chamados toureiros. Não levam espada, nem lança, nem qualquer arma com haste; têm apenas certas varinhas na mão, mais grossas que um dedo e com três braças de comprimento, as quais são levíssimas e com elas picam o Touro; este, atiçado com os estímulos, deita espuma por todo o lado, e com os pés vai pisando a terra. São todos peritos nesta espécie de jogos; então vão com tanto maior alegria contra a besta feroz, quando o vêem correr com maior ímpeto ao seu encontro. Mas o serem caçadores tão atrevidos deriva de, no cimo das suas varinhas levarem uma certa bandeira de pano de linho ou de seda branca; e enquanto o Touro para aí vira os cornos ou nela se enrola, o caçador, virando os pés para a direita, ou para a esquerda, retira-se com destreza maravilhosa para detrás daquela besta; e deste modo o caçador tira-se de diante dos olhos do Touro; o qual, atirando-se ainda a outro caçador, que por sorte está diante dele, vem igualmente a ser enganado por ele do mesmo modo. Isto pode fazer facilmente todo o caçador bem exercitado: pois tal é a natureza dos Touros (como acima se disse) que a tudo o que se lhes apresenta à frente se atiram com os cornos para ferir, ao mesmo tempo que fecham os olhos. Como depois vêem que a besta quase não poder suster-se de pé de cansaço, para pôr fim aos jogos, ao som de trompas, é dado o sinal aos caçadores, para matar o Touro; e então eles logo e sem alguma dificuldade, cortam-lhe as pernas.
E, embora estes espectáculos sejam muito célebres, não só na Ilha da Madeira, mas também no Reino de Portugal, no entanto não há para a plebe nenhum jogo mais célebre que a luta; na qual os homens põem todo o seu empenho, sobretudo os aldeões; não tanto para adquirir louvores, quanto pela esperança do prémio. Nos dias de festas são anunciados publicamente os prémios, pelo que a eles concorrem muitas pessoas. Os lutadores, completamente nus excepto nas partes vergonhosas, preparam-se para a luta. Quem fica vencedor, pode uma e duas vezes entrar no Campo e lutar com os outros; a quem ficar vencido é retirada a possibilidade de voltar a entrar no Campo para lutar naquele lugar. Mas quem, sozinho, lutar com vários lutadores, e vence, é o mais louvado de todos, e o prémio é dado só a ele. Duas coisas, entre outras, observam estes lutadores: uma é poder prender o adversário à vontade; outra é enganá-lo com os pés. Ora acontece, que com tais enganos vem o adversário a cair ou com o rosto para baixo, ou com a barriga para cima, ou então de flanco. Como são diversas as maneiras de enganar o adversário com os pés, ou de o agarrar, assim várias são também as maneiras de cair em terra. Todos estes movimentos engenhosos de pés têm todos os seus próprios nomes. Todo o artifício da luta consiste em parte em saber bem agarrar, parte em enganar com os pés o adversário, e usar mais a destreza, do que a força de braços. Recordo-me de haver visto um certo Português chamado Marcos de Braga, muito robusto e muito forte, mas sem conhecimentos e prática de lutar. Embora ele fosse pessoa grande, todo peludo, forte e valente, apesar disso, foi deitado a terra por um chamado Colaço, pessoa delicada, e muito inferior a ele em força. E isto não se deu por outra coisa, senão por Colaço ter mais prática na arte da luta e ser mais atento em enganar o adversário. Os que estavam presentes julgavam que o Braga com uma só mão fosse deitar por terra o Colaço, mas este, assim que o teve seguro com as mãos, com uma rasteira o derrubou por terra. Então, ressentido o Braga, para mostrar que tinha sido vencido não por força, mas pelo engano, com ambas as mãos apertou os nós das mãos do Colaço, até que fez sair sangue. Então Colaço, vencido pela dor, confessou estar vencido; e deixou que o mérito da luta fosse para o Braga.
Já dissemos bastante sobre a Ilha da Madeira, os seus habitantes e os seus costumes. Digne-se Vossa Senhoria Ilustríssima e Reverendíssima ter tais coisas em consideração. Pois eu escrevi tudo para que, lendo qualquer pessoa isto em todo o tempo, seja um sinal e uma amorosa lembrança da minha consideração e reverente amor por si.
F I M
TEXTOS CONSULTADOS
Silvano Peloso, Tradição literária e experiência de viagem na “Insulae Materiae Descriptio”, de Giulio Landi: in “Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira”, Funchal, 1986, D.R.A.C., Funchal, 1989-1990
Silvano Peloso, Giulio Landi e a “Insulae Materiae Descriptio”: novos documentos, sep. de “Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira”, Funchal, Setembro de 1989
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Silvano Peloso, Al di là delle colonne d'Ercole. Madera e gli arcipelaghi atlantici nelle cronache italiane di viaggio dell'età delle scoperte
2004, 334 p., ill., brossura, Sette Città (collana Nuovo mondo), Viterbo, ISBN 8886091761
Maria de Lurdes Correia Fernandes (Fac. Letras do Porto), A vida de Maria de Portugal, Princesa de Parma: do texto ao comentário
Online, aqui.
José Adriano de Freitas Carvalho (Univ. Porto), Sebastião de Morais, S.J., o confessor da Princesa de Parma
Online, aqui.
Giuseppe Bestini (Universidade de Parma), L'entrata solenne di Maria di Portogallo à Parma, nel 1566
Online, aqui.
Steffano Andretta (Università degli Studi – Roma III) - La rappresentazione di Maria di Portogallo negli elogi funebri contemporanei
Online, aqui.
MANOEL CONSTANTINO nasceu na Cidade do Funchal Capital da Ilha da Madeira. Estudou Filosofia em a Universidade de Coimbra, e Theologia em a de Salamanca onde foy laureado Doutor nesta Faculdade. A viveza do engenho, e capacidade do talento o impellirão a buscar mais espaçoso theatro á sua grande litteratura dictando Filosofia na Sapiencia de Roma cuja leitura principiou a 3. de Novembro de1588 com huma Oração Latina em aplauso da Santidade de Xisto V. Conciliou o afecto das principaes Pessoas da Curia pela sua vasta erudição sagrada, e profana explicada em elegantes Oraçoens, e sublimes Poemas merecendo pela integridade do seu procedimento ser admetido a Clerigo Consistorial, e obter cinco Beneficios rendosos, e huma pensão no Mestre Escholado da Cathedral de Evora. Falleceo em Roma a 28 de Novembro de1614,. Delle fazem honorifica memoria Franckenau Bib. Herald. Gen. Hisp. pag. 104. Nicol. Ant. Bib. Hisp. ,Tom. 1. pag. 264. col. 1. D. Franc. Manoel. Epanaph. de var. Hist. pag. mihi 274. equivocando o nome de Constantino em Clemente. O addicionador da Bib. Orient. de Antonio de Leão. Tom. 2. Tit. 2. col. 583, Jozé Castiglioni seu particular amigo o aplaude com o seguinte Hendecasyllabo:
Nam si magnanimum tonas Philippum,
Arpini decus imitaris oris,
Seu laudes superum canis, virùmque
Et certo pede juncta verba pangis,
Daphnaeam tibi comparas coronam;
Et castis elegis refere Tibullum.
Res et tempora seu Ducum recenses
A Crispo haud procul te abesse remur,
Seu rerum juvat explicare causas,
Et certamen inire disputando
Doctas in Latio locas Athenas.
Lusitania ter, quaterque felix
Emersil decus unde tale nobis.
P. Ant. dos Reys Enthus. Poet.n. 28.
...... viridem nullo renuente corollam
Constantine tibi dant Musae.
Compoz.
Insulae Materiae Historia, cui accessere Orationes duae habitae coram Santissimo Domino nostro Clemente VIII. in Festo Santissimae Trinitatis, et Gregorio XIII. in Festo Ascensionis Domini, et alia latina monumenta. Romae por Nicolaum Mutium 1599 . 4.Neste livro está. Horatio habita Romae in laudem Santissimi D. N. Xisti V. 3. Non. Novemb.1588 , com varios Poemas, e Epigrammas a diversos Santos, e Principes.
Oratio in funere Philippi II. Hispan. et Indiar. Regis invicti, qui ab hac vita migravit die decima tertia mensis Septembris 1598". die dominica antelucano tempore. Romae apud Aloysium Zannetum 1599 . 4.
De profectione Summi Pontificis Clementis VIII. in Ferrariensem Civitatem anno 1598 . Carmen. Romae 1598 . 4.
Historia de Origine et principio atque vita omnium Regum Lusitaniae, et rebus ab illis praeclare gestis cum omnibus casibus, qui in eo Regno ad nostra usque tempora evenere, et multis aliis rebus scitu dignissimmis ad idem Regnum Lusitaniae spectantibus. Romae apud Nicolaum Mutium . 1601 . Consta de 20. livros.
In funere Seraphinae a Portugallia Joannis Brigantiae Ducis filiae et Catherinae Emmanuelis XIV. Lusitaniae, Algarbiorum, Africae, et Indiarum Orientalium etc. Regis ex Eduardo filio neptis, quae vitam cum morte commutavit Romae die 6. mensis Januarii1604r. hora prima noctis in aula Illustrissimi Eduardi Cardinalis Farnesii, atque ejusdem sororis Consobrinae lacrymae. Romae ex Typographia Stephani Paulini . 1604 . 4.et Consta de diverso genero de metros.
Gratulatio de Summo Pontifice Santissimo Domino Paulo V. et re, et nomine Optimo Maximo multiplici carmine tum exametro, tu pentametro, et lyrico diversi generis. Romae apud haeredes
Aloysii Zanneti .1607 . 4.
Votum primum ad Santissimam Virginem Mariam Dei Matrem, quae religiosissime colitur in Aede Lauretana pro salute Illustrissimi Principis et Domini, atque Domini mei Scipionis Cardinalis Burghesii Santissimi D. N. Pauli V., et re, et nomine Pontificis Opt. Max. nepotis ex sorore. Romae apud Jacobum Mascardum. 1610.4.
Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica : na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das obras, que compuserão desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até ao tempo presente, por Diogo Barbosa Machado (1682-1772), 4 vols., 1741.
EMMANUEL CONSTANTINUS, Lusitanus, Funchalensis, quaæ civitas episcopalis est insulæ Madera nuncupatæ, sacræ theologiæ doctor et professor in gymnasio Romano, sacri quoque collegii clericus, carmine prosaque oratione floruit Romæ, ubi et scripsit:
Carmina varia Gratulationes scilicet, Vota similiaque pro Paulo V Summo Pontífice, Scipioneque cardinali Burghesio, et aliis, edita seorsim in 4 Romæ
Insulæ Materiæ, patriam scilicet, Historiam: cui acesserunt, Oratiomes duæ habitæ coram Clemente VIII et Gregório XIII. Romæ 1599, in 4
Historiam item de origine, atque vita Regum Lusitaniæ. Ibidem 1601. 4
Omnia hæc uno volumine compacta vidimus in domo S. Ildephonsi Romana fratrum Augustinianorum nudipedum nationis Hispanæ. Prætera:
Orationem funebrem Reg. Philippi II.
Nicolau António, Bibliotheca Hispana noua : sive Hispanorum scriptorum qui ab anno MD ad MDCLXXXIV floruere notitia / auctore D. Nicolao Antonio ; tomus primus, Madrid, Apud Joachimi de Ibarra., 1788
EMANUEL CONSTANTINUS, ex urbe Funchal, metropoli Maderæ celeberrimæ Canariensium Insulæ oriundus, SS. Theologiæ Doctor, et in Gymnasio Romano Professor, typis publicis emisit
HISTORIAM de origine, atque vita Regum Lusitaniæ Romæ anno 1601 in quatro; Scripsit idem
HISTORIAM insulaeMateriæ seu Madera: ibidem typis impressam anno 1599, in quarto. Utrumque opus Regiæ imprimis Lusitanicæ stirpis, tum et magnatum plurium Hispanorum ac Lusitanorum seriem resque gestas complectitur.
Gerhardi Ernesti de Franckenau (Juan Lucas Cortés), Bibliotheca Hispanica : historico-genealogico-heraldica, Leipzig, 1724