ANA TERESA PEREIRA

 

 

                                  

 

PÚBLICO – Magazine, de 11-8-1991, pags. 34 e 36.

 

Ana Teresa Pereira: Retrato da escritora no seu labirinto

 

Em 1989, ganhou um prémio de literatura policial e, desde então, já publicou cinco livros. É Ana Teresa Pereira, uma autora madeirense de 33 anos que vive num mundo à parte e escreve coisas diferentes.

 

Texto: Regina Louro

 

Quis que as fotografias fossem tiradas no Jardim da Serra, uma quinta abandonada nos arredores de Câmara de Lobos. O motorista de táxi que nos levou não conhecia o sítio, nem o caminho de acesso. Ana Teresa Pereira, sim, conhece-o de olhos fechados. Costuma ir lá quando sente a necessidade de se concentrar para escrever. Aquela mansão abandonada, no meio de um jardim quase selvagem, poderia ser o cenário de um dos seus livros. E vai sê-lo. “A Casa das Sombras”, um dos seus próximos contos de aventuras – primeiro sairá “A Casa dos Pássaros” – inspira-se na presença fantasmagórica da velha quinta.

É uma figura estranha. Parece-se com os livros que escreve, habitados por personagens obsessivas que circulam à sombra de um enigma. Revelou-se em 1989 com “Matar a Imagem” prémio de literatura policial da Editorial Caminho. Logo a seguir, publicou “As Personagens”, um conjunto de contos fantásticos recomendados pelo júri do Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. No ano que corre, já vai com três livros editados: dois de aventura juvenil – “A Casa dos Penhascos” e “A Casa da Areia”- e novamente um policial, “A Última História”. Este último, há pouco lançado, chamou a atenção, definitivamente, para a escrita, o imaginário, a criatividade de Ana Teresa Pereira.

É um policial diferente, psicológico e fantástico. Patrícia mata o homem com quem vive, um autor de romances policiais que a impede de ser livre. O crime passa-se entre a casa que habitam, isolada no alto de uma falésia, e o mar encoberto pelo nevoeiro. Não há testemunhas. A protagonista pode sentir-se, finalmente, liberta, e começa a escrever as suas próprias histórias. Esta é a interpretação linear. A pouco e pouco, a mulher descobre, sugere ao leitor, que o assassínio é somente a intriga de um dos livros do marido. Que ela mesma não passa de uma personagem, comandada até aos mínimos gestos pela vontade do autor, o único que tem o poder de dar a vida… e a morte.

Por aqui passam o idealismo de Berkeley, o absurdo de Kafka, os jogos metafísicos de Jorge Luis Borges e a inquietante estranheza de que falava Freud. O fantástico à Edgar Allan Poe e o tema do duplo à Chestertom… Um toque de “suspense” à Hitchcock e uma atmosfera que faz lembrar certos filmes de Tarkovsky.

“E Henry James”, acrescenta Ana Teresa Pereira, falando ao PÚBLICO, numa esplanada do Funchal. “É uma história inspirada em “A volta do Parafuso”, de James. Queria deixá-la tão ambígua que pudesse ser lida de duas formas diferentes: ou como um delírio da protagonista, ou como uma coisa que está acontecer.”

Livros, filmes: eis o seu mundo. Cresceu no meio deles, principalmente entre livros, e não trocaria a impressão que lhe transmitiram por nenhuma outra. Enid Blyton, William Irish, Nathaniel Hawthorne e Allan Poe são seus companheiros desde a infância. Conheceu muito cedo o universo monstruoso de Papini e o pensamento profético de Nietzsche. Entusiasmou-se com Freud antes ainda de estudar psicanálise no curso de Filosofia, que não chegou a completar. Como Marguerite Duras, concebe que alguém se apaixone por uma imagem e passe o resto da vida a tentar recriar essa imagem.

À semelhança de Jorge Luis Borges, com quem se identifica, imagina o universo como uma infinita biblioteca. Uma das suas personagens vai mais longe, vendo na biblioteca o “paraíso”. Até os pequenos protagonistas de “A Casa dos Penhascos” estão contaminados por essa obsessão,  quando se aventuram a descobrir o segredo oculto numa “floresta de livros”.

“Não quer dizer que não funcione no mundo cá fora, mas o universo dos livros é mais importante”, sublinha na sua voz muito pausada, deixando que as frases se percam no ar, enquanto olhar parece seguir qualquer coisa que só ela vê. “Cá fora”, é o mundo prosaico das relações sociais e profissionais. Nele, Ana Teresa ocupa a função de guia-intérprete, mas interrompeu o trabalho – “posso viver sem me preocupar demasiado com as questões materiais” – para se entregar completamente à escrita, à leitura e aos filmes.Para poder conviver à vontade com os seus queridos fantasmas.

“É muito difícil passar de um nível de realidade para outro”, reflecte. “Depois de um dia a escrever, geralmente já não consigo sair: custar-me-ia muito enfrentar as pessoas. Procuro não misturar a parte pragmática da vida com a parte “irreal”. É do signo Gémeos, e leva isso em conta.

“Irrealidade” é uma das suas palavras preferidas. Significa o outro lado das coisas, a realidade vista por dentro, como nos contos de fadas ou em certos filmes de David Lynch. As histórias dela têm, frequentemente, a lógica do sonho, do pesadelo. Tudo é possível. No conto “O vagabundo”, incluído em “A Última História”, Patrícia reconhece: “Há lugares, há pessoas, que não existem somente num ponto do espaço. Para onde quer que fujamos, iremos encontrar sempre esses lugares, essas pessoas.” E o interlocutor completa, com gravidade: “Dentro do mundo que conhecemos, há fendas. Lugares que só existem para uma pessoa. Numa rua como as outras, entre as casas aparentemente iguais, pode haver uma que mais ninguém conhece, onde só vivem fantasmas nossos”.

A autora é como o feiticeiro que, às tantas, passa a acreditar no seu feitiço. O que começa por ser um jogo intelectual transforma-se numa convicção irracional. “Tenho a consciência muito forte de que cada um vive, até certo ponto, num mundo inventado por si próprio. Em certa medida, a realidade é uma projecção do nosso mundo interno”.

Num dos seus contos, há um homem que inventa relatos de crimes que mais tarde acontecem. É o resultado do poder mágico da palavra. Ver até que ponto esse poder se exerce sobre a imaginação do leitor constitui um dos seus desafios maiores e uma das raras razões por que lhe interessa a resposta de quem lê. O crime de “Matar a Imagem” é perpetrado numa casa à beira-mar, algures na costa oeste da uma ilha. Nenhuma outra pista para a sua localização. Houve pessoas, conta, que foram à procura dessa casa, que não existe. E o mais estranho é que alguém a encontrou. “Senti que a casa já existia, num plano qualquer”, conclui.

A Madeira, onde nasceu há 33 anos, é um cenário apenas implícito, diluído, nas suas histórias policiais. O nome da ilha jamais é mencionado: “Sinto que essa omissão me dá mais liberdade”. Podemos visualizá-la a partir de certas imagens – o nevoeiro, a chuva, as cascatas, os túneis na rocha, o mar – e de uma atmosfera de claustrofobia. Só nos livros para crianças, inspirados nas aventuras de Os Cinco, de Enid Blyton, é que o arquipélago aparece identificado. “Nestes livros, há uma vontade maior de comunicar. O policial é mais hermético, mais fechado.”

No fundo, Ana Teresa Pereira escreve sempre “o mesmo livro”. O seu próximo “triller”, “A Cidade Fantasma”, retoma as personagens, o tema do duplo, os jogos de espelhos da novela anterior. Uma história principal e a história de alguém que está a escrevê-la, com os dois planos a interligarem-se progressivamente. “Como se estivesse a aproximar-me de algo que não sei o que é, em cada livro a aproximar-me mais… É estimulante.” Mentalmente, o livro está pronto, embora ainda não tenha começado a redigi-lo. É sempre muito meticulosa nos preparativos, constrói um desenho, uma estrutura rígida a que não foge, com o princípio e o fim conhecidos à partida. “Depois, há uma fase irracional em que me deixo levar pelos meus fantasmas.” Cria um labirinto, para se perder nele: “É angustiante e fascinante ao mesmo tempo.” E se se perdesse completamente? “Há esse medo. É um risco: gosto de correr riscos.

A princípio, quando se trata ainda de “escrita mental”, serve-lhe o ambiente de um café, ou mesmo uma sala de cinema, “apesar de não ser muito prático”. Traz sempre consigo um bloco de apontamentos. Para escrever, primeiro à mão e em seguida à máquina, recolhe-se em casa, longe do bulício do Funchal. Começa à tarde e vai pela noite fora, com a ajuda de café e cigarros. Quase no final do livro, deixa-se dominar por um sentimento de alucinação. “Nessas alturas, esqueço-me de comer e de dormir, só existo para o livro”.

De dois em dois meses vem a Lisboa, onde alugou uma parte de casa. Demora-se cerca de uma semana. De manhã percorre livrarias e alfarrabistas, à tarde enfia-se numa sala de cinema. Por preguiça, não faz outras viagens. Mas no próximo Outono vai abrir uma excepção para ir a Roma. Ouviu dizer que há lá um cinema que passa filmes de Tarkovsky todas as semanas.

Interrogo-a sobre a experiência, esse alimento vital da ficção. Responde que sim, que também escreve a partir das suas experiências, elaborando-as até as transformar “noutra coisa”. E que o mais importante não é o número de experiências, mas a intensidade com que são vividas. Refere-se, é claro, à experiência interior.

 

 

Eu sou o seu princípio e o seu fim           

 

INTIMIDAÇÕES DE MORTE

 

Parece-me que “O Rosto de Deus” traz Ana Teresa Pereira na sua melhor forma. Mas será que avaliações destas fazem sentido? Sentimos como se a crítica, e o seu papel, e as suas encenações, estivessem também a ser corroídos por essa sombra luminosa e mortal que envolve toda a matéria destes livros.

  1.

O livro mais recente de Ana Teresa Pereira “O Rosto de Deus”, tem na capa uma tela (belíssima, como uma velha edição na Folio de um livro de Duras) de Mark Rothko.  O que não espanta, porque todos os livros da autora costumam estar ligados à pintura (embora orientados para outros períodos ou sensibilidades); porque Rothko é uma referência essencial para Tom, a personagem que atravessa as duas narrativas e desempenha nelas uma função idêntica: ponto de atracção inexorável, lugar de suspensão das contradições, vértice de um processo de absorção que é o eixo de toda a escrita de Ana Teresa Pereira, imagem do amor e da morte.

Assim: “Eu sempre acreditara em Deus, talvez porque os meus pais não tinham quaisquer convicções religiosas e me educaram num ateísmo completo. Para mim, os deuses estavam por todos os lados, nas plantas, nos animais, nos livros, nos desenhos, nas músicas, nos sonhos. E todos esses deuses eram pequenas partes de Deus, as flores que eu pintava, o meu cão, as minhas noites de amor com os meus namorados. Mesmo respirar era Deus, e as manhãs, claro, e as cores, e o crepúsculo, e o mar. Mas naquele espaço senti a sua presença como nunca sentira antes, no ar, no cheiro a flores mortas e a tinta, nos quadros que, soube instintivamente, procuravam revelar o seu rosto... E então vi Tom.”

Não sei se no fundo os critérios da qualidade literária são o que mais importam para Ana Teresa Pereira. Começou por um género aparentemente menor, o policial, sistema narrativo que foi pouco a pouco impregnando o seu mundo obsessivo. Também nisso se aproxima de Rothko, que declarou um dia ao pintor Bem Dienes: “Não se trata de pintura, a luta está para além  da pintura, não é com a pintura.”

Mas noutros pontos também se aproximam e acompanham. Porque Rothko procurava uma ruptura com o senso comum. Porque também ele punha em causa a objectividade e racionalidade e optava por uma atmosfera veladamente ameaçadora. Julgo que o pintor falava em “intimations of mortality”, e a expressão está certa. Em Rothko só interessam as emoções humanas fundamentais: “trágico, êxtase, fatalidade”. Daí que, exactamente como em Ana Teresa Pereira, a psicologia seja secundarizada e as personagens reduzidas a traços arquetípicos. Daí também que o tempo se vá imaterializando até se suspender numa espécie de pura presença devastada. Daí que os objectos familiares tendam a desaparecer num processo de despojamento implacável. Daí também que se assista à emergência deesquemas primordiais: a repetição no tempo (o que ocorre na primeira narrativa: Marisa repete a história da mãe junto de Tom, atravessando a linha invisível de um indizível incesto); a repetição no espaço: as duas irmãs, Pat e Marisa, numa relação especular que apenas se suspende junto de Tom: “nele somos uma só”.

“O problema quando se vive neste mundo é evitarmos a asfixia”, dizia Mark Rothko. E aquilo que nele aparece como uma procura do vazio não desemboca numa metafísica do nada, mas no pressentimento de uma aparição sublime: o nome de Deus, precisamente. Ou então, como escreveu Dore Ashton sobre Rothko, “uma expressão sem Deus da divindade”.

 

 

 2.

Ainda Rothko: ele dizia que tudo o que tinha a dizer (admiremos uma expressão que significa sobretudo que um pintor não tem nada a “dizer”) se situava entre o movimento de expansão das suas telas, que parecem transbordar em sucessivos estratos de cor, e um movimento simultâneo de concentração, que nos empurra para a vertigem de uma trémula cor central, absorta em luz e infindável atracção. O que estabelece o contraste entre o que em Ana Teresa Pereira é transmissão do corpo de deus a todos os lugares. Animais, signos e objectos, e ao mesmo tempo redução desses lugares e desses objectos a meia-dúzia de elementos primordiais: a casa, o jardim, o quarto, a livraria, os jeans, as flores, as camisolas de lã, as telas, o vinho, o pão, o queijo.

Há um enigma em torno de Ana Teresa Pereira. Desde 1989, primeiro na Caminho, agora na Relógio d’Água, que publica com uma impressionante regularidade livros que cada vez mais se assemelham ao mesmo livro. Uma notável capacidade de construção literária ( que contrasta por vezes com o aspecto sumário, inacabado, pouco elaborado, de certas técnicas estilísticas e narrativas) permite-lhe manter a agilidade propícia à variação. Mas Ana Teresa Pereira possui inequivocamente um território. E explora-o de um modo que só podemos classificar de “obcecado”. As personagens transitam de livro para livro com nomes que quase se confundem. A escrita não possui nem grande elaboração sintáctica nem ampla elasticidade vocabular. Há mesmo uma espécie de tendência para o lugar-comum (exemplo: “uma boca que esmaga outra boca”).

Por outro lado, Ana Teresa Pereira quase não dá entrevistas, não habita os corredores da vida cultural, e as suas referências (múltiplas, aliás, e às vezes desconcertantes, passando pela literatura, o cinema, a pintura, a música, certos ícones da cultura de massas, certos pensadores, alguma psicanálise, alguma obsessão do fantástico: “A mulher de Branco”, de Wilkie Collins, é uma das obras mais insistentes neste livro, mas também Iris Murdoch) são deliberadamente internacionais, mesmo cosmopolitas. Tudo se passa como se a sua presença na literatura excluísse qualquer compromisso mundano e se definisse sobretudo em termos duma experiência-em-palavras que se renova incessantemente e que, pela sua insistência e invulgaridade, não pode deixar de nos fascinar.

 

3.

É evidente que esta obra tem as suas oscilações. Eu pensara escreve sobre “As Rosas Mortas” se o livro, na sua modalidade demasiado explícita de uma vingança, não me tivesse desiludido um pouco. Já “O Rosto de Deus” me parece que traz Ana Teresa Pereira na sua melhor forma. Mas será que avaliações destas fazem sentido? Sentimos como se a crítica e o seu papel, e as suas encenações, estivessem também a ser corroídos por essa sombra luminosa e mortal que envolve toda a matéria destes livros. O que Ana Teresa Pereira diz de Iris Murdoch assenta nela própria perfeitamente: “Lera os poemas, que ela quase escondia do mundo. Os ensaios filosóficos. E os romances, com as suas personagens estranhas, que a partir de certa altura eram sempre as mesmas, como era a  mesma a casa da praia e o cão... Os romances que escrevia ao ritmo de um por ano (quando acabava um livro dava uma volta no jardim e começava outro...), que se ligavam entre si, um universo que continuava a existir, que existiria sempre”.

Que leva o leitor a recomeçar? Paulo dirá que foi para saber o que estava dentro dos livros que se aproximou das duas gémeas. Mas a frase é reversível: se nos aproximamos de pessoas para entender o que está oculto nos livros, também lemos livros para saber o que envolve determinadas pessoas, essas que se recortam e separam do mundo para melhor se aproximarem dele em silêncio, que habitam numa roda de expectativa e escassez, que comem pouco, bebem e amam numa espécie de sonambulismo, e que também elas lêem livros para serem o que são e nos convidam vertiginosamente, eroticamente, perdidamente, a sermos o que ainda não somos: fragmentos de uma escrita ilegível e antiga.

 

                                                                                                                     EDUARDO PRADO COELHO, in “Leituras”, PÚBLICO, de 17 de Julho de 1999

 

 

 

                Nota: Pode ver outras duas páginas sobre a Autora neste site, aqui e aqui.

 

  NORMALMENTE SOU VAMPIRESCA

Patrícia ama Tom. Patrícia e Marisa amam Tom. Patrícia, Marisa e Paulo amam Tom. Tom é o que tem o “Rosto de Deus” e ama todos.  Todos são criaturas de Ana Teresa Pereira. Este é o seu 15.º livro. Ainda não tinham dado por ela?

  Entrevista: Alexandra Lucas Coelho

Olhem-na, deitada na relva, com o seu leve vestido de florzinhas. “És uma mistura de mulher, bicho e nevoeiro”, disseram-lhe um dia. Ana Teresa Pereira achou que fazia sentido: para si própria e para a sua ideia de Deus – logo, para a personagem Tom, o que tem “O Rosto de Deus” neste seu 15.º livro.  Olhem-na e acreditem que ela chegou assim aos 41 anos: a acreditar que o acaso não existe, que há fadas e bruxas, e que umas são as outras, como um vampiro-narciso. Quem é o vampiro? Primeiro, ela. O livro, enfim. Tira o sangue dos outros, mas acha que ninguém perdeu tanto sangue como ela, ao escrever. As personagens passam-lhe de história para história com os mesmos nomes, Tom, Patrícia, Marisa, Paulo, quatro que são dois que são um, que se amam como esfomeados e se matam sem saber porquê. Entre sol e lua, mar e terra, flores, pedras. Bichos. Quadros, filmes, livros.

Pequena biografia corrente da ficcionista: nasceu no Funchal, onde continua a viver, numa pequena casa velha a caminho do monte, com um pequeno jardim (“não propriamente a dos meus livros”); é filha de um médico; tem um meio-irmão dez anos mais velho; tirou um curso de guia-intérprete em que estudou botânica (nota-se, nos livros); aos 25 anos quis “uma mudança”, deixou de passear turistas na Madeira e aterrou em Filosofia, na Faculdade de Letras de Lisboa; como só gostava mesmo de Psicanálise, no fim do segundo ano mandou o curso “à fava”; voltou para o Funchal, decidida a escrever; estreou-se com “Matar a Imagem”, Prémio Caminho de Literatura Policial, em 1989, e continuou, dissolvendo os géneros (policial? fantástico?) num universo só seu.

Tem liberdade económica para não precisar de um emprego. Tem um cão. Gatos, já não: “os vizinhos mataram-mos”.  Garante que nunca se vai casar e que nunca vai ter filhos.

Em “O Rosto de Deus” há uma filha que volta a um pai e um pai que volta para uma filha. Amam-se. Serão um só?

PÚBLICO – Há um pai nos seus livros que gosta imenso de policiais, de contos de fadas...

ANA TERESA PEREIRA – O meu pai acompanhou-me, foi quem me ensinou a ler, aos quatro ou cinco anos. Lembro-me dele ler “Os Cinco” comigo... era como se vivêssemos tudo aquilo em conjunto. Ensinou-me a não ter qualquer qualquer preconceito em relação a livros. Daí eu gostar de policiais, de westerns... Aliás um projecto que tenho é de escrever um western... já fiz um conto que saiu na revista “Bíblia”: o cavaleiro que chega à cidade, entre no bar, depois há a cantora cega... um pistoleiro sem memória e uma cantora cega... A relação com o meu pai era muitíssimo importante, passava sobretudo pelos livros e pelo cinema.

P. – Viam juntos os filmes dos seus livros, os Hitchcocks...?

R. – É algo que em mim é visceral. Não comecei a gostar de cinema aos 18 anos, com o Visconti e o Fellini... aos cinco ou seis anos adorava o Orson Welles. Víamos na televisão de Canárias, antes da portuguesa, esses primeiros filmes, o Hitchcock, o Nicholas Ray... De certa forma estava tudo no mesmo plano, as brincadeiras de criança, os livros, os filmes... não havia diferença.

P. – O outro mundo, quase mineral, botânico, as pedras, as flores... também veio do seu pai?

R. – Ele gostava de animais, sempre tive gatos... e um cão. Tenho um livro dedicado aos meus gatos.

P. – O penúltimo, “As Rosas Mortas”.

R. – E os outros são dedicados a um cão.

P. – O Charlie é um cão? Sempre pensei que era um homem.

R. – [risos] Não, um homem, não. O meu homem nestes últimos anos não merece uma dedicatória...

P. – E a sua relação com a sua mãe, como era?

R. – A minha mãe... Era uma pessoa totalmente diferente... a nossa ligação não passava pelos livros... tinha a ver com afectos mas não havia muita coisa em comum... aliás havia muito pouco em comum.

P. – As mães nos seus livros ou não existem, ou são distantes, como a mãe dela em “O Rosto de Deus”...

R. – Bem, aí a mãe está dividida em duas, a mulher vestida de negro em casa do pai... a mãe bruxa...e a mãe loura e fria, em casa dela. É como voltar aos contos de fadas, a mãe boa e a mãe má.

P. – Enquanto que a figura do pai é sempre forte, o pai amante...

R. – Sim.

P. – Como o Tom, na primeira história... aliás, há mesmo duas histórias?

R. – A ideia inicial era só uma novela, que era a segunda. Pensei que ia ser um livro muito pequeno, para outra colecção da Relógio d’Água que tem duas novelas do Henry James – eu queria estar junto com ele. Depois apareceu a segunda história, que no livro é a primeira.  

 

Título: O ROSTO DE DEUS

Autor: Ana Teresa Pereira

Editor: Relógio d’Água

178 pgs., 2000$00   

 

 

 

EU ESTIVE AQUI ANTES

 

Tão desprevenido como Alice a cair no buraco, o leitor pega num livro de Ana Teresa Pereira (neste caso, “O Rosto de Deus”) e cai do outro lado do espelho, onde Céu e Inferno não se sucedem, coincidem: sol e lua sobrepostos num eclipse. É aqui que o leitor se vai reconhecer: de volta à infância, ao sono, ao que dorme em si.

O que há nesse lado de lá (que é sempre dentro) são fadas que são bruxas que são raparigas ruivas a entrançar os cabelos que são raparigas morenas de cabelo curto que andam de longos vestidos e descalças que andam de jeans e sandálias, que usam velhas pedras que usam pérolas que são deuses que são demónios que são rapazes louros sem marcas no rosto que são homens grisalhos com marcas no rosto que são Rainhas dos Infernos que são o Rosto de Deus. Todos em um e um em todos.

O que há é o assombro de quem reconhece diante do outro o outro de si. Como Marisa diante de Tom, pela primeira vez, “os nossos olhos cinzentos e iguais”. Não há primeira vez, não se avança, só se regressa. “I’ve been here before, you’ve been mine before” é o verso de Dante Gabriel Rossetti que ecoa obsessivamente dentro do eclipse constante  em que se passam as histórias de Ana Teresa Pereira.

Eles estão lá, à espera que o leitor caia, Tom, Marisa, Patrícia, Paulo, e seus outros desdobramentos, ora pintores, ora escritores, em velhas casas com jardins de flores e frutos exuberantes, no extremo de cidades, no topo de montanhas, sobre o mar.

Eles estão lá, vagueiam de dia por praias de cascalho, à noite por lagos ao luar, são antigos, regressam dos mitos gregos, dos rituais xamãs, das telas de Gainsborough, dos poemas de Tennyson, dos contos de Poe, dos romances das Brönté, das novelas de Henry James, da interpretação dos sonhos de Freud, dos poemas de Yeats, das histórias de Iris Murdoch, das elipses de Hitchcock, dos westerns de Nicholas Ray, das mãos de Gleen Gould tocando as Variações de Goldberg, com um murmúrio longínquo e fluído.

Eles estão lá, ora estátuas de pedra, ora bichos, frios e carnais, entre a suspensão e o salto, o sono e o renascimento: “Mas de manhã ao acordar estávamos vivos, e ele dormia ainda, e eu puxava para cima os cobertores para protegê-lo do frio e ia à janela para ver se o mundo continuava a existir”.

Eles estão juntos porque são iguais, condenados a querer ser um, como os seres do “Banquete” de Platão, arrancados de si, carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue, regressando à tona de dentro do leitor: o eu que é no que foi.

Eles são Grimm e Anderson e todas as vezes que alguém recomeçou a contar “era uma vez”, são as guardadoras de gansos, a pequena sereia, a menina dos fósforos, os soldadinhos de chumbo a acordar de noite no quarto dos brinquedos, as verrugas no nariz comprido das bruxas, a casinha de chocolate, a loja de antiguidades, os duendes nos bosques, os pesadelos das crianças, os gritos dos loucos, os pântanos, o musgo.

São Heathcliff e Cathy, Bogart e Ingrid Bergman, Jeremy Irons e Jeremy Irons em “Irmãos Inseparáveis” de Cronenberg, têm o rosto que o leitor tiver em si, são-no em várias vidas, impregnados de flores decompostas, densas águas paradas, transes minerais. São narcóticos, criam vício, devastam, devastam-se: foram um e não conseguem deixar de ser dois: “Esfomeados de amor, ‘ [...] ‘E totalmente incapazes de amar”.

Era uma vez Perséfone, filha de Zeus e de Demeter. Um dia, quando colhia narcisos (mantendo a versão grega), é raptada por Plutão, o Rei dos Infernos, que com ela casa para fúria da ciosa Demeter. Zeus intercede: Perséfone estará de Verão com a mãe e de Inverno com o marido. Assim simbolizará a semente lançada à terra no Inverno para florescer no Verão.

Era uma vez Perséfone jovem estudante de pintura, recontada por Ana Teresa Pereira na primeira parte de “O Rosto de Deus”, precisamente intitulada A Rainha dos Infernos. Um dia recebe uma carta de um pintor que admira mas não conhece, Tom, a convidá-la para ir passar o Inverno com ele. Amam-se. Conhecem-se desde sempre. Ele tem o Rosto de Deus, que é o título da segunda parte: a do Tom escritor, amante de Patrícia e Marisa, amantes de Paulo. Tom tem o rosto de Deus e no fim desaparece. “Forçá-los-ei a ajoelharem-se aos teus pés e a reconhecer que eu te amei’ – murmurou Paulo. A frase vinha nas Escrituras; atravessei as chamas para te encontrar, caminhei sobre as águas para te encontrar, destruí povos inteiros para te encontrar.

Os homens que matei para te encontrar”.

                                                                                                                                                                                                             ALEXANDRA LUCAS COELHO  in Suplemento “Leituras” do PÚBLICO de 17 de Julho de 1999.

 

P. – Porque é que apareceu?

R. – É algo que me está a acontecer e antes não, eu controlava muitíssimo bem... Ao começar o livro tinha tudo formado, escrito... no caso dos dois últimos aconteceram coisas estranhas... em “As Rosas Mortas” já tinha a segunda versão quando apareceu o prólogo... aquela mulher, com aquelas flores... foi até desagradável... mas aquilo impôs-se. Agora, a segunda história também surgiu sem ser chamada... tornava mais claros alguns elementos da segunda. São duas histórias, mas são uma só. Há aquela personagem...

P. – Tom , o que tem o rosto de Deus...

R. – No final da segunda história, a que apareceu primeiro, insinua-se que ele pode ter sido assassinado pelas duas mulheres..

P. – E o que é acontece?

R. – O que é acontece ao Tom? É aí que entra a primeira história, a de Perséfone contada de outra maneira: mostra que o que acontece ao Tom na segunda história é que ele volta para a primeira história, não morre, não há assassinato, chegou o Outono, a altura de ele ir embora e voltar para o encontro com a mulher da primeira história.

P. – Que é filha dele.

R. – Sim.

P. – E não tem nome. Creio que é a primeira vez que numa história sua isso acontece. Há claramente um momento em que o nome pode ser dito, quando ele lhe chama “Amor...” e ela pede: “Diz o meu nome...”. E só nos é dito que ele o diz baixinho mas não sabemos que nome é esse.

R. – Ela de certa forma é também as duas mulheres da segunda história.

P. – Patrícia e Marisa numa só.

R. – Se ela fosse nomeada ali, isso perder-se-ia... Os meus livros têm sempre poucas personagens... basicamente são quatro... que são dois... que são um.

P. – De onde vêm os nomes? São sempre os mesmos: Tom, Patrícia, Marisa, Paulo, Carla... Carla vem de Charlotte Brönté...

R. – Sim, na história das três irmãs... [“Ghost Stories”]. O Tom apareceu desde o primeiro livro, cheguei a pensar no Tom Ripley...

P. – Patrícia como a Highsmith...

R. – E o Tom como uma criatura da Patrícia... mas foi consciente na altura.

P. – E as personagens donde vêm?

R. – Bem, eu normalmente sou vampiresca, acho que tenho de o ser. E nunca o fui tanto como em “As Rosas Mortas”... o psiquiatra, o poeta, e algo da própria Marisa, bocados arrancados de outras pessoas.

P. – Pessoas que conheceu bem?

R. – Sim.

P. – E depois quando elas lêem os livros, essas que são as suas pessoas...

R. – Ou eram [risos].

P. – Isso é terrível... O que é que aconteceu? Leram os livros e...?

R. – Um deles leu o livro e disse que lhe tinha sido muito difícil. Mas esse nem era o mais vampirizado. Quanto ao que é o mais vampirizado, não faço ideia se leu o livro ou não. É uma pessoa com quem já não falo, portanto estava à vontade para usar todos os elementos.

P. – Podemos fazer isso às pessoas?

R. – Acho que não... [hesita], digamos que se tenho algo a dizer... não é para me defender, nem para me justificar, mas a principal vampirizada sou sempre eu. Porque, apesar de tudo o que fui buscar às pessoas, aquelas personagens são todas eu. Se fui buscar sangue a algumas pessoas, o sangue quase todo que está ali é meu. É isso. Esse livro foi muito doloroso.

P. – Tem um favorito?

R. – Tenho, o próximo. Aliás todos os outros já desapareceram.

P . - “As Rosas Mortas” é o seu único romance, digamos assim?

R. - . [Pausa] Havia uma pessoa que há muito me dizia para eu escrever um livro a sério com mais de 200 páginas e uma construção aparentemente mais elaborada... Eu acho que a construção de “O Rosto de Deus” é mais labiríntica que a de “As Rosas Mortas”... de qualquer forma um livro a sério seria isso, mais de 200 páginas... Quando estou mal-humorada penso que escrevi “As Rosas Mortas” para que essa pessoa não me aborrecesse mais! Tinha o seu livro a sério e acabou-se.

P. – Quando o terminou não sentiu que as suas personagens estavam acabadas?

R. – Não... embora naquele livro ninguém sobreviva... Mas penso que em “O Rosto de Deus” elas continuam a viver. Senão o livro é um fracasso completo... Os livros começam por ser visões... A primeira imagem de “O Rosto de Deus” foi a das gémeas a passarem uma pela outra, de noite...

P. - ... a tocarem as mãos...

R. - ...Sim...Posso ir buscar uma coisa? A Iris Murdoch... Acho que “O Rosto de Deus” é uma verdadeira declaração de amor a Iris Murdoch, mais ou menos na altura em que ela morreu. Não foi só a morte , no caso dela, de certa forma, até bem vinda... é que logo a seguir li o livro que o marido escreveu quando ela adoecia de Alzheimer... fiquei a saber mais coisas sobre ela mas infelizmente muito mais sobre ele... e se eu tinha alguma dúvida de que os escritores nunca devem casar, sobretudo uns com os outros...

Mas fui buscar a Iris Murdoch, a propósito da transição de “As Rosas Mortas” para “O Rosto de Deus”, porque alguém me disse uma vez: fazes-me lembrar a Iris Murdoch, que quando termina um livro dá uma volta ao jardim e começa outro!

P. – Essa frase também aparece em “O Rosto de Deus”... O Tom tem o rosto de Deus porque o rosto de Deus está em toda a parte ou em parte nenhuma? Nos seus livros, há referências à Bíblia, a São Paulo, ao Cântico dos Cânticos... a Deus concretamente, mas como algo demasiado íntimo. Acredita em Deus? Ou: em que Deus?

R. – Seria completamente megalómano mas... Deus interessa-me como personagem. Sinto que há um mundo invisível, que tudo está ligado, não acredito no acaso. Portanto, se não há acaso, há um escritor, ou um pintor. Há algo em “As Rosas Mortas” que gosto muito, uma frase que me disseram e que eu aproveitei: “tu és uma mistura de mulher, de bicho e de nevoeiro...” Quando ma disseram fez sentido em relação a mim, e depois em relação à personagem. A minha ideia de Deus é isso, a mistura de homem, bicho, nevoeiro.

P. – Portanto é o seu rosto.

R. – O meu rosto... Quando pensei no rosto do Tom era o de um actor, aliás era a minha primeira escolha para a capa, mas preferi que as pessoas o imaginassem. E prefiro não dizer quem é. É uma mistura de irlandês com nórdico. Inspirei-me no pouco que sei da história dele.

P. – E de onde vem a sua mania dos gémeos?

R. – Bom, sou do signo Gémeos.

P. – Quando não há gémeos, as suas personagens inventam um irmão gémeo que morreu.

R. – A única explicação que encontro tem a ver com o meu próprio carácter. Sou uma pessoa muito dividida. Há uma história da Iris Murdoch com dois pássaros numa árvore: um deles está a comer o fruto e outro limita-se a olhá-lo.

P. – O que vive e o que observa o que está a ser vivido.

R. – E que é capaz de ser vampiro. E vampirizado... o verdadeiro vampiro é sempre o livro, não é? O livro é o vampiro.

P. – É o círculo perfeito.

R.- Quando acabei de escrever “O Rosto de Deus” estava completamente vazia, completamente deprimida. Aquela sensação de olhar para trás e pensar: para onde foram estes meses todos? De onde é que vieram estas quatro ou cinco rugas que não estavam aqui antes?

P. – E onde é que esteve durante...

R. – Onde é que eu estive...

P. – Fora da vida? É por isso que os escritores nunca devem casar?

R. – Se calhar devem...

P. – Nunca casou?

R. – Não.

P. – Nem teve filhos?

R. – Não.

P. – Nem quer ter?

R. – Não... Estava-me a lembrar outra vez da Iris Murdoch... porque é que ela casou... não queria ter filhos por causa dos livros, por outro lado teve relações amorosas com homens geniais, aquele homem um bocado Deus um bocado monstro, maior que a vida... foi amante do Canetti, possivelmente do Sartre, de um grande matemático... depois casou com um homem mais novo, que só lia os livros dela depois de estarem impressos... casou com ele pela mesma razão por que não queria ter filhos: nada que a desviasse dos livros.

P. – Porque é que a Sylvia Plath casou com o Ted Hughes?

R. – Resisti muito a ler o último livro dele [“Brithday Letters”], mas depois apaixonei-me completamente. Acho que me podia ter apaixonado por um homem daqueles. Mas só me casaria com ele se, de facto, me quisesse suicidar [risos]. Mas naquele casamento nem ela era um pobre anjo frágil nem ele era um monstro. À sua maneira eram dois monstros. Mas isso tem a ver com o meu novo livro...

P. – Como vai ser? Voltam o Tom, a Patrícia e a Marisa?

R. – Só o Tom e a Marisa, embora o Tom neste momento já esteja partido em três... tenho que arranjar pelo menos mais uma mulher. Mas tem a ver com o casamento da Iris Murdoch, da Sylvia Plath, o casamento entre escritores, entre pintores... geralmente há um que esmaga o outro.

P. – Temos a Vieira da Silva e o Arpad Szenes...

R. – Li uma entrevista com ela uma vez... contava como cada um trabalhava nos seus quadros, se encontravam ao fim da tarde e ouviam música, isto de facto...

P. – Não é possível?

R. – Penso que não... bem, no caso deles foi, mas...

P. – Há os casos terríveis, com o Rodin e a Camille Claudel.

R. – Geralmente é a mulher que se deixa magoar.

P. – O romance é sobre isso, a vida em comum de duas pessoas que criam.

R. – Sim, mas não há um que morre aos trinta anos. Será isso levado às últimas consequências, com os dois vivos.

P. – Uma Sylvia e um Ted.

R. – Mas em que ela não morresse.

P. – Como é que se vai chamar?

R.- Ainda posso mudar, mas, em princípio, “Quando Estávamos Vivos”. Começa pelo final, no dia 5 de Maio, que é o aniversário do tal actor de que falei e curiosamente é uma das datas possíveis para o fim do mundo.

P. – Porque é que nunca há uma amiga nos seus livros? Há o pai, a mãe, os irmãos, os amantes, que se devoram... mas nunca ninguém suficientemente distante para ser amigo. Sobretudo elas não têm uma amiga.

R. – Não? [Pausa] Se calhar não dou assim tanta importância à amizade.. Tenho amigos, são poucos, gosto deles. Mas não acho que a amizade seja mais importante que o amor. A paixão, por mais destrutiva que seja, se calhar agradavelmente destrutiva, está primeiro.

P. – Os amigos são secundários?

R. – Acho que sim. Mas pode ter a ver com o facto de eu ser uma pessoa bastante solitária.

P. – Na primeira história de “O Rosto de Deus” há um certo tom de enumeração: ela levanta-se, toma um duche, come o que as suas personagens comem sempre... pão escuro, queijo, fruta, vinho...

R. – [risos] Como a dona... Mas de certa forma também acabo por ser vítima delas, as minhas personagens... comprar colares de pedras verdes... Por causa dessa história, tive de comprar um colar de pérolas, que é uma coisa que nunca na vida pensei comprar!

P. – As pérolas que vêm do fundo do mar “gosto de as sentir na pele”...

R. – Para dar uma frase tão banal! Em “As Rosas Mortas” começa a aparecer ouro branco [leva as mãos aos brincos, de ouro branco, iguais à pulseira, ao anel].

P. – Se não houvesse uma fotografia sua na contracapa dos seus livros, podíamos imaginá-la igual às suas personagens. Aliás em “A Coisa Que Eu Sou” há uma personagem que fala exactamente disso, na foto da contracapa dos livros...

R. – Esse livro esteve para se chamar “Auto-Retrato”, mas depois o José Agostinho Baptista já tinha um livro com esse nome... E aí há uma coisa que me deu imenso prazer fazer, quando falo do filme do Hitchcock...

P. – Aquele em que há dois Bogarts...

R. – É que esse filme não existe! Todos os dados sobre os autores, datas, etc., são verdadeiros, mas tratava-se de imaginar um filme que o Hitchcock podia ter feito, interpretar os comentários dele ao filme...

P. – Quando ele diz que “é um filme sobre subir as escadas”!

R. – Tudo isso, os comentários do [François] Truffaut E há pessoas que me dizem que se lembram das imagens do filme!

P. – Mas há de facto imagens ali que vêm de outros filmes, que estão em nós...

R. – O filme do Cronenberg também não existe...

P. – e tornam-se verosímeis a partir de outros que existem e vimos.

R. – A novela do Henry James também não existe!

P. – Tem o mesmo nome de um filme que existe, “O Retrato de Jenny”, com a Jennifer Jones.

R. – Também pensei nesse filme.

P. – Voltemos a “O Rosto de Deus”, para falar de artes plásticas, que aliás já vêm de outros livros seus. Aqui há o Rothko, logo a começar na capa, inspirador do Tom pintor, o da primeira história. Qual é a sua relação com este universo? Pinta, esculpe?

R. – Não, embora quando estava a escrever “As Rosas Mortas” tenha voltado a desenhar, a modelar, a mexer em barro... Queria reviver..

P. – Fez isso quando era nova?

R. – Um pouco, mas não tinha o menor talento. 

P. – Em “A Coisa Que Eu Sou” aparece: “Escrever era como mergulhar as mãos em argila (algo de sensual e de assustador)...”

R. – A escrita para mim é isso, amassar, estar a mexer...

P. – Escolheu estas capas todas, o Dante Gabriel Rossetti, o Rothko?

R. – Sim. E nas capas de “A Noite Mais Escura da Alma” (ed. Caminho) e de “Fairy Tales” (ed. original Black Sun) as fotografias são minhas. É a sensação de ter feito o livro todo...

P. – Escreve os seus livros para quem?

R. – Pelos livros em si, para mim... escrevo para aqueles que perdem o sono a lê-los, ou sonham com eles.

P. – Se lhe perguntar: o que é o medo, o que é o mal, o que é o amor?

R. – Diria que querem dizer o mesmo.

 

 

           num mundo escuro e aquático onde não havia mais ninguém                  

 

                                                            Suplemento “Leituras” do PÚBLICO de 17 de Julho de 1999