20-12-2012

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José Agostinho de Macedo (1761 - 1831)

 

 

Volto de novo a José Agostinho de Macedo. A leitura da excelente biografia dele por António Mega Ferreira, recentemente publicada, sugeriu-me ir procurar o texto do “Parecer” dele sobre a “emigração” (como ele diz) de D. João VI para o Brasil em 1807, que ficou inédito no tempo dele e foi publicado por Teófilo Braga em 1900.  

 

 

 

Parecer dado acerca da situação e estado de Portugal depois da saída de Sua Alteza real e invasão que neste reino fizeram as tropas francesas

 

O homem de bem, e amante da sua pátria, não deve ser infiel à sua mesma consciência, nem dissimular seus sentimentos, até naquele momento em que vir sobre seu pescoço pendente o ferro da tirania. A verdade ousa aparecer e anunciar-se até na presença de opressores; e como se me pede o meu parecer sobre o estado deste reino, e consequências da sua usurpação, eu o darei com aquela ingenuidade e liberdade, que teria se falasse no meio de uma república, e opinasse sentado entre os livres membros do parlamento de Inglaterra. O primeiro resultado da inconsiderada paz de Tilsit foi a invasão de Espanha e Portugal; neste tratado se começou a divisar o plano de Bonaparte sobre a monarquia universal. O orgulho e ambição que o deslumbra, nunca lhe fez desconhecer a desproporção dos meios que toma com o irrealizado fim do abatimento de Inglaterra pela sua exclusão do continente. Bonaparte é homem de muita malícia, mas de nenhum estudo, e de limitados talentos. É certo que se afiança sobre os efeitos de suas primeiras missões, porque prepara um punhado de malvados, no meio de uma nação. Não se lembra que roubando e cativando os monarcas indispõe os povos.

O Príncipe de Portugal podia malograr os seus ardis até depois de ter dentro da capital um exército de mendigos salteadores. Evadiu- se ao seu refalsado furor, e Bonaparte com este furor abateu e quase arruinou o mesmo reino, a que chama conquista e possessão sua. Deixou de ser reino, e quem poderá resolver o problema; quando e como o poderá ainda ser? Desde a sua fundação até á morte do décimo sexto monarca, se manteve, se dilatou, e se enriqueceu tanto, que de nenhum outro depois da queda do Império romano se podem contar tantos prodígios, valor, espirito patriótico, politica, literatura, rasgos heróicos, tentativas árduas e felizmente acabadas, o fizeram para sempre memorável. O maior dos seus monarcas, D. João 1.° conheceu o génio da nação que o firmou no trono, viu que era preciso dilatar-se, estender-se, e conquistar. Foi o primeiro soberano que deixou por um momento o trono para se entregar ao Oceano, e ser conquistador; levou de um golpe Ceuta; eis aberto o passo para a glória de Portugal, que chegou depois a não caber no globo. O comércio do Oriente, feito por algumas potências marítimas do Mediterrâneo, as enriquecia. Portugal busca pela conquista de Africa a do Oriente. Era preciso constância, paciência, e valor. Nos reinados de Duarte, Afonso 5.°, João 2.°, e Manuel, tudo se tentou, e tudo se conseguiu, e nos últimos anos de João 3.º, Portugal na carta geográfica do globo ocupava maior espaço que tinham ocupado os antigos Romanos, e que talvez não chegue a ocupar nenhum império no mundo. São ingénuos os seus historiadores; porém, se quisermos dizer que não são acreditáveis, porque são parciais, Lafittau e Raynal dão claro testemunho a esta verdade, e fica a toda a sua luz pelo estudo da geografia antiga e moderna. Ás possessões da Berbéria se ajuntaram todas as costas ocidentais de Africa desde Gabo Verde, Serra Leoa, Castelo da Mina até ao Cabo da Boa-Esperança; toda a costa oriental de Africa até ao Cabo de Guardafu, as bocas do Eritreu, e Pérsico, com a ilha de Ormuz, toda a enseada de Cambaia até Diu; toda a Costa do Malabar até ao Cabo Comorim, a ilha de Ceilão e costa de Coromandel, e desde Meliapor até Malaca, tudo conheceu o ceptro português, e correu vitorioso até Bengala, e península de Macau; estabeleceu o comercio do Japão, quase todas as ilhas daquele imenso arquipélago, possuiu Timor, Tidore, e Ternat, não tinha mais que ver, e que conquistar na Ásia. Dilatou- se na América, parte do globo desprezada em o começo, e onde pode agora lançar os alicerces ao mais florento, formidável, e poderoso império do mundo. Desde o rio das Amazonas até ao da Prata tem mil e quatrocentas léguas de costa; e desde a costa até ás cordilheiras ou Andes, pelo menos mil e duzentas; o interior é incógnito, mas será ainda povoado, pela fatal, forçada emigração da Europa.

Neste esplendor se conservou até á morte de Sebastião. O domínio estranho de Castela, a politica soberba de Filipe Prudente, a conduta de seu filho e neto, a teima de fazer Holanda uma republica poderosa, a força de quarenta anos de guerra, abalaram o grande colosso da monarquia portuguesa, que restabelecendo-se depois não ficou em toda a sua integridade; porém, um português digno de eterna memoria, e o maior homem da nação, dentro dos limites de Portugal, quase o restituiu [1] ao antigo esplendor, magnificência, e representação, com planos vastíssimos, e destramente executados, com política profunda, com constância heróica, e com verdadeiro amor da pátria, á qual se votou de um modo que honrará sempre a humanidade; e por isto nunca Portugal se pode com justiça chamar uma potência secundaria na Europa. A necessidade, as relações, o comum interesse o ligou sempre intimamente á Inglaterra; e se esta só pela sua iluminada legislação se soube fazer em tudo superior a Portugal, deve-lhe a sua mesma grandeza, parte de seus tesouros, e a vasta extensão e opulência do seu comércio.

Um só dia acabou a obra de muitos séculos, e Portugal retrógrado não poderá por tempos oferecer mais que o espectáculo que ofereceu desde Sancho 1.° até Afonso 4.°º [2]. Cem léguas de extensão desde a barra de Caminha até ao Cabo de S. Vicente; pouco mais de trinta léguas de largura, eis aqui a que está reduzido o que se chamou vasto império Lusitano. Seis pequenas províncias, que não sustentam seus habitantes, pouca cultura, nenhum comércio externo, as artes extintas com a opulência e o luxo, não farão ver mais que a cena da penúria, e da miséria. Não tem exército, não tem fábricas, falta em que empregue a indústria, e neste estado é impossível a repentina passagem para a primitiva frugalidade, ou pobreza. Eis aqui o que foi, e o que Portugal agora é [3]. O maior erro politica, que até agora se tem cometido no mundo foi reduzi-lo a este estado; e este erro nunca se poderá remediar, porque já a Inglaterra não deve, nem pode atalhar a sua grandeza, o seu domínio, e a preponderância que vai a ter, e terá sempre no mundo.

Este erro político abrange toda a Europa, e esta vai a sentir terríveis efeitos da queda, ou ruina de Portugal; a sua conservação, integridade, e independência convinham a todas as nações; e era do interesse comum a continuação da monarquia portuguesa no estado em que existia antes da sua destruição; esta destruição enfraquece as potencias do continente, e só engrosa infinitamente o poder, a opulência, e a soberania de Inglaterra [4]: remove para sempre a época de uma paz solida, vantajosa, e permanente, e reduz á extrema desgraça os míseros portugueses europeus. Estas proposições não entraram nunca nos cálculos dos mais profundos políticos. Se a Inglaterra há muito tinha intentado para utilidade sua fazer por política o que agora ura ímpeto inconsiderado, ou o que é mais verdade, um plano abortado lhe foi meter nas mãos muito á medida do seu desejo, podendo até esta época desvanecer a esperança de o conseguir. A lisonjeira pintura do discurso do imortal Pitt em 1800, não oferece mais que uma especulação brilhante, que deslumbra por um momento, porque conhecia este politico que realizando-se alcançaria a Inglaterra a maior e mais vantajosa de todas as vitórias, e aumentava a soma dos seus interesses até ao infinito. É formoso um quadro de uma nova Lisboa no interior do Brasil, de novas conquistas, novas leis, novo comércio, este projecto saiu primeiro da cabeça do maior político de Portugal, António Vieira [5]; mas nunca se realizaria, se a suposta e até agora não vista força o não obrigasse; e o para sempre dia memorável 30 de Novembro de 1807 deu nova face ao mundo. Desenvolvamos estas grandes proposições, e possa a Europa conhecer-se no quadro fiel que lhe vou apresentar no parecer que me pedem.

 

1.ª PROPOSIÇÃO

A forçada emigração do Príncipe Regente deixou o Portugal europeu em estado de não poder ser reino independente^ nem continuando a guerra, nem depois de feita a paz.

 

Demonstra-se:

Portugal era uma potência marítima e mercantil, e só começou a sentir vantagem depois da descoberta de ambas as Índias; a sua posição local só o forçou a ser uma potência guerreira com um reino limítrofe, cioso sempre da sua prosperidade, e nunca esquecido das suas antigas pretensões; mas a politica, os tratados, as alianças, tinham de todo suprimido o rancor, e feito esquecer as duas épocas de uma liberdade e independência felizmente conseguidas; e neste estado devia Portugal dar-se lodo ao comércio, utilizando as suas vastas possessões com o verdadeiro caminho da sua felicidade. Portugal conhecia o que tinha dentro em si. Apesar de todas as especulações sobre a agricultura, todas as leis, todas as providências dadas pela economia política, nunca pôde haver trigo suficiente para o consumo anual da sua população: eis aqui um género indispensável, que lhe era preciso haver de país estranho, e este género era comprado, ou era havido pelo metal representativo do seu valor. Depois deste género de primeira necessidade, seguem-se os outros de que carecia, e que o costume convertido em natureza linha feito indispensáveis, e até os do luxo, cousa necessária em as monarquias, apesar das declamações de moralistas melancólicos. Isto era o que Portugal não linha; mas nas vastíssimas possessões ultramarinas, as mais ricas do globo, tinha tudo, tudo aquilo de que as nações europeias necessitavam, e as suas transacções mercantis faziam passar pela praça de Lisboa trezentos milhões de cruzados anuais. Só Londres lhe excedia. Um governo, em aparência frouxo, mas profundamente sábio e político, tinha convertido com aparente condescendência, Lisboa em um porto franquíssimo: a informação dos tratados de comércio com a Inglaterra, que parecia impune, e não procedia de frouxidão, era o meio de tornar o comércio mais florescente, e de enriquecer sem risco a praça de Lisboa (tenha esta asserção dureza no comércio, deve-se atender mais para a pratica, que para as ocas teorias). Acima de quatrocentos navios andavam na carreira do Brasil, as fazendas exportadas daquele vasto país, em tanta abundância como diversidade, eram em parte compradas em Lisboa pelas nações da Europa, e era parte depois de estabelecido o comércio directo como Norte, conduzidas aos seus portos, por especuladores portugueses. Esta abundância dos géneros coloniais, e a riqueza inexaurível do numerário, que nunca cessaram de dar as minas do Brasil, atraíram a Portugal todas as nações, e afluíram todos os objectos de necessidade, ou de luxo. Sabe-se (nem é do meu instituto mostrar) o que neste reino importava a Rússia, a Suécia, a Dinamarca, a Holanda, as Cidades livres, a França, as mesmas potencias Berberescas, e sobretudo a Inglaterra, ou para o consumo deste reino, ou para se transferir ao Brasil, fechado com a mais constante severidade a todas as nações europeias, para fazer a opulência de Portugal, ficava o bem que agora não possui, nem possuirá jamais. O reino ficou reduzido pela emigração do Príncipe aos seus primitivos limites depois da última expulsão dos Mouros do Algarve no reinado de Afonso 3.°, e ficando com o mesmo território, não tem os mesmos costumes, as mesmas necessidades, o mesmo caracter, as mesmas paixões, o mesmo espirito que então tinha e não pode por isto ser a mesma monarquia que então foi.

Existe em guerra, não tem exército, nem organizando-o o pode manter, vestir, e pagar; não tem metais, e despojado do numerário que existia em circulação por uma exorbitantíssima contribuição, nem tem dentro em si, nem tem com que haver de fora pelas transacções mercantis com que possa refazer esta imensa e irreparável perda: e não só não pode já adquirir a abundância, mas nem ao menos satisfazer a necessidade. A classe a mais opulenta, e a mais essencial, que era a do comércio, está constituída ás portas da mendicidade; os fundos que ainda possuía dentro do país, estão exauridos pelo peso das exacções, e pelo progressivo consumo: os fundos que tinha nas colónias estão para sempre alienados, ou passe, ou não passe o reino a mãos estranhas. Os proprietários dos navios não os verão cruzar a barra de Lisboa. Como cessou a abundância, e a riqueza do comércio, ficou e estará sempre paralisada a classe dos artistas mecânicos; acabaram todos os objectos de luxo, e existe mais de um milhão de braços ociosos, inumeráveis famílias reduzidas à extrema penúria; a população decrescerá, e diminuirá diariamente, e por isto o ultimo recurso da necessidade, que é a agricultura, que se diz agora a base da grandeza das monarquias, para dar um ar de justiça ao desassisado projecto de abater uma potência [6] pela ruina de todas as outras, irá em diminuição. A emigração, apesar de se tomarem as medidas mais violentas para a vedar, aumentar-se-á todos os dias, e ficará o reino despedido de uma terceira parte dos seus habitantes; e faltando o comércio externo e interno, é quimera querer fazer do simples Portugal uma monarquia independente no estado de guerra. As rendas publicas, e do estado, ou se extinguirão de todo, ou se reduzirão a uma tão pequena soma, que não bastarão a manter uma sombra da majestade e do decoro de um monarca; e consumidos que sejam por uma vez na terra aqueles géneros que o país em si não tem, e que vedado o mar lhe é preciso atrair de fora com despesas incalculáveis, ficam para sempre estancados todos os recursos de haver mais (salvo se os homens se quiserem reduzir juntamente com os monarcas àquele estado de intolerável frugalidade em que Portugal existiu nos seus dois primeiros séculos). Se na especulação isto parece realizável, na prática é impossível. E que poderá representar no quadro da Europa um monarca de mendigos, não por vicio, mas por necessidade? É pois irrealizável a soberania, e até mesmo a conservação de Portugal no estado da guerra marítima, que uma potência invencível neste elemento faz a toda a Europa, e um ano de tão teimoso bloqueio reduzirá os povos europeus á mesma condição de Portugal.

Poderia o reino manter o comércio continental com as potências confinantes? Não poderá existir este comércio, ou a Espanha fique com as suas colónias, ou as perca. Se fica, não tem que tirar de Portugal, ainda que Portugal pudesse haver algumas produções do Ultramar; se não fica não pode trazer a Portugal os géneros territoriais, em primeiro lugar porque lhe não sobram; em segundo lugar porque tem tudo dentro em si quanto Portugal lhe podia dar em comutação. Mas feita a paz marítima, e accelerando esta época, poderá Portugal ter um monarca, ser independente e subsistir?

 

2.ª PROPOSIÇÃO

No estado da paz, Portugal desmembrado do Brasil não pode ser uma monarquia.

 

Concedendo por um instante só, que a Inglaterra por algum incidente acedia à paz continental, e que por base d'esta paz concordava na desmembração de Portugal, que o mesmo Príncipe do Brasil assentia á perda do seu incontestável direito á posse deste reino, e que nele reconhecia uma potência estranha e independente; com todos estes impossíveis realizados não mudava a condição presente de Portugal, nem sabia do abatimento de miséria, e de infelicidade a quem um só dia o reduziu. Eu ainda concedo mais um impossível, que é o livre acesso, e comercio aos povos do Brasil. Nestas falsíssimas suposições, que possui Portugal que transfira ao Brasil, por que possa haver o seu ouro, e as suas produções? Sal, e vinho, e algum azeite; o primeiro género o pode haver no Brasil, e se até agora se não permitiu, assim o pedia o interesse do estado. O segundo não é de extrema necessidade naquele clima; o povo, e classe ínfima lhe substitui a aguardente; para as classes superiores, das ilhas, e do Cabo se lhe subministrará em abundância. O terceiro género é muito incerto em Portugal; tirando o necessário para o consumo interno, pouco sobeja, e ainda sobejando muito, que pode avultar, para com ele extrair do Brasil todos aqueles géneros, e em tanta cópia que possam reproduzir, ou fazer ver um pequeno e passageiro vislumbre do antigo esplendor? Trazer do Brasil, da índia as drogas com que comerciar com as outras nações, eis aqui o que nunca consentirá a Inglaterra, nem pode consentir. Ainda que em Portugal se desenvolva, se promova, e se dilate a indústria francesa, e cheguem aqui á ultima perfeição as manufacturas, os tecidos de algodão, de lã, e de seda, o estabelecimento de fábricas em o Brasil, que o novo monarca deve de necessidade estabelecer, e aperfeiçoar, as colónias de artistas ingleses, que todos os dias crescerão a olho naquele imenso país; a introdução infinita das mesmas manufacturas inglesas a um preço cómodo, porque os ingleses, como é constante, sabem perder a tempo, a aluvião dos géneros da Ásia que os mesmos ingleses vazarão no Brasil, tudo isto dará desde logo golpes decisivos e mortais neste imaginado comércio de Portugal independente. Se para Portugal como potência independente no estado da paz, se abrirem os postos do Brasil, porque se não abrirão também para as outras nações europeias? e estabelecendo com elas um comércio directo, que poderá figurar no meio delas este retalho de terra, pobre, desprovida, e até aqui pouco industriosa, porque até aqui foi excessivamente rica? Ainda com estes dados nada poderá ser Portugal, que devemos olhar desde já extinto como monarquia, e como nação. Depois d'isto, quem não vê que depressa se despovoará este reino no meio de uma paz constante, e que ficará reduzido, ou a uma charneca continua, ou a admitir colónias francesas para conservar a sua população? Os interesses de família, a adesão ao Príncipe, aos costumes, ás leis, aos usos, á liberdade nobre, que têm todos os portugueses, as mesmas preocupações que conservará sempre pelos foros, pela, nobreza, pela corte; o invariável respeito e amor, que conserva á religião; a aversão ao trabalho, que é do caracter nacional, a penúria domestica, a exclusão dos empregos públicos que há seis meses completos hoje experimenta, a extinção necessária que deve haver em repartições do exercício de justiça e fazenda, a certeza de um estabelecimento cómodo em um novo império que se vai a criar, obrigará a uma total emigração de todas as classes. Ficará por isto para este infeliz reino tão prejudicial a guerra como a paz, tornando-se impossível a conservação de uma monarquia independente, salva sempre a mania de reduzir os homens ao primitivo estado do Pacto social.

 

3.ª PROPOSIÇÃO

Portugal, assim como as outras nações civilizadas da Europa, não pode ser reduzido ao estado primitivo.

 

A emigração precipitada do Príncipe isolou a Europa, acendeu mais o facho horrível da guerra, e removeu indefinidamente a época da paz, influiu em todas as constituições dos povos. Vemos rompidos de lodo os vínculos que nos uniam ao novo mundo, e que faziam comuns os bens de ambos os hemisférios. O uso converteu em necessidade inevitável as produções da América, só privativas a este país, que produzidas em tanta cópia só podem bastar ao consumo das nações europeias. As riquezas dali vindas estabeleceram e arraigaram o luxo, e deram outro caracter aos costumes, e houve mister progressões lentas e infinitas para chegar a este estado. Depois que se dissipou a segunda barbaridade da Europa com o estabelecimento das artes e cultura das ciências, começou a mesma Europa a gastar algumas drogas orientais, vindas a Aleppo e Alexandria pelo istmo de Suez, e conduzidas pelos Venezianos, Pisanos, e Genoveses, derramou-se este gosto por todas as nações, porque também vinha com ele a opulência. Despertaram a actividade dos Portugueses, franquearam pelo mar a passagem para a índia, e esta espantosa descoberta alvoroçou e mudou a face da Europa, estimou-se o que era regalo, amoleceram-se os costumes com o luxo asiático, e a Europa quis comer, quis trajar com a mesma pompa, e tudo conseguiu de sorte que em 1550 já não era a mesma Europa de 1497. Assim progressiva e gradualmente chegou a dar o espectáculo que deu a França sob Luiz 14.°, Portugal sob José 1.°, e as outras nações no estado em que as vimos. A impulsão que as conduziu a este ponto foi muito vagarosa, e que impulsão bastará para as reduzir ao estado de que há tantos anos (séculos digo) saíram, e que é para elas estranho, repugnante, intolerável? A momentânea e repentina? Eis aqui um sonho político, e que não se meteu ainda em cabeça ao mais esturrado publicista. Suspirou por este estado, e até pelo insocial o atrabiliário João Jacques, e esta quimera ficou nos seus incendiários escritos [7] e como pode esta quimera realizar-se agora por um capricho tomado por vingança [8] ? Para excluir os Ingleses de todos os portos do continente poderão todos os povos renunciar a todas as comodidades, prazeres, riquezas, comércio, artes liberais e fabris, luxo, e reduzir-se á simples agricultura para o simples necessário, e farão isto em um só momento, sem violência, sem o sentimento das privações, e do estado de polidez passarão ao de semibárbaros, com a mesma pressa com que se muda no teatro a vista de um palácio na vista de uma choupana? Viverá por ventura contente a Rússia, reduzida a pastar com os ursos da Livonia e da Sibéria, e deixará ou poderá deixar a navegação, o comércio, olhará com indiferença, e até com desprezo para os seus teares, para as suas cordoarias, e um milhão de artistas opulentos retirar-se-ão para a Ukrania e Polónia a cultivar a terra para só comerem, e não venderem? A mesma França poder-se-á dividir em duas partes, mandará os velhos para a lavoura, os mancebos para a milícia, ir-se-á despovoando quanto se for derramando em vasta conquista, onde lhe é forçoso manter exércitos sempre renovados? E persuadir-se-á que acha sempre recursos constantes fora do comércio, da navegação, e das artes de luxo, de que foi sempre um inexaurível manancial, e com que soube conservar-se na opulência, no fausto e na glória, sem lagrimas e sem sustos? Poderá a Itália passar do século dos bailarinos, gorgeadores, e jardineiros, repentinamente para o século dos Fabrício, Emílios, Cincinnatos, e Serranos? Deixará as poucas sedas que tece para pegar no arado? Mas esta passagem, ainda que violenta, não será durável; abatida que seja a Inglaterra pela exclusão das suas manufacturas, síncope do seu comércio, as nações tornarão ao seu antigo estado, recobrarão o perdido esplendor, e então deixada a agromania serão ricos peio comércio [9].

 

4.ª PROPOSIÇÃO

Com a guerra feita ao comércio não se abate a Inglaterra; os seus recursos se estenderão até ao infinito pela emigração do Príncipe de Portugal.

 

Todos os princípios que estabelece a França para o abatimento da Inglaterra, produzem consequências opostos e contrarias á mesma França. Creio que há para as cabeças calculantes entestadas com o estranho Sistema continental uma moléstia epidémica, que é o delírio. Não só parecem desprovidas de conhecimentos comerciais, mas até mostram que não têm a ideia que exita a palavra —Comércio—. Quando se faz guerra ao comércio de uma nação como a Inglesa, faz-se ao de todas as outras nações. Só há uma nação no globo, cujo comércio se arruinaria sem que as outra sofressem, que é a China, porque nada recebe das mãos estranhas mais que o anfião, que paga aos Ingleses de Bengala. Para mais nada saiu ainda dinheiro da China. Se os Ingleses fizessem só o comércio da importação, fechado tudo nada lhe restava, mas talvez que a exportação exceda a importação. Por um mapa estatístico do ano de 1807 entraram nos portos da Rússia nos dois meses de Junho e Julho mil e duzentos navios ingleses em lastro, para exportarem; este ano de 1808 nenhum entrará, salvo as formidáveis esquadras, que nenhum poder destrói. Não nos apartemos deste país: estão fechados os seus portos ás manufacturas inglesas, e não está estagnado o comércio da Rússia: primo, porque os Ingleses não exportam; secundo, porque os Ingleses não deixam exportar as outras nações. Se a Rússia tem em si recursos internos que a façam subsistir sem luxo, e pode sofrer as privações dos géneros coloniais, e permanecer particularmente ociosa, se pode dar nova destinação aos seus artistas, e deixar estacionarias as suas fábricas, quem disse aos calculadores que falharão aos Ingleses os mesmos recursos, e a mesma tolerância nas privações, e nova destinação que dar aos seus fabricantes? Quem disse que esta suposta estagnação do seu comércio com os povos europeus acabará na Inglaterra o espirito patriótico, e desunirá o povo, estancará os tesouros do mundo de que é senhora, e a obrigará a aniquilar a sua marinha, e com ela perder o senhorio dos mares, e a pedir ou aceitar as vergonhosas condições de uma paz precária, que seria em todos os casos mais funesta e prejudicial para a Grã-Bretanha que a guerra de muitos séculos? Eis aqui o que é impossível realizar-se; e querer intentar a ruina d'esta nação por um golpe parcial dado no seu comércio é um rematado delírio, é orna ignorância crassíssima dos imensos recursos da Inglaterra. A violenta emigração do Príncipe de Portugal forneceu á Grã-Bretanha meios eficacíssimos de eternizar a guerra, de engrossar o poder, de dilatar o comércio, de amontoar tesouros, e de se construir soberana absoluta no império dos mares. Acrescentou-se ao seu domínio uma porção da América maior que a Europa desde o Volga até ao Mediterrâneo, desde o Cabo de Finisterra até ao Bósforo da Trácia. É verdade que não tem população proporcionada á sua extensão por agora, mas virá tempo em que a maior parte da Europa vá povoar o Brasil [10] a emigração é indispensável, e talvez que não esteja muito remota a época em que toda a imensa porção do globo, que corre desde o istmo de Panamá até á ponta da terra dos Patagões, ou do Fogo, banhada pelos dois Oceanos, Pacifico e Atlântico, não reconheça mais que um senhor, e que este, o maior dos impérios, seja uma verdadeira e vigorosa colónia inglesa. Cortar-se-iam estas vantagens á Inglaterra, se á pancada de uma vara magica aparecessem repentinamente em todos os mares forças navais superiores ás suas, que se pudessem apossar com a rapidez do raio de todos os pontos essenciais que ela ocupa. Era preciso que voasse aos ares feito em pedaços o fatal propugnáculo de Gibraltar, escolho onde se quebram as impotentes fúrias de uma nação rival: era preciso que se lhe arrancasse das mãos a ilha de Malta, o domínio indirecto da Sicília, que perdesse o Cabo da Boa-Esperança, a ilha de Ormuz, a de Ceilão, o passo do Sunda, as torres e os baluartes de Malaca, as bocas do Ganges, e ambas as suas margens do norte e sul até Calcutá, e os vastíssimos e opulentíssimos estabelecimentos de Bengala; que retrocedendo os expulsassem do Indostão que todo é seu na costa e contra-costa do Malabar, que se lhe arrasassem os dois famosos empórios do seu comércio, as cidades de Baçaim e Bombaim; que perdessem o que tão gloriosamente defendem nas relíquias do império português, em Goa, Bardes e Salsete. Dêmos por um instante os Ingleses excluídos de ambos os mundos, e sem os recursos que tiram já do Brasil, cujo ouro passa lodo para as suas mãos. Obrigar-se-iam a aceitar a paz? Não! Eis aqui a voz, que parece ainda sair do mausoléu de Pitt. Nós seriamos depois de todas estas ruinas ainda mais prejudiciais e formidáveis aos nossos inimigos, poderia dizer com verdade este grande homem. Com efeito, transtornados todos os vastos projectos e planos de Pitt, transferido o Brasil a outras mãos, que não fossem portuguesas, arruinados os estabelecimentos do Cabo da Boa-Esperança, e podendo alguns milhares de Persas organizados em exercito por aventureiros Franceses em um dia expulsar os Ingleses da Ásia, e correrem desde a ilha de Ormuz até á enseada de Ainão e Cabo de Singapura, para os espancar de quantas baías, surgidouros, ancoradouros, portos, praças, fortalezas, ilhas, que possuem pelo espaço mais de três mil léguas pelo norte e sul de toda a Ásia, e para isto atravessando tantos impérios diversos, tantas cordilheiras de montanhas inacessíveis, ramificados do Cáucaso e Gate, quantas correm desde as fronteiras da Pérsia até não só ao Ganges, onde não chegou Alexandre, que não passou do Hydaspe, rio que desemboca no Indo, mas até Cantão, executando- se esta façanha rodamontica pelo exercito Galo-Persa, ainda que o seu monarca para o conduzir deixasse imperfeito o poema-épico [11] que anda compondo, anunciado em uma gazeta de França, executando- se tudo isto, não restando aos Ingleses mais que a sua ilha, e a inexpugnável praça de Gibraltar, devia a nação jurar a guerra eterna como apoio da sua independência e soberania. Mas que guerra? A que talvez não lembrasse ao mesmo Pitt, porque talvez os seus cálculos profundíssimos não se fundavam sobre dados impossíveis. A guerra de piratas, com que infestariam e assustariam o mundo inteiro, arruinando o comércio e a navegação de todos os povos, não deixando coalhar a mais pequena esquadra. Eis aqui tornados em formidáveis ladrões os que não quiseram deixar ser comerciantes. Não podem ser invadidos na sua ilha, por que os Bretões do decimo-nono século não são os do século de Júlio César e de Cláudio; o Oceano e as Dunas lhes formam um propugnáculo invencível. É uma nação toda energia, toda fogo, e um só espirito anima todos os cidadãos. Deixemos delírios, vejamos a nova situação da Inglaterra, e a influência que nela teve a emigração pretendida do Príncipe de Portugal para o Brasil. Querendo que a Inglaterra não tenha outras bases mais que o comércio, este começou já a prosperar e a dilatar-se sobremaneira. Eu prometo ao Brasil colónias de todas as nações europeias. Rebus sic stantibus; a primeira que de necessidade deve emigrar é a Holanda, povo activo, paciente, industrioso, e de uma fleuma especuladora, e que conheceu o Brasil por experiência e posse; prometo a emigração da Dinamarca e da Suécia: eis aqui o Brasil povoado de colonos e de artistas. A emigração de Portugal o povoará de soldados, de proprietários e de capitalistas, as minas não estão ociosas; aos gentis domesticados por outra politica não observada até agora se ajuntarão os Africanos conduzidos sem ferros, e eis aqui a Europa nos confins do Brasil. São incalculáveis as vantagens que a Grã-Bretanha tirará deste imenso império. Todos os metais encontrados já em tanta abundância que parece vegetarem com as plantas, madeiras de construção, eternas na duração, nenhum navio seu irá mais a Riga buscar os pinhos de Livonia; o consumo infinito das suas manufacturas, e exportação exclusiva das produções daquele vasto país, de que a Europa . toda, até a enfraquecida Itália e a mesma Turquia necessita: a posse das ilhas da Madeira e Açores para deposito d'estas mesmas produções; eis aqui mananciais inexauríveis de riquezas para a Inglaterra; e no estado de paz, que não convém á Grã-Bretanha, eu prometo todo o comércio do Brasil feito imediatamente pelas suas mãos, aquele comércio que os Ingleses que até agora faziam no infelicíssimo Portugal. E é assim que a França intentou abater a Inglaterra? Parece que assim lhe quis aumentar o poder, e acumular os tesouros. O golpe contra ela fulminado resvalou unicamente sobre Portugal, não só agonizante, mas extinto para sempre. Se houvesse um congresso de representantes de todas as nações para ultimarem a grande e necessária obra de uma paz, eu votaria que se não começasse a deliberar sobre este objecto da consolidação da Europa sem que o voto unanime de todos os povos pedisse o restabelecimento do Príncipe emigrado no trono de Portugal. A nenhuma das nações seria a paz vantajosa sem que ela se levantasse sobre esta base. Mas concordaria, acederia a Inglaterra a esta proposição? Ela o não fará, sem atentar contra a sua mesma glória, poder, riqueza, e soberania. A conservação do Príncipe no Brasil assegura á Inglaterra para sempre o senhorio absoluto dos mares, dá um consumo infinito ás suas manufacturas em um império criado de novo, e que necessita de tudo: indemniza-a da perda (se alguma sente) do vedado comércio continental; obriga por termos as outras nações a haverem das mãos dos Ingleses todos os géneros coloniais, ou a sofrerem privações contínuas: esta conservação oferece aos Ingleses dobrados meios de perpetuarem a guerra, e de continuarem o fatal bloqueio do continente, em que os povos estalarão, e com terrível e espantosa reacção cairão sobre a origem e causa dos males do mundo [12]: esta conservação oferecerá aos Ingleses novos recursos para o comércio e defesa das suas possessões orientais. Os seus transportes, as suas esquadras farão a sua primeira escala pelos portos do Brasil, ficando-lhes mais comoda a navegação do que lhes ficaria demandando primeiro a ilha de Santa Helena e depois Cabo, sendo por tudo isto a emigração do Príncipe para o Brasil vantajosa á Inglaterra, e funesta a todos os outros povos. E qual será a sorte de Portugal?

 

5.ª PROPOSIÇÃO

Portugal, pela emigração do Príncipe, fica o mais desgraçado de todos os povos, e inútil a todas as potências.

 

Pela primeira e segunda proposição, Portugal nem no estado de guerra, nem no estado de paz, desmembrado das possessões ultramarinas, e suposto vago de direito e de facto, pode ser uma monarquia independente: está pois reduzido á condição mais deplorável a que até agora tem chegado nação alguma, e de que não há exemplo no vasto quadro da história do mundo. As conquistas e o domínio dos Romanos no tempo da república, ou do império, não reduziram a este estado nação alguma das subjugadas. Era um reino marítimo, e não tem forças navais; era mercantil e não tem comércio; era guerreiro e não tem exército; era conquistador até aos limites da terra, e não tem nem um palmo de terra das conquistas de ultramar, nem as Berlengas; era o mais rico dos secundários, e é pobre sem recurso; era activo e perfeito nas suas manufacturas, a que se dava, e não tem nem uma fabrica; e para ser ainda mais funesta esta espantosa e repentina metamorfose, até mudou na ordem moral: tinha uma legislação fixa, e passou para a arbitraria, tinha caracter seguro, generoso, igual, intolerante de costumes estranhos, e passou repentinamente para a baixeza, para a infâmia, para a vileza da adulação [13] e para sentimentos tão servis, que não só devem enjoar os seus mesmos dominadores, mas fazê-lo o horror da humanidade, e o aborrecimento dos povos da terra. A apatia, a indolência, a indiferença, tendo seus limites podem chamar- se virtudes heróicas; mas, transgredidos estes limites não podem ser mais do que infâmia; podia sujeitar-se nobremente, deliberar, e representar, sem que prescindisse destes direitos deixados intactos até á mais abjecta escravidão; enfim, transformou-se do reino florescente, fundado com tanto valor, conservado com tanta sabedoria, dilatado com tanta glória, famoso por tantas acções ilustres, respeitado pelas suas virtudes, distinto pelos varões notáveis em todas as classes de literatura, em um agregado de misérias, opróbrios e ludíbrios sempiternos. As províncias assoladas, a capital soberbíssima e opulentíssima, quase erma, sem fausto, e sem representação. Dentro em si não tem trigos, não tem metais (tendo aliás minas de todos eles) não tem géneros coloniais, não tem panos, não tem dinheiro, está reduzido á simples agricultura, á pescaria litoral, e para isto mesmo falto de braços, porque a diminuição de população será na rasão directa do aumento da penúria e indigência. Lisonjear-se com o chamado futuro brilhante, é querer cegar-se nas bordas do abismo em que vai a cair para se precipitar mais apressadamente. Nunca as desgraças foram caminho para a felicidade; estão não só obstruídos, mas extintos de todo os canais que a podiam conduzir unicamente a esta roubada felicidade. Se a Inglaterra tentasse com força armada a liberdade e restauração de Portugal [14] veria inutilizado o seu risco, abortadas as suas diligências, apenas apontassem nas fronteiras imaginadas forças que o quisessem domar; á mais pequena intimação, largaria tudo, e pagaria uma vil continuação da existência a troco de voluntária escravidão. O seu remédio seria considerar-se uma colónia do império do Brasil, com uma regência livre e honrada; ou desmembrando- se do Brasil, reduzir-se a uma rigorosíssima democracia, para imitar a Holanda no comércio, franquear os seus portos a todas as nações, negociar com os géneros do país, promovendo mais a cultura dos vinhos, e aperfeiçoando as suas salinas, navegando, que é este o génio, e traficando com os géneros exportados da América, consentindo- o a Inglaterra, pela lembrança da antiga adesão; estes os meios de uma tolerável existência para os Portugueses: se não é que sobre eles se realiza algum daqueles fatais decretos, que assinala ás monarquias impreterível termo. — Non stabit, et non erit hoc, et adhuc sexaginta et quinque anni et desinet Ephraim esse populos. Isaías, cap. 7.

Lisboa 29 de Maio de 1808.

José Agostinho de Macedo,

 

Este papel foi feito a 29 de Maio de 1808; ainda a Espanha não tinha despertado do letargo, e ainda Portugal não conhecia pela ultima experiência a intenção dos Franceses. Os dois principais objectos que o devem ocupar são: primeiro—extinguir a raça dos conspiradores: —segundo—conservar-se na defesa, ainda depois de segura a sorte da Espanha, e restabelecido Fernando VII.»

 

N. B. 

Este papel, de que não tinha anterior conhecimento, foi-me emprestado em 11 de Fevereiro de 1848; o transunto estava porém Ião desfigurado, não só por uma multidão de incorrecções ortográficas (em geral de fácil emenda), mas muito principalmente por faltas e erros de sentido, que, tratando de o copiar, foi por vezes necessário adivinhar o que o autor disse, e ainda apesar de todo o cuidado alguns lugares escaparam em que não foi possível completar as frases, havendo todavia por melhor deixá-lo assim, do que inserir nos períodos coisa que não se podia reputar inteiramente conforme á letra do original. Se no futuro encontrar outra copia mais correcta farei as convenientes emendas, mencionando as variantes que se oferecem. Entretanto, ninguém versado na matéria deixará de reconhecer aqui o estilo, as ideias, e os sentimentos de J. A., e ainda que por ventura se ocultasse o nome do autor, o contexto o daria facilmente a conhecer.

Inocêncio Francisco da Silva

 

 

[1] O Marquês de Pombal.

 

[2] Esta proposição é verdadeira nas circunstâncias em que os Franceses puseram o reino descarregando tais golpes nas suas bazes, que a esperança do seu restabelecimento seria ilusória. Não se previa a insurreição em Espanha, neste facto prende o encadeamento das causas que concorrem para a nossa liberdade. Do estado da Espanha pendeu a resolução dos Portugueses, e da resolução dos Portugueses o desembarque dos Ingleses.

 

[3] Este papel foi feito no dia um que se cumpriram seis meses da invasão francesa. Agora se conhece que nenhum plano político obrigou os Franceses a invadir o reino, eles então reduzidos á necessidade de roubar, e vieram unicamente roubar. Soube-se, ainda que se se arruína uma nação: este é o grande princípio ou base de todas as operações do grande covil de salteadores, ou gabinete das Tulherias; todas as nações primeiro se queixam de roubadas, que de perdidas.

 

[4] Todas ai tentativas do ministério francês contra a Inglaterra tem sido em favor d'esta^ e prejuízo daquele. Querem dar um golpe no comércio da Ásia tomando o Egipto, perdem uma expedição que custou oitenta milhões de cruzados, uma esquadra, um exército. Querem a ilha de Malta para fazer dano aos Ingleses; perdem Malta, e fica nas mãos dos Ingleses. Querem o Cabo, arruínam os Holandeses, e fica o Cabo nas mãos dos Ingleses. Preparam esquadra em Copenhague para atacar os Ingleses perdem Copenhague, e a esquadra passa para poder dos Ingleses. Querem excluir os Ingleses de Portugal, dão-lhe a entrada no Brasil, perdem o exercito de Portugal, e existem em Portugal e na América os Ingleses. Pretendem assenhorear-se da Espanha para excluírem os Ingleses do continente, perdera a Espanha, e a esquadra de Cádis e penetram os Ingleses o interior da Espanha. Trata-se de paz, e Bonaparte mostra-se ao mundo um agregado de fraqueza, e de ignorância.

 

[5] Alexandre de Gusmão o lembrou de novo a El-Rei D. João 6.°; ambos se enganavam. Para equilíbrio da Europa e prosperidade deste reino convém que o trono se não transfira jamais. Portugal e a Europa decairão no momento em que o Brasil deixar de ser uma colónia.

 

[6] Este é o especioso, o grande pretexto com que Bonaparte pretende curar todas as suas tentativas. Diz que quer abater a Inglaterra, e obriga-la no abatimento a fazer a paz. Ele sabe que a Inglaterra bem desenganada como está, nunca lhe aceitaria proposição alguma. Ele supõe que os povos desejam subtrair-se á influência inglesa, e apesar dos protestos dos povos, lhe vai introduzindo exércitos, que ninguém lhe pede. Roube-se tudo, e seja a minha família de reis; eis aqui a influencia d'Inglaterra de que ele quer livrar o mundo.

 

[7] João Jacques é o mais contraditório de todos os homens. Suspira pelo estado insocial, e escreve o Contracto Social; grita com veemência contra os romances, e escreve uma novela voluptuosa : grita contra os teatros, e escreve comédias. Deita os filhos na roda, e escreve o Emílio. Levanta-se contra a música, e vive de a trasladar. Suspira pelos bosques, e não há forças que o arranquem de Paris. Declara guerra aos grandes por toda a parte, e morre em casa de um marquês. E é este o ídolo dos regeneradores do globo.

 

[8] Os Franceses, que anunciavam e assoalhavam com todo o enfase da impostura esta pretendida frugalidade pela extinção do comércio e abandono das colónias se mostraram em Portugal insaciáveis de luxo, e de delícias asiáticas! miseráveis, que sempre andaram descalços por pobreza, não se fartaram de carruagens, comiam pelas ruas assucar aos punhados, adoravam o café, e até quereriam coser o ouro na própria pele. Os Franceses não são moralistas, nem políticos; são ladrões.

 

[9] A teima mais conhecida de Bonaparte é tirar aos Ingleses o senhorio dos mares; constituamo-lo por um momento nas mãos dos Franceses, eis aqui a Europa mais desgraçada. Com o mesmo descaramento com que Bonaparte se diz o déspota do continente, se diria e se faria o déspota dos mares. Concedam-Ihe no mar as mesmas forças dos Ingleses, qual seria o povo que não ficasse escravo do maior tirano que viu o mundo? Para ter tanto império como César, é preciso ter os talentos de César.

 

[10] Eu procedo na hipótese da permanente usurpação de Portugal, e daquela cavilosa divisão, que agora nos descobre o escrito de Cevallos [Exposição dos factos, e maquinações com que se preparou a usurpação da Coroa de Espanha, e dos meios que o Imperador dos Franceses tem posto em prática para realizá-la, escrita em Espanhol por D. Pedro Cevallos, traduzida em Português. Lisboa. 1808 na Oficina de Simão Tadeu Ferreira.]

 

[11] Anuncia-se esta grande obra juntamente com a invenção das seges de aluguer pelos especuladores Persas, em a Gazeta de Lisboa, referindo-se ao Monitor, no antigo— Pérsia

 

[12] Não foi precisa a continuação do bloqueio para a insurreição da Península : a inaudita maldade de Bonaparte, a sevícia e a rapina levadas ao último excesso pelos seus malvados satélites; o sacrílego roubo dos monarcas de Espanha, despertou os povos; todos se armaram, e as vantagens constantes dos espanhóis são o termómetro da decadência do sanguinário e tirânico império francês. Todas as aparências indicam o ultimo período da sua existência, e o Imperador corso terá a mesma sorte que o seu patrício e concidadão, o Rei Teodoro: tal o destino dos aventureiros sem talentos, e dos usurpadores como Focas.

 

[13] A este funesto estado se reduziu pela infidelidade de alguns indivíduos inimigos da pátria; eles a entregaram aos Franceses, eles os aclamaram em publico teatro, e está demonstrado que existia entre nós uma seita de conspiradores de todos os estados, homens imorais, ou tão ignorantes, que se deixaram iludir das cavilosas promessas de ladrões, e praza a Deus que ainda este pernicioso espirito de partido não permaneça com a força do incêndio debaixo de cinzas I Era axioma entre estes perversos, que todo o homem de talentos devia ser do partido francês, e estes malvados fazem votos pela ruina, para se salvarem na destruição da pátria

 

[14] Este papel foi feito no dia um que se cumpriram seis meses da invasão francesa. Agora se conhece que nenhum plano político obrigou os Franceses a invadir o reino, eles então reduzidos á necessidade de roubar, e vieram unicamente roubar. Soube-se, ainda que se se arruína uma nação: este é o grande princípio ou base de todas as operações do grande covil de salteadores, ou gabinete das Tulherias; todas as nações primeiro se queixam de roubadas, que de perdidas.

 

 

                                             

Ypsilon, 3 de Novembro de 2011

  

Um infame competente

 

Por: Rui Lagartinho

 

Guiado pelo instinto literário, António Mega Ferreira acaba de devassar a vida do Padre José Agostinho de Macedo, que atravessou os séculos XVIII e XIX. Retrato de um país atordoado

Do amplo gabinete de António Mega Ferreira, situado no ângulo mais nobre do Centro Cultural de Belém (CCB), avista-se um espaço que há dois séculos era praia. Por esses dias era comum ver por aqui o Padre José Agostinho de Macedo no uso da palavra. Depois de incendiadas as almas com as suas pregações contra os franceses, os liberais, os novos costumes, os maçons, o que fosse que a ordem do dia ditasse, o famoso orador regressava tranquilo à sua casa na rua de Pedrouços e escrevia até dali voltar a sair com mais lenha feita palavra. O povo adorava ouvi-lo e comprar aos milhares os seus panfletos. 

Talvez subliminarmente, estas amplas janelas do local de trabalho do Presidente do CCB tenham ajudado António Mega Ferreira a concluir a tarefa iniciada em Maio de 1989 e tantas vezes interrompida: contar Macedo através da palavra infâmia. Se a escrita de "Macedo - Uma biografia da infâmia" levou 22 anos - e em Mega Ferreira estamos habituados a que à velocidade da ideia corresponda a velocidade da escrita e o aparecimento quase imediato da respectiva letra impressa -, o ódio de estimação ao frade começou ainda no liceu.

Agora é tempo de alívio. Como escreve no prefácio, citando a romancista Penelope Fitzgerald, "todo o romance começa por uma descoberta e termina com uma interrogação." Com este "romance de uma vida", o Padre José Agostinho de Macedo deixou de ser sombra para ser papel.

Mas o entusiasmo por esta figura, a sua ignomínia e o tempo que lhe coube viver continua a entusiasmá-lo. Segundo nos confessou, não são muitos os que conseguem ser tão bons a fazer tanto mal. 

Aqui não há catarses silenciosas.

O frade Macedo vive 70 anos (1761-1831) que correspondem a um período de grandes transformações na sociedade portuguesa. Só é quem é por causa deste ambiente?

A Macedo coube viver um período de identidade nacional em perda. Nasce poucos anos depois do terramoto num país que durante décadas tem a sua capital destruída, decapitada e submersa em entulho. Em 1792 a rainha D. Maria I enlouquece e o poder fica nas mãos de um regente que só é formalmente reconhecido como tal em 1806. Seguem-se as invasões francesas, a fuga da família real para o Brasil, a revolução de 1820, a Guerra Civil que só termina em 1834, já Macedo está morto. Tudo isto permite que ele seja de alguma forma a efígie do desconcerto do país.

Uma efígie bastante reaccionária.

O frade Macedo era indiscutivelmente um defensor do trono e do altar, ou seja, do antigo regime de monarcas com poder absoluto. Identificava-se com as correntes mais conservadoras da sociedade portuguesa. Mas muitas vezes o seu ideário não era coerente. Maria Ivone de Ornellas de Andrade, que sobre ele fez tese académica, definiu-o como um iluminista paradoxal. Ele vem para Lisboa para ser educado no espírito das Luzes. Só que as Luzes em Lisboa são moldadas pelo Marquês de Pombal. O pombalismo era essencialmente uma estratégia política de consolidação do poder absoluto do rei. No ensino houve de facto uma reforma importante, mas o projecto do Marquês de Pombal não era democrático. Neste caldo, o padre Macedo está atento às querelas do seu tempo. Sabia apanhar as ideias no ar com uma capacidade de argumentação vertiginosa que agradava aos conservadores.

O que fazia a excelência das suas pregações?

As grandes estrelas mediáticas desta época eram os grandes oradores e o Padre José Agostinho de Macedo era de uma truculência verbal forte. Todos sabemos que a palavra ígnea é tremendamente popular entre os conservadores e intensamente odiado pelos defensores do Iluminismo.

De que forma é que alinha nessa tradição oratória que nos tinha dado no século XVII o Padre António Vieira?

Há um extraordinário sermão do Macedo feito no primeiro Domingo do Advento do que eu analiso comparando-o com um outro do padre António Vieira feito cem anos antes. Ao Padre António Vieira interessava pouco a descrição do espectáculo do apocalipse. Ao Padre Macedo interessa só o teatro do apocalipse. Toda a gente está condenada. O que interessa em termos da oratória é o efeito que ela provoca através da convocação de imagens extraordinárias. Napoleão é o Inferno. A intervenção dele é sempre excessiva, grandiloquente, tonitruante. Ao falarmos dele, apetece usar e abusar deste tipo de palavras.

E a transcendência cristã, a profissão de fé, onde fica? 

Para o padre Macedo a salvação da alma era uma patranha. A vida religiosa era uma mera carreira. Toda a sua vida foi marcada por uma feroz imanência, que se traduzia de forma quase automática na palavra proclamada e escrita. 

Mas parece que à força da verborreia oral não corresponde uma bravura física por aí além. E a cacetada, a defesa da honra e das ideias através da traulitada eram comuns nesses anos.

Se eram. Mas o Padre Macedo nunca foi de se chegar à frente dando o corpo ao manifesto. Na proclamação do novo regime em 1820, esconde-se. Não é visto no Rossio. Incendiava as massas na praia de Belém e voltava para casa. Não há registos de actos heróicos durante as invasões francesas. Nunca se envolveu em pancadaria.

Infame, aqui, significa cobarde? Estamos perante um mal português?

Sem fazer generalizações apressadas, acho que é um tipo de infâmia que tem alguns particularismos muito portugueses. Um homem que passa a vida a apelar à revolta, à matança dos liberais, à carnificina, acaba por nunca se envolver fisicamente na defesa do seu ideário. Macedo, que odiava Voltaire, a quem chamava o louco de Ferney, tal como Voltaire nunca foi preso. A única detenção que se lhe conhece foi por vagabundagem, consequência da boémia em que se envolvia. Não há um confronto físico que corresponda ao violentíssimo combate verbal que ele mantém em permanência com a sociedade portuguesa. E, como cita a propósito do que terá dito o general de Gaulle sobre o filósofo Jean Paul Sartre, comparando-o com o "louco de Ferney", não se pode prender Voltaire. 

O Padre Macedo dispunha, por ser como era, de uma certa imunidade?

É irónico que ele, que detestava Voltaire e todas as ideias que este representava, acaba por se lhe assemelhar nesta quase impunidade. E é curioso que seja a definição que o próprio Voltaire forjou para a definição da infâmia aquela que melhor se lhe aplica quando sobre ele nos debruçamos: uma mistura sulfurosa de preconceito, injustiça, fanatismo e malevolência. O poder político pouco o incomodou. Foi expulso dos Agostinhos da Graça em Lisboa. Em 1822 é lhe movido um processo por liberdade de imprensa do qual é absolvido, como aliás já se esperava. Mas isso não o impediu de ser nomeado pregador régio. Foi nomeado por D. Miguel cronista-mor substituto, embora se queixasse de que o período que lhe foi atribuído fosse de apenas dois anos.

Mas, apesar de conservador, no início do liberalismo, em 1820, não deixa de se aproximar dos novos poderes.

O namoro foi recíproco. A influência da sua palavra e a sua popularidade eram tão grandes que o novo regime tenta cooptá-lo para as suas fileiras. Torna-se por oportunismo táctico um vintista acidental. Mas a partir de 1822 rompe definitivamente com o novo poder, ficando até a sua figura ser recuperada numa espécie de isolamento. Mas sempre com grande produção de panfletos e de poesia. 

Também em termos amorosos, o ano de 1822 não lhe corre bem. Sofre uma grande desilusão.

É o seu "annus horribilis". Macedo fica inconsolável com o fim do romance com Dona Feliciana, monja do Convento das Trinas do Largo do Rato. Uma relação que, sabe-se hoje, foi platónica e não ultrapassou as conversas na grade do convento, tendo a freira, muito ao jeito de Macedo, beneficiado de favores prestados pelo frade. Tudo isto, a que se soma o processo já aludido por liberdade de imprensa, levam-no a cortar um conjunto de amarras com a vida. É um ano-charneira que marca o início de um certo afastamento público. 

É um afastamento de um lírico desiludido com a vida? 

Não. O que o sempre o caracterizou foi o oportunismo, embora nunca se tenha guiado por qualquer opção estratégica a médio prazo. Era oportunista por oportunidade.

Também nunca enriquece na proporção dos actos infames.

Não. E aliás uma certa prodigalidade atravessa a sua vida. Frequentava prostitutas, que depois sustentava generosamente. Ganhava a vida como orador, como panfletário. Deixa uns rolos de dobrões de ouro a D. Maria Cândida do Vale, a mulher que se ocupa dele nos últimos anos de vida. 

Em termos literários, esgrime com Bocage e está obcecado com a sombra de Camões.

Com o Bocage tem uma relação ambivalente e acusa-o de se tomar pelo poeta mais importante da sua geração, o que de facto é verdade. São muitas vezes companheiros de inúmeras tertúlias e de imensas noites de borga. Zangam-se de morte, mas quando em 1804 Bocage adoece o padre Macedo escreve uma bela composição poética em sua homenagem. No fundo, a relação só esfria por causa da enorme inveja que constantemente corroía José Agostinho de Macedo. De Camões chega a dizer que era um poeta péssimo, afirmando que o seu poema "Oriente" é melhor do que "Os Lusíadas". Até ao fim da vida, Macedo luta por ser reconhecido como um poeta sério. O facto de pressentir que os "Os Burros", o seu enorme poema satírico, passaria à história como a sua obra mais famosa obcecava-o. Nesse sentido, é um homem que falha rotundamente o seu destino.

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

António Mega Ferreira, Macedo, uma biografia da infâmia, Sextante, Porto Editora, 2011,  ISBN 978-972-0-07150-7

 

Maria Ivone de Ornellas de Andrade, “O reino sob tormenta”, in Estudos de homenagem a João Francisco Marques, vol. I, Universidade do Porto, pags. 137-144

Online: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2828.pdf

 

Obras inéditas de José Agostinho de Macedo,

cartas e opúsculos documentando as memórias para a sua vida íntima

e sucessos da história literária e política do seu tempo, com uma prefação crítica de Teófilo Braga, Sócio efectivo da Academia

LISBOA

Por ordem e na Tipografia da Academia Real das Ciências, 1900

Online: www.archive.org