ADÍLIA LOPES

 

CRÓNICAS DA VACA FRIA

  Outras páginas sobre a autora          O   _O_  

    ÍNDICE:

A minha mãe bebé - 11-3-2001

A Brother e o Ómega - 25-3-2001

20 Anos em 1981 - 8-4-2001

Penamacor - 22-4-2001

Sancha Pança - 7-5-2001

Ovos estrelados - 20-5-2001

Maria do Céu - 3-6-2001

Fazer Prosa, fazer Rosa - 17-6-2001

Teologia Loja dos 300 - 1-7-2001

O aguilhão da morte - 17-7-2001

Notícia de Torto - 30-7-2001

Dijon 77 - 13-8-2001

Sócrates Job - 27-8-2001

Cacos - 10-9-2001

Nada te turbe - 24-9-2001

 

 

Crónicas da vaca fria
A minha mãe bebé

ADÍLIA LOPES
Pública Domingo, 11 de Março de 2001

Aos 4 anos, a minha mãe mascarou-se de morango. Por essa altura, tinha um pesadelo medonho: sonhava que uma criança ia a subir uma escada e era decapitada. Genet escreveu: viver é sobreviver a uma criança morta.

A criança com quem eu mais teria gostado de brincar em criança era a minha mãe. Quando eu nasci, a 20 de Abril de 1960, a minha mãe tinha 32 anos e era assistente de Botânica na Faculdade de Ciências. O meu maior medo, o medo mais antigo de que me lembro, é de que a minha mãe morresse. Vivia numa grande aflição.

A minha mãe partir de manhã para a Faculdade, vinha almoçar a casa e, depois, ia outra vez para a Faculdade e só voltava ao fim da tarde. Sempre que ela partia, eu tinha medo que ela não voltasse. Eu passava os dias a pintar e, quando ouvia as três campainhadas bem repenicadas com que ela batia à porta, embora tivesse chave, eu corria felicíssima para a porta a gritar: “É a Mamã! É a Mamã!”

Ela trazia sempre uma caixa de bolos da Cister, a pastelaria da Ria da Escola Politécnica, em Lisboa, onde todos os empregados me conheciam e me apaparicavam. Um dia, um quis ficar com o meu urso de peluche e eu, mimadíssima como era, devo ter feito beicinho e corrido para as saias da Mamã. Lembro-me muito bem da cara do empregado a olhar para mim e a perguntar-me: “Não me quer dar o ursinho?”

Os alunos da minha mãe, só o soube há seis anos, pela Professora Natércia Rodeia, quando a minha mãe estava a morrer no Hospital Curry Cabral, tratavam-na por “a nossa Mamã”. Mas na Mamã, na Mamã de trinta e poucos anos, fascinava-me a bebé que ela tinha sido e de que ainda conservava as covinhas nas faces.

Os brinquedos mais queridos para mim, aqueles de que nunca me desfiz (ainda hoje os tenho todos), eram os brinquedos da minha mãe. Uma mobília de verga: sofá, dois cadeirões e uma mesinha. Uma mobília de madeira: mesa, mesa de cabeceira, aparador, cómoda, cadeiras, toilette, cama e um guarda-fato. O guarda-fato era quase igual, em miniatura, ao guarda-fato da tia Paulina, com espelho e gavetão. Só lhe faltava a sapateira. Essa gaveta invisível, misteriosa, que custava tanto a abrir. Um carrinho de bonecas de ferro e verga, com uma capota azul. Este carrinho for a obtido graças a uma promessa. Uma senhora conhecida tinha perdido um alfinete de valor e disse à minha avó materna que, se o encontrasse, havia de dar uma prenda “à pequena”. O alfinete apareceu e hoje sou dona de um carrinho de bonecas da Kermesse de Paris de há 70 anos. Um serviço de chá para bonecas em porcelana cor-de-laranja. Bule, chávenas e pires respectivos e leiteira. Falta o açucareiro, que se partiu, e que ficou tão bem guardado, para colar mais tarde, que ainda hoje não apareceu. Bonecas não havia. Bonecas de celulóide, bonecas de porcelana. Uma boneca preta. Todas as bonecas se tinham partido ou tinham desaparecido antes de eu entrar em cena.

A minha mãe nasceu a 22 de Abril de 1927 na Rua José Falcão, em Lisboa. Era um bebé muito gordo. Chamavam-lhe um bebé Nestlé. A minha avó materna culpou sempre a minha mãe por ter ficado com uma quebradura, uma hérnia, por a minha mãe ser muito pesada e ela ter feito muito esforço para lhe pegar ou ter dado mau jeito ao levantá-la ou por causa do parto. Já não sei. Isto magoou sempre muito a minha mãe. Eu acho que as famílias, as casas das famílias, são lugares onde se sofre mais do que nos hospitais, nas escolas, nos hospícios, nas prisões, nos lugares estatais, impessoais. Gide escreveu: eu odeio as famílias, os lares fechados, as portas trancadas, os domínios ciumentos da felicidade. Entre a família do Presépio de Belém, a sagrada, e a família da Mafia siciliana, oscila sempre a nossa família.

O meu avô materno era tão distraído que registou a filha como tendo nascido a 20 de Abril. No bilhete de identidade da minha mãe está que ela nasceu a 20 de Abril de 1927, mas eu soube sempre que era um erro. Isso contribuiu muito para a minha formação de cientista. Duvidei sempre da Imprensa, dos documentos escritos, da História, do marxismo-leninismo. À minha avó materna pedia que me contasse, antes de eu adormecer, “histórias de língua” por oposição a ler-me livros em voz alta. Os livros mais queridos (ainda os tenho todos) eram os da minha mãe em criança. Os da Condessa de Ségur, um álbum da Branca de Neve do Walt Disney, com as ilustrações a preto e branco coloridas a guache pela minha mãe, um livro francês sobre a história da menina gota de água (o ciclo da água explicado às crianças) e outro também francês sobre um porco aerodinâmico, um porco voador. Achei sempre tão mirabolante a chuva como os marcianos. A ciência não se ocupa de porcos que voam até se observarem porcos que voam. E com as letras passa-se o mesmo.

 

Crónicas da vaca fria

A Brother e o Omega

ADÍLIA LOPES
Pública Domingo, 25 de Março de 2001

No emprego da minha mãe havia máquinas de escrever. Era o Sr. Vasco quem eu via escrever à máquina. O emprego da minha mãe, quando eu tinha 15 anos, em 1975, era no Instituto Botânico da Faculdade de Ciências, a um canto do Jardim Botânico, na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa. Uma máquina de escrever, como uma escada em caracol, um monta-cargas e uma máquina para afiar lápis (tudo coisas que existiam no emprego da minha mãe), era, para mim, um objecto sagrado. E eu, é claro, não sabia escrever à máquina.

A minha mãe dizia-me que sabia escrever com dois dedos, mas não me iniciou. Para a minha mãe, eu devia aprender a escrever com os dedos todos desde o começo, para não ganhar maus hábitos. Nunca vi a minha mãe a escrever à máquina.

Aos 15 anos, em 1975, o meu pai deu-me um relógio de pulso Ómega e a minha mãe uma máquina de escrever Brother. O relógio foi comprado numa ourivesaria na Praça da Figueira. A Brother foi comprada, para ficar mais barato, a uma colega da minha mãe. Foram as prendas dos meus pais por eu ter feito o 5.º ano. O meu pai deu-me de facto uma prenda. A minha mãe não porque achava que estudar e ter boas notas era o meu dever. Aliás a minha mãe dava-me prendas todos os dias.

Fui para a escola Sight and Sound aprender a escrever à máquina por método audiovisual. Era suposto sair de lá a escrever a altas velocidades, com os dedos todos e sem olhar para o teclado. Foi uma tortura. Saí de lá sem saber meter uma folha na máquina. Só passados dez anos me atrevi a olhar para o teclado e a escrever com dois dedos, como a minha mãe. Pedi um certificado da escola Sight and Sound a garantir que sabia escrever à máquina a x letras por y segundos. Ainda o devo ter. As minhas primas também andaram na escola Sight and Sound e uma amiga delas, a Becas, salvo erro, também andou. E a escola ainda existe, parece-me. Pelo menos o letreiro continua lá. Na Duque de Ávila, ao lado do restaurante A Colina.

Eu ia de táxi da escola Sight and Sound para o Instituto Francês porque não tinha tempo de ir de autocarro. O Instituto Francês funcionava no Liceu Francês, nas Amoreiras. Pelo caminho pensava que podia comer um Toffee Crispy. Mas na primeira viagem, meti a embalagem vazia do chocolate, depois de bem amarfanhada, no cinzeiro da porta do táxi. O taxista ficou furioso e só descansou quando me viu deitar pela janela fora o papel do chocolate. Nunca mais me atrevi a comer nos táxis.

Na Brother, escrevia cartas para a Meadela, um lugarejo ao pé de Viana do Castelo, onde as minhas vizinhas e falsas amigas Botelhos passavam o Verão. As Botelhos, calculo eu, deviam rir a bom rir da minha dactilografia. Deviam achar-me completamente doida ou atrasada mental. Porque o resultado das minhas habilidades eram cartas a preto e encarnado, aleatoriamente (a fita da máquina era bicolor), invariavelmente cheias de erros, sempre batidas com o maior nervosismo, uma letra acima e outra abaixo, mas sempre sem olhar para o teclado. As Botelhos, calculo eu, tinham aprendido a escrever à máquina com o pai delas, chefe de repartição de Finanças e dono de uma máquina de escrever pesada. Mandavam-me cartas de resposta numa dactilografia irrepreensível como quem diz “Vê como és burra e nós somos inteligentes” ou antes “Vê como és burra e nós somos gente” porque as Botelhos eram nazis.

A minha mãe achava que para tudo na vida era preciso um curso, altas classificações e certificados. As Botelhos eram uma espertalhonas. Mais tarde, quando já tinha passado centenas de poemas na Brother, troquei-a por uma Olympia semi-portátil e paguei mais 20 contos. Arrependo-me imenso de o ter feito. Na loja disseram-me que aquela Brother era uma máquina tão má que só servia para escrever “uma cartita” e que “agora só para peças”. Achei que era a minha mãe que eu estava a entregar para ser desfeita em peças e refeita em mãe Botelho, criatura cheia de jogo. Apta para a vida. Isto é, para a vidinha. O meu pai disse logo à minha mãe “Também podias ter comprado uma coisa melhor”.

O outro choque foi quando a minha mãe me disse para ir ao Maury, que ela considerava um bom relojoeiro, substituir a pulseira do Omega que entretanto se tinha rompido. O empregado do Maury olhou com desdém para mim e para o Omega da Praça da Figueira e disse “custou-lhe menos o relógio do que vai custar a pulseira” e “quando o comprou deu por ele z”. Sendo z uma quantia baixíssima. Mas ainda hoje tenho o Omega e continua a regular bem. A minha mãe morreu. O Sr. Vasco morreu. O meu pai, graças a Deus, está vivo, Das Botelhos tenho às vezes notícias. Da Brother tenho imensas saudades. Acho que vou comprar uma Brother.

 

Crónicas da vaca fria
20 Anos em 1981

Por ADÍLIA LOPES
Pública  Domingo, 8 de Abril de 2001

Há 20 anos atrás, eu tinha 20 anos e andava muito triste. Era aluna do 3º ano de Física, na Faculdade de Ciências de Lisboa. O meu problema não era a Física, que conseguia estudar com boas notas. Fiz 19 cadeiras do curso de Física, entre 1978 e 1980. Uma cadeira anual, que adorei, História das Ideias em Física, dada pelo professor João Andrade e Silva e pelo dr. José Croca (dois professores, dois amigos, que ainda hoje me emprestam livros). E 18 cadeiras semestrais. Fazendo a média aritmética das notas que tive dá 16 valores. A nota mais baixa é um 10 (tive só um) e a mais alta é 18 (tive três). Devem estar a pensar: porque é que andava triste?

Em 1978, uma noite, a Faculdade de Ciências, na Rua da Escola Politécnica, ardeu. De manhã, fui ver a casa ardida. Na altura, não lia Federico García Lorca. Mas agora que o leio, nas traduções de José Bento e no original, vejo que estava gelada como "Lourenço pelo mundo das universidades sem telhado" (poema "Fábula y rueda de los tres amigos"). O que me ia na alma aparentava-se muito com o que vejo ou intuo (ou leio) nos poemas de Lorca. Andei n'"o vale da sombra da morte" (é uma expressão do Salmo 23, na tradução da American Bible Society). Não lia Lorca nem os Salmos. Deus e a poesia estavam a hibernar na minha alma, digamos assim.

Ao entrar para a universidade, em 1978, a minha casa era aquela casa ardida ou um prédio recente e feio da 24 de Julho. Era preciso contar muitas coisas que estão para trás. Mas não as vou contar agora. Tinha perdido o gosto pelo estudo e pela leitura. Barthes falou do prazer do texto, que é o da literatura. Mas eu também conheço o prazer de demonstrar um teorema, que é um dos prazeres de quem estuda Matemática.

Durante um tempo refugiei-me no estudo. A Matemática era tranquilizadora, não era aterradora. Mas eu cheirava no ar a guerra civil. O acidente ou atentado de Camarate é um momento horrível da vida portuguesa. Nunca simpatizei com Francisco Sá Carneiro. Achava-o arrogante, agressivo, um menino bem, um senhorito. Mas os portugueses sabem ser bastante sórdidos quando se trata da morte. Tudo foi trágico e grave. Para quem não se lembra deste tempo, eu conto só isto. Uma prima minha, de 50 anos na altura, casada com um primo direito da minha mãe, católica, noelista, catequista, contou-me esta anedota para me animar: Sá Carneiro, no momento do desastre, tinha dito da namorada sueca "agora é que ela está uma brasa".

Os portugueses são mórbidos, são doentios. Lidam com a morte de maneira porca. O desastre de Camarate, o desastre de Castelo de Paiva, os brandos costumes, a matança do porco, a tourada à portuguesa ou a tourada de Barrancos revelam o prazer de ver sofrer devagar para dizer graçolas, para achincalhar, para vender uns tremoços e beber umas cervejolas com os amigalhaços. Os portugueses não são dignos, não são castos, não são cristãos, não são democratas. Têm prisão de ventre e são coprófilos. E são necrófilos. Querem pão e circo. Caca e mortos. Mas eu sou portuguesa e não sou assim.

Na Primavera de 1981, há 20 anos atrás, eu não tinha vontade de dançar (e não dancei) debaixo das avelaneiras floridas. Pesava menos de 40kg (meço 1,56 m). Não dormia, não sabia se dormia. Não me aparecia o período há não sei quantos meses. Tinha perdido a noção do tempo. Não distinguia o ontem do hoje, o dia da noite, a chuva do bom tempo. Não conseguia estudar nem perceber o que lia. Lia mecanicamente, letra a letra ou sílaba a sílaba, quanto muito. O professor José Pinto Peixoto, meu professor de Termodinâmica no ano lectivo anterior, uma pessoa inteligentíssima, disse-me uma coisa muito estúpida, mas em que, ainda hoje, muita gente acredita: "Doenças de nervos são doenças de ricos."

A escritora americana Sylvia Plath descreve muito bem o meu adoecer mental no seu romance "A Campânula de Vidro" (editado pela Assírio & Alvim). O desastre de Camarate dela foi a execução do casal Rosenberg. Não me suicidei, mas tentei suicidar-me. Sylvia Plath suicidou-se. Uma colega minha da Faculdade de Ciências suicidou-se. Este país mata-nos lentamente. Portugal é obsceno. O touro acaba-se de matar fora de cena. A América da Sylvia Plath também era obscena. A União Soviética da Anna Akhmatova também, claro. As touradas à espanhola idem.

Entre as chamas (ou as cinzas) de Camarate e as águas de Castelo de Paiva, houve a queda do Muro de Berlim e o fim da guerra fria, com a vitória dos Estados Unidos por implosão da União Soviética. Mas os portugueses continuam tão feios! Não, não é só a TVI que é a má da fita.

 

Crónicas da vaca fria

Penamacor

por ADÍLIA LOPES

PÚBLICA,   Domingo, 22 Abril 2001

Fica ao pé do Fundão e de Castelo Branco. Desde 1972 ou 1973 que não vou lá. Foi lá que o meu pai nasceu em 1918. A mãe do meu pai era a avó Maria. A avó Zé, minha avó materna, e a irmã dela, a tia Paulina, ensinaram-me a não gostar da avó Maria, a fazer troça dela. A tia Paulina chorava a rir sempre que eu me metia debaixo da mesa, às refeições, para calcar os calos da avó Maria. A avó Maria gritava pelo meu pai: “Ó Júlio, ó mê Júlio!” e dizia também “Jesus! Maria José!”

Quando a minha mãe começou a namorar o meu pai, nos anos 50, o meu avô materno mandou tirar informações sobre o meu pai e a família dele. O alfaiate do meu avô materno (o sr. Augusto, o sr. Casimiro? O sr. Araújo? Não me lembro do nome e agora, se calhar, já ninguém se vai lembrar) e o Robalo (seria este o nome?), marido da Maria dos Anjos, uma prima da minha avó materna eram de Penamacor ou de lá perto. Segundo a avó Zé, as informações foram estas: “É gente muito pobre, mas é honesta” ou, de outras vezes, “é uma gente muito humilde, mas é honesta”.

A avó Maria não usava chapéu, andava em cabelo. Para o casamento do filho, teve de pedir um chapéu emprestado que, posso ver nas fotografias, está à banda como o Miranda. A avó Maria não tinha criada. A avó Maria era analfabeta. E, pior que tudo, a avó Maria era morena. As minhas primeiras férias, de que não me lembro de nada, era um bebé que ainda andava de carrinho, em 1960 ou 1961, foram em Cascais numa casa alugada. A avó Maria e a avó Zé tiveram de dormir na mesma cama. A minha mãe dizia que era engraçado ver as duas na cama, uma muito escura e a outra muito branca, uma ao lado da outra. De facto, a mãe da minha mãe era branquíssima, mas a avó Maria não era assim tão escura. Este episódio das duas avós metidas na mesma cama lembra-me muito a família judia israelita do excelente romance de Amos Oz intitulado “Conhecer Uma Mulher” (editado pela Dom Quixote). Porque também aí a avó materna e avó paterna coabitam.

A avó Maria chamava-se Maria Pires. “É muito pires, é”, dizia a avó Zé com imenso desdém. A avó Zé chamava-se Maria José Queiroz Plantier Martins da Silva Vianna. Ainda não havia a Maria João Pires. E ainda todas as Marias, simplesmente Maria,  as Maria sem mais, eram umas saloias. Agora é que é chique ser só Maria. Dantes, “a Maria” era a criada e “Dona Maria” era a mulher com quem o tio Luís vivia maritalmente, na Damaia, sem ser casado com ela.

Em Setembro, ia com os meus pais e com a criada, a Maria, para Penamacor. Eu adorava ir logo de manhãzinha à horta com a avó Maria, mas não gostava da avó Maria que me falava sempre com maus modos e não me comprava bolos nem chocolates nem brinquedos. A casa da avó Maria ficava dentro da vila, a horta ficava à saída da vila. Quem tratava da terra era o meeiro. Na horta havia galinhas. A avó Maria migava a comida para as galinhas. Acho que cortava couves com uma faca pequena para dentro de um alguidar de alumínio. A avó Maria era áspera, de trato rude. Eu pendurava-me nas portas e dava muitos saltos para a ouvir dizer “és uma cavalona”. Queria ser uma maria–rapaz como a Zé dos Cinco.

De uma vez vi na horta a pele ensanguentada de um coelho morto esticada numa porta de madeira. Não me fez impressão embora eu em Lisboa tivesse dois coelhos de estimação, o Rabujo e a Babacita. Se fosse uma fotografia descoberta numa revista, tinha-me feito impressão. A minha mãe assinava a “Life” e dizia que me fazia mais impressão ver fotografias de animais mortos que de pessoas mortas. Este episódio da pele de coelho lembra-me o poema disparatado da poetisa neozelandesa Fleur Adcock intitulado “A surprise in the Península” que fala da pele de um cão esticada entre duas janelas. Ou antes, ao ler este poema em inglês, lembrei-me do episódio da pele do coelho, em Penamacor. Mais tarde o coelho morto da natureza-morta de Chardin já não me fez impressão. Mas o sofrimento dos animais continua a fazer-me mais impressão que o sofrimento das pessoas.

Uma experiência que muito me marcou, talvez uma das experiências mais marcantes da minha vida, aconteceu em Penamacor. Foi assim: eu julgava que as ovelhas eram muito macias e as cabras mais ásperas que as ovelhas. Ora em Penamacor havia rebanhos que passavam todos os dias pela rua da minha avó. Foi portanto muito fácil aproximar-me de uma ovelha e fazer-lhe uma festa e aproximar-me de uma cabra e fazer-lhe uma festa. A cabra era macia e a ovelha áspera. A realidade prega-me partidas deliciosas.

Muito antes de eu nascer, a avó Maria teve um rebanho a meias com o Chico protestante. Talvez por isso, o meu pai nunca viu com maus olhos as minhas idas à igreja protestante da Rua Febo Moniz, em Lisboa. O meu pai, neste momento, está internado no Hospital de Santa Maria com uma pneumonia. Fui visitá-lo. E agora, no silêncio do meu quarto, uma folha de papel reciclado cor-de-rosa com uma caneta preta japonesa, escrevo isto. E isto é rezar pelas melhoras do meu pai.

 

 

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Sancha Pança
Por ADÍLIA LOPES

PUBLICO   Segunda-feira, 7 de Maio de 2001

Criticam-me por eu ter aparecido na televisão a pesar livros e pessoas. Tivesse eu falado em DNA, clones, quanta ou teoria da relatividade, já a música agora era outra. A lusa "intelligentzia" está muito acima das modestas balanças. Que fazer? Há um artigo de Alexandre Koyré intitulado "Du monde de l''à-peu-près' à l'univers de la précision" (publicado em "Etudes d'histoire de la pensée philosophique", Paris, Gallimard, 1971) em que se fala de balanças. As balanças quase não eram usadas pelos alquimistas, eram usadas pelos ourives e pelos joalheiros. Quando as balanças foram usadas pelos intelectuais, começou a Química. Koyré diz mesmo que, se um alquimista tivesse pensado em usar uma balança, já não era um alquimista, era já um químico. Para se ser químico basta pensar em usar uma balança, nem é preciso usar uma.

Uma jornalista acha que as minhas opiniões são de pechisbeque. Pechisbeque é uma liga de cobre e zinco (vejo no dicionário da Porto Editora). Por hoje acrescento um conto de chumbo (ou de pecheblenda).

A barriga é uma barrica. "Então o bebé está quase?", dizem as vizinhas, as mulheres, que os homens calam-se. Mas Sancha Pança não está grávida. Aos 37 anos decidiu fazer uma dieta como quem entra para o convento. Há mulheres magras que querem ser mais magras para arranjar namorado. Mas não foi este o caso. Sancha Pança pesava 63 kg. Com a dieta passou a pesar 50 kg. Sentia-se leve, etérea, alada, nervosinha. E começou a comer, a comer até aos 83 kg. Entretanto a pança cresceu, cresceu mais que o rabo e que as maminhas, mas o rabo e as maminhas também cresceram. A pança é uma abóbora.

É difícil encontrar roupas. Anda com umas calças de treino muito largas, um casacão curto e uma "écharpe". Põe umas luvas cor-de-rosa "shocking". E parte para a rua como o Palhaço Verde da Matilde Rosa Araújo. Aos 40 anos, contra uma convenção social fortíssima, decide comer como lhe apetece. As dietas, para estar segundo o figurino da moda (e esta moda é ditada pelos "media" e pelos médicos), obrigam a ser calculista. Não comer doces, não comer fritos, não comer molhos. É o voto de castidade desta sociedade pós-religiosa. Para ser amada é preciso ser magra. Ai das gordas!

Pois é, Sancha Pança é gorda. Sancha Pança está gorda. Porque começou por ser magra. "Não se deixe engordar", disse-lhe a ginecologista para quem a gravidez, hoje em dia, só pode ser coisa planeada. As mamocas saltam da camisola. Usa um "soutien" dois números acima do que usava. O filho de uma amiga diz "Pensava que só as mães é que tinham maminhas." A amiga diz ao filho "A Sancha Pança também é mãe". As crianças são muito cruéis. Riem-se, apontam, cochicham, gritam em coro "És maluca! És maluca!". Sancha Pança é gorda e maluca. Mas é uma mulher sorridente. Decide ser como o Palhaço Verde da Matilde Rosa Araújo: bondosa e alegre, apesar dos desgostos de amor ou por causa deles. Pode-se dizer que Sancha Pança é feliz. É o Palhaço Verde fêmea por isso é cor-de-rosa, a sua cor preferida.

Quando era adolescente e queria dizer "quando hoje acordei", enganava-se e dizia "quando hoje nasci". Bem vistas as coisas, acordar é nascer. O ar da manhã é sempre o ar da primeira manhã do mundo, apesar da poluição. E a cidade é o Paraíso, o circo amigável do Palhaço Verde. Então, no meio da rua, uma rua de Lisboa que a chuva acabou de lavar, as pedrinhas da calçada estão muito brancas, como conchas manuelinas, o Sol brilha no céu azul, está frio, mas não muito frio, então no meio da rua o quê? Nada. Sancha Pança não se eleva nos ares como um balão. O prodígio é ser feliz sem Príncipe Encantado, sem rei na barriga.

Sancha Pança sente-se bem a fumar, a comer bolo de chocolate. Talvez não viva até aos 100 anos. Talvez tenha uma trombose e fique numa cadeira de rodas. Mas é tão bom fumar e comer bolo de chocolate enquanto é tempo. Não é para se consolar de nada, não são carências de mulher sem homem. Passa-se bem sem coitos, sem "french kisses". Não é mau viver sozinha, pensa Sancha Pança. Não é mau ter uma vida dura, pensa Sancha Pança. E depois tem o Palhaço Verde, o texto da Matilde Rosa Araújo. Não podemos consentir que nos roubem o prazer do texto. Isso é que não.

"Pois agora vou-te roubar o prazer do texto", grasna a dona Dulce, a professora da 4ª classe, completamente vestida de preto, montada numa vassoura. "Vais contar quantos ques tem a 'Peregrinação' do Fernão Mendes Pinto. Hás-de aprender que nem tudo na vida é prazer do texto. Comigo ficas a saber que também há o sacrifício do texto."

Diga-se em abono da verdade que, por muito que gostemos de literatura, andamos todos a contar os ques da 'Peregrinação' do Fernão Mendes Pinto. Não tinha razão Barthes, que escreveu "O Prazer do Texto", tinha razão a Dona Dulce.

 

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Ovos Estrelados
Por ADÍLIA LOPES

PÚBLICA, Segunda-feira, 21 de Maio de 2001

Em 1981, enlouqueci pela primeira vez. Deu-me para sair de casa a correr e para me sentar a chorar à porta de uma capela no Largo do Mitelo. A minha mãe foi atrás de mim, sempre a dizer "ai o meu coração!", sentou-se ao meu lado, no degrau da capela, e fez-me festinhas. Logo apareceu uma dúzia de homens em fato-macaco que se pôs à nossa frente a dizer "não gosto de ver fazer ovos estrelados". Também apareceu uma mulher que se debruçou sobre mim e que disse "porque é que está a chorar? a sua mãe está-me a dizer que é uma menina inteligente, que anda na universidade". Eu, apesar de ter tido 20 a Matemática no primeiro exame do Ano Propedêutico, achava que era atrasada mental. A mulher desapareceu e eu resolvi voltar para casa com a minha mãe que ia chocadíssima com a grosseria daqueles homens. Eu na altura lia Alan Watts e o episódio dos ovos estrelados pareceu-me uma vivência de monja Zen que combinava infortúnio, brejeirice e uma grande dose de humor negro.

Muito mais tarde, perguntei a várias pessoas o que é que queria dizer "fazer ovos estrelados". Nunca ninguém me pôde ou me quis esclarecer. Achei sempre que tinha a ver com a homossexualidade feminina. O José Blanc de Portugal sabia uma anedota que era assim: um homem entra numa loja de "lingerie" e diz que quer comprar um "soutien" para a mulher, a empregada pergunta-lhe o número, o homem não sabe, então a empregada vai dando palpites sobre o tamanho das maminhas da mulher: do tamanho de melões? Não; do tamanho de limões? Também não; do tamanho de ovos? Sim, exactamente, do tamanho de ovos estrelados.

Aqui há umas semanas fui à Gulbenkian ver uma exposição de um pintor suíço, Ferdinand Gehr (1896-1996). Tinha visto num jornal a reprodução de um quadro e achei logo que ia gostar daquele pintor de que nunca tinha ouvido falar. Sem querer dizer mal dos críticos de arte, de cinema e de fotografia, guio-me sempre mais pelas imagens que acompanham os textos do que pelos textos. Gostei imenso da exposição. Comprei o catálogo (que custou 3500$00) e descobri lá mais uma trapalhada velha com ovos estrelados. Ferdinand Gehr pintava frescos no interior de igrejas. Mesmo nos anos 50, na civilizada Suíça, os frescos deste cristão chocaram tanto os cristãos que tiveram de ser tapados com grandes e pesados cortinados. É que os Anjos do pintor faziam lembrar ovos estrelados. Enquanto eu via a exposição, andava por lá um pai com uma criança. A criança apontou para um quadro e disse: "Olha! Um ovo estrelado!"

O que me custa, nos homens de fato-macaco, nos suíços e na criança (as crianças são horrivelmente conservadoras) é o desprezo que têm pelos ovos estrelados. Não sei como se diz ovos estrelados em alemão, mas em português os ovos são estrelados, ou seja, fazem lembrar estrelas. Chegada a este ponto, lembro-me de uma leitora que me acusa de gastar tempo e papel com nugas. Falo de ovos estrelados, coisa caricata, suja, sublunar, como as maminhas e o cão animal que ladra. Não falo de Anjos, de Rilke, da Constelação do Cão. Ora, desde que há Física (desde Galileu), que acabou a distinção entre mundo celeste e mundo sublunar. Ou seja: os marcianos e os ovos estrelados são feitos do mesmo barro, são governados por leis matemáticas. Mas o comum dos mortais, que já não acredita em Deus, acredita, às vezes, na salvação da Terra pelos marcianos. Espero que o comum dos mortais repare na beleza dos ovos estrelados. Só vemos o que queremos ver. E só espreitamos quando suspeitamos que há alguma coisa para ver. Foi assim que apareceu o microscópio.

Penso que as imagens fazem mais falta ao homem da rua do que cálculos e equações. As cores fazem muita falta. A pintura de Ferdinand Gehr, os Anjos que são ovos estrelados ou vice-versa, é uma lição de tolerância, de caridade e de humildade. Quanto aos homens do Largo do Mitelo, aos homens da rua, aos homens que escarram para a rua, aos homens que se encostam, espero que Deus os ilumine e lhes dê a simpatia tardia pelas lésbicas que Barthes atribuiu a Charles Fourier.

Também andava pela exposição um casal de namorados. A rapariga fazia-se de estúpida para o rapaz se fazer de intelectual e brilhar. A teóloga inglesa Lavinia Byrne acha que as duas maiores conquistas científicas do século XX foram a pílula e a ida à Lua. Possivelmente a rapariga já começou a tomar a pílula, mas ainda cabe ao rapaz tecer considerações sobre Deus, Rilke e Galileu. Não é por acaso que ainda nenhuma mulher pôs o pé na Lua. Mas talvez seja uma mulher o primeiro ser humano a pôr o pé em Marte. Já agora que seja uma preta lésbica e deficiente. O século XX foi politicamente incorrecto, mas este século promete. Não estou a brincar, sou de facto optimista. Por isso a minha prosa é rosa, amorosa, pirosa, laranja e verde-alface.

 

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Maria do Céu
Por ADÍLIA LOPES
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Segunda-feira, 4 de Junho de 2001

Os media não são Deus, mas também não são o Diabo. Como em tudo, na vida, é preciso separar o trigo do joio. E o joio, se calhar, também tem um bom fim. Os brasileiros escrevem "mídia", o que faz lembrar "míldio" (o termo popular é "Mil-diabos"), mas "media" é o plural de "medium", palavra latina, e não inglesa, como parece. Eu gosto de pensar nos media (o plural de medium) como nas mesas pé-de-galo do tempo do Pessoa. Mesas redondas em que damos as mãos e em que os mortos comunicam com os vivos, em que, mergulhados no éter ou no vazio (ou em Deus), somos a grande cadeia do ser. Não acredito que seja precisa uma mesa pé-de-galo, mas acredito que o escritor convoca (chama) vivos e mortos. 0 escritor dá voz aos que têm e aos que não têm voz (como o Dr. Garcia Pereira nos cartazes). Acredito que o escritor é sempre o advogado, o que é chamado para ajudar. Acredito que o bater de asas de uma borboleta em Lisboa provoca um tufão em Honolulu. Ou seja, como se diz que dizem os malucos, isto anda tudo ligado. E não estamos sós.

Um dos problemas de ser escritor é ferir os amigos quando se escreve ou se dá entrevistas. No texto da Manuela Carona sobre mim, publicado na revista de 0 Independente, "A preguiça", de 20 de Abril deste ano, intitulado "A menina Adília", está escrito "A vizinha de cima, uma mulher semianalfabeta, disse-lhe que não tinha percebido muito do que está escrito no seu livro Florbela Espanca espanca, mas que gostou muito do que leu. A Adília adora estas perversões culturais". Ora a minha vizinha de cima leu isto. E eu adoro a minha vizinha de cima. E também estimo a Manuela Carona. Mas eu não sou perversa! Conheci pessoas perversas. Mas, como me disse o Prior de Arroios, Monsenhor José de Freitas, "as pessoas más são o outro lado da Lua". A minha vizinha de cima, a Maria do Céu, pode ser tecnicamente, linguisticamente, quase analfabeta. Mas eu nunca a quis ofender. E não é nada estúpida e, sobretudo, não é má. Já falei com ela e ela aconselhou-me a não citar ninguém "nem bem nem mal" para "evitar essas confusões". Só que eu, para sobreviver, não posso ficar calada.

Devo muito à minha vizinha de cima. Conheço-a há trinta anos. Quando lhe ofereço os meus livros e ela me diz que os lê devagar e que nem sempre os percebe, não penso que ela seja estúpida. Nem penso que ela seja iletrada. Tenho-a na conta de uma pessoa muito delicada, muito bonita (por dentro e por fora), muito elegante, muito inteligente e muito culta. A Maria do Céu é de Trás-os-Montes, de Alijó. Fala num português que faria as delícias de Leite de Vasconcellos e que mete num chinelo o português (ou o francês ou o inglês) de tanto doutor (catedrático, médico, escritor) que não hesita em subir acima da manhosa chinela porque não é humilde e modesto. A Maria do Céu não é medíocre.

A minha vizinha contou-me que viu em Alijó, debaixo de uma cerejeira, no jardim da casa dos pais, uma cobra encantar um lagarto e engoli-lo, devorá-lo. Ela ficou fascinada porque já tinha ouvido contar casos destes mas custava-lhe a acreditar.

Miguel Torga ensinou-me a apreciar o Portugal rural, em que o silêncio é de oiro e a palavra de prata e a laranja, à noite, mata. A Maria do Céu é uma mulher de palavra e é um coração de oiro. Muitas vezes me senti aflita e foi a Maria do Céu quem me valeu, quem me levou ao hospital, quem me visitou no hospital. 0 que eu quis dizer à Manuela Carona mas, certamente expliquei-me mal, é que quando dei, pela primeira vez, um livro à minha vizinha de cima, a avisei de que o livro tinha palavrões. Ela disse-me, na altura, uma coisa acertadíssima: cada palavra tem o seu lugar. Mesmo os palavrões.

Tenho andado muito aflita por ter ofendido, sem querer, a minha vizinha de cima. Isto tem-me feito pensar no Portugal que somos. Ou no mundo que somos. A França do "À procura do tempo perdido" de Proust ou a Àustria do "0 homem sem atributos de Musil" são este nosso mundo feito de diferenças de estatuto entre as pessoas que causam, tão estupidamente, tanto sofrimento. Não penso que uma pessoa do campo seja necessariamente mais virtuosa que uma pessoa da cidade. 0 que vejo na minha vizinha Maria do Céu, acima de tudo, é a nobreza de carácter. E é verdade que foi na intelligentsia e na aristocracia que encontrei as pessoas mais incultas e mais grosseiras.

Há pessoas finas e pessoas casca grossa. Conheço casas com loiças de Cantão e pano de armas em que fui maltratada. Conheço casas apinhadas de livros em que fui maltratada. Conheço consultórios de professores catedráticos de Medicina em que fui maltratada. Conheço a casa por cima da minha em que fui sempre tão bem recebida. Por muitas judiarias que me tenham feito, por muitas cicatrizes que tenha, não quero morder a mão que me dá pão, rosas e afecto.

Detesto o sofrimento. Procuro ser justa. Não sou perversa. A Sophia escreveu "Aquele que vê o fenômeno quer ver todo o fenómeno". É isso que me guia. Posso parecer pateta, a emenda pode ficar pior que o soneto. Se calhar, a Maria do Céu, quando ler isto, vai ficar ainda mais zangada comigo. Só tenho bem a dizer da Maria do Céu. 0 que me agrada mais nela é o fino trato. Esta expressão caiu em desuso neste mundo, nesta aldeia, em que vale tudo até arrancar olhos. Isto devia ser uma crónica da Laurinda Alves. Porque a minha vizinha de cima é o lado bom da minha vida, a ela eu sei que posso encostar a cabeça. A Maria do Céu é mesmo do Céu (e mora no andar de cima).

 

 

 

Crónicas da vaca fria

Fazer Prosa, Fazer Rosa
Por ADÍLIA LOPES
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Segunda-feira, 18 de Junho de 2001

Os meus leitores destas "Crónicas da vaca fria" desconhecem, alguns, não todos, claro, que escrevo poemas. Desde 1984 que publico poemas com o pseudónimo que uso e que é o nome com que também assino estas crónicas: Adília Lopes. O nome do bilhete de identidade é outro, é: Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Ao problema (ao trauma sublimado e sublime!) dos meus nomes voltarei noutra crónica destas, se Deus quiser. Nesta quero falar da poesia.

Eu não sou uma prosadora. Sou uma poetisa. Entendo esta situação do seguinte modo: uma prosadora é como a Rosa Mota. Corre durante muito tempo e corre grandes distâncias, tem muito fôlego, corre a maratona (verifico no Petit Robert que "maratona" vem de Maratona, cidade grega de onde saiu a correr até Atenas o soldado que levava a notícia da vitória; a palavra francesa "marathon" foi introduzida no vocabulário, com o sentido que lhe damos ainda hoje, em 1896, ou seja, nos grandes tempos do romance). A maratona é uma corrida a pé de 42,195 km (no dicionário da Porto Editora vem 41,195 km). Proust, Musil, Marguerite Yourcenar e Agustina Bessa-Luís (e muitos outros e muitas outras) são Rosas Motas. Uma poetisa é uma lançadora de pesos ou uma atleta que dá saltos.

Se quiserem ver os meus saltos, podem ler os meus textos em verso na "Obra", publicada pela editora Mariposa Azual, de Lisboa, o ano passado, ou na antologia intitulada, organizada e posfaciada por Valter Hugo Mãe "Quem Quer Casar com a Poetisa?", editada pelas Edições Quasi, de Vila Nova de Famalicão, este ano. O problema deste último livro são as muitas gralhas! E uma gralha é capital. Se eu escrever que "1 euro são 400,4820 escudos" haverá quem saiba que eu estou errada pois 1 euro são 200,4820 escudos. Mas haverá quem não saiba. Apenas um carácter foi alterado (um 4 em vez de um 2) e vejam a diferença que fez! Pois na poesia a diferença é ainda maior.

Eu sei que, para muitos leitores, a poesia é uma chatice e é uma charada. Em minha casa, ninguém gostava de poesia. Sempre que, na televisão, aparecia alguém a recitar um poema, tirava-se-lhe o som. A poesia era coisa de pessoas bem falantes, quase sempre maus alunos a Matemática, quase sempre uns chalados e umas chaladas que não trabalhavam nem ganhavam dinheiro. O meu pai ainda hoje me diz acerca da poesia: "Deixa-te disso. Isso não dá pão." Em minha casa, toda a gente tinha horror às palavras caras. A prima Maria Lucinda, quando veio cá tomar chá, disse já não sei a propósito de quê "fiquei muito confrangida". A tia Paulina alcunhou-a logo de "a Confrangida". E nunca mais ninguém disse "a prima Maria Lucinda" porque ela passou a ser para toda a gente "a Confrangida". Detestava-se de igual modo a Filosofia. E, de uma maneira geral, as Letras.

Tenho para mim que uma poetisa é uma Rosa Mota que dá um salto, mortal, de Maratona a Atenas, tipo canguru, para dar a notícia da vitória (ou da derrota). Explico-me. Quando não havia telemóveis, nem sequer telefones, no tempo dos telegramas, dar a notícia da morte da mãe ou do nascimento de um filho implicava escolher e pesar e pagar cada palavra. O jovem órfão ou o jovem pai, a meu ver, fazia poesia ao mandar o telegrama à família distante. Fazer poesia tem a ver com a necessidade imperiosa de "transferir" "para o mundo do poema limpo e rigoroso" "o quadro o muro a brisa/ A flor o copo o brilho da madeira" (cito versos do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen intitulado "No poema" de "Livro Sexto").

Há dois textos em que reconheço aquilo que sei da poesia. É a "Arte Poética IV" de Sophia (publicada em Dual) e "Bresson, o Mergulho" de Nuno Bragança (publicado no catálogo do ciclo de cinema dedicado a Robert Bresson, Fundação Gulbenkian, Abril de 1978). Paro aqui para reler e sublinhar estes textos. Não vou resumir nem citar o texto de Sophia. Prefiro citar Baltazar Lopes (Osvaldo Alcântara) citado por Sophia na portada de "Primeiro Livro de Poesia", "casem-se os poetas com a respiração do mundo". Aqui está a resposta à pergunta do Valter Hugo Mãe, ou antes, a esta: com quem quer (ou com quem deve) casar a poetisa? E eu vou ser mesmo moralista e vou dizer: acho que toda a gente devia ter o propósito de casar com a respiração do mundo. Ou, porque não?, com a respiração de Deus. A poesia é uma questão de fidelidade a esse casamento.

Tenho medo de estar a ser hermética. Acabo esta crónica recomendando aos meus leitores a leitura da prosa (luminosa) de Nuno Bragança e do livro que ando a ler neste momento: o ensaio (ou a biografia de uma alma) "A Condição Humana em Ruy Cinatti" do padre Peter Stilwell (editado pela Presença). Fazer prosa (ou poesia) quer dizer não dizer mentiras. Fazer prosa é fazer rosa (a transmutação do pão e das moedas em rosas pela alquimia do milagre). Não, não é uma alusão ao PS, é uma alusão à mulher do rei D. Dinis. E é ter esperança mesmo no abismo dos abismos. Transcrevo do livrinho "Valor do Sofrimento" (edição Paulus) "nunca ninguém está totalmente perdido" (frase de Roland Leonhardt). Não está seguramente perdido o que aceita (escolhe?) perder-se.

 

 

Crónicas da vaca fria
Teologia Loja dos 300
Por ADÍLIA LOPES
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Segunda, 2 de Julho de 2001

Isto que se segue é teologia barata, teologia loja dos 300, mas foi na loja dos 300 que eu comprei, por 300$00, uma Santa Teresinha do Menino Jesus (1873-1897). Desde que vi o filme "Thérèse", de Alain Cavalier, que fiquei apaixonada por essa rapariga que a "Enciclopédia Britânica" acha uma neurótica e que é agora uma doutora da Igreja. Não há contradição nisto. Van Gogh era um psicótico e era um pintor. Proust era um neurótico e era um escritor. Aliás, Jesus Cristo comporta-se como um doente mental. Isto não é blasfemo! Jesus Cristo foi crucificado, ficou com feridas, deitou sangue. O sangue de Cristo é sagrado. Mas todo o corpo de Cristo é sagrado! Possivelmente Cristo constipou-se, vomitou, urinou, ejaculou, evacuou. Neste tempo de Prozac e Lexotan, é tempo de dizer que também os neurónios de Cristo são sagrados! Os neurónios, o sangue, o suor, as lágrimas, o ranho, a saliva, a urina, o esperma, as fezes.

Sei que passo por ser ridícula, pateta, porca, doida. Mas acho que as pessoas eram mais felizes se reparassem, de facto, na dignidade, na santidade, do corpo e do quotidiano. As pessoas deviam imitar as baratas. Eu gosto de baratas. Gosto de estar deitada e de as ouvir a correr pelo chão de madeira. No lar da terceira idade onde o meu pai vive, contaram-me, uma velha diz à que está no quarto com ela, antes de irem dormir, que viu uma barata. Diz isto por maldade, só para meter medo à outra. A outra tem medo de baratas, já não consegue dormir e passa a noite em tormentos. Quando eu for velha, se estiver num lar, podem dizer-me à vontade, antes de eu adormecer, que o quarto está cheio de baratas! Mas eu sei o que é ter medo de baratas. Só que venci esse medo.

Quando era criança, tinha muito medo das baratas e, ao mesmo tempo, as baratas fascinavam-me muito. Pelo Natal, um Natal, a minha mãe pôs-me no sapatinho, ao pé do presépio, uma cama de bonecas linda, de metal dourado e dossel de tule cor-de-rosa e branco. Uma manhã, ao abrir a cama da boneca, vi dois ou três ovos de barata muito pretos, a luzir, como cápsulas de antibiótico. Isto, que foi repugnante, passou a ser delicioso. Quem já comeu baratas fritas diz que sabem a gambas.

Devem estar a pensar: que maluca! Certamente S. Francisco de Assis acha que eu sou uma mulher ajuizada, porque, para mim, crescer correspondeu a vencer a tentação do horror às baratas e a afirmar hoje que as baratas são minhas irmãs.

A minha mãe era bióloga. Tentou doutorar-se, mas desistiu. Preparou o doutoramento na Estação Agronómica de Oeiras. Para mim era sempre uma festa estar com a minha mãe. E a Estação Agronómica de Oeiras era o campo, os laboratórios, coisas que me fascinavam até pelos cheiros. A tia Sara, minha tia-avó, trabalhava lá. Era uma mulher divorciada e que trabalhava, o que era raro para uma mulher burguesa nascida no princípio do século XX. A tia Sara dava de comer a moscas! Lembro-me do cheiro das papas das moscas e dos olhos (lindíssimos) das moscas. As moscas são boas para quem estuda genética. Eu ainda não estudei genética. Nem mesmo no liceu. Mas ainda vou muito a tempo. Não me queixo de ter assistido às trapalhadas da revolução dos cravos a ler, sem perceber, Marx, Engels e Lenine e a "Elle" e a "Marie Claire" francesas (ainda não havia as portuguesas), em vez de estudar biologia.

Sou feliz, mesmo sem saber genética. Há pessoas que embirram com os meus textos e com a minha cara. Mas outras escrevem-me a oferecer-me a casa e a felicitar-me. Até há bem pouco tempo, as coisas más eram como borrões de tinta em mata-borrão: alastravam, tomavam proporções gigantescas. Um padre disse-me que eu devia fazer com que o meu mata-borrão funcionasse ao contrário, isto é, que fosse um mata-borrão em que as coisas boas alastrassem, tomassem proporções gigantescas. Ao fim e ao cabo, as coisas boas e as coisas más são a cara e a coroa de uma mesma moeda, as duas faces da Lua.

Que seria de nós sem o mal? Não havia enredo, intriga (no sentido de "plot" em inglês), não havia tempo, duração, processo. É teologia loja dos 300. Mas ainda há-de vir o tempo em que "O Processo", de Kafka, a Bíblia e todos os romances da Agustina Bessa-Luís se hão-de vender nas lojas dos 300, todos metidos no mesmo saco, por um euro. Se não houvesse o mal, não havia o bem. Se não houvesse o Diabo, não havia Deus. Estou a tagarelar. A charlar. A "bavarder". Adoro falar. Sou incapaz de dizer a uma pessoa: "Cala-te!" "Fala baixo!" "Perdeste uma boa oportunidade de estar calada!" Isso é o fascismo. Se não houvesse o fascismo, não havia a democracia. Se não houvesse o barulho, não havia o silêncio. Se não houvesse a morte, não havia a vida. É perigoso pensar assim - mas como não pensar assim?

Ainda bem que Deus não nos meteu de uma vez por todas na eternidade! Talvez "eternidade" não vos diga nada, a menos que a eternidade seja um permanente orgasmo tântrico.

Chego ao fim apelando para aqueles e aquelas que estão a sofrer e que podem estar a ler isto. Sofrem porque partiram uma perna, porque o namorado as/os deixou, porque a mãe morreu, porque o filho ou a filha morreu, porque têm medo de vir a não ter dinheiro, etc. Sofrem e isso basta-me. Não estou a gozar. Estou convosco. Já sofri. Neste momento, não sofro. Mas o sofrimento tem muito valor. Tem todo o valor. Nunca devemos procurar o sofrimento. Mas temos que o enfrentar quando ele vem. O sofrimento é o mau tempo.

 

 

Crónicas da vaca fria
O Aguilhão da Morte
Por ADÍLIA LOPES
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Segunda, 16 de Julho de 2001

Ao fim e ao cabo, ao princípio e ao começo, a meio das coisas, eu gosto de ser eu. Gosto de ser pura, transparente, ingénua, "warm"... Não gostava de ser "cool", sabidona, opaca, impura. Já reparei que as pessoas, quase todas, têm muito medo de ser tomadas por parvas. "Eu não sou nenhuma otariazinha." Ou: eu não nasci ontem. De facto, eu não nasci ontem. Nasci a 20 de Abril de 1960 e ontem foi dia 18 de Junho de 2001. Quando era adolescente enganava-me e dizia "quando eu hoje nasci" em vez de dizer "quando eu hoje acordei". A bem dizer estamos sempre a nascer.

Para modelo destas minhas crónicas tomei as crónicas que Roland Barthes escreveu para "Le Nouvel Observateur". A 12 de Fevereiro de 1979 vem lá isto: "Il faut toujours défendre cette chose, en nous, dont on se moque" (traduzo à Nuno Bragança: "É preciso defender sempre com unhas e dentes aquilo que os outros acham ridículo em nós"). É esta frase que eu gostava de ter gravada, em francês, no meu túmulo. Antes, Barthes diz que Tolstoi faz troça dos franceses porque estão sempre a falar na mãe.

Nunca falei com Roland Barthes, nunca o vi nem ouvi em carne e osso. Mas tenho a impressão de o conhecer biblicamente. Li-o (em francês, sempre) e vi fotografias dele. É ao meu professor de Desenho no ano lectivo de 1975/1976, no Liceu Pedro Nunes, que devo ter ouvido falar, pela primeira vez, neste escritor. Não me lembro do nome deste meu professor de Desenho. A minha colega de carteira, a Zé Botelho, e eu chamávamos-lhe sempre "o Macaco". As aulas de Desenho eram aulas de Geometria Descritiva. A Geometria Descritiva tem a ver com passar o que acontece no espaço a três dimensões para as duas dimensões da folha de papel. É uma representação (um adorável teatrinho de marionetas) ou, mais tecnicamente, uma projecção. As personagens são rectas, planos, cilindros, cones e o que acontece é que um plano corta um cone e que é preciso desenhar a sombra do cone assim amputado num plano enviesado, etc. Os alunos nem sempre levavam régua para a aula, então "o Macaco" dizia-lhes para usarem pernas de cadeira (e havia imensas pernas de cadeira sem cadeira porque do 25 de Abril ao 25 de Novembro, no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, a mobília sofrera tratos de polé e as pessoas não sofreram não sei como).

Graças a Barthes, não estou interessada em ser escritora. Estou interessada em ser (e em estar). Neste mundo e no outro. Na Terra e no Céu. Horroriza-me fazer prosa que não seja rente ao viver, ao ser. Escrevo como ando. Não escrevo o que me vem à cabeça, escrevo o que me vem à mão. Escrevo à mão, com uma Bic Soft Feel Roller preta, sobre uma folha A4 de papel reciclado cor-de-rosa. Barthes criticou aquilo a que chamou "o estilo Bic". O meu estilo é estilo Bic Soft Feel Roller. Mudou a Bic: mudou o estilete, mudou o estilo. Como se pode dizer de uma caneta, de uma cadeira, de uma saia, de uma pulseira, digo da minha prosa que ela é confortável. Porque me sinto bem a vesti-la, a andar com ela (a escrevê-la e a publicá-la). Posso fazer uma flor: a minha prosa é confortável porque me conforta.

Dia de Corpo de Deus fui até ao cemitério do Alto de S. João. Procurei a campa da minha mãe e não a encontrei. Fui à secretaria saber o que se passava. A minha mãe morreu a 2 de Janeiro de 1995. Pensei que do cemitério me mandassem uma carta quando removessem os ossos. Mas não é assim. Fiquei a saber que agora é impossível localizar os restos mortais da minha mãe. Não quero culpabilizar ninguém, mas ninguém me ensinou a tratar dos mortos. É coisa que hoje não se aprende. A minha mãe, que tinha muito sentido de humor negro e que gostava de mim, não me deve levar a mal por eu não ter sabido arrumar os ossos dela. No colégio de S. José, que era na Rua José Estêvão, a minha mãe deixava meio enjoadas e meio divertidas a freira e as meninas chiques ao descrever até ao mais pequeno detalhe, nas aulas de História, como é que se embalsamavam os mortos no Antigo Egipto. Parece que o cérebro se chupava com uma palhinha enfiada numa narina. Tenho pena, mas não sei nada disto. Sou do tempo em que, nas aulas de História, era tudo abstracto, tudo gráficos de barras e de queijos.

As minhas últimas palavras, por hoje, vão ser sobre o Hermínio da Assírio & Alvim. O Manuel Hermínio Monteiro. Penso que não gostava da minha poesia porque sempre recusou publicar-me um livro. É claro que não lhe levo a mal por isso. Com muito humor negro, mas com toda a seriedade, pego n' "O Livro dos Mortos do Antigo Egipto". É uma edição da Assírio & Alvim do Hermínio. O peixinho-de-prata roeu um bocadinho do azul-turquesa da lombada, o roído é branco. Estou muito grata ao Hermínio por ter publicado, em boas traduções, os poetas que mais me apetece ler agora: Rilke, Hölderlin, Trakl, S. João da Cruz. E a Luiza Neto Jorge. Já morreram todos. Olá, Hermínio!

O título desta minha crónica alude ao capítulo 15 da 1ª Carta de S. Paulo aos Coríntios. Vem na Bíblia. No Novo Testamento.

 

 

Crónicas da vaca fria
Notícia de Torto
Por ADÍLIA LOPES
PUBLICO Segunda-feira, 30 de Julho de 2001

Em 1974/75, meti-me no autocarro 15 ao pé da Cister, na Rua da Escola Politécnica. Na minha cabeça ia uma "rêverie" desenfreada sobre as bondades da ditadura do proletariado. Mas o autocarro deu um solavanco e eu caí para cima de um operário que levava na mão uma marmita, eu levava às costas a pasta da escola. O operário deu um ronco para os outros "logo esta gaja cai para cima de mim com uma pasta cheia de merda". Na pasta, deviam ir as leituras obrigatórias das aulas de Português da dr.ª Henriqueta Costa Campos: os "Esteiros" de Soeiro Pereira Gomes, a "Seara de Vento" de Manuel da Fonseca, o "Auto da Barca do Inferno" de Gil Vicente, mais o "Do Estado" de Lenine das aulas de História da dr.ª Leonor Ravara. Fiz trabalhos e testes sobre esta merda toda, para usar a expressão do operário, e tive sempre boas notas.

Na entrada principal do Pedro Nunes, um rapaz do MRPP vendia pagelas e santinhos materialistas-dialécticos. Duas velhotas entraram e uma delas apontou para um "poster". "Parece-me que já vi este senhor na televisão." O rapaz esclareceu prontamente "É o nosso camarada Estaline." Mas a revolução não é, nunca foi, meia dúzia de chaimites pela estrada Nº 35 abaixo, qual Chevrolet pela estrada de Sintra, entre o Quartel Nº21 e o Quartel Nº34, que os rapazinhos do MRPP ou da UDP apregoavam pelo megafone do alto do metro-mijo (o WC) do recreio do Liceu Pedro Nunes. O "leader" dos motins andava pelos telhados com uma fita amarrada à testa, acompanhado pela namorada, uma loirinha deslavada, de capa preta e botas, que para o meu colega Ferraz era pura e simplesmente "a vaca do 5º Esquerdo". A seguir ao 25 de Novembro o "leader" dos motins já se vestia como um tecnocrata. "Ubi sunt"?

Para ir apanhar o 6 ao Rato e voltar para casa sem levar nas fuças (talvez em 75 ainda se dissesse "ventas"), tive de descer a Pedro Álvares Cabral numa manifestação a gritar "Ensino para a burguesia não, ensino para o povo sim". Do lado direito havia o MLM (Movimento de Libertação das Mulheres). Era uma casa silenciosa, em ruínas, sempre fechada, que contrastava gritantemente ou surdamente com a sanfona marcial do MRPP, mais abaixo.

Mas, mais do que contar a minha história, quero arrumar a minha casa. Ilya Kabakov é o meu modelo a seguir. Cada vez vejo mais claramente que a minha história é uma história lisboeta. Por isso não saio de Lisboa. Recusei um convite para ir aos Açores e outro para ir a Roterdão. Aliás, a minha história já está escrita, era até há pouco tempo o texto mais antigo escrito em Português, a "Notícia de Torto", do século XIII. Mas, como isto pode parecer amalucado, acabo este parágrafo com duas referências bibliográficas. Leiam, sobre Ilya Kabakov, "The man who never threw anything away" de Amei Wallach, publicado por Harry N. Abrams, Inc. Publishers, New York, 1996. Está à venda na FNAC. Sobre a "Notícia de Torto" podem consultar o "Curso de História da Língua Portuguesa" de Ivo Castro, publicado pela Universidade Aberta em 1991.

Vinte anos de psiquiatria deixaram-me com mais 40 kg e uma distensão abdominal que me dá lugar sentado em todos os transportes públicos. Ao fim e ao cabo, sou uma veterana de guerra. Há 20 anos eu tinha lido as tragédias gregas e reconhecia-me em Antígona, Electra e Ifigénia. Cedo percebi porém que não vale a pena falar em Sófocles e em Eurípides aos psiquiatras pela simples razão de que os psiquiatras não os leram. Sófocles e Eurípides só entrarão para o vocabulário dos psiquiatras no dia em que forem os nomes do último grito em psicotrópicos. O mesmo se pode dizer do famoso complexo de Édipo, de que os psiquiatras, como toda a gente, sabem umas banalidades aprendidas em más traduções espanholas. O complexo de Édipo só lhes interessará verdadeiramente no dia em que for o nome de um complexo urbanístico de luxo, com piscinas e palmeiras.

O meu pai diz de Nossa Senhora "Fia-te na Virgem e não corras", eu digo da Psiquiatria "Fia-te na Psiquiatria e não corras". Electra, ela própria, pode ir chorar baba e ranho para o consultório do psiquiatra. Grita "os muros da casa dos Manon escorrem sangue". Que não espere justiça, nem compaixão, nem lágrimas. Na melhor das hipóteses há empatia (chama-se assim), desembolsa umas dezenas de contos e, se estava a tomar dois Zyprexa, passa a tomar cinco. Mas, bem vistas as coisas, tenho mais bem a dizer da Psiquiatria do que mal. Os escritores e os professores de Literatura não são melhores do que os psiquiatras. Ganham a vida (o dinheiro) à custa do "por delicadeza perdi a minha vida" do Rimbaud. E há muitos que não leram Sófocles nem Eurípides.

Hoje Electra pode lavar o sangue das paredes da casa dos Manon com detergentes eficazes, coisa que não podia fazer nos tempos de Eurípides. E eu afinal já não tomo remédios nenhuns. Salvo a pílula quando é caso disso. E foi um psiquiatra (não por acaso um homem e não uma mulher) que me ensinou a tomar a pílula e que ma deu. E isto não se aprende a ler Rimbaud.

 

Crónicas da vaca fria
Dijon 77
Por ADÍLIA LOPES
PUBLICO   Segunda-feira, 13 de Agosto de 2001

A minha mãe passava os dias a ler. Apesar das aparências em contrário, pouco me ligava. Eu dava-lhe "muitas ralações", como ela dizia. Mas isto era uma coisa abstracta na cabeça dela e eu tinha uma existência abstracta como a Patagónia dos romances. A minha mãe comprava imensas revistas e jornais. Íamos à Baixa a uma tabacaria ao pé da Central da Baixa. Ela comprava a "Burda" (ela sabia alemão, eu não sei), a "Marie Claire", a "Elle", a "Femmes d'Aujourd'hui", a "Modes & Travaux", o "Jours de France", o "Paris-Match", a "Woman's Own", a "Woman's Day", assinava a "Life" (depois a "Time"). E, certamente, esqueço-me de vários títulos. O que é curioso (eu sou uma criatura bem mais normal do que a minha estranha mãe) é que, apesar de tanta informação sobre a realidade, a minha mãe não tinha noção do mundo em que vivia.

Encorajou-me a fazer um curso de férias no estrangeiro porque tinha feito um em Heidelberg, com a amiga Maria Leonor Maia, nos anos 50. Contou-me que, nesse curso alemão do pós-guerra, havia conferências sobre a união europeia, um sonho nessa altura, em que se falava de Carlos Magno. É claro que, em 77, em Dijon, no curso de férias que fiz na Faculdade de Letras, ninguém me falou de Carlos Magno. O tempo era ainda o do "sex, drugs & rock'n'roll" e se eu não enveredei por esse caminho, foi porque já tinha enveredado por outro.

Faço aqui um parêntesis. Li ontem (3. VIII. 2001) o belíssimo livro de Pedro Mexia chamado "Duplo Império". Está lá o poema "Não tocar" em que se fala de não poder tocar na porta verde sem ficar com as mãos verdes. Continuo com a metáfora das portas. Durante muito tempo pensei (acreditei) que o império dos sentidos me estava absolutamente vedado. Mas, subitamente, vi que era muito fácil entrar por essa porta. Exactamente como, quando estamos numa casa de banho pública e acreditamos que todas as cabines estão ocupadas. Subitamente, bruscamente, rodamos uma maçaneta e afinal a cabine estava vazia. Porque é que não o fizemos antes? O problema da porta que dá para o império dos sentidos é que nem sempre se vêem as estrelas e ficamos sempre com as mãos verdes, azuis, lilases, douradas. Quando não nos acontece, como aconteceu a Lady Macbeth, ficar com as mãos encarnadas, sujas do sangue dos nossos crimes, que nenhum sabonete, nenhuma acetona, lava. Mas esse é o império do poder, não é necessariamente o dos sentidos.

Como o meu império é o dos signos, o que posso dizer é "'Tiens'! Fiquei com as mãos verdes! Que bonito!" E sigo em frente. Pois em Dijon, em 1977, em vez de inalar cocaína, passei o mês de Agosto a ler as obras completas de Crébillon Père, fechada no meu quartinho, no Pavilhão Lamartine (não, Lamartine não estava, nem está, na moda e escreveu belos textos). Madame Buchanan, professora na Califórnia, dava aulas sobre literatura francesa do século XVIII (Crébillon Père é um autor francês do século XVIII, escreveu peças de teatro). Adorava as aulas dela, sempre muito teatrais. Havia outro professor, o Denis Prost, com quem ainda me correspondi. Esse estava sempre a dizer "Eros" e "Thanatos", palavras gregas que, com sotaque francês, ainda são mais sonoras. Quando contei isto ao Tiago Gomes, ele inventou o achado verbal "Eros de chanatos" e só por aqui se vê que é um bom poeta.

Desse curso de férias em Dijon, pago pela minha mãe, guardo a minha fotografia que saiu no jornal da terra, "Le Bien Public", de 24 de Agosto de 1977. Julgo que foi a primeira vez que um retrato meu apareceu na imprensa. Estou a comer "crêpes de cassis", uma especialidade da terra. O fotógrafo deve ter achado que eu tinha um ar de estudante aplicada. Há outros alunos à minha volta, mas nunca falei com eles. Eu era magra (pesava uns 45kg) e não comia toda a comida que me punham no prato, na cantina. Havia sempre alunos que, quando eu ia pôr o tabuleiro no carrinho, depois de ter acabado de comer, me tiravam os pratos com restos, para comer os meus restos de comida.

É Agosto. Possivelmente em Dijon ainda há cursos de férias em que se comem "crêpes de cassis". A minha mãe morreu há anos. Para não abrir a porta azul da melancolia, acabo com duas anedotas. Primeiro, uma anedota colorida que o meu amigo João Dionísio me contou pelo telefone. Depois, uma anedota do meu amigo Jaime Lebre, que contei ao João Dionísio pelo telefone e que o João Dionísio achou chomskyana. A anedota do João Dionísio passa-se no Brasil. Um velho e um rapaz vão numa camioneta. O velho olha muito para o rapaz. O rapaz é um "punk", com o cabelo às cristas, uma de cada cor, todo ele "piercings" e tatuagens. O rapaz pergunta ao velho "Eh, seu coroa, você nunca fez nada ousado na vida?" O velho responde "Por acaso fiz. Aos 30 anos fiz amor com um papagaio e estava pensando se você não seria meu filho." Agora a anedota do Jaime Lebre. Um homem entra numa estação de Correios e pergunta a outro "Tem caneta?" O outro responde "Não, mas tenho pena." O primeiro homem diz: "Também serve." O outro diz: "Não - tenho pena de não ter caneta." O primeiro homem sai para a rua e pergunta a um terceiro homem "Tem fósforos?" O outro responde "Não, mas tenho isqueiro." O primeiro homem diz: "Também serve." O outro diz: "Não, tenho isqueiro de não ter fósforos."

 

Crónicas da vaca fria
Sócrates Job
Por ADÍLIA LOPES
PUBLICO   Segunda-feira, 27 de Agosto de 2001

 

O telemóvel do Sr. Carlos Santos Rodrigues tilintou. "Daqui Santos Rodrigues Violetas Lutos." Era um serviço barato, para o Alto de S. João, sem família, acompanhado só por quem o estava a encomendar e o ia pagar, uma Dona Albertina Aurélia Mendes dos Remédios.

Abraão Alves tinha morrido a 22 de Junho do ano 2000 da era cristã, que foi dia do Corpo de Deus. Foi em Lisboa. A família de Abraão Alves afastara-se dele como as estrelas e os planetas e as poeiras se estão a afastar do centro do Cosmos, do umbigo do mundo inicial e iniciático e primordial, da cabeça de alfinete que foi o universo 10 levantado a - 43 segundos após o Big Bang, para se expandirem até ao cu de Judas segundo a lei da gravidade negativa de Einstein.

Abraão sentia-se um leproso que anda com um guizo. Só Albertina Aurélia Mendes dos Remédios, sua vizinha do 2º andar, professora primária aposentada, lhe levara um caldo à cama. Morreu em casa, só, sem extrema-unção. Entretanto Albertina Aurélia rachara a cabeça do fémur direito ao subir a escadaria de mármore do Palácio da Independência para ouvir um concerto de oboé de entrada grátis.

Agora Abraão Alves ia morto numa furgoneta funerária, preta e dourada, toda rococó, aos solavancos e aos saltos, a caminho do cemitério do Alto de S. João. O Sr. Carlos Santos Rodrigues ia ao volante. E o Padre Justino, da Capela das Pombinhas, Paróquia de Santa Apolónia, ia ao lado, apavorado e afogueado com a condução do cangalheiro, sempre a ver as horas, pois tinha dois cursilhos para noivos dali a 1/4 de hora.

Era um belo dia de praia e, embora fosse um dia útil, ou por isso mesmo, todos os lisboetas em idade fértil estavam a trabalhar para o bronze graças a uns arranjos que sempre se arranjam, a uns circuitos integrados, a umas dicas, a umas pontes anteriores à de Castelo de Paiva, que caracterizam Portugal, país do "bricolage" e do "fixing" administrativo.

O Sr. Carlos Santos Rodrigues não perdia uma corrida de Fórmula 1. Tratava Schumacher por "Schumi", sublimando assim foneticamente o seu lado mais "gay", mais gaio. Lamentava que os enterros fossem lentos. Achava que os mortos e as famílias enlutadas e os padres deviam percorrer Lisboa como se Lisboa fosse o autódromo de Phoenix. Mas agora, a pilotar a furgoneta nº2 da Violetas Lutos (só havia uma, mas assim parecia que havia pelo menos duas), só com um morto magro e um padre magro dentro, muito saltitantes, sentia-se em Phoenix a disputar um belo duelo platónico, a cantar um dueto automobilístico com Schumi. Acelerou ao chegar ao Chile.

E de repente Bang! Ou Ben! Mais Big Ben que Big Bang, uma preta esquelética, grávida de três meses, mas tão magrinha que não se percebia, estava debaixo da furgoneta que trazia escrito em letras góticas e garrafais Violetas Lutos II.

O Padre Justino e o Sr. Carlos Santos Rodrigues queriam passar por cima da preta grávida, esborrachada na passadeira dos peões, para despachar rapidamente o enterro de Abraão Alves. "Caraças", exclamou Santos Rodrigues. E acelerou.

Mas Abraão Alves então ergueu-se do caixão, que fora fechado à pressa, deu um safanão ao padre e disse-lhe "Vá para casa ler a parábola do Bom Samaritano 70 x 7 vezes seguidas e mande os cursilhos à merda." Dispensou Carlos Santos Rodrigues, meteu a preta na furgoneta e deixou-a na urgência de S. José.

Só agora me posso enterrar em paz, pensou. E, mesmo sem pás, abriu uma cova com as mãos, como se fosse bebé outra vez e estivesse na praia, meteu-se dentro da cova, cobriu-se com terra e expirou. O caixão que sirva para outro, eu fico bem com as minhas minhocas e os meus escaravelhos.

O Sr. Carlos Santos Rodrigues e o Padre Justino ainda estão na Praça do Chile meio atordoados. É então que, por cima de Fernão de Magalhães envolto em cartazes que dizem que estamos a cuidar da memória da cidade, aparece um Menino Jesus de Praga furioso. Tem um vestido vermelho, como é de uso, mas em vez de trazer um globo terrestre numa mão e de abençoar com a outra, brande com uma uma foice, como a Morte das xilogravuras medievais, e na outra empunha um martelo, como Vulcano nas suas forjas.

O Sr. Carlos Santos Rodrigues, habituado a acidentes espectaculares, só quer saber onde pára a furgoneta. Já o Padre Justino nunca mais pôde esquecer aquele Menino Jesus que tinha descido de Praga a abaixo de Braga (a Praça do Chile fica a sul de Braga e portanto de Praga). Seria Ivan, o Terrível? Lenine? Barreirinhas Cunhal? Todas as noites o Padre Justino acorda alagado em suores frios depois de mais um pesadelo com o diabólico Menino Jesus.

A médica do Centro de Saúde da Alameda manda-o tomar dois Lexotans 12 mg todas as noites ao deitar. Mas não dá resultado.

A atropelada preta dá à luz um pretinho magnífico a quem chama Sócrates Job.

 

 

Crónicas da vaca fria
Cacos
Por ADÍLIA LOPES
PUBLICO   Segunda-feira, 10 de Setembro de 2001

O padre Azevedo suspirava de alívio. Era prior da paróquia de Nossa Senhora do Terço. O dia de Natal chegava ao fim sem incidentes de monta.

Na missa das 8h, a missa da aurora ou dos pastores, as velas tinham ficado apagadas porque não havia fósforos nem isqueiros. O sacristão, o Sr. Carlos, perguntara se alguém tinha lume. As beatas, umas velhotas cheias de casacos e de mantas que mais pareciam umas cebolas, tinham olhado umas para as outras. Claro que não tinham lume! Os sobrinhos-netos e os afilhados-netos fumavam charros e injectavam-se com heroína, agora elas nunca tinham fumado um cigarro. Se calhar a droga tinha chegado à sacristia da igreja de Nossa Senhora do Terço e o Sr. Carlos também já fumava marijuana pelo menos.

Na missa das 10h tinham entrado na igreja três cães e sete malucos. Um dos malucos, o Anastácio, tinha ido até ao ambão enquanto a Dona Ermelinda gaguejava a ler Isaías. Arrancara o missal e gritara "Isaías sou eu, sua grande cabra. Endireitai as veredas do Senhor." A Dona Ermelinda já estava habituada ao Anastácio "Calma, Sr. Anastácio, calma. Tenho aqui um rebuçado para si". Os outros seis malucos e os três cães andaram a vaguear pela igreja e a benzer-se diante de todos os santos. A maluca Esmeralda apontou para Jacinta e Francisco e riu-se, riu-se, riu-se. Depois ajoelhou-se diante dos pastorinhos e de Nossa Senhora de Fátima. Na igreja de Nossa Senhora do Terço todos estavam habituados à entrada dos malucos e dos cães.

Na missa das 11h tinha entrado um pretalhão muito grande que fora até ao altar e bebera o vinho da santa ceia. Era um homem de uns trinta anos, aproximou-se do microfone e começou a cantar "Sou um órfão de Angola. Sou um órfão de Angola". O padre Azevedo sentiu-se inspirado pelo Espírito Santo e, mal o pretalhão se foi embora, pediu à assembleia para rezarem uma Ave Maria pela paz em Angola.

Malucos, cães, pretos e drogados não faltavam na igreja de Nossa Senhora do Terço. O padre Azevedo chegava assim ao fim da missa das 18h30 do dia de Natal. Tinha falado das crianças na homilia. Mas ali só havia velhas que já nem se lembravam do que era a menstruação. Só faltava dar a beijar o Menino Jesus. Tudo estava a correr bem quando subitamente o Menino Jesus saltou das mãos do padre Azevedo, caiu ao chão e partiu-se em tantos bocados quantos as velhotas que estavam na igreja de Nossa Senhora do Terço. Setenta e sete bocadinhos de Menino Jesus no chão. Mas ninguém se apercebeu de que aquilo não tinha acontecido por acaso, que era um milagre. E ninguém se deu ao trabalho de contar os cacos.

O Sr. Carlos trouxe pá e vassoura e varreu do chão os restos do Menino Jesus beijado por quarenta bocas com mau hálito, com dentes postiços ou nenhuns dentes, com aftas, com bâton e com o lábio superior coberto por buços que fariam inveja a muito guarda republicana. Trinta e sete velhotas foram para casa sem ter beijado o Menino Jesus. Mas iam radiantes. Muitas nunca tinham dado um beijo na boca. Muitas não davam um beijo na boca há mais de quarenta anos. Muitas nunca tinham dado e recebido com gosto um beijo na boca. Pelo menos tinham que contar.

A Dona Ermelinda chegou a casa. Vivia com outra velhota que era meio criada, meio dama de companhia, meio parenta, meio amiga, meio inimiga. "Sabe lá, Lavínia, o que aconteceu hoje ao padre Azevedo." E contou. "O padre Azevedo tem mãos de manteiga, é o que é", comentou Lavínia.

Mas o padre Azevedo estava intrigado. Pela primeira vez na vida temia e tremia diante do Menino Jesus. Foi ao caixote do lixo da sacristia, sem o Sr. Carlos ver, e contou os cacos. Contou as hóstias. Faltavam setenta e sete hóstias e havia setenta e sete cacos.

O padre Azevedo então, à vista do Sr. Carlos, fez uma coisa esquisita. Engoliu com água benta os setenta e sete cacos do Menino Jesus. Tiveram de o operar e acabou os dias no Júlio de Matos a gritar "Eu comi o Menino Jesus".

 

Crónicas da vaca fria
"Nada Te Turbe, Nada Te Espante"
Por ADÍLIA LOPES

PUBLICO Segunda-feira, 24 de Setembro de 2001

Venho despedir-me dos meus leitores e leitoras. Preciso de voltar a trabalhos antigos que interrompi. Preciso de recolhimento. Preciso de limpar e arrumar a minha casa. Espero poder voltar para o ano. Agradeço lerem-me e criticarem-me. Ter "feedback" é muito importante para mim.

Escrevo esta última crónica no domingo a seguir à terça-feira dos atentados na América.

O texto de que mais preciso, neste momento, é o poema de Santa Teresa de Ávila, cujos dois primeiros versos uso como título desta crónica. É o poema nº 30 das suas poesias. Transcrevo este poema conforme está editado pela Biblioteca de Autores Cristianos, 9ª edição, Madrid, 1997 (p. 667), Obras Completas de Santa Teresa de Jesus. Transcrevo também a tradução portuguesa de José Bento publicada em "Seta de Fogo", Assírio & Alvim, Lisboa, 1989 (p. 25).

 

 

 

Nada te turbe,

Nada te espante,

Todo se pasa,

Dios no se muda,

La paciencia

Todo lo alcanza;

Quien a Dios tiene

Nada le falta:

Sólo Dios basta.

 

 

 

Nada te inquiete,

nada te assuste;

pois tudo passa,

Deus nunca muda.

A paciência

alcança tudo.

Quem Deus possui

nada lhe falta.

Só Deus nos basta.

 

 

Não resisto a transcrever também a tradução francesa que está no parágrafo 227 do Catecismo da Igreja Católica, edição francesa de Mame. Plon, 1992.

 

 

Que rien ne te trouble

Que rien ne t'effraie

Tout passe

Dieu ne change pas

La patience obtient tout

Celui qui a Dieu

Ne manque de rien

Dieu seul suffit.

 

 

Decorei o poema no original e nas duas traduções transcritas acima. Este meu labor filológico ajuda-me a manter a frieza da racionalidade que Kofi Annan disse ser tão necessária agora.

Este poema descobri-o na igreja protestante da Rua Febo Moniz em Lisboa. Nas reuniões de oração às quartas às 18h30, canta-se este poema com a música de J. Berthier. É um dos cânticos de Taizé. Os dois primeiros versos em espanhol, no original, têm uma força que o francês e o português não conservam.

(Há muitos anos escrevi cartas deseperadas a várias pessoas. Escrevi também uma para Taizé. Foram os únicos que me responderam.)

Escrever, para mim, é uma batalhação. Interior e exterior. Exterior: com os materiais, com a minha biblioteca, com a minha casa. Escrevo e risco, irrito-me com as canetas que não escrevem como eu quero. Amarfanho o papel e atiro-o para o chão. Pego noutro papel. Pego noutra caneta. Recomeço. Repito os mesmos gestos. Deste "stress" pode nascer um poema, exactamente como Sophia de Mello Breyner Andresen conta em "Arte Poética IV". Ela escreve "riscando e emendando para trás e para a frente, num artesanato muito laborioso, perdida em pausas e descontinuidades". É exactamente assim que estou a escrever este texto. Não podemos viver sem "stress", foi o que me disse uma vez o dr. René Bartlett, psiquiatra. A batalhação interior é uma luta, não com o Anjo (Jacob luta com o Anjo em Génesis 32.24-32), mas com a Hydra, com o rio de fel interior, com os fantasmas que têm "um leve sabor a podre" (mais uma vez cito Sophia, poema "Elsinore" do livro "Ilhas"), com o piano (o do filme) que nos puxa para o fundo do mar e de que temos de nos livrar se não queremos perecer. Há qualquer coisa de viscoso nesta luta. Como no coito. E nem sempre se vai para a cama com o amado. Isto é, nem sempre o texto é amado (ou amável).

Mas se escrever não é uma batalhação, se é fácil, se não há entusiasmo, furor, gozo e dor, penas e escamas e cicatrizes, então é porque não está bem, não está certo?

O texto de que mais gosto, neste momento, é o cântico do amor de S. Paulo, que está na 1ª Carta aos Coríntios (capítulo 13). Nada vale a pena quando não há amor. É claro que isto pode parecer a megalomania, mas gostava que os meus textos, estas minhas crónicas, fossem como as cartas de S. Paulo. Isto é, que fossem necessárias, urgentes. É impossível escrever sem retórica, sem estilo, sem literatura. Mas desgostava-me escrever por escrever, escrever para escrever ou escrever para ser escritora.

Quero rematar esta crónica-mosaico com uma referência ao lindo, subtil livro Glasses do grande poeta japonês contemporâneo Shuntaro Tanikawa (nascido em 1931). É um livro para crianças. E, tirando o título que figura em inglês na catalogação na fonte, não percebo uma palavra. Para quem quiser procurar este livro dou mais indicações: Glasses, texto: Shuntaro Tanikawa, fotografias: Masaaki Imamura, publicado por Fukuinkan-Shoten, Tóquio, Japão, 1971 (reeditado em 1987). O livro mostra, página a página, a fotografia de um copo de vidro: copo invertido com uma mosca dentro, copo com uma dedada, copo cheio de fruta (a cores, quase todas as fotografias são a preto e branco), copo entornado com espuma de detergente, copo estalado, copo deformado pelo fogo (é um copo de vidro transparente), copo cheio de água, copo invertido com fumo dentro, copo a cair, copo a partir-se, a seguir imensos copos todos diferentes de cores vivas, por último, uma criança a beber pelo copo, feliz.