22-12-2008
BALTASAR ESTAÇO
(1565 - ?)
ÍNDICE DOS SONETOS:
A um amigo sobre certo propósito
A uma donzela que se metia freira
A uma freira descontente de seu estado
A uma religiosa que se chamava “da graça”
VIDA
Baltasar Estaço, conhecido na época por Balthezar Estaço, nasceu em Évora em 1565 (em 4-8-1614, declarou na Inquisição ter 49 anos), sendo filho de André Nunes, cavaleiro fidalgo da casa do Cardeal D. Henrique, e de Brites Estaço, ambos cristãos velhos. Disse na Inquisição não ter conhecido os avós paternos, nem a avó materna; sabia que o avô materno se chamara Gabriel Estaço e fora veador do Arcebispo de Braga. Seus irmãos foram:
- mais velhos do que ele: Luisa Estaça, freira professa da Ordem de S. Agostinho, de Évora e Gaspar Estaço, cónego da Colegiada de Guimarães;
- mais novos do que ele: Fr. Lourenço Estaço, frade professo da Ordem de S. Francisco, da Província do Alentejo e Fr. Manuel Estaço, professo da Ordem de S. Agostinho.
Seu irmão Gaspar escreveu um Tratado da Linhagem dos Estaços, naturais da cidade de Évora (Lisboa, 1625), mas não o mencionou no livro.
Estudou Humanidades e Teologia na Universidade de Évora. Terminados os estudos, foi ordenado Presbítero do Hábito de S. Pedro. Serviu o bispo D. João de Bragança que fez com que fosse nomeado Cónego da Sé de Évora. Nomeado para Viseu em 1599, D. João levou-o consigo e nomeou-o Cónego Penitenciário da Sé de Viseu. Com um subsídio do mesmo Bispo, publicou em 1604 o livrinho de “Sonetos, canções e églogas” mencionado na Bibliografia, de onde foram extraídos os sonetos que nesta página se reproduzem.
Entretanto, matriculou-se na Universidade de Coimbra em 3 de Dezembro de 1605, como refere a Dr.ª Celestina Cavaleiro na Tese de Mestrado indicada na bibliografia; mas não concluiu estudos nem fez nova matrícula.
A vida deverá ter-lhe corrido bem em Viseu, protegido como estava pelo Bispo, seu amigo. As coisas mudaram para bem pior, quando tomou conta da Diocese novo Bispo, de nome, D. João Manuel, em 1609.
O Cónego Baltasar Estaço, homem inteligente e poeta de algum mérito, foi cair nas garras da Inquisição, que, sem ser demasiado severa, lhe arruinou a vida. Para contar o que se passou, seguirei o relato de António Baião (ver Bibliografia), já que o processo da Inquisição (n.º 2384, da Inq. de Lisboa) está inacessível por se encontrar em “mau estado”.
Julho de 2010 - Agora já está online.
O crime de que era indigitado era a solicitação ad turpia, o aproveitamento do sacramento da confissão para a prática com mulheres de actos libidinosos. Em Viseu, tinha dois acusadores principais, junto do Bispo: o Provisor do Paço Episcopal, Licenciado Baltasar Fagundes e o Licenciado Simão Nunes, advogado na cidade, que queria mal ao cónego, por este ter tirado de sua casa a sua criada Violante, de dezoito anos, formosa e bem parecida. Em 24 de Maio de 1614, o Bispo de Viseu escreveu à Inquisição de Coimbra, denunciando que Baltasar Estaço “diz ás mulheres que que quando as tem nos braços cuida que tem a Nossa Senhora e que elas cuidem o mesmo, e que tomar-lhes as mãos e meter-lhas nos peitos e usar de semelhantes tocamentos de ósculos não são pecado, mostrando-lhes que lhe concede Deus graça para os ditos tocamentos o não alterarem e as convida para sua casa e cama para esta comunicação a que chama santa, etc.”
Os Inquisidores responderam em 14 de Junho seguinte que convinha prender o réu, mas em nome do Bispo e não da Inquisição. O assunto subiu ao Conselho Geral a Lisboa, que em 20 de Junho, determinou “que a inquirição se fizesse e logo que qualquer testemunha deponha de ósculos ou de amplexos, ou tocamentos deshonestos, seja preso e depois de preso se acabem de tirar as mais testemunhas.”
Assim se fez. A inquirição decorreu no Paço Episcopal, no aposento do referido Provisor do Bispado, Baltasar Fagundes. Interrogados o advogado Simão Nunes, António Madeira, cónego da Sé de Viseu, uma Ana Fernandes, viúva, o padre Estevão Francisco, cura na Sé de Viseu, o padre Luis Teixeira, reitor do seminário de Viseu, Ana Duarte, confessada do cónego.
A 27 de Junho, Baltasar Estaço tomou a iniciativa de ir a Coimbra, mas pouco se demorou pois, regressado a Viseu, apareceram-lhe a 2 de Julho em casa o meirinho com dois escrivães para o prenderem. Por despacho de 5 do mesmo mês de Julho, os Inquisidores de Coimbra ordenavam fosse mandado para Coimbra para uma das casas do Inquisidor D. Francisco de Menezes.
Teve bastante repercussão na cidade de Viseu a prisão do cónego e os seus amigos bastante se movimentaram para o livrar, mas sem sucesso. Dizia o provedor Fagundes: “Alvoroçou-se tanto a cidade e todos os seus devotos e devotas se apaixonaram tanto que, se não fora preso pelo Santo Oficio, o houveram de tirar das mãos do meirinho que o prendeu!» .
A 13 de Julho, chegou o cónego a Coimbra e ficou em casa de Francisco de Menezes, até que, a 24 o Conselho Geral confirmava a sua prisão que foi efectivada a 28 de Julho.
A 1 de Agosto fez o inventário dos bens e a 4 a Genealogia.
Em Viseu, havia muita gente a considerar que havia exagero na prisão do Cónego Baltasar Estaço. Na época, muitos padres tinham amantes e o maior crime dele tinha sido ser tão exibicionista.
Ou por pedidos, ou para despachar o assunto, determinou o Inquisidor-Geral, de Lisboa, a remoção do preso para a capital:
«Tem-me dado tanto cuidado este negocio do cónego Estacio penitenciário na see de Vizeu pella gravidade e qualidade de suas culpas que ainda que entendo que V. M. tem nelle mui bem procedido e feito muito serviço a N. S. em descubrirem a verdade de tam graves delictos e tenho confiança das letras e prudência de V. M. que só V. M. bastavam para lhe darem a boa expediçam, comtudo pera maior justificaçam me pareceo manda-lo vir aos cárceres desta Inquisiçam de Lisboa pera que em todo tempo se possa saber que fazemos neste caso tam grave as diligencias necessárias e extraordinárias pera que elle possa vir em conhecimento da verdade e confesse as culpas de tam grave delicto; pello que encomendo a V. M. o mandem com pessoas de confiança que o tragam seguramente aos cárceres d'esta Inquisiçam saindo d'essa ante-manhã, de noite pera que ninguém o veja; nem o deixem falar com pessoa alguma e quando chegar á Ribeira d'esta cidade virão os que com elle vierem dar recado ao Inquisidor pera ordenar que seja trazido com quietaçam e com elle mandarão seus próprios autos aos inquisidores pera correrem com elle.
N. S. etc. de Lisboa, 15 de fevereiro de 1617.
Bispo Inquisidor Geral.»
Em 5 de Março de 1617, dava ele entrada nos cárceres da Inquisição de Lisboa e logo a 16 fazia declarações surpreendentes, quer pelo que têm de confissão, quer pelo que têm de sofisma.
Sendo morador em Viseu, havia dez ou doze anos que lhe aparecera uma doença, a “enfermidade da frieza”, pela qual se não conseguia aquecer por mais roupa que pusesse na cama. Descobriu então que um remédio para isso era dormir com mulheres despidas. Isso mesmo fizera oito anos antes com as três irmãs do Padre Francisco Pais, uma em cada noite; com nenhuma dessas mulheres “tivera acto algum torpe, nem elas com ele”, “sem embargo que se abraçavão, e chegavam hum ao outro pera effeito de o aquentarem.” Com uma delas, de nome “Izabel Mendez teve alguns ósculos, e lhe pôs as mãos nos peitos dela; porém que nunqua teve animo algum libidinoso, nem emtende que ella o tivese, e com as outras duas irmãs teve tão bem alguns ósculos e amplexos tendo-as na cama comsigo pera o ditto effeito, porem foy mais raramente e sempre sem animo libidinoso. “
A lista das companheiras de cama, com fins “medicinais”, prossegue:
Haveria quatro ou cinco anos, uma Luisa de Almeida e Isabel Fernandes, moças solteiras donzelas, dormindo com ambas. Depois apareceram outros dias, uma de cada vez.
Haveria quatro anos, uma Beatriz do Rego, tecedeira, que com ele passou quatro noites.
Haveria cinco ou seis anos, tinha ele um pajem de nome Manuel Correia, que estava doente; uma Francisca João, de 40 anos, ia lá curá-lo e dormiu com ele: “se deitou a dita francisca joão com elle dentro na cama entre os lençoes despida e elle declarante com o dito seu colete e ali jouverão ambos por espaço de duas ou três oras em cada noite e não ouve ósculos, nem tocamentos mais que chegala elle declarante pera si e chegarem o rosto hum ao outro sem preceder animo algum desordenado”.
Haveria seis anos ou pouco mais, com uma moça de nome Eufémia, umas cinco ou seus vezes.
Haveria quatro anos, com Maria João, mulher donzela, de pouco mais de trinta anos, por duas vezes.
“…e que, requeria lhe tomassem estas declarações do que passara com as sobreditas mulheres, porque as queria dar em prova de sua defeza, e que avendo as ocaziões que tem declarado ellas jurarão que nunqua pequou com ellas, e que lembrando-lhe ainda doutras pessoas que se deitassem com elle na cama pera effeito de o aquentarem elle o virá dizer nesta meza, e que seus inimigos, o padre Luiz Teixeira, Reitor do Seminário, e confessor do Bispo de Vizeu, e Simão Nunez, christão novo advogado na mesma cidade de Vizeu, e seu filho Lopo de Crasto se conjurarão contra elle declarante e lhe alevantarão a culpa porque o prenderão e por ser tarde e dada a ora se não foy com esta sessão por diante e foy mandado a seu cárcere e assynou aquy com o ditto senhor Inquisidor. Domingos Symões o escrevi — João Alvres Brandão — Balthezar Estaço.»
Terão os Inquisidores acreditado na alegada doença e no original tratamento?
A 14 de Fevereiro de 1620, foi o Réu ainda ao tormento, não muito rigoroso.
A sentença condenatória foi publicada no auto da fé de 5 de Abril de 1620, e nela se manda “que o Reo Baltazar Estaço em pena e penitencia de suas culpa vá ao auto de fee com hũa vella acesa na mão e nelle faça abjuração publica de vehementi sospeito na fé e por tal o declarão e o privão perpetuamente de suas ordens, uso e exercício dellas e de pregar e confessar e o condenão a cárcere perpetuo no lugar que lhe for assinado onde fará penitencia de tão graves pecados e não entrará nunca em a cidade de Vizeu, nem em seu termo sob pena de ser por isso gravemente castigado.”
Preso nas Escolas Gerais pediu e conseguiu, a 3 de Julho de 1620, que a sua reclusão fosse comutada para o Mosteiro de Belém, e, em 29 de Outubro de 1621, era libertado na condição de não ir para Viseu nem para a área daquele Bispado.
Consta que partiu para Espanha, onde terá falecido, ignorando-se a data.
OBRA
Apesar das suas debilidades, o livrinho de “Sonetos, canções e églogas” de Baltasar Estaço bem merecia uma edição moderna. Julgue o leitor pelos sonetos que transcrevo. Já os poemas de natureza religiosa são pouco convincentes, sabendo-se de quem vêm.
A Dr.ª Celestina Cavaleiro faz na sua tese a apreciação literária da obra conhecida do Autor. Com a tese, publicou o manuscrito “Menino Perdido”. De lá transcrevo a página de capa:
DIÁLOGO EM VERSO CHAMADO MENINO PERDIDO
Interlocutores: Jesus, Maria, José
Dedicado ao Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom José de Melo, Arcebispo de Évora, e composto por Baltezar Estaço, teólogo de profissão, e natural da Cidade de Évora.
Neste trata o autor louvores do glorioso S. José, da Rainha dos anjos, e do Minino Jesus, todos fundados na Escritura Sagrada. Trata a jornada que fizeram de Nazaré a Jerusalém, como perderam o Minino ao sair do Templo, como três dias o buscaram, como nele o acharam, e como se tornaram pera Nazaré, com muitas noticias mui importantes a todas as almas fiéis.
Terá o princípio do livro ũa estampa fina que contenha as três figuras seguintes: de ũa parte a Rainha dos Anjos, da outra o glorioso S. José, e no meio o Minino Jesus, com ambas as mãos dadas a ambos, e ao pé da estampa os versos seguintes:
Et Reges mundi, et mundus tibi cedat Joseph
Nam mundum, et reges, qui regit, ipse regis.
Será impresso em quarto oitavo por que valha menos e se comunique mais.
A devoção do “Menino perdido” tem origem num episódio da vida de Jesus, contado no Evangelho. Eis o texto do Evangelho segundo S. Lucas, Cap. 2, vers. 41-50:
41 Ora, todos os anos iam seus pais a Jerusalém à festa da Páscoa;
42 E, tendo ele já doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume do dia da
festa.
43 E, regressando eles, terminados aqueles dias, ficou o menino Jesus em
Jerusalém, e não o soube José, nem sua mãe.
44 Pensando, porém, eles que viria de companhia pelo caminho, andaram caminho
de um dia, e procuravam-no entre os parentes e conhecidos;
45 E, como o não encontrassem, voltaram a Jerusalém em busca dele.
46 E aconteceu que, passados três dias, o acharam no templo, assentado no meio
dos doutores, ouvindo-os, e interrogando-os.
47 E todos os que o ouviam admiravam a sua inteligência e respostas.
48 E quando o viram, maravilharam-se, e disse-lhe sua mãe: Filho, por que
fizeste assim para connosco? Eis que teu pai e eu ansiosos te procurávamos.
49 E ele lhes disse: Por que é que me procuráveis? Não sabeis que me convém
tratar dos negócios de meu Pai?
50 E eles não compreenderam as palavras que lhes dizia.
Trata-se de um poema inédito e não datado, com 10 cantos. É um poema épico, que tem Proposição, Invocação, Dedicatória e Narração.
Por curiosidade, veja-se abaixo o soneto sobre o mesmo assunto.
A Dr.ª Celestina Cavaleiro diz na sua tese que não conseguiu encontrar nenhum dos outros três manuscritos referidos na notícia da Biblioteca Lusitana, apesar dos esforços para isso empreendidos.
DO PRÓPRIO ABORRECIMENTO
Que guerra tão cruel trago comigo,
Comigo de quem sempre ando ferido,
Pois para nunca ser de mim vencido,
A mim comigo mesmo me persigo.
Vou contra mim se não me contradigo,
Se não me ofendo, sinto-me ofendido,
E como sou de mim tão combatido,
De mim mesmo me fiz fero inimigo.
Vejo-me contra Deus adversário,
Com cuja disciplina só me instruo,
E assim nunca comigo me conformo.
De mim mesmo me sinto tão contrário,
Que quando me reformo, me destruo
E quando me destruo, me reformo.
Como refere a mencionada tese, este soneto foi inspirado por este poema de Sá de Miranda:
COMIGO ME DESAVIM
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim , se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho i’migo de mim?
Sá de Miranda
A UMA RELIGIOSA QUE SE CHAMAVA “DA GRAÇA”
Que graça foi tão santa, a que alcançastes ?
Que glória foi tão falsa, a que perdestes?
Que graça foi tão rica a que quisestes?
Que glória foi tão pobre a que deixastes?
Que graça foi tão alta a que mostrastes?
Que glória foi tão baixa a que perdestes?
Que graça foi tão grande a que dissestes?
Que glória foi tão falta, a que prezastes ?
Toda a graça vos dá Deus vosso amado,
Por que a glória deixeis, que o Mundo abraça,
E a tenhais por graça, e falsa história.
A glória que Lhe dais vos tinha dado,
Dá-vos por glória vã divina graça,
E por graça divina eterna glória.
Cantando se renova o
pensamento
Do bem, que nos ficou só em lembrança,
Cantando se acrescenta a esperança
Do gosto, que soterrou nosso tormento.
Cantando se levanta o alto
intento,
O qual caiu co'a dor, que sempre o cansa,
Cantando se modera a esquivança,
Da pena, que se pôs no entendimento.
Também o vulgo diz que o
Fado adverso.
Costuma de espantar quem quer que canta,
Julgando que о mau fado foge ao canto.
Mas deve ser tão doce o
vosso verso,
Que não vos quer fugir porque se espanta,
Mas quer-vos sempre ouvir só para espanto.
A CERTA PESSOA LASCIVA
Se vós vireis donzela que amimava,
Hũa serpe cruel que a ofendia,
E que esta mais amava, e mais queria
Sem embargo do mal que lhe causava.
Se vísseis que esta mesma a quem amava,
Em pago deste amor, a destruía,
E tanto com mor fúria a perseguia
Quanto com mores mimos a afagava.
Não pasmáreis de ver que estava entregue
A tal serpe donzela, que se entende,
Pois vede que essa carne essa alma mata.
Que quanto mais a honrais, mais vos persegue
Quanto mais a mimais mais vos ofende
Quanto mais a servis pior vos trata.
EM DESPEITO
DO AMOR PROFANO
Mostra prudência sábia o que
é minino,
apresenta-se manso o que é tirano,
aparece sagrado o que é profano,
profanando porém o que é divino.
O siso quer fingir no
desatino,
a verdade pintar no falso engano,
disfarçar o proveito em nosso dano,
matando o natural e o peregrino.
Imóvel se afigura o
inconstante
Amor, porque de falsa cor se tinge
para que nada dê, mas nada negue.
Tal este amor se mostra e
finge ao amante,
mas tal qual este amor se mostra e finge,
tal fica quem o busca e quem o segue.
A UMA FREIRA DESCONTENTE DE SEU ESTADO
Qual ave brava, leve e furiosa
Que na gaiola estreita foi metida
A qual de sua fúria anda ferida
Por fugir da prisão que achou penosa,
Tendo a sustentação menos custosa
Sem a querer tomar perdeu a vida
E sem poder fugir anda fugida
Da paz que pode ter mais deleitosa,
Tal sinto essa vossa alma na clausura
Na qual o bem que quer não pode havê-lo
E o bem que pode ter não quer buscá-lo:
E assim perece em brava desventura:
Sem mundo, porque já não pode tê-lo
Sem Deus porque onde o tem não quer gostá-lo.
A UMA DONZELA QUE SE METIA FREIRA
Deixai Virgem, deixai gostos mundanos
Por outros mais subidos, e mais finos,
Vereis que o menor gosto dos divinos,
É maior que o maior destes humanos.
Deixai do mundo vão brandos enganos,
Pois vedes que com cegos desatinos,
Concede os mores bens aos mais indignos,
E aos mais dignos dá mais graves danos.
Tomais o próprio, e dais o emprestado,
Trocais a vida breve, pela vida
Onde o mesmo trabalho é descansado,
Pois tereis, se tiverdes, tal estado,
Mor gosto de hũa dor por Deus sofrida,
Que de um ledo prazer do mundo dado.
Que águas serão estas, que nascendo
De fontes, que nem sempre estão manando,
Para molhar a terra não bastando,
Bastem para afogar um monstro horrendo.
Que águas podem ser as que não sendo
Lançadas sobre o fogo, o estão matando.
Que não podendo a terra ir penetrando,
Possam no centro dela estar correndo.
Doces para mim águas salgadas
Nas quais o meu pecado estou afogando,
Por bem dos olhos meus aos olhos dadas,
Folgai olhos, folgai de estar chorando,
Porque as águas dos olhos cá choradas,
O fogo infernal estão apagando.
SOBRE CERTA TENÇÃO
Já não quero soltar meus pensamentos,
Nem quero que me enganem meus cuidados,
Nem que me lembrem já gostos passados,
Nem quero que me cansem meus tormentos.
Não quero buscar vis contentamentos,
Nem quero sofrer maus entronizados,
Nem ver males por bens representados,
Nem quero festejar baixos intentos.
Não quero entender que a paz é guerra,
Nem quero já esperar, que já não espero,
Nem me quero mudar deste desenho,
Não quero crer que é ouro, o que é só terra,
De tudo quanto quis já nada quero,
Porque tudo o que quero tudo tenho.
Que ganha o rouxinol que está cantando
De o ouvir com gosto o passageiro,
Ou que fica perdendo-se o grosseiro,
Sem no querer ouvir, passa falando.
Vive, todas as cruzes desprezando,
Quem só estime as cruzes do dinheiro,
E quem quer na ciência ser primeiro
Todos detrás de si quer ir levando.
Por que me dão na sombra me doo,
Nem me queixo de quem me rouba o vento,
Que a arte inútil, inútil faz a fama,
Só canto para mim, só a mim soo,
E se amando-me a mim, me não contento,
Como hei-de contentar quem me não ama?
A UM GALANTE AFEIÇOADO
Bem como capitão experimentado,
Em armas, e em batalhas sanguinosas,
Que, depois de vitórias mui honrosas
Torna de novo a ser simples soldado,
Aprende o mal em que era agraduado,
Buscando brigas cíveis e afrontosas,
Tornando a estudar as perigosas
Lições, que já sabia, e tinha dado:
Assim me pareceis nesses favores,
Com que vos enganais, ou vos enganam,
Que cedo serão mágoas, serão dores,
Depois de experimentardes desfavores,
Saber o quanto custam, e quanto danam,
Tornais a começar de novo amores.
AO MENINO PERDIDO
Quem vos amasse tanto que soubesse,
Entender do amor o alto intento,
Mas cá me diz a mim meu pensamento
Que quem não perde o bem não no conhece.
Perdestes-vos Senhor por que eu tivesse
De vosso amor maior conhecimento,
Por que perdido o meu contentamento,
O soubesse estimar quando viesse.
A tão subido amor, Amor subistes,
Que vos quereis perder por ser buscado,
E com gosto maior de nós sentido.
Que se em perda tamanha consentistes,
Foi por dar o prazer de ser achado
Não por dar o pesar de ser perdido.
A UM AMIGO IMPORTUNO
Tais circunstâncias tem vossa porfia,
Quer vos pode danar o porfiardes,
Que sem por ser primeiro em madrugardes,
Há-de nascer primeiro a luz do dia.
Cuidais que só por vossa fantasia,
Podereis alcançar o que alcançardes,
Levando para mais me molestardes,
A importunação por vossa guia.
Quem há que com seu mal se não desfaça
Ou entre só no corpo, ou entre n’alma,
Deixai de porfiar, cessará a dor,
Que nem sempre a porfia mata a caça,
Porque, se o caçador caça por calma,
Pode matar a caça ao caçador.
A UM AMIGO SOBRE CERTO PROPÓSITO
Quereis tirar ouções *, em noite escura,
Quereis que seja escuro o sol que é claro,
Quereis fazer comum o que é tão raro,
Quereis que seja mole a pedra dura.
Quereis fazer ditosa a desventura
Que o liberal que seja avaro,
Quereis que o mal sem fim tenha reparo,
Quereis que a torpe acção que seja pura.
Muito quereis porém e não cuidando,
Quão diferente estais do que estivestes,
A quem condeno agora, e não defendo,
Assim me vou convosco declarando,
Eu bem entendi cá, quanto entendestes,
Vede se me entendeis, que eu bem me entendo.
* Lêndeas
De tempo em tempo tudo vai andando,
O tempo sem pôr tempo vai correndo,
Sem tempo não se vão os tempos vendo,
Por tempo o tempo vai profetizando.
Do tempo o tempo só pode ir falando,
A tempo se pode o tempo ir erguendo.
C’o tempo se vão tempos entendendo.
Que o tempo vários tempos vai mostrando
Nunca o tempo perdido é mais cobrado,
Que se o tempo nos tira o que é presente,
Mal pode dar o tempo o que é passado.
O tempo gaste bem todo o prudente,
Que se o tempo que passa é bem gastado,
Todo o tempo passado tem presente.
Transcrição da antologia “Poesia maneirista", citada.
Cercado de medonhos pensamentos
Que voam sobre mim por meu castigo
Como núncios do mal e do perigo
Em que me põem os vis contentamentos,
Vendo o fruito de meus leves intentos
Que tanto a meu pesar andam comigo,
Os quais, quando aborreço ou quando sigo,
Com ódio, com amor, são meus tormentos,
Ordena o Céu que veja e que conheça
Que não posso eu de mim só defender-me,
Nem posso só comigo aliviar-me,
Porque ou eu me resista ou me obedeça,
Nem fugindo de mim posso valer-me,
Nem vivendo comigo contentar-me.
Transcrição da antologia “Poesia maneirista", citada
LINKS:
BIBLIOGRAFIA
Sonetos, cancoe[n]s, eglogas e outras rimas, compostas per Baltezar Estaço, Conego na Sê de Viseu, natural da Cidade de Evora, dirigidas ao Illustrissimo & Reverendissimo senhor Dom João de Bragança Bispo de Viseu, Em Coimbra, na Officina de Diogo Gomez Loureyro, Impressor da Universidade, 1604, Com Licensa da Sancta Inquisição, & Ordinario & Privilegio Real
Celestina Maria da Costa Cavaleiro, Nos meandros do maneirismo, Baltasar Estaço e a poesia religiosa de Quinhentos
Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1999
1.º vol. 144 pags./folhas
2.º Vol. (Anexo) – Diálogo em verso chamado Menino Perdido – MS 175 pags. Em fac-simile + 175 pags. Transcrição
Poesia maneirista – textos literários – Apresentação crítica, selecção, notas e sugestões para a análise literária de Isabel Almeida, Editorial Comunicação, Lisboa, 1998, ISBN 972-645-145-0
António Baião, Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa, Porto, Renascença Portugueza, 1919, 1.º vol.
Online: www.archive.org
Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário bibliographico portuguez e estudos applicaveis a Portugal e ao Brasil
Online: http://books.google.pt
Vol. VII. Pags. 11-35
Online: http://books.google.pt
BALTHEZAR ESTAÇO. Nasceu na Cidade de Evora em o anno de 1570 para augmentar a gloria da sua nobre familia igualmente fecunda de Varoens insignes em Letras, e armas. Desde a adolescencia se applicou ao estudo da Poesia a que naturalmente o impellia o genio, e de tal modo alcançou os preceitos desta divina Arte que mais parecião inspirados, que aprendidos produzindo em annos verdes frutos sazonados como elle affirma na Carta ultima com que dá fim aos seus Poemas:
Nos meos annos tende o tento
Os quaes não sei se assomais
Com eu ter vinte não mais.
Com a mesma applicação estudou Filosofia, e Theologia assim Escholastica, como Moral em que sahio egregiamente instruido. Ordenado de Sacerdote pelo Illustrissimo Bispo de Viseu D. João de Bragança mereceo deste nobilissimo Prelado o mais fino affecto nascido da communicação que com elle tivera quando antes de ser assumpto no Bispado era Conego de Evora. Para mayor demonstração de quanto o estimava o fez Conego Penitenciario de sua Cathedral, e lhe persuadio publicasse os seus Versos os quaes em sinal de agradecimento dedicou a este grande Mecenas com este titulo.
Sonetos, Cançoens, Eglogas, e outras Rimas.Coimbra por Diogo Gomes de Loureiro.1604 .4.
Dialogo chamado Governo de Deos com as almas, e concordia entre os Doutores modernos feita com a mente de Santo Agostinho sobre o auxilio sufficiente e eficaz da graça Divina. Dedicado ao mesmo Santo. São Interlocutores do Dialogo Flaminio Theologo, Feliciano Jurista. M. S.
Rosario da Rainha dos Anjos . Dedicado à mesma Senhora M. S. d’estes dous livros se conservão na Livraria do Convento dos Carmelitas Descalços da Cidade de Evora.
Menino perdido. Dialogo em verso. interlocutores JESUS MARIA, JOZÉ. Dedicado ao mesmo Santo em cujo frontispício tem este Dístico:
Et Reges mundi, et mundus tibi cedat Joseph
Nam mundum, et Reges qui regit, ipse regis.
Consta de 175. folhas em 4.composto em Oitava Rima, e nas margens citados os lugares da Sagrada Escritura que na tal obra se allegão, a qual conserva M. S. em seu poder o P. Fr. Affonso da Madre de Deos Academico Real que nos comunicou esta noticia.
Varios remedios, e consolações a todos os trabalhos, e molestias, que costumão ter os homens de varios estados entre os quaes se propoem os remedios, e consolações que póde ter hum Prèlado das molestias que nascem do governo das suas ovelhas. Esta obra composta por modo de cartas consolatorias estava quasi concluida a metade no anno de 1602. M. S.
Fazem menção deste Author Nicolao Ant. Bib. Hispan.Tom. 1. pag. 142. col. 2. João Franc. Barret. Bib. Lusit. M. S. Fonsec. Evor. Glorios. pag. 406. e 410. e ultimamente o P. Antonio dos Reys in Enthusiasm. Poet. n. 82.
Par operi plectrum pulsans Balthasar honora
Quem non docta cohors, nec Cynthius ipse coronat
Fronde, sed e Superis lapsum diadema per auras
Non nisi Sacra canens solio residebat in alto.
Da: Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica : na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das obras, que compuserão desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até ao tempo presente, por Diogo Barbosa Machado (1682-1772), 4 vols., 1741.