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ADÍLIA LOPES
(n. 1960)
ADÍLIA LOPES ESPANCA FLORBELA ESPANCA*
Segundo julgo saber, nesta apresentação pública do último livro de Adília Lopes (“o último antes do último”, é caso para dizer), a autora poupar-nos-á ao espectáculo, assaz impressionante, de a ouvirmos ler os seus próprios textos[1]. Espectáculo impressionante ou, em tempos mais recentes, decepcionante? E, já agora, traumático? Que é como quem diz: levado a cabo com aquele sadismo displicente usado por Adilia para frustrar todas as expectativas depositadas pelo seu clube de fàs na autora desses objectos não identificados que, desde há cerca de 15 anos, vêm proliferando por livros magrinhos e raros e revistas preferencialmente underground (se é que o conceito é ainda hoje sustentável), ambos circulando no espaço restrito de algumas avenidas e círculos da capital.
E contudo, nem sempre foi assim. Pessoalmente, recordo a impressão inesquecível que me ficou da (não)peformance levada a cabo por Adília no 2° Encontro de Poetas organizado pela minha Universidade em Coimbra, em 1995. Passava-se a sessão na bela igreja de S. João de Almedina anexa ao Museu Machado de Castro, hoje em dia usada preferencialmente para concertos, dada a excelência da sua acústica. Adília vestia uma saia e uma blusa como as que a minha mãe usa nas fotografias em que me traz ao colo. Com o seu ar cuidadamente retro de menina aplicada, leu alguns poemas de bom efeito (há-os em grande número na sua obra) e semeou-os de uns muito premeditados comentários e notas, provocando sorrisos e cumplicidades. No fim, convidou as pessoas a aproximarem-se para lhes oferecer postais kitsch e livros sortidos. Quando lá cheguei, os livros que me interessavam tinham desaparecido — e uma colega, rendida, pedia-lhe autorização para usar um verso seu como epígrafe à sua tese sobre Shakespeare. Melhor do que eu o poderia fazer, porém, o elegante poeta inglês Hugo Williams, presente no encontro, referiu-se à memorável actuação de Adília em texto publicado no Times Ltterary Supplement:
“The afternoon is redeemed by conventional-looking portuguese woman, Adilia lopes, who hands out kitsch postcards of a cartoon boy-poet in a cloak reading love poems to demure damsel who holds ready the wine. Is she serius? Are we to take her black, housewifely skirt, neat short hair and embroidered blouse at face value? She reads her poemas in a prim, schoolgirlish way, but there is something going on here which leaves her straight-faced crowd smiling in mild shock and mere-evaluating my reading wardrobe. This is what I call performance poetry. I thing it is fair to say that it is she, not me, who is de “surprise” of the festival”.
Reencontrei Adília no Outono passado, em Coimbra, numa sessão no Teatro Académico de Gil Vicente. Adília era longamente entrevistada em público — um público jovem e aficionado — por uma vedeta da nossa TV, e de vez em quando lia textos seus. Ou melhor: despachava-os, lendo-os a 200 à hora e dizendo-os como quem se livra de um daqueles chatos que nos perseguem a vida inteira. Para um amante, ainda que secular, do verbo poético, o efeito era, digamos, desolador: por força da dicção, os textos eram rebatidos sobre a banalidade constitutiva da sua linguagem, indistinguindo-se uns dos outros e anulando mesmo os efeitos de surpresa produzidos pelo superior domínio do anti-clímax revelado desde sempre pela autora. Apercebi-me então de que algo de substancial se alterara de uma sessão para a outra, e nesse algo tinha-se jogado a sorte da obra recente de Adília: na primeira sessão, Adília era ainda uma poeta num encontro de poetas, debitando um show meticulosamente programado: o nome do show era
Poesia (ou Literatura, ou Arte), ainda que em modalidade pop. Na segunda sessão, Adília já não era exactamente nome de poeta, mas sim de um torrencial dispositivo verbal, aquém da poesia e além da literatura, exibindo-se em excesso e dissolvendo-se, por efeito desse mesmo excesso, num jogo de máscaras viciado à partida pela sua tão impúdica revelação de tudo. Como se nos dissesse que a literatura vive desse suplemento de mistério, e de alma, a que damos o nome de Autor — e que, anulado este sob a revelação pública da mesquinhez dos seus abismos, nada mais resta do que uma linguagem desalmada, neutra e frequentemente baixa, isto é, obscena, quais são obscenos todos os autores, por isso que são autores. A literatura seria pois essa forma de publicidade extrema do mais íntimo que só criaturas desprovidas de pudor — e de senso — se atrevem a praticar.
Por outras palavras, Adília passara à fase do espancamento. Antes porém que esta figura — pois é disso que se trata — ganhe na mente dos presentes uma tradução de teor psicológico, convém que esclareçamos a natureza deste espancamento praticado, é bom que se diga, por uma autora que, de tão católica, confessa com sinceridade desarmante na nota final de Florbela Espanca espanca que “Em 1999 tenho uma bolsa de criação literária do IPLB para poesia e teatro. Este livro não faz parte do projecto que apresentei ao IPLB”. Como o pecado — ainda que o tão venial da mentira - é dificil em Adília Lopes!
De que espancamento se trata, então? Em rigor, de um espancamento sistemático e desapiedado de todas as concepções disponíveis do poético e dos regimes do seu agenciamento. Nesse sentido, a leitura indiferenciadora dos seus textos por Adília é hoje o indício mais espectacular (e exterior) desse tratamento de choque a que a autora submete as concepções de poema, texto, livro, autor e - ponto importante - de evolução ou “progresso” da sua poética que manifestamente evolui à custa da poesia e de todas as noções que a acompanham (ou parasitam?) na modernidade: as noções de forma, de sintaxe compositiva, de acabamento (e inacabamento), de autonomia objectual, etc. Daí a sensação de que esta obra não evolui mas antes involui no sentido do primarismo de uma redacção escolar com gramática e dicionário ao lado; ou de que tudo isto não passa de uma vasta piada de alguém que decerto se vai rindo por haver críticos a escrever sobre a sua obra ou companhias de teatro disponíveis para encenar os seus delírios tardo-católicos e tão, tão pré-modernos (e, por isso mesmo, dessincronizadamente pós-modernos). E enfim, tudo isto pode vir a ter aquela tradução reconhecível nos leitores mais desprovidos - ou burros - de Adília que, como sucede com certos espectadores iletrados da arte contemporânea, vão afirmando: ‘Assim, também eu!”
Aonde pode chegar a ingratidão dos leitores! Pois é justamente essa a lição emancipatória que a arte de Adília, com a ajuda da pop primeiro, e da Arte Provera, depois, nos oferece a cada livro e a cada texto: todos poderíamos ser Adília, mais do que ser como Adília, já que “ser como Adília” é ainda um enunciado limitativo no seu contorno psicologizante e, digamo-lo com um vocábulo anacrónico, personalista. Ser Adília, devir Adília, é já outra loiça, muito mais Vista Alegre: é reconhecermos a pertinência verbal (e não propriamente a “dignidade”) da redacção escolar e do exercício gramatical, da anedota, do graffitti ou do jogo de linguagem mais comum. Não se trata de pretender que tudo isto é arte pendurável em museu, isto é, etimologicamente, na casa das musas. Essa é a triste resposta que a cultura dos nossos dias dá a tudo aquilo que a incomoda e minimamente perturba. Pelo contrário, trata-se de admitir que as linguagens da arte não esgotam as possibilidades expressivas do sujeito; e, mais ainda, que as linguagens nunca pertencem ao sujeito mas sim a ninguém, esse ninguém que nos nossos
dias se chama Comunicação e, nas suas derivações empresariais, Microsoft, CNN ou SIC. É pois pouco interessante discutir-se se aquilo que Adília faz é ainda arte, já que o que está em jogo na sua obra é muito mais relevante do que qualquer candidatura a um metro quadrado de parede (ou, menos metaforicamente, a um parágrafo na História da Literatura de Oscar Lopes). Trata-se sim de espancar a linguagem e os seus usos mais ou menos privados — digamos: os usos poéticos — os quais supõem sujeitos que por esses usos se julgam preservados da anonímia do capital linguístico na era da globalização. A esta pobre ilusão dessas criaturas anacrónicas que são os poetas e os seus leitores, Adília responde com uma sessão pública de espancamento daquele tropo que está por tudo isto: a musa, neste livro espancada por interposta Florbela Espanca, antes de também esta sofrer o destino cruel que aguarda todas as filhas da musa.
Eis porque Adília incomoda a boa consciência instalada de modernos como de pós-modernos: os primeiros ressentem nela a falta de objectos suficientemente delimitados e abstraídos do informe mundo exterior à arte; os segundos não reconhecem nela as mediações indispensáveis ao uso, mais ou menos crítico ou lúdico, da linguagem poética no concerto das linguagens. Faltam-lhe, digamos, as políticas da forma. É curioso, contudo, como os críticos de Adília (que geralmente se manifestam pelo silêncio) tanto a distinguem da poesia “decente” dos nossos dias, numa altura em que quase toda a nossa poesia, de tão decentemente sentida e feita, nada é senão um breviário de boas maneiras do (e em) verso. Chocante não é propriamente o facto de a poesia ser hoje nada no concerto das linguagens públicas; chocante é sim o facto de ela assim se reivindicar enquanto dicção de aspirantes ao silêncio fecundo de belas almas em torno de formas convenientemente belas. O mundo, reza a doxa poética de hoje, é o que é; mas a poesia compensa-nos dele por um módico de solenidade, ou melancolia. Só nesse regime ela regressa ao real - que visivelmente lhe não apetece — já que todos os jovens poetas de hoje sabem muito bem o que seja a poesia (Adília, dir-se-ia, não sabe e não se preocupa em excesso com isso). Aliás, como todos sabemos desde os bancos da escola, a poesia é, por definição, coisa digna: onde ela fala o mundo cala.
O problema de Adília reside precisamente aqui; nos seus textos o mundo fala tanto como a poesia, não reconhecendo a esta nenhum direito fundamental. A poesia luta com toda a sorte de discursos e ruídos, e o poeta não fala pela tribo, pois a tribo tem hoje muito onde e como falar, dispensando por isso delegados. Num tempo em que o espaço público é feito de (e é um efeito de) publicidade, a literatura torna-se um efeito mais dessa universal publicitação de tudo: isto é, torna-se uma versão mais da conversa fiada que é esse espaço público. É claro que é sempre possível julgarmo-nos incontaminados e preservados do ruído da tribo: acontece isso muito aos poetas e seus leitores em locais como a Casa Pessoa ou o Palácio de Mateus. Não acontece contudo a Adília Lopes, cuja obra é a crítica incessante dessas ingenuidades finisseculares. Nela, o sujeito é de tal modo uma ficção que sente a necessidade de proclamar, como na portada de Florbela Espanca espanca, que “Este livro / foi escrito / por mim”. Não é só o facto de o sujeito desta obra ser pequeno, mesquinho e razoavelmente banal nos seus dramas de trazer por casa; é sobretudo o facto de este sujeito que permanentemente se desdobra em mil e uma personagens — a menina púbere, a menina casadoira, a poeta, a religiosa, a mística, a desempregada, a doméstica, a solteirona, a funcionária, a erudita, a amante de gatos e passarinhos — ser toda esta gente na exacta medida em que toda esta gente é tão anónima quanto o sujeito poético o é nos nossos dias.
Na verdade, por que razão deveria a linguagem poética escapar à lógica reificadora da civilização dos objectos? Os modernistas acreditaram que poderiam importar dos objectos o seu modelo fenomenológico, acabando por impor o texto ao mundo no regime negativo do contraste ou da repulsa (sigo a lição do Professor Adorno). Em Adília, o texto cede inteiramente às linguagens objectivadoras da comunicação, deixando-se devorar pacificamente por essa gramática universal. O texto não protesta nem se indigna; não arregaça as calças (ou as saias) enquanto a enxurrada passa; não centrifuga a roupa suja dentro das suas estrofes isométricas. Pelo contrário, deixa-se ir e, sempre predisposto a aprender, extrai lições (poderemos chamar-lhe epifanias?) de objectos caídos ao acaso dos passeios: “A sensação de déjà vécu / da madalena célebre / não me faz sentir / poetisa / mas encontrar na rua / um pente sem um dente / sim / devo-o no entanto a Proust / e a Enid Blyton”.
Esta Arte Pobre está em Adília ao serviço da difusão daquela generosa ilusão antes referida: todos poderíamos ser Adília. Como é óbvio, não podemos, pois é preciso ser-se Adília Lopes para praticar deste modo desabusado a tautologia estética: assim como na Arte Pobre a areia é areia, a água água e o chão uma série de tacos de madeira, em Adília a poesia é gramática, a língua é dicionário e um livro uma pura justaposição de textos. Quanto à arte, não é muito mais — e sobretudo: não consegue ser mais - do que “um pente sem um dente”. Isto é, um objecto flagrante. Ou melhor: a flagrância impositiva dos objectos (industriais), a sua beleza incompleta ou arruinada (se é que se trata de beleza: parece-me óbvio que não). O apelo dos detritos, do lixo da cultura material (como da verbal).
E eis aqui um derradeiro ponto crítico: o mesmo cidadão informado e esclarecido que aprecia visitar em museus as latas de sopa de Warhol ou as mesas, os fatos de feltro e as vitrines de lixo de Beuys, resiste a considerar os versos de Adília poesia, por neles encontrar em excesso Warhol ou Beuys. Um tanto como o banqueiro do exemplo de Terry Eagleton que acha inevitáveis, e boas, as consequências da globalização - por exemplo, os 16000 postos de trabalho queimados pela fusão dos bancos Deutsche e Dresdner - mas não aceita poesia sem rima. As artes, como se vê, não evoluem sincronamente. E, como é também visível, umas acham-se bem mais auráticas que outras. A poesia julga-se resistente à civilização dos objectos e ao seu lixo, por ingenuamente supor a sua linguagem protegida da reificação pela musa. Adília, pelo contrário, sabe que, na economia poética dos nossos dias, a musa é um valor de troca: e troca-a sem cessar pela mais-valia da circulação das linguagens, todas diferentes e todas iguais, vale dizer, pela circulação das letras, que como sabemos são tretas.
Para terminar, sejam-me permitidos alguns agradecimentos,já que entendo o acto crítico como uma manifestação pública de agradecimento. A Fernando Guerreiro, por me ter permitido passar, com Florbela Espanca espanca, a integrar o catálogo da Black Sun. E a Adília Lopes, pelo seu talento e inteligência.
* Texto lido no lançamento de Florbe1a Espanca espanca, a 11 de Março de 2000, na Companhia de Teatro Sensurround, em Lisboa.
[1] Muito ao contrário desta suposição, Adília Lopes não se limitou a ler alguns textos do livro: leu-o na íntegra, num tempo recorde, justificando plenamente as considerações que se seguem.
Da extinta Ciberkiosk
Apologia de Adília Lopes,
Quando se Anuncia a Publicação da sua Obra Completa
Jorge Esteves Cunha
(aluno de mestrado da Universidade Nova de
Lisboa)
ADÍLIA LOPES
OBRA
A poesia, dizem, é o rebordo negativo da comunicação. A poesia de Adília Lopes é pelo menos mais complexa e mais simples do que isso. Talvez tenha conseguido chegar a tratar a poesia considerada linguagem restritíssima como informação ou publicidade universal. A última Adília escreve axiomas e legendas. Os conceitos submetem a informação poética à redução que economiza a Arte.
(Gunvald Wahlöö)
Se a maioria dos poetas em existência parece não gerar grandes incompatibilidades de juizo "estético" (alguns poderiam ser outro qualquer), a poesia de Adília não emparelha facilmente com outras; mas também não diverge delas propriamente em questões de Arte. É-lhes indiferente.
Numa poesia que se prezou de inovação, dir-se-ia que uma grande porção de poetas existe num regime de plebiscito que se substituiu aos mestres e à autodestruição da arte, enquanto que Adília Lopes elimina mestres, vanguarda e plebicisto na "pessoa" (1). (cf. Diogo, 1998: 78 e ss)
Adília não conduz a poesia à qualidade, i. e., ao juízo de gosto (universal, consensual ou plebiscitado).
AUTORIA
E AUTORIDADE
‘Adília Lopes’ é
o que permite passar da "mente" ao modus vivendi.
(Rita Minardi)
Enquanto os nomes dos poetas se tornam citações cum auctoritate, o nom de plume ‘Adília Lopes’ é mais o da criada e menos o da autora.
A insignificância do nome próprio pode também estender-se aos títulos de poemas, comprometendo do mesmo modo o autor e a dignidade dos autores. Um bom exemplo parece ser o que se passa com "Monumenta Henricina". Em O Clube da Poetisa Morta é porventura o único texto "poético". Em Sete rios entre campos o enigma do seu sentido é elucidável de dois modos incongruentes. O esburgar do poema "original" limpa-o de implicações e ressonâncias de arte (existentes porque signées Fernandes Jorge):
Monumenta Henricina
Tu tens o cargo
de receber
as coisas que são apartadas
por minha alma
pois a ti foi dada de sesmaria
certa terra maninha
para em ela fazer çumagral
porque tu meu servidor
és o meu contador
dou-te pois o recebimento
dos dez reais
que são para Ceuta
assim tens tu o cargo do recebimento
do nosso tesouro
em a dita cidade
e seu termo
(Clube 27)
American gigolo? Monumenta Henricina?
Toma os dez
reais
que são para Ceuta
não me quero esquecer
de nada
atrás de mim
em a dita cidade
e seu termo.
(Sete rios 48)
Adília faz com a sua poesia o que faz com a poesia dos outros. Num certo sentido, ela é poesia de outros.
A NOSSA PRISÃO
É UM REINO
A lógica é a
noiva; a "batata" e a "pessoa" seus solteiros.
(Adinilson L. Martins)
É nesta situação "impura" que Adília Lopes nos propõe, também ela, a sua Obra. Como quem coloca a sua Cruz na Rosa do Presente – e Adília assina cada vez mais de cruz –, permite-nos apreciar cerca de duas décadas de produção própria e pôr em perspectiva uma poesia contemporânea muito menos definível enquanto tal, e que, no entanto, em termos portugueses, foi constituindo maiorias ao centro, e às avessas de Álvaro de Campos: nenhum poema em linha recta, poeta heróico-elegíaco e supondo-se "dissidente", integração do "real" nas boas formas da linguagem e do sentimento, suplementação da metafísica, liturgia. Quem, se não Adília, foi capaz de começar um poema assim: "Eu que já fui do pequeno almoço à loucura" (O Decote da Dama de Espadas 42) (2)?
Num certo sentido, os poemas de Adília são completos. Não nascem como fragmentos para serem todos destacados, separados, circunscritos pelo que falta. Em geral, não comportam ainda nem objectos nem símbolos dados à contemplação estética. (cf. Silvestre, 1999) Alguma coisa lhes consente a concisão – o humor? –, enquanto outros, por contraste, buscam "sentido" e "sentimento" com uma linguagem que constrói, que se especializa, e que, por isso mesmo, e não exceptuando os poetas mais enxutos e que praticam a vigilância sobre a forma, não escapa ao juízo que lhe divisa alguma prolixidade – uma vez que, face à profundidade do "objecto", a linguagem seria sempre redundante. Não há aqui um poeta-padre que dirigisse a Deus directamente, e só a Deus, o ofício da santa missa. A poesia de Adília não é vestalizada e desconhece os páramos da Musa. Nos poemas de Adília a linguagem não alcança um "objecto" e um "símbolo" através de alguma desadequação linguageira. Não parece nunca um artefacto auto-sustentado, parco em símbolos, e estes "correlatos objectivos", apontando oblíqua, paradoxal ou ironicamente para uma verdade essencial, sem estes recursos inapontável. A última Adília é como os balineses; não tem arte; faz tudo o melhor que sabe.
Esta poesia indigna não tem a presença que toda a nossa poesia recente presume ter. O comentário ao Almoço do Trolha salta sobre o momento de graça que transcende a representação em presença. O mesmo valeria para toda a obra que por sua conta apostasse nessa transcendência contra a representação (cf. o sublime à Rothko). Os "comentários" de Adília acrescentam à obra que comentam e reduzem uma "ideia" exterior que nega a transformação da suficiência formal em (boa) consciência. A este movimento não escapa ainda a anti-Arte. Leia-se em Irmã Barata, Irmã Batata: "Instalação de Christo: cobrir por completo o chão da praça de Tiananmen com ketchup. Ketchup é um molho chinês e uma palavra chinesa." (Irmã Barata 20) Repare-se na natureza filológica do comentário. Pedestre e patuda, a "filologia" demove as pretensões da "metafísica" em pontas estéticas. Nenhum sentimentalismo engordado pela indignação. Recusada, a estética não chega a serviço (ao) público, nem pelo consenso sentimental, nem pela heroicização admirável do Autor self-made self.
A AMA
E AS FORMAS
Aqui está a
beleza, aqui tu consomes.
(Internacional Situacionista, 1997: 143)
A forma de Adília não é de resto o "poema", mas o "livro". No "livro" os poemas são completos; não abrem a um ponto de fuga estético que é sempre um acordo com esse público que, mesmo restrito, dispõe dos temas grandes e dos temas maiores (Kraus, 1998: 66). O "livro" – a ama e as formas – é uma "estrutura" de acolhimento em que a relação entre sujeito e "objecto" não se situa além da linguagem, e não é purificada por sentimentos transcendentais ou por formas vigiadas, equivalentes do conceito. A lógica é uma função do humor que não revoca, a forma é mistificada, a "pessoa" é datada, o sujeito cogital, que o poético restituiria, não se desprende da sensualidade, da animalidade, da infância, da experiência e do apetite (3). No "livro", onde a lógica é mergulhada na língua como "lógica da batata", (Silvestre, 1999) tornam-se elásticas as quatro formas do princípio da razão suficiente: a causa destaca-se do efeito, o fundamento da crença, a premissa da conclusão, o motivo da acção. Tudo isto, que dotaria a obra de uma afinidade com o camp, (Diogo, 1998) na medida em que aí se configurava uma História emancipada de causas e visões do mundo, e por isso visível esteticamente, a arbítrio (4), acaba finalmente (i) num deixar do sentido ao acaso, como quem se regesse pela "lógica da batata", ou como quem, em questões de sentido da vida, pelos dedos contasse ("meu menino/ seu vizinho/ pai de todos/ fura bolos/ mata piolhos", Florbela Espanca espanca 30) e (ii) nos saltos de fé: "a acção/ não é/ a vida/ a vida é/ a acção/ de graças". (Florbela Espanca espanca 20-1)
Quando o poema, porque cultura e melancolia, supõe um "eu" muito puro e alheio à convenção social, um "eu" que estaria "lá" mas fora de alcance do leigo presbita, o discurso de Adília no seu melhor mostra o "eu" como pretexto para o fecho conceptual e brinca com o "eu".
É certo que a interrupção do monólogo transcendental não se processava longe dos moldes do "moi haïssable" ("já fui bela uma vez agora sou eu", O Decote da Dama de Espadas 43), pungentemente cómico, e frequentemente apanhável em faltas de gosto ("e o chantagista publicava um postal ilustrado/ que eu escrevi a Diderot de Pondichéry", O Poeta de Pondichéry 23). Como se pode ler na primeira obra de Adília:
agora já nem
consigo
dizer nada de mim para mim
o de mim para mim acabou
não há lugar para mim
num quadro de Rubens
(Um Jogo Bastante Perigoso 23)
Um quadro de Rubens é um mundo pleno, esteticamente justificado (um "monólogo transcendental"). Enquanto forma "eu" é uma ratio estética transposta como "mundo" para o mundo que a admira: poder, egoísmo, destreza de espírito. (cf. Diogo, id.: 85) A questão é muito precisamente estética, ou seja, da especialidade e sob a autoridade social de doutores esteticistas e cabeleireiros:
não posso passar
sem a Elisabeth
porque é que a despediu senhora doutora?
que mal me fazia a Elisabeth?
eu só gosto que seja a Elisabeth
a lavar-me a cabeça
(…)
ah não haver facas que lhe cortem o
pescoço senhora doutora eu não volto
ao seu antiséptico túnel
já fui bela uma vez agora sou eu
não quero ser barulhenta e sozinha
outra vez no túnel o que fez à Elisabeth?
a Elisabeth era a princesa das raposas
porque me roubou a Elisabeth?
a Elisabeth foi-se embora
é só o que tem para me dizer senhora doutora
com uma frase dessas na cabeça
eu não quero voltar à minha vida
(O Decote da Dama de Espadas 43)
Que corpo subjaz à maior parte do consenso poético contemporâneo – à sua violência simbólica? Que corpo corresponde a essa linguagem poética? O corpo neutro, mas não obstante centrado, senhoril e com a autoridade advinda da inacção expectante de quem se apresenta como um modelo e uma mesura. É o corpo da auto-apresentação do autor, acarinhado pela "filosofia" e, sob o polido narcísico, muito redondo assaz.
Body Art?
Com os remédios
engordo 30 kg
o carteiro pergunta-me
paara quando
é o menino
nos transportes públicos
as pessoas levantam-se
para me dar o lugar
sento-me sempre
Emagreço 21 Kg
as colegas
da Faculdade de Letras
perguntam-me
se é menino
ou menina
No metro um
rapaz
e um velho
discutem
se eu estou grávida
o rapaz quer-me
dar o lugar
Detesto
o sofrimento
(Sete Rios 42-3)
A poesia parece ter voltado a ser questão de alguns discursos que são afirmados através do "eu". Esse "eu" antecederia as "afirmações", de modo que a poesia parecerá exemplificar as nossas "ideias" ou "ideais" mais elevados (e convenientemente personalizados). O "eu" na obra de Adília parece antes subsumível no modus vivendi. Se o "eu" é basicamente uma distância da "mente" em relação ao mau gosto e à inabilidade para o trágico (uma distância de "poesia"), em Adília toda a poesia acaba a aparecer como mais um discurso social, i. e., como condicionamento empírico do "eu" e da "mente" e do "gosto". É o que se pode deduzir também da transformação da criatividade incondicionada (a "melancolia" sem objectos no mundo é uma sua figuração) em cómico, jogo de palavras, dito de espírito, "boçalidade". Uma vez mais se prova que, se nem toda a gente tem acesso à "mente", a "mente" tem acesso a toda a gente.
Toda a obra de Adília se dirige contra a suficiência estética, resumível na forma "eu"; todo o cómico, todo o absurdo, toda a incongruência (e alguns traços inegavelmente "idiotas") se dirigem contra isso que na poesia, na arte e na vida é incondicional "publicidade em favor da existência". (Adorno, 1984: 435) Obras tão notáveis como O Poeta de Pondichéry e Maria Cristina Martins são os cumes de um "processo cómico feito ao cómico" e "ao humor satisfeito". (id.: ibid.) O que da obra mais ressalta é "a inanidade manifesta da pretensão da subjectividade a ser trágica" (id.: ibid.) ou mesmo, porque o que está em pauta não é Beckett mas lirismo, heroicamente elegíaca. E não é irrelevante que a transformação da subjectividade em cómico de "pessoa" tenha como seu contexto a arte e a estética invadidas por psicologias da "vulgaridade". Que dizer a isto, muito já sem o álibi ‘Adília Lopes’: "Tenho uma doença mental, tenho uma doença de pele. A pele é exterior, o cérebro é interior. Tenho um eczema, tenho uma psicose. Às vezes penso que a pele é interior e que os meus miolos estão à mostra como a mioleira de uma vaca no balcão do talho". (Irmã Barata, Irmã Batata 23)?
FIGURAS
DA EXPERIÊNCIA
O mundo é uma
casa de passe
com as paredes salpicadas de framboesa
O mundo é um matadouro disfarçado
com as paredes forradas de cetim
(Adília Lopes, Sete rios entre campos 44)
As inexactidões da "pessoa" destoam da chamada "perfeição" para que tende o mundo. Assim como o Sr. de La Palice será vítima da "entropia", há quem seja vítima de Beethoven (Para Elisa!), ou de uma observação de Pessoa sobre Milton. No caso do Para Elisa, uns dias a peça era tocada pior e outros menos bem do que quando se merecera os cumprimentos de uma pessoa que se estimava – depois do cumprimento, o intérprete nunca acertava com aquele seu "dia triunfal" (O Decote da Dama de Espadas 52-3). No caso da observação, também a vida escapa à excelência, impondo a "pessoa" à autora, que acaba a "dar erros de ortografia" e a "esfregar o chão numa casa de passe", onde "os clientes e as prostitutas" são "mais afáveis do que Milton" (Idem 54-5). Retoma-se o Poeta de Pondichéry (1986), vítima como "pessoa" de Diderot; e antecipa-se o bordel de Maria Cristina Martins (1992), talvez com um estado anterior no armazém de A Pão e Água de Colónia (1987) que não restitui a avó e a mãe originais. A última casa antes do nada parece uma forma cómica de salvar o optimismo quanto ao mundo concebido como melhor mundo possível. As vantagens de se viver no melhor mundo possível decorrem de uma substituição dos "originais" por falsos ou derivados": a casa pelo armazém, mãe e avó por aproximações, a nursery pelo bordel, Milton por prostitutas e fregueses, o Para Elisa por chocolate quente e comprimidos para dormir, um vestido infeliz por uns botões, uns brincos por uns anéis. Nestes dois casos, e o procedimento é muito recorrente na obra de Adília, as "pessoas" que se regozijam com o mundo enunciam uma doxa anterior ao presente estado do mundo. Invoca-se a Providência, sabido que é que escreve Deus direito por linhas tortas:
as duas meninas
acederam de boa vontade
ficou cada qual com seu anel
e não se cansaram de espantar
com o destino que tudo encadeia e concerta
se tivéssemos as orelhas furadas
só podíamos usar o par de brincos à vez.
(O Decote da Dama de Espadas 69)
para chegar a
estes botões
foi preciso comprar aquele vestido infeliz
não há acasos
no encontro e desencontro
das pessoas com os vestidos
(Idem, 69)
O "romance" dos brincos é submetido a "bifurcação sucessiva" (divergência e aumento de incerteza), finda a qual fica a "(outra) pessoa":
Divido a minha
vida
em duas partes
uma em que tinha orelhas
e não tinha brincos
uma em que já não tinha orelhas
e toda a gente me dava brincos
para me consolar de duas coisas
de não ter orelhas
e de não ter tido brincos
quando tinha orelhas
de todos nós assim era só eu
porque orelhas tinha duas
(A Pão e Água de Colónia, eu sublinho)
Na forma exemplar de um "desastre de Sofia", em todos os casos gera-se uma figura da experiência que, no momento em que surge, surge para anteceder toda a "juventude moral". A meu ver, o qui pro quo tem as ocorrências mais notáveis em O Decote da Dama de Espadas, naquele "romance" em que mãe e filha encontram dois cães colados um ao outro, "pardos e rafeiros", no último poema de Um Jogo Bastante Perigoso, e num aforismo de Irmã Barata, Irmã Batata. Eis os exemplos de um conhecimento que, em modalidades várias, nega a inocência, distorce os factos, dispensa os factos, afirma a incerteza no aparentemente mais certo, e dispensa a existência no mundo. O mundo é experiência, mesmo quando não se experimentou. Ser "pessoa" é ser-se antecedido pelo mundo. A "pessoa" é uma função da "entropia", na medida em que ser-se "pessoa" é ser-se expelido da Presença para a incerteza. A experiência é aquele pecado original que justamente nega a existência de uma Origem. Ser-se "pessoa" é, enfim, ver desmentido o monólogo transcendental pelo mundo provável. Eis os textos:
A menina,
aflita, gritou à mãe:
– O outro vai matá-lo!
Mas a mãe, embaraçada, calou-a:
– Não. É um cão e uma cadela. Não olhes para lá.
Então a menina tapou os ouvidos.
(O Decote 26)
O que me custou
foi tudo ter acabado
como tinha começado
como se nada se tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido
(Um Jogo Bastante Perigoso 59)
Roubei uma vez um livro de uma biblioteca pequeníssima. Foi a tradução inglesa do Frei Luís de Sousa feita por Edgar Prestage no princípio do século. Fui ver se o "Ninguém!" tinha sido traduzido por "Nobody!" ou por "No one!". Foi traduzido por "No one". (Irmã Barata, Irmã Batata 7)
JUSTIÇA
POÉTICA
O meu sentido de humor é o meu sentido de amor sem ironia.
(Adília Lopes, "A Minha Filha" 81)
À conta do seu desprendimento "cómico", a linguagem de O Poeta de Pondichéry, de Maria Cristina Martins e de A Continuação do Fim do Mundo adquire a complexidade e a densidade da vida própria. Torna-se não apenas apropriada a situações imediatas, mas também ao projecto abrangente que, sendo "romanesco" ou mesmo "dramático", tem também a ver com o "mundo". As "pessoas" seguem um prestígio (Diderot, M. le Prince, o Amor) que as conduz à "tuerie", com a obstinação de uma doxa não muito longe da etiqueta e das boas maneiras: "O lar da terceira idade/ que se seguiu/ às doenças/ que se seguiram/ aos maus empregos/ que se seguiram/ ao desemprego/ que se seguiu/ ao suicídio/ que se seguiu à sida/ que se seguiu/ à droga/ que se seguiu/ à violação/ não aflige Túlio/ nem Maria Andrade/ que começaram/ por ser violados/ mas que em todo o lugar/ têm espaço para sonhar/ mesmo no não lugar/dentro da cabeça/ e do cu/ que a violação foi/ nos consultórios/ do Dr. Figueiredo Nunes/ e da Dra. Malheiros/ a posteriori/ com a cama de casal/ com o pinheiro bravo/ quase entrando/ pela janela/ de permeio". (A Continuação 90)
A imagem instantânea e estilisticamente não tratada reaparece, modificada em si ou pelo contexto – caso, na citação, do pinheiro bravo que, além de presença fálica, fora árvore de Natal –, e em geral impondo a possibilidade de um novo começo da "história". Amplifica a relação entre os eventos e os personagens, desprendendo-os de uma estrita causalidade, e concedendo-lhes uma significação mais abstracta. As imagens funcionam por toda a obra independentemente da intriga – por um efeito de construção, em Maria Cristina Martins a história não cessa de começar –, solicitando ao leitor respostas motivadas pela situação romanesca ou dramática mas não de todo a ela acorrentadas. Enfim, a diferença entre o conhecimento da personagem e o conhecimento do leitor não é do tipo habitual na ironia. O que o leitor sabe não é a verdade avessa do que sabe a personagem. Não é difícil perceber que o contexto onde se move a personagem é contínuo com ou constituído pelo saber do leitor; mas o ethos da personagem é imposssível naquele contexto que é ao leitor tão complacente. A personagem move-se como um clown trágico num ambiente que lhe é hostil. Reage-lhe com uma obstinação "pessoal" (por pessoal, cómica), como se o desamparo o não fosse. Constantemente violada (e também pelo leitor), a personagem vive em todo o lugar: casa de fazendas, bordel, prisão onde escreve com as unhas – indiferentemente dentro "da cabeça/ e do cu".
Lembremos o poema de A Pão e Água de Colónia:
Divido a minha
vida
em duas partes
uma em que tinha orelhas
e não tinha brincos
uma em que já não tinha orelhas
e toda a gente me dava brincos
para me consolar de duas coisas
de não ter orelhas
e de não ter tido brincos
quando tinha orelhas
de todos nós assim era só eu
porque orelhas tinha duas
(A Pão e Água de Colónia, eu sublinho)
A "bifurcação sucessiva" penso eu que seja utilizada como uma figura do afastamento irreversível da fonte e da origem, tal que não há conservação de "energia", estabilidade da "figura", pureza do sentido ou da identidade que se suporiam dadas à partida, e adequação do ser ao mundo. (O equívoco a que se chega é desoladoramente banal: tinha duas [orelhas], expressão em que coincidem gramaticalmente a definição "ontológica" – é próprio do ser humano ter duas orelhas – e a definição temporal: tive duas orelhas). O desacerto no tempo entre orelhas e brincos traduz-se numa substituição, uma vez mais aproximativa, com que deve quem fala "consolar-se": em vez das orelhas, os brincos. A esta quebra de necessidade na suposta perfeição do mundo – que é por si só "experiência" e por si só antecede e impossibilita uma qualquer nudez edénica, seja ela estética ou moral – corresponde a figura da Babel a que se opõem o "Pentecostes" e a "linguística histórica". E, já agora, a "lógica da batata", nunca longe do humor.
O humor que adopta uma perspectiva contrária ao "humano" – humano definido por "Kant", por "Comte" e pelas normalizadas gramáticas de todas as linguagens – assume por isso a superfície abstracta das coisas, então manejáveis por uma aritmética simples ou por um método e noções claras. O "cálculo" que rodeia a superfície das vidas para colar o plano delas numa página sem profundidade arrazoou contudo itens de enciclopédia chinesa. Exercendo-se sobre contextos de menos conveniência, trata-se de um contar pelos dedos que exibe a desadequação da contagem ao modus vivendi. O que os dedos contam é o que as "noções" julgam infinitamente fútil; e contar pelos dedos deixa a vida no seu andar para cá e para lá. A lógica não é o árbitro do diverso. Não há um árbitro do diverso. Na forma da lógica, o conceito torna-se um clown a cuja muda e inexpressiva causticidade – proveniente da sua mobilidade e da sua indiferença ao contexto – nenhum jurídico nem nenhum costume pode opor reserva e seriedade. A indiferença da forma ao conteúdo torna-se, como quem diz, justiça poética sobre os encadeados mecânicos do mundo.
PSICOLOGIA
E REPRESENTAÇÃO DE FAVOR
Considerar a
sobrevivência do erro como futilidade, e transformar a poesia em filosofia no
bordel.
(Nathan McWilliams)
Representações segundas em Adília (pastiches, paródias, citações com autoridade, sem autoridade e desautorizadas, redução do ícone ao grafito, tradução da obra de referência num poema que se fica pela epígrafe, o poema como comentário "filológico", etc.) não envolvem nostalgia. A nostalgia da arte como recurso "meta-psicológico" de onde se extrai uma arte da nostalgia não acontece em Adília. Este nome de "pessoa" e a poesia da "pessoa" evitam a melancolia e nela a "Ideia orgânica" que entre nós se seguiu à composição racional. Põem em causa aquela subjectividade excepcional e não empírica que funciona como uma Causa Transcendental, em outras artes tão questionada. Nem centro de uma intimidade onde se originam formas únicas, nem o "eu" distinto, produzido pela elegia que discretamente o chora.
O estado segundo das representações, invadidas pelo pormenor impertinente, contraria fortemente a lógica da representação enquanto representação da lógica. A poesia não é aqui a encenação, produzida sobre o "eu" da apropositação, da proximidade e da Voz, dos pares conceptuais (forma-matéria, sujeito-objecto…) que colocam ao dispor do monólogo "uma mecânica conceptual, à qual nada pode resistir." (Heidegger, 1991: 20)
A LÓGICA
DA BATATA
É extraordinária
a persistência do reconhecimento impensado da poesia como estética –- forma, bom
gestalt e bela forma –, muito à margem das transformações ocorridas em
outras artes. No seu reduto estético, as mais das vezes é transcendência e
graça; tanto a construção verbal como a oração elegíaca rodeiam uma Ideia, um
Logos. São o Som do Sentido, his master’s voice.
(Marta Pulgar)
Em A Pão e Água de Colónia, livro que abre com o détournement de Chomsky (da sua gramática lógica) e encerra com uma peça de lógica que "bifurca" a diferença entre uma arma verdadeira e uma arma feita de sabão (O Inimigo Público nº 1 de Woody Allen?), o "cogital" e o seu "conceito" são desfeitos e refeitos num jogo de palavras. Em vez do "ego" que seria o fecho de abóbada do conceito, o conceito como um "brinquedo", uma paranomásia in-significativa (legos/egos). Como se diz, sete rios e entre campos mais tarde:
A classificação
Colon
foi inventada por Ranganathan
nos anos 20
ao ver um mecano
nos armazéns Selfridge
em Londres
assim um conceito
é um brinquedo
decomponível em peças legos
personalidade matéria energia espaço e tempo
(não consta que Ranganathan
tivesse problemas de egos)
(Sete rios entre campos 62) (5)
Como se sabe, problemas de egos estão no centro das poéticas modernistas, a título de piedade "orgânica". Muito no início desta obra, a correlação livro/infância era uma função da mistura – da "entropia" – e a "infância" acabava atribuída à "outra pessoa", enquanto ausência de equivalente geral na forma "eu". O "eu" (e o "tu") tinham afinal a forma impura "outra pessoa", que só o "livro" poderia acolher na sua nursery, aliás não muito longe de uma recorrente "casa de passe":
depois ouvimos
falar na entropia
aprendemos que não se separa de graça
o doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
e os livros são como as infâncias
que são como as pombinhas da Catrina
uma é minha
outra é tua
outra é doutra pessoa.
(O Decote da Dama de Espadas, 12)
A "entropia" é, de resto, uma das figuras da obra de Adília. Dir-se-ia que, num primeiro momento, a "entropia" transforma o "eu" em "(outra) pessoa", ou o vitimiza em "bifurcação sucessiva" – no caso de A Pão e Água de Colónia, em Sr. de la Palice. A fatuidade do ego (e dos egos) é derrotada pela inanidade máxima do conceito, assim conduzido à "verdade":
O Sr. de la
Palice foi uma vítima
da entropia
por isso mesmo
quanto a mim
as suas máximas são as mais radicais.
(A Pão e Água de Colónia)
A Adília cristã virá a afirmar juntamente com a entropia a neg-entropia, adequadamente contextualizada com a redefinição do ego cogital em termos de desejo:
A segunda lei da
Termodinâmica
a lei leteia
a seta do tempo
a serpente do Paraíso
a entropia
existe
mas também
o Novo Testamento
e as sete artes
existem
para a contrariar
(desejo, logo sou
e eu não acabo
de ser)
(Florebela Espanca espanca 10, meu sublinhado)
Mais afirmativamente:
Estou verde como o mar ao meio-dia. Estou contente. O mundo não acaba. A entropia não aumenta sempre porque o mundo não é um sistema isolado. Acho que do outro lado está Deus. O mundo e Deus comunicam. (Irmã Barata, Irmã Batata 19)
Impuro, sagrado e vulgar como a vida, o "eu" é afirmação e negação:
Sou e estou. Eu
sou eu e a minha circunstância como disse Julio Iglesias. Eu não sou eu. Eu sou
aquela que não sou. Não, que disparate, eu sou eu. Já morremos todos e já
ressuscitámos todos. Agora há que viver a vida.
O Diabo é aquele que diz "Eu sou aquele que não sou". Sou eu às vezes.(Irmã
Barata 22)
Na primeira Adília, por um lado, a clausura conceptual era transformada em inanidade conceptual, adstrita a duas figuras da "entropia" – "pessoa" e opinião (Sr. de La Palice, "quanto a mim") – que não consentem dizer "eu" sem desse modo corroborarem a mesma "entropia"; e, por outro lado, em "mistura", que não consentindo a pureza e obrigando à "infância" e ao "livro", não podia resgatar-se de graça. Na segunda Adília, por obra das "sete artes" e da graça, o "eu", que é desejo, rompe a clausura conceptual. Mas esse "eu" é agora marcado pelo género sexual. O "eu" que não é pretexto conceituoso é feminino; Adão é a figura narcísica do conceito, o sujeito cogital que diz não a Eva, e não sem analogia com o diabo: "os homens/ que escreveram/ o Génesis/ não pensaram/ que Adão/ em vez de saudar/ Eva/ com um grito de júbilo/ a mandasse embora/ com sete pedras na mão" (Clube da Poetisa Morta 24); "Adão também se reconheceu no espelho. Mas Adão era Narciso que sabia que era Narciso. Achou imediatamente que no Paraíso fazia falta a Fundação Adão." (Irmã Barata, Irmã Batata 18)
Que a lógica seja inerentemente "lógica da batata" – e por isso a batata, emparelhada com a barata, é admitida como irmã na nursery onde se agita um fantástico bestiário –, já se nota em Um Jogo Bastante Perigoso. A definição do possível e do impossível com o reversível e com o irreversível – cortar as unhas, polir as unhas –, a contagem final, em que o zero como figura última da inferência é semantizado em surpresa e afecto – 3 2 1 0/ 3 2 1 Oh! – (Jogo 17, 11), continua-se nos encontrões da lógica com a batata em A Pão e Água de Colónia, que repete a empeçada união do absurdo com o inventário, faz esbarrar a correspondência biunívoca com a necessidade (uma "entropia") (cf. Silvestre, 1999: 51-2), e sobretudo adopta a figura da "bifurcação sucessiva", que utiliza a legibilidade imediata das formas agramaticais contra o sentido conceptual (para a sete chaves/se fecharem no quarto/ (…)/ aí a sete chaves/ elas fizeram-se comer uma à outra/ bombons"), brindando-nos ainda com um sentido da incongruência não remível nem pelo "eu" nem pelo "conceito". Não se regressa a uma origem anterior à "disjunção" que compromete as identidades, perdendo irremissivelmente o Uno no múltiplo, o Sentido em factualidade e contingência: o "buraco da fechadura/ gótica do motel", "as empregadas do supermercado/ para esconder o sangue da cliente/ em vez da serradura/ usaram açúcar"… Parece ser possível e conveniente substituir o rigor pelo à peu près:
Minha avó e
minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjarmos complicações.
(eu sublinho)
A fábula tem inegavelmente um sabor kafkiano, e logo pelo pequeno funcionário cumpridor que se obstina numa espécie de greve de zelo que presume o sentido no sem-sentido e por isso mesmo o compromete. Nas costas do conceito que manda contar até Um, aparece uma avó como figura do excesso – como nos diz o texto, Mãe há só uma (e quando é uma, não é a Mãe)–, e aparece a empresa que se torna a casa burocrático-metafísica do sujeito, cumprindo aproximativamente os prazos de garantia do Um.
A ideia geral parece ser que o mundo transborda de "observáveis". Em A Pão e Água de Colónia, o que excede é da ordem do pormenor que, quanto mais mínimo e incongruente, mais contesta no mundo a noção de todo. Há uma exactidão no pormenor que é exactamente sem sentido e sem conceito (mas não inefável). Veja-se a epígrafe do Poeta de Pondichéry:
Porque é que o mau poeta deve ir para Pondichéry e não para outro lugar? Porque é que os seus pais são joalheiros? Porque é que juntou 100 000 francos? E porque é que passou doze anos em Pondichéry? Não sei explicar. O que me atrai é precisamente isto: Pondichéry, pais joalheiros, 100 000 francos, doze anos. (O Poeta de Pondichéry 11)
Veja-se também as "Microbiografias", e esta por todas:
Um quadro de
Ensor
que tinha sido roubado
estava enterrado a 30 cm de profundidade
na praia belga de Mariakerke.
O que teríamos no mundo seria da ordem de um excesso nada enfático: efeito sem causa, crença sem fundamento, conclusão sem premissa, acção sem motivo. Na melhor Adília, disjunção e incerteza regem o sentido da vida, sem restrições à presteza enunciadora. Em "La Boîte à Tokyo", a demanda conclui-se com a integração do título no poema pela rima, e não pela razão. O que o título promete salda-se numa decepção sage do sentido:
LA BOITE A TOKYO
Aquele que a
procura
ainda não voltou
ou porque ainda a procura
ou porque já a encontrou.
Esta caixa pode ser a que (re)aparece em Irmã Barata, Irmã Batata. Aqui, a simplificação pela "lógica" evidencia a ausência de certeza (e por isso, em certo sentido, torna evidente a entropia, na medida em que esta seja uma incerteza que não decresce):
Há uma caixa em Paris que tem uma pulga dentro. A caixa é rectangular e está dividida exactamente ao meio por uma divisória. Pode-se separar a caixa nas duas metades sem abrir a caixa. A caixa é opaca. A pulga ou está numa metade da caixa ou está na outra. Separa-se a caixa nas duas metades. Leva-se uma metade para Tóquio, deixa-se a outra em Paris. Agora a pulga ou está em Paris ou está em Tóquio. Há 50% de probabilidades de a pulga estar em Paris e há 50% de probabilidades de a pulga estar em Tóquio até se abrir uma das metades da caixa. Mas, quando se abre uma das metades da caixa, não há a certeza de a pulga estar em Paris ou em Tóquio. (Irmã 17-8) (6)
Para a segunda Adília, a "lógica da batata" colocaria, porém, o mundo na continuidade neg-entrópica com Deus. Continuando a permitir o começo abrupto que significa a primazia da acção ou do evento sobre a explicação ("A minha tia Graça atirou-se de um 6º andar abaixo. Morreu.", Irmã Barata 7), antes de Deus, permitira privilegiar a ausência de conclusão ou a conclusão fraca que por norma enfraquece a "moral": "a Ana Bela é que já deve ter descoberto/ que os impermeáveis Parabellum/ não fazem a felicidade de toda a gente" (Um Jogo 21, eu sublinho). Antes de Deus, mas nunca muito longe dele, a "lógica da batata" transformaria num "tabique" aquilo que "separa o horror/ do resto" (O Peixe na Água 18); e, expondo à vida, sublinharia a "ouro" a fractura do "espelho". Aí, crer depende de viver; vem depois de uma arte de viver em desastre e sem estro:
Reconciliada com as memórias
"C’o largo
Mar de tua Graça imensa?"
D. Francisco Manuel de Melo
"Antes da confissão"
Eu no espelho
colada com cola
mais bela
do que dantes
como o prato Zen
que tem as fracturas
sublinhadas
com ouro
obra da fortuna
má e boa
obra da falta de afecto
e do afecto
Narciso e anti-Narciso
viver para crer
(O Peixe 27)
Ou: "A vida, Augusto Comte, é um mar de miosótis/ a vida é andar para cá e para lá". (Clube da Poetisa 11) Ou ainda: "Nada na vida dá a garantia de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o outro". (Irmã Barata 14)
Não se reconhece no que a vida não garante os termos por que entre nós passou a glorificação estética do poema: "limpo nu liso inteiro"? Não é essa definição repraticada pela ausência de vírgulas, a mimar a superação do enunciado (do lego) pela enunciação transcendente (do ego)?
A reconciliação do pensamento com a vida (mar de miosótis) começa pelo reconhecimento da vida como errância sem sentido, deambulação alheia ao conceito directivo e ao ego "director de consciência" (andar para cá e para lá). Faz-se também pela aceitação do "eu" como "espelho" fracturado (obra da fortuna má e boa). Num mundo agora reconhecido barroco, não há lugar para a pureza conceitual e para imagens de favor (7). A vida é um ter a ver do cu com as cuecas:
A vida é barroca
coisa entre moléculas
é claro que o cu
tem a ver com as cuecas
("Nota da Autora" a O Regresso de Chamilly)
Um espelho limpo liso nu inteiro é o que separa Eva e Adão: "Deus acabou com Adão, com Eva e com a treva. Partiu o espelho ao meio e pôs as duas metades uma em frente da outra, paralelas uma à outra. E assim deixou o Paraíso num Inferno." (Irmã Barata 18)
Figura essencial da resistência ao sentido e à antropomorfização do sentido como "eu" é a "irmã barata". A barata integra o livro-nursery enquanto irmã, justamente porque não é um "eu". O que a barata é, é o que da barata se ignora. Escapa-se para um à parte todo ele non sense: "(era uma vez uma barata que fazia operações: tirava da barriga das pessoas tostões)" (Irmã Barata 16). Foi resgatada, note-se, da Autobiografia Sumária de Adília Lopes, que consistia nestes três versos:
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
(A Pão e Água de Colónia)
Na autobiografia sumária de Adília Lopes 2, escreve-se:
Não deixo a gata do rés-do-chão brincar com as minhas baratas porque acho que as minhas baratas não gostam de brincar com ela. (Irmã Barata 12)
Adiante, acrescenta-se a chegada de Adília à maturidade (e é a autobiografia sumária de Adília Lopes 3):
Os meus gatos já deixaram há muito tempo de brincar com as minhas baratas. A Ofélia tem 12 anos, seis meses e sete dias. O Guizos, segundo o Dr. Morais, tem 9 anos. Entretanto gatos morreram, gatos desapareceram. Estou a escrever isto no computador e não sei do Guizos há três dias. (Irmã Barata 21)
A barata recomeçaria o Éden, na ausência de bem e mal:
Depois do holocausto, a barata Eva e a barata Adão comerão da maçã. Mas isso não será pecado. E uma humanidade de baratas viverá feliz para sempre num Paraíso sujo de restos de pessoas que não será sujo para ninguém. (Irmã 16)
POP
E CONCEITO
A primeira
Adília, a das representações "pessoalizadas", oferecia ao leitor o bem-estar no
infortúnio; a segunda Adília cuida muito pouco daquele bem-estar do leitor onde
se espelha o bem-ser do Autor.
(Jean Dupont)
Ao circunscrever-se a especificidade desta obra, como pode convocar-se ao mesmo tempo a pop e a arte conceptual, (cf. Silvestre, id.) a agilidade eufórica de Pierrot le Fou, não embaraçada pela moderna floresta de signos, e a filologia pedestre? O maior problema parece residir na aproximação entre representações que afectam a nenhuma distância (o nenhum desdém conceptual) para com a doxa, as imagens, o Kitsch, a indústria, as artes ou a cultura low brow e a distância conceptual que tanto age na rasura da felicidade retiniana por proposições como na crítica das imagens (já protótipos sociais ou institucionais) pela letra redonda dos "comentários". Na verdade, pop e conceptual convizinham em Adília por um processo de demoção das modulações estéticas implícitas e explícitas dos "objectos" de Arte (poemas ou outros) e pela eliminação das impressões digitais do estilo. O esburgar de poemas e práticas alheias, como se o que se lhes retira fosse a imagem (presença, graça e qualidade) vai na última Adília até à desmaterialização conceptual do poema. Pese a Kosuth, não se confunda, a este pretexto, "conceito" com Ideia; nem se afaste este "conceitualismo" da "filologia" e da máxima do Sr. de La Palice, entre o boçal e a maximização entrópica, enquanto tal reproduzida em acto pela sua dependência da opinião e da "pessoa" ("J. Pinto Peixoto"):
Segundo J. Pinto
Peixoto
o Sr. de La Palice foi uma vítima
da entropia
(A Pão e Água de Colónia)
A "lógica da batata" afaga, portanto, e desde sempre, a entropia.
A entropia fala-nos de obstáculos ao autor criador, ao seu "eu" e à sua criação (8): "pessoa" empírica com nome de Hipólito ou de J. P. Peixoto, doxa, axiomas "radicais", mistura impurificável de gostos e noções e sua reequilibração pelo "zero", desvios do todo para o pormenor irremível, substituição "ilógica" do puro pelo à peu près, e "lógica" tolhida pela excepção vulgar ou por microbiografias como esta:
What?
Sidney Rome (9)
preocupa-se mais
em salvar o diário
do que as cuecas.
(Sete rios entre campos 29)
Correlativamente, a poesia de Adília assume-se como uma muito curiosa inquirição filológica, de que faz parte a "linguística histórica".
POESIA
E FILOLOGIA
Definirá a
poesia de Adília alguma negatividade? Talvez, mas mais institucional que
"ontológica". Possivelmente, poesia para Adília é desadjectivação.
Possivelmente, a desadjectivação rima com um alhear-se da qualidade.
(Nathan McWilliams)
Num aparente propósito de desbabelização, a última Adília – "Babel foi resgatada/ pelo Pentecostes/ e pela linguística histórica" (O Peixe na Água 38) – recorre à mais humilde das ciências humanas, e a mais "científica", não obstante: a filologia. É obviamente também uma filologia de recurso, que estabelece afinidades com a proposição, ela mesma atarantada pelo rigor, ou com a mais estranha sabedoria das nações, não raro emendada ou simplesmente mimada: o cu tem a ver com as cuecas; para escrever/ é preciso/ dinheiro; quando a vida/ é madrasta/ a arte/ não basta; uma mosca/ é ascese/ sete não/ é legião; não há/ siso/ sem riso; quanto a comentários/ a poesia e a menarca/ são parecidas, etc., etc., etc.
A linguística é unilateral. Enunciados não são mais do que enunciados, frases não são mais do que frases, e palavras não são mais do que palavras. A infatigável unilateralidade que não interpõe diferença – ou seja: arte e transcendência – entre a poesia e o "facto" acerta o passo não apenas com a redução do poema a enunciados mas ainda com a auto-deprecação. A mesma rima rica é um índice mais de pobreza. Veja-se nesta falta de gosto a inabilidade para o trágico, que consegue colocar a proposição bronca entre os melhores conseguimentos no domínio de um topos responsável por muitas e muitas peças de arte e literatura:
a minha cara
é uma caraça
que o tempo-traça
traça
(Sete rios entre campos 81)
Extraordinário logo ou grafito assente sobre duas figuras etimológicas (cara/caraça; tempo-traça/ traça), uma das quais é uma metáfora e uma palavra-mala (ou maleta, em bom rigor). O som (rima emparelhada em b, c e d, aliteração e paranomásia) não faria aqui, parece-me, as alegrias de um Jakobson; é um palhaço pobre que comete indignidades sobre o Sentido, palhaço rico. (O som é ainda responsável por um final de lengalenga: "o tempo traça traça".)
A "linguística histórica" lida inegavelmente com a entropia que afecta a língua. A sua compaginação com o Pentecostes indica desde logo os limites muito humanos e muito empíricos desta forma de saber. Quando restitua a origem de usos que face a esta aparecem como "erros", não pode eliminar os resultados: eles acrescentam-se a todos os outros que configuram o nosso estado de "confusão". Os usos são como restos da Etimologia – do Etymos Logos –, que escaparam a um qualquer Sentido Primordial. Todavia, se não são informação pura ou puro sentido cogital, se as suas lacunas não são remíveis pela Lógica ou pela Poesia Especial, se não fazem nada de semelhante a um todo estruturado, são em contrapartida muito seus o "anacronismo", o "surrealismo", o ter a ver do cu com as cuecas, e a funcionalidade de peças lego. São eminentemente aproveitáveis e sentido imanente. Veja-se a tradução errada do "liber" por livro, num verso de Virgílio:
Seca-se o livro
no alto do ulmeiro
o anacronismo
produziu o surrealismo
mas não é só
uma má tradução
(…)
acham que um verso
é pouco?
quem não o aproveita
é mouco
(Sete rios 71)
Aproveitar um verso é a expressão mais pertinente. A própria Adília não apenas aproveita um verso; ir-nos-á dizendo também que dessas coisas chamadas poemas não se aproveita mais do que um verso; que o poema é aquilo de que se aproveita um verso. Ela reduz o poema, e isso nota-se muito bem na obra dos outros, a algo como étimos que são agora indiscerníveis do resíduo.
No grande empreendimento de desadjectivação de Adília (sobretudo, da última) podem detectar-se dois modelos, frequentemente interconexos: o da redução do ícone ao logo e o da microbiografia.
No primeiro caso, aproveitar-se-ia da forma ‘resumo’ a lição da evidência e da necessidade a que se chega por um processo de desbaste. As mesmas necessidade e evidência dotam o resultado de uma imagem de irreversibilidade. Configuram um resto, não muito longe do dejecto.
No caso da microbiografia, o resultado é uma configuração do aleatório produzido por um mundo onde não há causa, motivo, crença ou premissa que possam justificar esse resultado. Uma "sucessão estocástica" produziu uma regularidade sem necessidade interna nem externa, que denota não o Autor ou o génio, não a criação ou o métier, mas a "pessoa" antecedida pela experiência e nunca purificável num Autor, a irracionalidade sem profundidade estética, e a "mania" incurável ou irreversível.
Os dois casos revelam muita afeição pelo banal. O banal desejar-se-ia que fosse o ponto de chegada de processos irreversíveis. Tenha-se presente os poemas exemplares. Em rigor incomentáveis, sem pernas para andar, nem asas para voar (esta poesia é das mais materialistas que conheço e não sofre do complexo de Ícaro), os poemas resultam de movimentos de acaso que viriam já na esteira de um processo irreversível de dissipação de energia e sentido, integrando mais e mais a desordem do banal – ou resultariam de um assalto deliberado aos produtos do sistema ordenado das artes que neles revelam a banalidade constitutiva.
Se considerarmos que um resumo da "Pont Mirabeau" não é nada de adventício, pertencendo antes, como querem van Dijk e outros gramáticos textuais, à estrutura profunda de onde o texto se gera, o poema de Apollinaire é nuclearmente o resumo que dele nos dá Adília; se considerarmos o leitor comum, quase sempre sem uma memória de Aleph, conviremos que na sua retentiva o poema vive como informação "degradada", banalidade muito igual à da tradução de Adília, e que é todavia o seu caroço duro: "os dias vão-se/ eu não". Deste modo, o texto com suas modulações e implícitos artísticos revela uma absoluta descontinuidade com o poema que existe por esse núcleo que é também o resto e o lixo quotidiano que a entropia nos dá hoje. Em suma, a passagem (o regresso, sustenta Adília) ao muito provável mundo onde em vez de Milton se tem a casa de passe, em vez do poema o seu logo, em vez da transfiguração o banal, funciona como uma crítica doméstica de todo o jogo estético, na medida em que este não deixa de fazer supor a quem o joga o melhor dos mundos possível: um mundo ilusório de continuidade e reversibilidade, as quais Adília reservará a Cristo e a Deus. (Há obviamente um elemento de jogo estético nesta suposição segundo a qual, entrando no universo da "bifurcação sucessiva", da banalidade, do lixo e da esfera doméstica, um poema – um poema de arte – se perderia para sempre do seu ser redondo original.)
Existe um processo-Adília. O processo-Adília é o tempo ou a "seta leteia" que produz resíduos, logos e étimos, e a leitura filológica treinada para aproveitar desperdícios.
As microbiografias – uma das formas caracteristicamente adilianas, e em geral afectadas à citação sem autoridade – dão muitas vezes conta da obstinação da "pessoa", definida pelo que faz de forma mais ou menos maníaca e rigorosamente inútil. Eis duas numa só:
Dois casos citados por Christian Lacroix
Uma freira
passou a vida
a passajar
tom sobre tom
o mesmo avental
azul escuro
Um funcionário público
coleccionou
a vida inteira
a publicidade
que lhe metiam
na caixa do correio.
(Sete rios 63)
Estas peças que colocam a "microbiografia" nas imediações do "humor em quotidiano negro" (Helder, 1979: 94 e ss) mostram o que sem elas dificilmente transpareceria nas restantes: a resposta ao Sentido por uma greve de zelo "metafísica", a interrupção associal da biografia, efeitos de assinatura que suspendem o império da "terceira pessoa do pacto social" no próprio humor que a esta consente. (id.: 13)
No coleccionismo do funcionário, não muito longe da definição de funcionário, a vida privada não se apoia na dignidade do Sentido. O trabalho da freira é trabalho negativo. Por uma vez, o original (o avental) é indiscernível – em rigor, é coberto – pelo aproximativo (o passajado). Por um milagre de "filologia", o entrópico é o original. Na microbiografia, no logo e também na bifurcação, a "pessoa" antecedida pela experiência que a desloca na ordem dos actos simbólicos comete algo como um crime: "usa o contrário do nome". (id: 87) Este avesso será a obstinação e a invulnerabilidade que impossivelmente acompanham aqueles deslocamentos (da "cabeça" ao "cu") em estilo de quotidiano negro, de humor sem a superioridade complacente da ironia, de tragédia sem a habilitação para o trágico.
Estes dois alquimistas (que eu proponho equivalentes dos "mongolóides" de que Adília diz gostar) são o poeta, que não é portanto o Ego Transcendental mas a própria "pessoa" como "desperdício pessoal". Aquele que no Sistema Grande dos Discursos se identifica ao déchet irrelevante, irrelevável, insimbolizável, santo, santhomem-sintoma, objecto pequeno a. (cf. Aubert, 1987, Lacan, 1994)
Estes lugares de Adília escapam à nostalgia presente noutros lugares, e, antes de mais, no de Adão-e-Eva ou cadela-e-cão. O Par parece rebelar-se em nome do Um não somente contra o ser antecedido pela experiência mas contra a bifurcação e o equívoco por onde o arquétipo se dissipa em histórias e sentidos.
E VEREIS
OS CÉUS ABRIR-SE
Na segunda fase
sobretudo, esta poesia é como música que fosse como mobília (John Cage).
(Kathleen Gómez)
Há na obra de Adília um regresso contínuo a Adão e Eva, continuamente frustrado. O Par distrai-se e trai-se por histórias, a não ser que a história seja de baratas ou de fadas. Neste caso, o Par multiplica-se como Éden, tomando a gramática à letra: "a princesa e o chinês casaram-se e tiveram muitos filhos e muitas filhas, muitos animais e muitas plantas." (A Bela Acordada 17) Mas, em geral, o que acontece é deste tipo: "O homem e a mulher/ deixarão pai e mãe/ para serem/ uma só carne/ mas por causa/ do assado queimado/ descompõem-se/ cospem um no outro". (O Regresso de Chamilly 4) O falso começo do Regresso de Chamilly é mesmo uma paródia sacrílega da criação da mulher. Chamilly encontra Mariana a dormir debaixo de uma alfarrobeira e
arranca-lhe uma
costela
e faz com ela
uma flauta
e do crânio de Mariana
faz uma cabaça
com que bebe água
do poço
que há no meio
do claustro
Chamilly transforma-se
num sapo
(O Regresso 6)
O par acabado de reunir-se não é apenas separado pelo narcisismo de Adão. É sobretudo separado por histórias. Torna-se histórias e é parasitado por histórias, como se a relação se achasse já na origem socializada. Uma vez mais, toda a "juventude moral" é antecedida pela "experiência" e pelo equívoco. Não só "Mariana atravessa/ o pomar/ a sonhar/ Chamilly voltou/ e é tão bom tê-lo/ de volta/ que não pode estar/ muito tempo/ ao pé dele", (O Regresso 8) como "há uma passagem/ subterrânea/ como nos romances/ que liga/ castelo e convento". (O Regresso 22) Quem diz histórias, diz associações de ideias. O par, uma vez que Chamilly é ternamente Milly, é assediado por Milly Possoz: "Mais que/ todas as cartas/ como nenhuma/ carta/ és tu Milly/ em carne e osso/ ao pé de mim/ (Milly Possoz também/ está muito comovida)" (O Regresso 19) Um sonho de Mariana mostrar-nos-á, enfim, a dessacração do par por outro par igualmente com muita história: "Pedro e Inês/ que dez anos de cavaquismo/ deixaram sentados/ de cócoras/ à beira dos túmulos abertos/ a comer deliciosas/ passas de Boliqueime". (O Regresso 20)
Este peculiar regresso ao Paraíso, comicamente entretido com emblemas da história nacional (e talvez parodiando A Margem da Alegria), como se da arte dependesse a restauração de Portugal e do mundo, (Idem 20) tem várias apoteoses e falha várias apoteoses. Enquanto consenso estético – quadro final de revista –, o par auxilia-se com a bandeira e com uma arte (da ilustração) anterior à "Arte":
Milly Possoz
pinta-lhes
o retrato
ela debaixo da alfarrobeira
a responder-lhe Milly
ele debaixo da alfarrobeira
a perguntar-lhe Merci
o fato de Chamilly
é verde
o hábito de Mariana
é encarnado
e sobre os dois
cai nupcial
o céu
as cinco quinas
mais abaixo
o dossel
que é a copa da alfarrobeira
da cama que é o chão
onde se dão
Eva e Adão
cadela e cão.
(Idem 21)
O envelhecimento da representação do par original participa decerto do envelhecimento a que a obra de Adília submete o estético, (cf. Diogo, id.) em geral substituído por ou posto em continuidade com figuras de um consenso social ultrapassado. Assim se mostrava o mundo desprendido da história e inteiramente complacente face a desígnios estéticos – complacência todavia necessária aos deslocamentos do clown. O procedimento comporta também estas "histórias" e estas "referências". Este intertexto é o tempo, o mundo, a experiência, a "pessoa", a entropia, na justa medida em que afasta Mariana e o marquês do estado arquetípico de Eva-e-Adão, cadela-e-cão.
É agora cada vez mais visível que essas figuras tornavam muito peculiares as utopias de sessenta. Exemplar no processo é A Continuação do Fim do Mundo, pois se trata de uma utopia doméstica – "fodas e bodas" –, assente no par antecedido pela "experiência" e invulnerável, ainda assim, a todo o qui pro quo. Não sem ambiguidades, o détournement daquelas utopias atacava a sua raiz social-estética por uma crítica da dessublimação repressiva. Assim, na evolução dos meios de transporte do tarentass para o automóvel Éclair, para a furgoneta Dum Dum e para os patins Bic (não muito grandes exemplos do avanço tecnológico), teria deixado de haver "distância" entre "o desejo de sobremesa" e a "degustação da sobremesa". Perdida a sobremesa,
(…) as refeições
continuaram a ser repressivas
e não sabendo o nome
do que comem
as crianças não se podem defender
da repressão chamando nomes
que não me tomem no entanto
por uma apologista do tarentass
(Um Jogo 36)
Do que a "pessoa" tornava moralmente inconclusivo ("que não me tomem no entanto/ por uma apologista do tarentass") era não obstante aproveitado a equação de ‘fodas’ com ‘bodas’. (De resto, nem a poesia de Adília impunha a degustação demorada ou difícil.) Todavia, essa outra perfeição para que tende o mundo é finalmente repudiada. Em 2000 ("Nota da Autora" ao Regresso de Chamilly, rejeitado por marialva), põe-se em perspectiva de ridículo (e de trágico porque ridículo) o "massacre quotidiano que é a foda obrigatória, o perder a virgindade obrigatório antes dos 17 anos, o orgasmo, os super-bebés".
A defesa da vida com mongolóides, do pai pródigo e da mãe não menos pródiga (Irmã Barata, "A Minha Filha"), contra a dita dessublimação é muito interessantemente "reactiva", e, como tal, será adiante rapidamente examinada.
CÃO
E OSGA
[Encurtar as
formas de escrever] ensinou-me duas coisas. Primeiro, a formular ideias de
maneira aforística, que não requeriam continuações assentes em razões formais;
segundo, a ligar ideias sem usar conectivos formais, meramente por justaposição.
(Schoenberg)
O cão de que Cristo não gosta (Irmã Barata 7) é por isso um Cristo-cão. A osga-Cristo tem a inexpressividade "boçal" da última Adília. Faz cró. Da osga há tão pouco a dizer como da barata. É abordável não pela "poesia", mas pela "linguística histórica":
Gekko (holandês e alemão), gecko (inglês e francês) é uma onomatopeia malaia. As osgas vinham nos barcos da Malásia para a Holanda. O João Dionísio diz que o grito da osga é parecido com o ruído do computador a engolir a disquete. Há dialectos portugueses em que a osga se diz cró. Segundo a Manuela Barros, é o grito da osga em português. (Irmã Barata 21)
Quase obviamente, a osga é posta em sequência com um "eu" (o meu eu) cujo "corpo" não está colocado num fundo brilhante e fresco de céus e montes, e que decididamente não parece ser cogital:
As osgas têm um eu? As plantas têm um eu apesar de não terem cérebro? E as pedras? O eu, um eu, o meu eu precisa de luz e de escuridão. (Idem 17)
PERPENDICULARES
A "lógica da batata" estende ao leitor a armadilha também presente nos romances de Adília (O Poeta de Pondichéry, Maria Cristina Martins e A Continuação do Fim do Mundo): a alegria de não parecermos implicados na doxa onde, em contrapartida, a "pessoa" parece achar-se presa.
Adília cola sentimentos e pontos de vista afectivos, aparentemente típicos da ironia e afins, à continuidade das condições de vida de que tais pontos de vista e sentimentos permitem antes emancipar-"nos".
Os pormenores e as imagens, avessos ao cálculo lógico e ao plot dos "romances" – e tantas vezes postos sob a lente de aumentar de um hiper-realismo – não são conduzidos por aquelas atitudes a uma unidade superior, mas abandonados a uma loucura muito banal (cf. Maria Cristina Martins).
Non sense, e ainda aqui indignidade do sentido:
Na estufa
a planta carnívora
abocanha as chaves
da minha mãe
uma barreira de água
impede as formigas
de entrar
(Sete rios entre campos 22)
O grilo come
a gaiola de plástico
e volta
para o campo
onde está
o pirilampo
(Sete rios id.)
OS SANTOS VÃO
PARA O INFERNO
O pacto social é
um esquema de transferência de pagamentos: brincos pelas orelhas, bordel pela
nursery, emprego pela mãe, ouvidos pelos olhos, lego pelo ego. Por isso,
bodas não rima com fodas.
(Fernando Coimbra)
Da primeira para a segunda Adília Lopes, é muito sensível uma diminuição radical de "abatage". Perdem-se, por um lado, a ligeireza, a agilidade, a vivacidade, que permitiam "abattre du texte" sem o sacrificar, e por outro lado os dons "físicos" de representação – a "abatage" – da grande "cómica" ou da grande "fantasista", que conduz as figuras improváveis da inocência doxástica e da tragédia com movimento, presteza, elegância, pitoresco, facilidade vocal, vivacidade e brio. (cf. Souriau, 1999: 1) Os textos da segunda Adília denotam a falta de qualidade que é própria do "rombo" e mesmo do "boçal". Esta diferença é empiricamente corroborável. Adília, diz quem viu, massacra agora a poesia que recita, debitando-a a uma verocidade inverosímil. (cf. Silvestre, 2000)
Esta poesia é agora capaz de fugir à excelência praticando a mais herética das paráfrases: o resumo. Não sem afinidade com o truque muito pop da redução do ícone ao logo, com remoção de todas as conotações, modulações e traços de arte, Baudelaire ("à une passante", e topos moderno estudado por Reckert) resulta assim:
Ela passa
no boulevard
cor de Pele de Burro
quando foge
(Florbela Espanca 12)
Com Apollinaire (e com a qualidade francesa da chanson) acontece isto:
Os dias vão-se
eu não
(Sete rios entrecampos 86)
Com dois títulos da Condessa de Ségur, consegue-se esta legenda axiomática:
Só goza
as férias
quem sofreu
os desastres
(Sete rios 69) (10)
O tropo culturalista da visitação ("A porta da Casa de Eneias, em Viena") é submetido a idêntica dieta:
Dido no Inferno
cumprimenta Eneias
é preciso ter boas maneiras
em toda a parte
especialmente
em questões de Arte
(Idem 60)
Dois poemas diferem pelo título (Emily Dickinson e S. João da Cruz):
Mesmo que
pudesse
dizer tudo
não podia dizer tudo
e é bom assim
(Idem 67-8)
E, em suma:
Acham que um
verso
é pouco?
quem não o aproveita
é mouco
(Idem 71)
Neste esburgar obstinado, a ama amante do alheio exibe criticamente vestígios, indícios e restos de expressão externa. A autonomia vestalizada da poesia é perspectivada como sentimentos que evitam ter consequências em acções apropriadas. Os consensos estéticos são equacionados como sentimentos "calorosos" – o heróico-elegíaco, por exemplo –, nascidos, com os grandes temas, da e para a aprovação do público. Não é apenas "o almoço do trolha" que nos aparece esteticamente sentimentalizado. O sentimentalismo, módulo presente em toda a estética e assaz bem exemplificado em Walt Disney, seria capaz de dar sentido e consenso a contas e hieróglifos obscenos.
Não vejo uma
águia a fazer contas e hieróglifos obscenos
nos filhos de uma coruja
talvez Walt Disney visse
(O Poeta de Pondichéry 16)
Walt Disney não veria. Converteria em olhos de Bambi as garatujas do amor, obscenas tantas vezes.
O recente "Big Brother" demonstra como, sob a aprovação do público, é possível vestir a mais obscena das garatujas com "amor", pena e simpatia. E como é possível atribuir à "hipocrisia social" – assim o fez a primeira concorrente eliminada – a desaprovação das garatujas. Em toda a obra de Adília, a nobreza e a compostura estéticas equivalem ao sentimento melífulo e à dor falsa: "A dor falsa/ cheira-me a valsa". (Sete rios 58) Assim, a transformação da "perfeição enunciativa" em "pessoa" era sempre acompanhada de sentimentos vulgares, que, por isso que ninguém aprova ou admira, não podem ser açucarados: inveja, furor mimético, depressão, "rusgas" à "vida privada", "não à das afeições, mas à do amor-próprio". (O Decote 34) (11)
A reprimenda da felicidade como valsa e felicidade (:facilidade) de expressão vai tornando esta poesia extremamente contígua do desperdício pessoal: "Tenho mais pena do meu filme, dos meus diários, da minha juvenilia que deitei fora no contentor do lixo do meu prédio do que dos livros ardidos da biblioteca de Alexandria." (Irmã Barata 22) Por aí parece uma consequência da substituição dos recintos e precintos sagrados da Musa masculinista pelos esconsos do ambiente familiar onde a "barata" é encerrada no armário pelas criadas até morrer a "pessoa" que convidava gente para lanchar:
e a barata saiu
de lá
muito magra
a caminhar a custo
(O Decote 56)
As baratas, que serão o sujo alheio à noção de sujo, circunscrevem o kit básico da sobrevivência humana – todos os objectos e actividades que corporizam as rotinas domésticas, mundanos e não sagrados, sujos e não "lisos nus inteiros", banais e quantas vezes sem decoro, que se destinam a manter existências e aparências, e que, como forma seleccionada pela história, ultrapassam o âmbito da vida individual e do corpo individual. Neste círculo de familiaridade em que brincam gatos com varatojas, a "barata" que é um milagre de sobrevivência representa a continuidade, humana e contudo não humana, do banal, do baixo, e do sujo que os acompanha (12). Nenhum ser humano, ainda quando poeta, escapa à rotina dos apetites e da aparência, assistida por brincos, anéis, botões, alfinetes, bonecas, selhas, ferros de passar, lancheiras, marmitas, termos, livros, estampas, bonecos de chiar e cochicho, banheiras, camas, mantas, gôndolas em miniatura, rádio, pratos, vestidos, lixívia, juvenilia, poemas esburgados. Porque sobrevivem ao corpo pessoal como forma e o rodeiam como matéria perecível, configuram um espaço moral e estético, entrópico, que gera "pessoas" e desperdício, e que só parece poder ser contra-intuitivamente igualado por baratas ou por estranhos alquimistas:
O mongolóide (…)
(…)
e o atrasado mental (…)
(…)
duas penas vivas para os outros
pobres de espírito ricos de espírito
lixo biológico da luta pela vida
ganhadores
alquimistas
(O Peixe na Água 19)
No círculo doméstico, o monólogo transcendental e personalizado do herói da elegia aproxima-se da rotina, do banal, e, sobretudo, do "lixo biológico" que a sua alquimia não é capaz de redimir. A barata que se esconde debaixo dos móveis não é o público que devolve afectos: "Não sei se para as baratas há sujo e limpo: sei muito pouco de baratas. Sei que, quando vejo uma barata de pernas para o ar a espernear virada do avesso, a ajudo a ficar de pé. A barata não está habituada a ser ajudada. Estranha. Esperneia cada vez mais. Às vezes trepa-me para a minha mão. E não sei se se sente agradecida. No fim, mal fica em pé, corre muito depressa para baixo dos móveis." (Irmã Barata 16)
Em conclusão:
Ai do que não
sabe
desentupir uma pia
porque nada sabe
da utopia
(Sete rios 59)
De uma forma talvez estranha, a obra de Adília Lopes é uma das poucas onde se tenta uma negociação com as utopias dos sixties, que comprometiam a Arte na anti-Arte e na vida. Ela sente o carácter traumático (ainda vivo e não de todo museológico, como por vezes vezes insinua) dos valores de então, quer quando, agora, por um lado os renega e por outro os releva em Cristo e na indignidade das pequenas coisas da esfera privada – quer quando, antes, os fazia viver ingenuamente por "pessoas" com modus vivendi, etiqueta e doxa contrárias. Em contraste, alguns usam aqueles valores como adornos acríticos do que bem pensa e do que bem sente, enquanto que o comum dos autores empreende simplesmente na poesia um regresso à Arte como a um idealismo, a uma compostura, à representação poética do poético, e à qualidade. Conforme ao pouco de realidade e conforme com o pouco de realidade, essa poesia usa a melancolia como um depurador de "objectos".
PARALELAS
No círculo doméstico que em princípio seria do próprio e da sua propriedade, as feições da propriedade não configuram todavia uma transcendência que se não abra ao desperdício: à entropia. Assim parece ser o sagrado e o político: uma relação inalienável com a alienação do que é próprio – brinquedos, livros, utensílios.
A escrita doméstica é também a topografia de um espaço de estranhamento.
O desperdício pessoal parece relacionável com o exagero do factual, como se algures entre ambos existisse a sombra de um motivo. Essa sombra será porventura a da subjectividade artística socio-esteticamente objectivada, à maneira de O Poeta de Pondichéry:
estão sempre a
espiar-me
e quando os outros se põem a olhar para mim
deixo de saber como me chamo
(Poeta 25)
Enquanto sente saudades do quarto "no alto da torre de marfim", a Arte na "cela do asilo" vive no temor daquele que chegará para lhe "cortar as unhas". (Idem)
A obra de Adília Lopes refere-se a uma poesia a que cortaram as unhas e que não sabe já como se chama. Para a poesia que fantasma o quartinho do ego no alto da torre de marfim, esta queda – no silêncio ou no modus vivendi – não existe.
Arrependo-me muito de ter deitado fora o filme que fiz em 74 com a Margarida Rainha dos Santos. Ela é que segurou na câmara Super 8 emprestada pelo Manuel João Ramos. Filmámos uma boneca de plástico comprada nos Armazéns do Chiado por 19 escudos. Filmámos a boneca a arder dentro da gaiola que já não servia porque tinha morrido lá um periquito com uma pneumonia. Reguei a boneca com álcool e deitei-lhe para cima um fósforo a arder. Depois afastei-me para a Guida filmar a queima da boneca sem eu aparecer no filme. Filmou-se a boneca a arder até a boneca deixar de arder por já ter ardido toda. Foi no terreiro em frente ao Observatório Astronómico em cima de um marco de pedra.
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Tenho mais pena do meu filme, dos meus diários, da minha juvenilia que deitei fora no contentor do lixo do meu prédio do que dos livros ardidos da biblioteca de Alexandria. Também tenho muita pena dos meus brinquedos e dos livros da infância que dei à Maria Arminda Duarte da Costa, a criada, para ela dar à sobrinha. Pequei infinitamente. Porque a caridade bem ordenada por nós mesmos é começada. (Irmã Barata 21-2)
O universo doméstico é o grande modelo de apropriação e de apropositação da realidade, contemporâneas da sua mesma obsolescência. Se o universo doméstico tende ao lixo (livro), os objectos condenados ao próprio e ao desperdício sobrevivem-se em imagens e eidola. Estes orientam um desejo que infinitamente difere a diferença entre a satisfação esperada e a satisfação obtida, entre as férias e os desastres, entre "no one!" e "no one". A máquina de filmar consome em imagens imagens que se auto-consomem. O filme adianta-se ao processo, registando a apetência por imagens na forma especular de um auto-de-fé. A queima das imagens onde se unem o real e o desperdício como ex-votos do próprio adianta-se ao desapontamento do sujeito perante a tradução da suposta primeira coisa (a boneca) numa sucessão de "ídolos". Remédio para o desajuste da satisfação? A ordem da caridade, alcançada pela sabedoria doméstica das nações.
O lar é História.
Na poesia não costumamos saber dos muitos milhões de seres humanos expropriados das rotinas caseiras: os sem abrigo, os que vivem na rua e sob as pontes, ou no lixo e do lixo, os povos sem pátria e que pretendem literalmente regressar a casa. Adília definirá a Virgem pela "ontologia" do brinquedo. O ser humano é o avesso do brinquedo; se a intimidade não é cedida ao brinquedo, o brinquedo não fornece intimidade. O espaço onde se brinca não é decalcado de uma relação sujeito/objecto; é jogo sem objecto nem sujeito – é oração:
Os timorenses, ao fugir das suas casas, levam só as imagens de Nossa Senhora de Fátima, do Coração de Jesus, como as crianças que, para adormecer, precisam absolutamente do urso de peluche que as protege da noite sem a mãe cheia de pesadelos e de medos. (Irmã Barata 21-2)
Notas
1 "A alegre pequena equipa, na sua totalidade, volta portanto a interpretar em farsa a tragédia da matança das formas artísticas, explorando-a com uma parcimónia de gente com rendimentos a prazo". (Internacional Situacionista, 1997: 122-3)
2 O poema A Elisabeth foi-se embora é um dos poucos na poesia portuguesa à altura da brutalidade metafísica de coisas como as de Campos, e, entre todas elas, o poema sobre a dobrada à moda do Porto, servida fria pelos missionários da cozinha. Veja-se tudo o que Adília faz com o "túnel".
3 Partindo do princípio que os exemplos devem ser bons, exemplifico com um poeta infinitamente superior ao comum (Carlos Poças Falcão) o desprendimento cogital alcançado via poesia, o monólogo transcendental, a ausência de "pessoa", a transcendência rothkiana de toda a representação em amigos que orbitam sobre "nuvens", eles mesmos "nuvens", assim tornadas homeomorfas do "lugar". Não tocando no sentido óbvio, que se quer sentido simples, as "nuvens" dão o "lugar" (o sagrado) visado na sua mesma dissipação pelas imagens do "espectáculo". O "lugar" não se atinge sem a nobreza de quem fala e de quem serve de exemplo a quem fala. Eles dão a sua calma anuência amante às "nuvens". Esta dicção simples e muito comunicativa apoia-se no poético de Helder usado com parcimónia, sinais de esperanto e língua franca: "cintura magnética", "orbitação diurna".
Transcreve-se o poema:
HINO
Dar espaço, ver
ao longe as amizades a brilhar
estelarmente. Movem-se, enlaçam-se os seus ritmos
e em gravitação vão abrindo um firmamento
Dar espaço, para
visitação e crescimento.
Deixarmo-nos levar pela cintura magnética
às noites uns dos outros.
É por
contentamento que os sinais são emitidos
por vezes de tão longe, mas logo tão presentes
que a densidade aumenta e despertam novos sóis.
Porque é muito
espaçosa esta arte dos amigos:
não tocam no rebordo de uma natureza frágil
senão para curtar e afagar.
Se há um
turbilhão eles não se distanciam
conhecem que é o tempo a querer desmanchar o espaço
e por isso dão-se espaço e apuram-se mais tempo.
Se há nuvens,
deixam-nas passar.
Rodam bem por cima em orbitação diurna
e quando as nuvens passam estão onde amam estar.
(Falcão, 1999: 66)
4 "Almoço do trolha// Pobríssimos/ as cabeças cortadas/ mas tão felizes/ homem mulher e bebé/ de um tijolo/ do patrão/ fizeram um assento/ o Estado Novo impede-os/ de tirar os sapatos/ o Partido Comunista também/ desce sobre eles/ o Espírito Santo/ do almoço/ vão comer língua?" (Clube da Poetisa Morta 19) Face a um regime a que repugnava o pé descalço e que escondia a mendicidade, o Partido comunista, supondo-se não hipócrita, reivindicava como seus os valores da "dignidade" que o Estado Novo policiava. Tratava-se de dar a uma questão política um consenso de "arte", pois "é preciso ter boas maneiras/ em toda a parte/ especialmente/ em questões de Arte". (Sete rios 60)
5 O conceito interessa a Adília pela decomposição, pela "bifurcação sucessiva", (A Pão e Água de Colónia) pela duplicação de identidades (a figura do duplo é uma constante na obra). É preciso transformá-lo em "irmã batata": "A lógica é uma batata. A gramática é lógica aplicada. a=a não interessa nem ao Menino Jesus. a=b só tem interesse porque a não é bem b. Uma rosa não é uma rosa não é uma rosa. Partir de a=b para chegar a a≠a. Reduzir ao absurdo. Cante Kant. Conte Comte. O verbo ser não é igual a ser igual." (Irmã Barata, Irmã Batata 16)
6 A redução das probabilidades a 1/2 em rigor não desmente o materialismo, mas o determinismo que costuma(va) acompanhá-lo. A aproximação à certeza "pela metade" mostra-nos vivendo num universo material, estatístico, descontínuo, a que lançamos remendos de continuidade: Adão e Eva, cadela e cão, estar-se verde como o mar ao meio-dia, estar-se contente, e, claro, o Deus que está do outro lado. Viver no mais (im)provável dos mundos é viver num mundo onde inevitavelmente o pensamento chega à máxima de Mr. La Palice e os sistemas ordenados, que produzem energia (ou "informação"), dão origem a sistemas menos ordenados, que vão deixando de a produzir.
7
"O que me
importa mais
é viver
passar os meus dias
na rua
nos cafés de Madrid
a dizer tolices" (Lorca)
(Florbela Espanca 34)
8 Contrario um pouco a autora e a sua fé nas sete artes. A afirmação da fé é contrariada pelas práticas.
9 Actriz de cinema que nunca subiu muito acima do estatuto de starlette.
10
[Martim Codax/ Jean Vigo]
De mãos dadas
com o meu amigo
vejo os filmes
de Jean Vigo
(Clube da Poetisa Morta 34)
[Lowry/ Dylan Thomas]
Debaixo
do vulcão
está o retrato
do artista
quando jovem
cão
(Sete rios entre campos 25)
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
(Clube da Poetisa Morta 20)
11 Falta portanto ao Kitsch de Adília aquilo que ao Kitsch é deveras fundamental: o sentimentalismo – o Para Elisa, as "duas lágrimas" referidas por Kundera na Insustentável Leveza do Ser. Contrariamente ao que parece pensar Lindeza Diogo, o Kitsch de Adília é "falso" ou "conceptual". (cf. Diogo, 1998)
12
The little lives of earth and form,
Of finding food and keeping warm,
Are not like ours, and yet
A Kinship lingers nonetheless:
We hanker for the homeliness
Of den, and hole, and set.
(Larkin, 1990: 207)
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1
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Da extinta Ciberkiosk