26-1-2011

 

JACOB RODRIGUES PEREIRA

 

(1715-1780)

Homem de bem, Judeu Português do Sec. XVIII, primeiro reeducador de crianças surdas e mudas em França, por Emílio Eduardo Guerra Salgueiro, Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Educação e Bolsas, Julho de 2010 – ISBN 978-972-31-1211-5

 

É este um livro muito oportuno, porque a figura de Jacob Rodrigues Pereira tem sido injustamente esquecida entre nós, embora dê o nome a um Instituto especializado no ensino de surdos-mudos, integrado na Casa Pia de Lisboa.

O livro está bem apresentado e razoavelmente documentado, baseando-se sobretudo no artigo de Renée Neher-Bernheim (1922-2005) de 1983 na Révue des Études Juives,  no livro de Édouard Séguin, de 1847 e no de 1882, de E. La Rochelle. O Abade de Baçal já dera os primeiros passos para estudar a ligação da família à Inquisição, mas o Autor aprofundou a investigação de modo mais ou menos exaustivo. Confessa ele, porém (pag. 204), que lhe foi negado pela família o acesso directo aos documentos pessoais do personagem ainda em poder da família, em Paris.

Jacob Rodrigues Pereira foi filho de João Lopes Dias e de Leonor Henriques Pereira, de 24 e 23 anos de idade à partida de Portugal, e nasceu em 1715 em Berlanga – Espanha, o sétimo de um conjunto de nove irmãos.  Seus pais eram de Chacim, em Trás-os-Montes e foram presos em Espanha no decorrer de uma aventura que lhes correu mal. Foi o caso que um grupo de cristãos novos de diversas localidades de Trás-os-Montes decidiram fugir de Portugal e da Inquisição, embarcando no barco genovês N. Snra de la Coronada, em 13 de Abril de 1699, com destino a Livorno. Era constituído por 29 adultos (13 homens e 16 mulheres) e 19 crianças (10 rapazes e meninos e 9 raparigas e meninas). Foram detidos em Cádis e presos logo a 19 de Abril, à ordem da Inquisição de Sevilha. Aqui correu o processo contra todos eles,  tendo sido punidos com penas mais ou menos duras.

   

Com João Lopes Dias iam no barco sua mãe, Ana Lopes, de 65 anos, sua esposa, grávida, e suas duas filhas Branca e Mariana, de 2 e 3 anos, respectivamente. A 2 de Junho de 1699, sua esposa deu à luz na cadeia um rapaz que foi chamado de Paulino. Depois de um período mais severo de castigo, ter-lhe-á sido permitido reorganizar a sua vida familiar, pois foram nascendo mais filhos do casal:

Beatriz Maria – 30 de Outubro de 1707 –

Manuel – 23 de Outubro de 1710 –

Isabel – 22 de Novembro de 1713 –

Francisco António – 11 de Abril de 1715 –

André – 6 de Outubro de 1717 –

Luis – 2 de Julho de 1720 –

Quando este último nasceu, já a família se havia mudado para Llerena.

Dos filhos, o que nos interessa mais é o Francisco António que, depois da sua ida para França no Outono de 1741, se circuncidou e aderiu ao Judaísmo de alma e coração, mudando o seu nome para Jacob.

Com ele veio sua mãe, que também mudou o nome para  Abigal Rivka Pereira. Faleceu depois em 18 de Novembro de 1751.

Com uma tão numerosa família, os filhos foram-se espalhando pelo mundo. João Lopes Dias terá regressado a Portugal, pois veio a falecer na Moita em 1735.

Não são conhecidas as circunstâncias que levaram Francisco António Rodrigues Pereira a dedicar-se ao estudo do tratamento e ensino dos surdos-mudos. Houve quem dissesse que uma das suas irmãs teria nascido com tal deficiência e que foi com ela que ele se iniciou. Havia já em Espanha uma tradição desse ensino, iniciada por Frei Pedro Ponce de Léon (1520-1584), continuada por Manuel Ramirez de Carrión (1579-1670).

Não há documentos que permitam comprovar a frequência por ele de uma Universidade, embora os seus textos revelem conhecimentos que só poderia ter adquirido através de estudo organizado.

O livro descreve em detalhe as técnicas de ensino dos surdos-mudos e as opções de Jacob Rodrigues Pereira, pelo menos na medida em que as conhecemos, pois ele fez sempre bastante segredo dos seus conhecimentos.

Jacob Rodrigues Pereira dedicou-se também à defesa dos judeus portugueses em França sendo si escolhido em 1753 para Agente da Nação Portuguesa de Bordeus e em 1760 para Agente da Nação Portuguesa de Paris. Também este ponto é muito desenvolvido no livro.

Veio ele a casar em 5 de Novembro de 1766 com Miriam Lopes Dias, então de 19 anos de idade. Tiveram 6 filhos, mas quatro morreram na infância; sobreviveram dois, Abigail, (n. 1768) e Isaac (n. 1771). Este último casou depois, mas também morreu cedo, em 1806, com 35 anos.  Deixou três filhos, dois dos quais foram célebres financeiros em Paris: Jacob-Emile Pereire (1800-1875) e Isaac Pereire (1806-1880). Ainda hoje existe em Paris o Boulevard Pereire, do nome deles.

Jacob Rodrigues Pereira faleceu em 15 de Setembro de 1780 e está hoje sepultado no cemitério de Montmartre. A viúva Miriam Lopes Dias mudou-se para Bordeus com os filhos, e ali faleceu nova em 1791, com 44 anos.

 

A INQUISIÇÃO

 

Um primeiro reparo no que respeita ao modo como o Autor trata a Inquisição é que, por vezes, o texto é algo confuso, não se percebendo se está a falar da Inquisição Portuguesa ou da Espanhola que, apesar de “parentes”, tinham as suas diferenças.  Por outro lado, a identificação dos transmontanos presos pela Inquisição é feita através das Listas dos autos-de-fé, das relações do Abade de Baçal e também do livro Inventário dos processos da Inquisição de Coimbra (1541-1820). Este último livro baseia-se num documento do Tribunal de Contas que deve merecer algumas reservas, pois não existem (ou já não existem) muitos dos processos nele mencionados.

Na minha opinião, teria sido mais seguro e proveitoso consultar os próprios processos, o que seria naturalmente mais eficiente. Não fiz tal consulta, mas apenas repertoriei os seus números a partir dos respectivos índices:

 

Inquisição

N.º do processo

Página do livro

Nome do réu

Dados

 

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IC

 

IC

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IC

 

IC

IC

IC

IC

IC

IC

IC

 

 

3913

5567

575

 

3466

2842

4538

8106

4751

5659

2714

 

3717

6654

6882

687

 

7105

4642

5559

3936

9710

 

10022

 

5207

1787

3684

736

 

7635

 

5243

642

10578

44

44-A

1784

3755

 

9416

7584

3237

6883

364

7907

7907-A

 

7822

1089

1090

6533

7577

4772

2812

 

15

15

 69

 

69

69

69

69

69

69

69

 

70

70

70

72

 

80

72

72

72

73

 

73

 

73

73

73

75

 

75

 

75

75

75

75

75

75

76

 

76

76

76

76

76

76

76

 

76

76

76

76

76

76

76

 

 

Beatriz Lopes Martins, de Chacim

Ana Lopes, filha de António Dias e de Isabel Lopes

Isabel Rodrigues, c, c/ Diogo Mendes

 

André Rodrigues, c. c/ Ana Lopes

Francisca Lopes, c. c/Diogo Fernandes

Beatriz ou Brites da Costa

Ana Pereira

Diogo Fernandes, c.c/ Francisca Lopes

Violante Pereira

Jorge de Mesquita, c. c/ Brites Pereira

 

Maria Pimentel, c. c/ Jorge de Mesquita

Gaspar da Fonseca, c.c/ Isabel Antónia

Isabel Antónia, c.c/Gaspar da Fonseca

Manuel Rodrigues Pereira, c.c/ Branca Henriques

 

Branca Henriques (do Vale)

Diogo Pereira

Duarte (Lopes) Pereira

Maria Pereira

Manuel Pereira de Mesquita, casado com Violante Pereira

e Leonor Henriques (2.º casamento)

Jorge de Mesquita Pereira

 

Francisco Pereira de Mesquita

Leonor Pereira

Branca Carlos

António Lopes Pereira, médico, c. c/ Isabel Henriques

Pereira

Sebastião Rodrigues Pereira

 

Manuel do Vale, c.c/ Leonor Henriques

Leonor Henriques, c.c/ Manuel do Vale

Isabel Henriques do Vale

Manuel do Vale- AdFé – 25-07-1706

Manuel do Vale – AdFé  - 18-12-1701

Leonor Henriques

Angélica Pereira

 

Pedro do Vale, c.c/ Filipa Nunes

Filipa Nunes, c.c/Pedro do Vale

Guiomar do Vale, c.c/Luis Lopes Arroios

Isabel Lopes, c.c/ Manuel Francisco

António Lopes Pereira, c.c/Maria do Vale

Maria do Vale - AdFé  - 23-05-1660

Maria do Vale, c.c/António Lopes Pereira - AdFé  - 02-03

-1704

Isabel do Vale,c.c/Gabriel Álvares

Luis do Vale

Luis do Vale, c.c/ Filipa do Vale

Isabel do Vale – AdFé – 23-05-1660

Filipa do Vale,c.c/ Luis do Vale

Leonor Dias,c.c/ Luis do Vale

Catarina do Vale, c.c/ João de Leão

 

Filha de Luis Lopes e de Catarina Martins

Mãe de João Lopes Dias

Filha de Domingos Fernandes e de Antónia

Rodrigues

Pai de João Lopes Dias

Irmã de André Rodrigues

Idem

Idem

2.º casamento. Fora casado com Ana Mendes

Filha de Manuel Pereira e de Isabel Antónia

1.º casamento. Casou 2.ª vez com Maria

Pimentel

2.º casamento do marido

 

Filha de Gabriel Pereira e de Violante Nunes

Filho de Francisco Pereira e de Leonor Lopes.

Tem 2 processos com o mesmo número

Casada com Manuel Rodrigues Pereira

Irmão do Manuel Rodrigues Pereira

Idem

Idem

Filho de Jorge de Mesquita e de Beatriz Pereira

 

Filho de Manuel Pereira de Mesquita e de

Violante Pereira

Idem

Idem

Filha de Francisco Pereira e de Leonor Lopes

Filho de Manuel Lopes Pereira e de Isabel

Coutinho

Filho de Manuel Rodrigues Pereira e de Branca

Henriques

Filho de Luis do Vale e de Leonor Dias

 

Irmã mais velha de Branca Henriques do Vale

Filho de Francisco Cardoso e Isabel Henriques

do Vale

Idem

Filha de Jerónimo Pereira e de Isabel Henriques

do Vale

Filho de Luis do Vale e de Leonor Dias

 

Filha de Pedro do Vale e de Filipa Nunes

Filha de Francisco Lopes e de Ana Lopes

Filha de Manuel Francisco e de Isabel Lopes

Filha de Luis do Vale e de Filipa do Vale

Idem

 

Filha de Francisco Salgado e de Catarina do Vale

Filho de Luis do Vale e de Filipa do Vale

Filho de Gabriel Álvares e de Isabel do Vale

Filha de Luis do Vale e de Filipa do Vale

Filha de Luis do Vale e de Leonor Dias

Filha de Gonçalo Dias e de Guiomar Dias

Filha de Luis do Vale e de Leonor Dias

 

 

O Autor também não conseguiu firmar uma posição no que respeita à Inquisição. Por um lado acha que é um “monstro”, dizendo “os passageiros parecem estar perplexos e desorientados com o facto de terem vindo cair nas garras do monstro que receavam e pretendiam evitar a todo o custo em Portugal, a Inquisição” (pag. 3);  e considera plenamente justificada a decisão tomada pelo futuro Jacob Rodrigues Pereira de emigrar, fugir, para França (pag. 101).  Mas, por outro, encara a actividade da Inquisição como se de um verdadeiro Tribunal se tratasse com as suas leis e as suas regras, pois diz: “…pretendendo o Santo Ofício chegar assim a uma decisão judicial justa, graduando as culpas e as penas, podendo concluir mesmo pela inocência do acusado” (pag. 82). Ora a existência de “decisões justas” na Inquisição era uma impossibilidade matemática, já que se tratava de uma instituição perversa por natureza. E, quanto a processos que concluíssem pela inocência do acusado em face das deposições das testemunhas, fico ansioso à espera que o Autor ou qualquer pessoa me indique o primeiro, que eu nunca encontrei nenhum.

  

Afigura-se-me que, em Portugal, nos últimos tempos, a Inquisição tem sido estudada com base num silogismo, cuja premissa maior é: “Tudo o que é da Igreja Católica é bom”. A Inquisição pertencia à Igreja, logo não podia ser uma coisa má. Eu penso o contrário: a Inquisição era fundamentalmente uma instituição perversa, longe, muito longe dos princípios humanitários do Cristianismo.

Como aspectos positivos, tem sido realçado por alguns o pretenso rigor formal dos processos da Inquisição, que seguiriam escrupulosamente os respectivos Regulamentos. Isto é falso. Os Regulamentos existiam para os Inquisidores os adaptarem às suas conveniências. O exemplo mais flagrante disso são os períodos de prisão, sem qualquer actividade no processo. Estes estão parados meses e mesmo anos, sem que nada se passe. O Réu dá em doido, pensando no que lhe vai ou pode acontecer. Por outro lado, os mecanismos de defesa nunca funcionavam a favor do Réu, como direi a seguir.

Um mérito atribuído também ao "Santo" Tribunal foi que ele, enquanto existiu, impediu a entrada do Protestantismo em Portugal. Será fraco resultado para artilharia tão pesada.

Outro mito a favor da Inquisição é o de se dizer que a Inquisição não foi muito dura para os penitentes. Saíam de lá cabisbaixos, humilhados, desanimados, espoliados de todos os seus bens, quando não doentes e estropiados; mas os Inquisidores achavam que tinham sido muito caridosos em deixá-los com vida.

E, no entanto, parecia não haver razões para a perseguição aos cristãos novos. Estavam isolados, eram-lhes vedados os empregos mais rendosos, não faziam mal a ninguém, porquê a perseguição?

Não havia qualquer prática religiosa judia. Queriam era passar desapercebidos. Tinham consciência de pertencerem à raça judia, porque a condição de cristãos novos lho recordava. De resto, queriam era viver em paz. Para isso, conheciam bem de cor o catecismo: em todos os processos, na Genealogia, os encontramos a recitar correctamente o Padre Nosso, Ave Maria, Credo, Salve Rainha e os Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja. Iam à missa ao Domingo e confessavam-se e comungavam pelo menos uma vez por ano na Quaresma; aliás, lá estava o rol da desobriga para os lembrar (Rol da desobriga que – muita gente não sabe – ainda era obrigatório nas nossas aldeias em meados do Sec. XX).  Tinham todo o interesse em passar desapercebidos, não passa pela cabeça de ninguém que andassem a jejuar, ou a rezar no sábado.

Vejamos alguns procedimentos típicos da Inquisição, tendo em atenção que me refiro sobretudo a processos posteriores ao Sec. XVII:

Quando o processo se inicia, já existe uma meia dúzia de denúncias vindas de outros processos. Estas denúncias são falsas, foram feitas por Réus que se queriam livrar de ser condenados.

O conteúdo das denúncias está estandardizado, é sempre a mesma coisa:  “fazia a Páscoa do Pão asmo, não comendo pão fermentado, mas bolos asmos; guardava os sábados de trabalho, como se fossem dias santos; fazia jejuns judaicos pelo decurso do ano, estando neles sem comer, nem beber, se não à noite, em que ceava coisas que não fossem de carne e deixava de comer a de porco, lebre, coelho e peixe de pele, e rezava a oração do Padre Nosso, sem dizer Jesus no fim; comunicando estas coisas com pessoas da sua Nação, também apartadas da Fé, com as quais se declarava por Judia”.  Embora nenhum autor me diga o que é isso de dizer Jesus no fim do Padre Nosso, suponho que seja um costume antigo de dizer no final do Pai Nosso: “Amen, Jesus, Maria José”.

O réu era obrigado a confessar mesmo sem saber bem o quê, mas tinha de confessar. Tinha de demonstrar arrependimento que nunca era sincero, pois ele não fizera nada do que estava a confessar.

Quando acabava de confessar, o Réu sentia-se humilhado, reduzido a uma miséria moral, pois sabia que tinha mentido, não fizera nada do que havia dito. Por vezes, queria voltar atrás, mas isso é que deixaria os Inquisidores furiosos.

A seguir, tinha de denunciar o maior número possível de pessoas, quantos mais melhor. Se não o fizesse, iria apodrecendo na prisão e se persistisse, acabaria por ser condenado à morte.

Diz o Dr. Guerra Salgueiro (pag. 97) “os Inquisidores não se davam por satisfeitos, antes de o réu ter feito uma confissão plena das suas culpas e denunciar os seus cúmplices em práticas judaicas”. Está certo, excepto no facto de que não se tratava de uma confissão, mas de mais uma invenção dos Réus destinada a tirar a água do capote.  Diz ele ainda que era preocupação dos Inquisidores “separar, em boa consciência, as falsas das verdadeiras (denúncias)” (pag. 98). Ora aí está uma preocupação que eu nunca encontrei nos processos da Inquisição. Para os Inquisidores, as verdadeiras denúncias eram todas as que lhes permitiam prender mais cristãos novos.

Chama ainda o Dr. Guerra Salgueiro às torturas psíquica e física “técnicas de interrogatório” (pag. 123).  Esta sim é uma expressão muito eufemística, porque a técnica era muito sumária e destinava-se não ao apuramento da verdade, mas sim a obter as declarações que haveriam de comprometer os Réus.

 

A Inquisição era uma instituição absurda, porque queria condenar não pelo que se fazia mas pelo que se pensava, por aquilo em que o Réu acreditava, o que é impossível conhecer.  O pensamento, pela sua natureza, é livre!

Baseava-se a Inquisição num anti-judaismo primário, alimentado dos púlpitos. Não é por acaso que, nalguns processos, quando o Réu nega a qualidade de cristão novo, a acusação é dada por provada, logo que alguma testemunha confirma essa qualidade (de cristão novo).

Certamente os Réus de judaísmo da Inquisição tinham a consciência de pertencerem a uma raça à parte, isto é, de serem… Judeus. Era o próprio sistema que mantinha a qualificação de cristãos-novos, através da limpeza de sangue, com que se fazia a sua segregação e que dificultava (mas não impedia) as ligações de cristãos novos com cristãos velhos. Nesse sentido pode dizer-se com o Autor (pag. 137) que a designação de “cristãos novos” era um eufemismo, pois os Inquisidores consideravam-nos como judeus para todos os efeitos.

 

A Inquisição era uma instituição fundamentalmente perversa e como tal deve ser estudada. Era baseada na falsidade e na hipocrisia. Haja em vista as admoestações que se diziam feitas com “muita caridade”, quando se estava a torturar psicologicamente o Réu…  E o dizer-se “reduzir” o Réu à Santa Fé.

Quando o Réu ousava apresentar a sua defesa e as suas contraditas, provocava a fúria dos inquisidores e nada conseguia; punham de lado toda a defesa apresentada com um simples “e não provou cousa relevante”.

Os casos que se encontram de Réus absolvidos referem-se aos falecidos no cárcere, antes de fazerem as confissões tal como desejavam os Inquisidores. A morte no cárcere, sobretudo de gente nova, deixava os Inquisidores preocupados. Como exemplo, vejam-se estes três processos de Réus falecidos no cárcere e absolvidos, que foram ao Auto-de-fé de 10 de Maio de 1682:

9792 (IL) – Simão Rodrigues Chaves, falecido nos cárceres da Inquisição em 8 de Outubro de 1672;

4426 (IL) – Diogo Chaves (irmão do anterior), idem em 2 de Janeiro de 1675;

4909 (IL) – António Nunes da Veiga, idem em 16 de Dezembro de 1679.

 

De facto, os Inquisidores queriam ter a pretensão de ter as mãos limpas. Quando matavam, entregavam para isso o Réu à Justiça secular, que fazia o trabalho sujo, dizendo eles hipocritamente na sentença “relaxação à Justiça secular, a quem pedem com muita instância se haja com ele benigna e piedosamente, e não proceda à pena de morte nem efusão de sangue”.

 

Que movia os Inquisidores? Certamente não a Fé e a Caridade cristãs, porque não era isso que Cristo pregava. Nem a defesa da Religião Católica, pois ninguém acredita que os penitenciados saíssem da Inquisição convertidos à Religião de Cristo.

Também não podia ser apenas o interesse material, já que a maior parte dos Réus era pobre e desprovida (mas quem tinha alguns bens era reduzido à miséria).  A minha convicção é que eram conduzidos por uma certa orgia do poder que tinham sobre o corpo e o espírito dos Réus, que lhes permitia torturá-los física e psicologicamente ou até matá-los, aparecendo ao público como se estivessem a praticar boas acções: era o cúmulo da hipocrisia. Nesta vida, o poder é o maior afrodisíaco e é a procura dele que conduz aos maiores crimes.

 

A quem queira estudar a Inquisição a sério, eu sugiro esta fieira de cinco processos de condenados à morte na fogueira que foram ao Auto-de Fé de 30 de Junho de 1709 ( e, já agora, também de outra Ré, falecida no cárcere e relaxada em estátua):

 

Pessoas relaxadas em carne

 

Por Judaísmo

 

Pr. n.º 3367 – 480 imagens – Diogo Gomes Pereira, homem de negócios, morador em Lisboa, de 56 anos

Convicto, negativo, pertinaz e impertinente.

 

Pr. n.º 6537, 1094 imagens – António de Oliveira Correia, advogado, morador em Lisboa, de 33 anos.

Convicto, negativo, pertinaz e impertinente.

 

Pr. n.º 7208, 642 imagens  - Manuel Mendes Pereira, mercador, morador na Covilhã, de 48 anos

Convicto, ficto, falso, simulado, confitente diminuto e impenitente.

 

Pr. n.º 999, 444 imagens -  Rodrigo Álvares, Boticário, morador na cidade da Baía – Brasil, de 30 anos

Convicto, ficto, falso, simulado, confitente diminuto e impenitente.

 

Pr. n.º 998, 618 imagens - Maria de Melo Rosa, moradora em Lisboa, de 20 anos

Convicta, ficta, falsa, simulada, confitente diminuta, revogante e impenitente.

 

Relaxada em estátua

 

Pr. n.º 5095, 504 imagens  - Inês Josefa Nogueira, morador em Lisboa, de 38 anos

Convicta e negativa, pertinaz e impenitente

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Renée Neher - Bernheim, Un savant Juif engagé: Jacob Rodrigue Péreire, 1715-1780, in Revue des études Juives, ISSN 0484-8616,  1983, Vol. 142, n.ºs 3-4, pags. 373-451

 

 Édouard Séguin, Jacob Rodrigues Péreire, Notice sur sa vie et ses travaux et annalyse raisonnée de sa méthode, Paris, Librairie de l'Académie Royale de Médecine, 1847

Online: http://gallica.bnf.fr

 

Evelyne OLIEL-GRAUSZ, Droit et espace séfarade : Jacob Rodrigues Pereire et l’extension des privilèges. Du royaume à l Nation,  Les belles lettres, Archives juives, 2004/1 - N° 371,ISSN 0003-9837, ISBN 2-251-69416-1, pages 28 à 46

Online: http://www.cairn.info/article.php?ID_REVUE=AJ&ID_NUMPUBLIE=AJ_371&ID_ARTICLE=AJ_371_0028

 

François Legent, Approche de la pédagogie institutionnelle des sourds-muets jusqu’en 1900

Online: http://www.bium.univ-paris5.fr/histmed/medica/orld.htm

 

Francisco Manuel Alves, Reitor de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Vol. V - Os Judeus e Vol. X - Jacob Rodrigues Pereira, pags. 795-804

 

Alejandro Oviedo, La vida y la obra de Juan Pablo Bonet (1573-1633), Novembro de 2006

Online: http://www.cultura-sorda.eu/resources/Oviedo_Juan_Pablo_Bonet.pdf

 

Antonio Gascón Ricao y José Gabriel Storch de Gracia y Asensio, Manuel Ramírez de Carrión, maestro de sordos en el Siglo XVII: Nuevos apuntes biográficos, 2009

Online: http://www.cultura-sorda.eu/resources/Gascon_Storch_Ramirez-de-Carrion_2009.pdf

 

Antonio Gascón Ricao y José Gabriel Storch de Gracia y Asensio, El testamento de Manuel Ramírez de Carrión

Online: http://www.ucm.es/info/civil/herpan/docs/Carrion.pdf