23-8-2000

 

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

(1902-1987)

POEMAS:

O que se passa na cama

A moça mostrava a coxa

A bunda, que engraçada

Não quero ser o último a comer-te

Para o sexo a expirar

A língua lambe

No corpo feminino, esse retiro

Amor – pois que é palavra essencial

No mármore de tua bunda

Era bom alisar seu traseiro

Bundamel bundalis

São flores ou são nalgas

A castidade com que abria as coxas

À meia-noite, pelo telefone

Mulher andando nua pela casa

Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça

A carne é triste depois da felação

A rede entre duas mangueiras

A puta

Indagação

Sob o chuveiro amar, sabão e beijos

Sugar e ser sugado pelo amor

Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas

O chão é cama para o amor urgente

No pequeno museu sentimental

Coxas, bundas, coxas

 

 

 

O QUE SE PASSA NA CAMA



(O que se passa na cama

é segredo de quem ama.)

É segredo de quem ama

não conhecer pela rama

gozo que seja profundo,

elaborado na terra

e tão fora deste mundo

que o corpo, encontrando o corpo

e por ele navegando,

atinge a paz de outro horto,

noutro mundo: paz de morto,

nirvana, sono do pênis.

Ai, cama canção de cuna,

dorme, menina, nanana,

dorme onça suçuarana,

dorme cândida vagina,

dorme a última sirena

ou a penúltima...O pênis

dorme, puma, americana

fera exausta. Dorme, fulva

grinalda de tua vulva.

E silenciem os que amam,

entre lençol e cortina

ainda úmidos de sêmen,

estes segredos de cama.

 

 

          

A MOÇA MOSTRAVA A COXA 

 

Visu, colloquio

Contactu, basio

Frui virgo dederat;

Sed aberat

Linea posterior

Et melior

Amori.


Carmina Burana

 

 

          

A moça mostrava a coxa,

a moça mostrava a nádega,

só não mostrava aquilo-

concha, berilo, esmeralda -

que se entreabre, quatrifólio,

e encerrra o gozo mais lauto,

aquela zona hiperbórea,

misto de mel e de asfalto,

porta hermética nos gonzos

de zonzos sentidos presos,

ara sem sangue de ofícios,

a moça não me mostrava.

E torturando-me, e virgem

no desvairado recato

que sucedia de chofre

á visão dos seios claros,

qua pulcra rosa preta

como que se enovelava,

crespa, intata, inacessível,

abre-que-fecha-que-foge,

e a fêmea, rindo, negava

o que eu tanto lhe pedia,

o que devia ser dado

e mais que dado, comido.

Ai, que a moça me matava

tornando-me assim a vida

esperança consumida

no que, sombrio, faiscava.

Roçava-lhe a perna. Os dedos

descobriam-lhe segredos

lentos, curvos, animais,

porém o maximo arcano,

o todo esquivo, noturno,

a tríplice chave de urna,

essa a louca sonegava,

não me daria nem nada.

Antes nunca me acenasse.

Viver não tinha propósito,

andar perdera o sentido,

o tempo não desatava

nem vinha a morte render-me

ao luzir da estrela-d'alva,

que nessa hora já primeira,

violento, subia o enjoo

de fera presa no Zôo.

Como lhe sabia a pele,

em seu côncavo e convexo,

em seu poro, em seu dourado

pêlo de ventre! mas sexo

era segredo de Estado.

Como a carne lhe sabia

a campo frio, orvalhado,

onde uma cobra desperta

vai traçando seu desenho

num frêmito, lado a lado!

Mas que perfume teria

a gruta invisa? que visgo,

que estreitura, que doçume,

que linha prístina, pura,

me chamava, me fugia?

Tudo a bela me ofertava,

e que eu beijasse ou mordesse,

fizesse sangue: fazia.

Mas seu púbis recusava.

Na noite acesa, no dia,

sua coxa se cerrava.

Na praia, na ventania,

quando mais eu insistia,

sua coxa se apertava.

Na mais erma hospedaria

fechada por dentro a aldrava,

sua coxa se selava,

se encerrava, se salvava,

e quem disse que eu podia

fazer dela minha escrava?

De tanto esperar, porfia

sem vislumbre de vitória,

já seu corpo se delia,

já se empana sua glória,

já sou diverso daquele

que por dentro se rasgava,

e não sei agora ao certo

se minha sede mais brava

era nela que pousava.

Outras fontes, outras fomes,

outros flancos: vasto mundo,

e o esquecimento no fundo.

Talvez que a moça hoje em dia...

Talvez. O certo é que nunca.

E se tanto se furtara

com tais fugas e arabescos

e tão surda teimosia,

por que hoje se abriria?

Por que viria ofertar-me

quando a noite já vai fria,

sua nívea rosa preta

nunca por mim visitada,

inacessível naveta?

Ou nem teria naveta...           

 

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA


          

A bunda, que engraçada.

Está sempre sorrindo, nunca é trágica.


Não lhe importa o que vai

pela frente do corpo. A bunda basta-se.

Existe algo mais? Talvez os seios.

Ora - murmura a bunda - esses garotos

ainda lhes falta muito que estudar.


A bunda são duas luas gémeas

em rotundo meneio. Anda por

sina cadência mimosa, no milagre

de ser duas em uma, plenamente.


A bunda se diverte

por conta própria. E ama.

Na cama agita-se. Montanhas

avolumam-se, descem. Ondas batendo

numa praia infinita.


Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz

na carícia de ser e balançar.

Esferas harmoniosas sobre o caos.


A bunda é a bunda,

redunda           


 

NÃO QUERO SER O ÚLTIMO A COMER-TE


Não quero ser o último a

comer-te.

Se em tempo não ousei,

agora é tarde.

Nem sopra a flama antiga

nem beber-te

aplacaria sede que não arde


em minha boca seca de

querer-te,

de desejar-te tanto e sem

alarde,

fome que não sofria

padecer-te

assim pasto de tantos, e eu

covarde


a esperar que limpasses

toda a gala

que por teu corpo e alma

ainda resvala,

e chegasses, intata,

renascida,


para travar comigo a luta

extrema

que fizesse de toda a nossa

vida

um chamejante, universal

poema.           

 

PARA O SEXO A EXPIRAR


Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.

Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.

Amor, amor, amor - o braseiro radiante

que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.


Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,

a minha se rebela ante a morte anunciada.

Quero sempre invadir essa vereda estreita

onde o gozo maior me propicia a amada.


Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?

enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer

antes que, deliciosa, a exploração acabe.


Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,

e assim possa eu partir, em plenitude o ser,

de sémen aljofrando o irreparável ermo.           


 

A língua lambe as pétalas vermelhas

da rosa pluriaberta; a língua lavra

certo oculto botão, e vai tecendo

lépidas variações de leves ritmos. 

E lambe, lambilonga, lambilenta,

a licorina gruta cabeluda,

e, quanto mais lambente, mais ativa,

atinge o céu do céu, entre gemidos,

entre gritos, balidos e rugidos

de leões na floresta, enfurecidos.

 

 

 

No corpo feminino, esse retiro

- a doce bunda - é ainda o que prefiro.

A ela, meu mais íntimo suspiro,

pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

 

Que tanto mais a quero, se me firo

em unhas protestantes, e respiro

a brisa dos planetas, no seu giro

lento, violento... Então, se ponho e tiro

 

a mão em concha - a mão, sábio papiro,

iluminando o gozo, qual lampiro,

ou se, dessedentado, já me estiro,

 

me penso, me restauro, me confiro,

o sentimento da morte eis que o adquiro:

de rola, a bunda torna-se vampiro.

 

 

 

 

Amor – pois que é palavra essencial comece
esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma a expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, Platão viu contemplado:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar esta gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais.
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor, morre de amor divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas.
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre

 

 

 

No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.
Tu a levaste contigo.
 

 


Era bom alisar seu traseiro marmóreo
e nele soletrar meu destino completo:
paixão, volúpia, dor, vida e morte beijando-se
em alvos esponsais numa curva infinita.
Era amargo sentir em seu frio traseiro
a cor de outro final, a esférica renúncia
a toda aspiração de amá-la de outra forma.
Só a bunda existia, o resto era miragem.

 

 


Bundamel bundalis bundacor bundamor
bundalei bundalor bundanil bundapão
bunda de mil versões, pluribunda unibunda
        bunda em flor, bunda em al
        bunda lunar e sol
        bundarrabil

Bunda maga e plural, bunda além do irreal
arquibunda selada em pauta de hermetismo
        opalescente bun
        incandescente bun
meigo favo escondido em tufos tenebrosos
a que não chega o enxofre da lascívia
e onde
a global palidez de zonas hiperbóreas
concentra a música incessante
do girabundo cósmico.

Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
Bunda mutante/renovante
que ao número acrescenta uma nova harmonia.
Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
o arco de triunfo, a ponte de suspiros
a torre de suicídio, a morte do Arpoador
        bunditálix, bundífoda
bundamor bundamor bundamor bundamor.

 

 

São flores ou são nalgas
estas flores
de lascivo arabesco?
São nalgas ou são flores
estas nalgas
de vegetal doçura e macieza?

 

 

 

A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estreita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil sere

sem mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de corpo feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.

 

 

 

À meia-noite, pelo telefone,
conta-me que é fulva a mata do seu púbis.
Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:
“Se você não vem depressa até aqui
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?”

Concordo, calo-me.

 

 

Mulher andando nua pela casa
envolve a gente de tamanha paz.
Não é nudez datada, provocante.
É um andar vestida de nudez,
inocência de irmã e copo d’água.

O corpo nem sequer é percebido
pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
dando este nome à vida: castidade.

Pêlos que fascinavam não perturbam.
Seios, nádegas (tácito armistício)
repousam de guerra.

Também eu repouso.

 

 

Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça
de magnificar meu membro.
Sem que eu esperasse, ficastes de joelhos
em posição devota.
O que passou não é passado morto.
Para sempre e um dia
o pénis recolhe a piedade osculante de tua boca.

Hoje não estás sem sei onde estarás,
na total impossibilidade de gesto ou comunicação.
Não te vejo não te escuto não te aperto
mas tua boca está presente, adorando.

Adorando.

Nunca pensei ter entre as coxas um deus.

 

 

 

A carne é triste depois da felação
Depois do sessenta-e-nove a carne é triste.
É areia, o prazer? Não há mais nada
Após esse tremor? Só esperar
Outra convulsão, outro prazer
tão fundo na aparência mas tão raso
na eletricidade do minuto?
Já dilui o orgasmo na lembrança
E gosma
escorre lentamente de tua vida

 

 

 

A rede entre duas mangueiras
balançava no mundo profundo.
O dia era quente, sem vento.
O sol lá em cima,
as folhas no meio,
o dia era quente.

E como eu não tinha nada que fazer vivia
namorando as pernas morenas da lavadeira.

Um ida ela veio para a rede,
se enroscou nos meus braços
me deu um abraço,
me deu as maminhas
que eram só minhas.
A rede virou,
o mundo afundou.

Depois fui para a cama
febre 40 graus febre.
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas,
girava no espaço verde.

 

A puta

 

Quero conhecer a puta.
A puta da cidade. A única.
A fornecedora.
Na rua de Baixo
Onde é proibido passar.
Onde o ar é vidro ardendo
E labaredas torram a língua
De quem disser: Eu quero
A puta
Quero a puta quero a puta.

Ela arreganha dentes largos
De longe. Na mata do cabelo
Se abre toda, chupante
Boca de mina amanteigada
Quente. A puta quente.

É preciso crescer esta noite inteira sem parar
De crescer e querer
A puta que não sabe
O gosto do desejo do menino
O gosto menino
Que nem o menino
Sabe, e quer saber, querendo a puta.

 

 

 

Indagação

 

Como é o corpo?
Como é o corpo da mulher?
Onde começa: aqui no chão
Ou na cabeleira, e vem descendo?
Como é a perna subindo e vai subindo
Até onde?
Vê-la num corisco é uma dor
No peito, a terra treme.
Diz-que na mulher tem partes lindas
E nunca se revelam.

Maciezas
Redondas. Como fazem
Nuas, na bacia, se lavando,
Para não se verem nuas nuas nuas?
Por que dentro do vestido muitos outros
vestidos e brancuras e engomados,
Até onde? Quando é que já sem roupa
É ela mesma, só mulher? E como que faz
Quando que faz
Se é que faz
O que fazemos todos porcamente?

 

 

Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,
ou na banheira amar, de água vestidos,
amor escorregante, foge, prende-se,
torna a fugir, água nos olhos, bocas,
dança, navegação, mergulho, chuva,
essa espuma nos ventres, a brancura
triangular do sexo -- é água, esperma,
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fontes?

 

 

 

 

Sugar e ser sugado pelo amor
no mesmo instante         boca milvalente
o corpo dois em um         o gozo pleno
que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar e ser chupado
        no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.

 

 

 

 

Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas

detêm a mão ansiosa: Devagar.

Cada pétala ou sépala seja lentamente

acariciada, céu; e a vista pouse,

beijo abstrato, antes do beijo ritual,

na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.

 

 

 

O chão é cama para o amor urgente,

amor que não espera ir para a cama.

Sobre tapete ou duro piso, a gente

compõe de corpo e corpo a húmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

 

 

 

No pequeno museu sentimental

os fios de cabelo religados

por laços mínimos de fita

são tudo que dos montes hoje resta,

visitados por mim, montes de Vênus.

 

Apalpo, acaricio a flora negra,

e negra continua, nesse branco

total do tempo extinto

em que eu, pastor falante, apascentava

caracóis perfumados, anéis negros,

cobrinhas passionais, junto do espelho

que com elas rimava, num clarão.

 

Os movimentos vivos no pretérito

enroscam-se nos fios que me falam

de perdidos arquejos renascentes

em beijos que da boca deslizavam

para o abismo de flores e resinas.

 

Vou beijando a memória desses beijos.

 

 

Coxas, bundas, coxas

Coxas
bundas
lábios
cheiros

bundas
coxas
línguas
vulvas

coxas
bundas
unhas
céus
terrestres
infernais
no espaço ardente de uma hora
intervalada em muitos meses
de abstinência e depressão.