20-5-2009

 

 

 

A liberdade dos filhos dos escravos, de José Veríssimo dos Santos (1772)

 

 

Entre os textos contra os abusos da escravatura na segunda metade do Sec. XVIII, está um manuscrito de José Veríssimo dos Santos que a Prof. Doutora Maria do Rosário Pimentel divulgou na sua tese citada na bibliografia, onde o comentou e resumiu em quatro páginas. Trata-se do manuscrito n.º 1463, da Real Mesa Censória, na Direcção-Geral de Arquivos. O texto merece publicação, que ainda não foi feita.

Pouco se sabe acerca do seu autor, José Veríssimo dos Santos. Inocêncio diz que foi Professor régio de Filosofia em Tomar e que publicou “História crítica da composição oratória, d’onde se dão em compêndio as regras que n’esta parte da rethorica deixaram escriptas Aristóteles, Cicero, Quintiliano, Batteux, etc. Coimbra, na Imp. Da Universidade, 1773, 8.º de 138 pag.”

O texto que a seguir se transcreve foi apresentado à censura em 1772; a ficha respectiva tem a anotação "Suprimido – 10 de S. de 1772”. Na Direcção-Geral de Arquivos, existe ainda, do mesmo autor, sob o n.º 1739, o manuscrito com o título “Discurso em que se examina a questão se nos nossos poemas se pode introduzir o systema das divindades do paganismo, com dois diálogos imitados de Luciano”; a ficha tem a indicação “Escusado – 10-9-1772”.

 

 

BIBLIOGRAFIA 

 

Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao fundo das consciências - a escravatura na época moderna, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4

  

J.J. Burlamaqui, Principes du droit naturel, à Genève, chez Barillot et Fils, M. DCC. XLVIII.

Online : http://books.google.com

 

Sam. Pufendorfii, De Officiis Hominis et Civis prout ipsi præscribuntur Lege Naturali, Libri duo, cum notis viri consultissimi ac celeberrimi Dn. Io. Barbeiracii, GIESSAE, Sumptibus Ioannis Philippi Krieger, 1728.

Online : http://books.google.com

 

 

 

A liberdade dos filhos dos escravos demonstrada pelas leis da natureza ou dissertação em que a respeito da escravidão se tem um meio entre a doutrina de Pufendorf e Barbeyrac por uma parte, Montesquieu e o autor do artigo da Enciclopédia relativo a esta matéria pela outra,

por

José Veríssimo dos Santos

 

 

 

/3 /A singular providência do nosso Criador por todas as partes nos dá sinais da sua infinita sabedoria: tudo está notado com o seu selo, e cada uma das coisas indica a obra do seu autor. Aquilo mesmo que aos olhos dos homens parece desmando e desordem da Natureza vai tudo bem ao fim que ele se propôs na criação do homem. As várias situações em que nos achamos, uns a respeito dos outros, e que muitas vezes não cessamos de lamentar, são como outras tantas máquinas, que de um modo admirável movem o /3 v./ sistema da humanidade, ou vida do homem. Mas como este sistema não é coarctado só nesta vida, mas olha principalmente ao estado futuro, ninguém com razão se pode queixar da sua situação, e por isso condenar a mão do Omnipotente na repartição dos diferentes estados que compõem a terra que habitamos.

É verdade que o estado da Natureza é um estado de igualdade: aqui não há rico, nem pobre, não há rei, ou vassalo, não há senhor, ou escravo. Porém, esta desejada vida fugiu de entre os homens por sua mesma causa, o mau uso que muitas vezes fazemos da Nossa Liberdade, é o que fez nascer a variedade de estados de que se compõem as res publicas [1], de que /4/ somos membros. Porém, como o erro é inseparável do homem, acontece muitas vezes, que nas sociedades civis, haja Leis contrárias àquelas que o Soberano autor do mundo pôs desde o seu princípio para governo dos homens. Dos estados que são efeitos destas leis, é que o homem justamente se pode queixar. Como se não queixaria em Roma [2], um devedor, que apesar de todos os esforços que fazia para de desendividar, não podendo, se via obrigado a dar o seu corpo para ser repartido pelos seus credores? Que horror não causa o ouvir a determinação das leis de Escócia, pela qual se pagava antigamente naquele reino o tributo, que pelos rogos /4 v./ da Rainha Margarida, foi comutado por Malcom III naquele que hoje chamam marchetas [3]. Tanto é certo que os Legisladores do Mundo muitas vezes perdem de vista aquelas sábias máximas, que [o] autor do Universo constituiu para o seu governo. E o que é mais para admirar é ver que o continuado uso em quebrantar as Leis da Natureza, parece que tem abatido (1) em alguma Sociedades o conhecimento dessas mesmas Leis [4] . Mas se uma vez se lhe faz conhecer os princípios simples da Jurisprudência Natural, e por um encadeamento de raciocínios se vem aos factos, então não podem deixar de confessar a /5/ desconformidade da regra comum ou ofuscar por um pouco aquela viva luz, que resplandece no mais fundo do coração do homem. Isto é o que nós tentamos agora fazer a respeito daquela Lei dos Romanos, que determinava que o filho da escrava nascesse também escravo como sua mãe [5]. E este é o ponto da nossa questão: mostrar que esta Lei da República Romana é contrária à Lei imutável, à qual, como reconheceu um dos mais sábios Romanos, não é permitido tirar coisa alguma, nem mudar-lhe, nem podia ser abrogada pelo povo ou Senado [6]./5 v./ Nós no estado da Natureza somos todos iguais; as mesmas faculdades, sejam do corpo, ou da alma, ornam todos os homens. Nenhum dos indivíduos racionais que habita este globo pode dizer que a sua alma é de diversa natureza do que a dos mais que o cercam. Nem que o seu corpo é de diferente organização: pelo que ninguém neste estado poderá arrogar a si o direito de cativar a liberdade de outro e fazer que a sua vontade seja a regra por onde se haja de dirigir em toda a vida as acções de outro seu semelhante; o que nós chamamos escravidão.

A razão é clara, porque a causa por que alguém poderia tomar a si o direito de mandar a outrem só se poderia fundar na excelência da natureza; ora como esta /6/ é a mesma em todos os homens, de que modo poderia alguém pretender que outro seja seu escravo?

Daqui se colige que o estado da escravidão não é algum dos estados naturais, em que o homem se acha posto pela Mão de Deus; mas sim algum daqueles em que o homem se põe por facto próprio.

Examinemos com brevidade o primário e mais principal modo como o homem chega a esta situação infeliz. Todas as sociedades civis são consideradas umas a respeito das outras como corpos morais [7] isto é, que bem assim como um homem a respeito do outro, está /6 v./ obrigado a viver em paz e sociabilidade, contribuindo quanto é da sua parte para o bem do seu semelhante, do mesmo modo os povos, uns a respeito dos outros, se devem corresponder com mútuos ofícios, esforçando-se cada um quanto é da sua parte em apertar os laços da sociedade, cultivando [a] amizade, a benevolência e a caridade.

Porém sucede muitas vezes, que o homem, abusando das faculdades que lhe deu o seu autor, em lugar de procurar o bem, e felicidade dos mais, obra de tal modo, que lhe busca a sua destruição, e lhe impede aquele fim, que o Pai comum pôs nas nossas acções, isto é a felicidade e bem de cada um. Então aquele que sofre algum mal, como é uma criatura racional, e é próprio da sua essência não ser /7/ indiferente no que toca aos seus interesses, a mesma razão o autoriza não somente a repelir o mal presente, mas também a procurar meios para que, para o futuro, lhe não torne a causar algum dano.

Ora isto, que sucede aos homens, uns a respeito dos outros, é o que coonesta as guerras das Nações, umas com outras. Se uma Sociedade faz injúria a outra violando os tratados, destruindo-lhe os seus bens, negando-lhe o que os deveres mais fortes da humanidade pediam, como se poderia ela queixar da outra, que por via de armas, procura a satisfação da injúria feita? Este é o estado da guerra, o qual não haveria nunca entre os homens se eles honrassem (2) aquela Lei cuja autoridade é a mesma tanto em /7 v./ Portugal como na China, tanto nas Cidades mais bem policiadas, como nos mais agrestes e incultos sertões.

Desta situação, em que os povos se põem uns contra os outros, procurando destruir-se mutuamente, a mais oposta ao fim para que fomos criados, é que teve princípio a escravidão.

Porque, como os indivíduos de uma Sociedade procuravam um mal tão grande aos da outra, era razão que os vencedores lhe dessem alguma pena, correspondente de certo modo à injúria que se lhes tinha feito: esta foi a escravidão. Este é o modo mais principal por que antigamente se entrava no cativeiro e que hoje está quase abrogado. Além deste, tem havido outros, ainda que menos gerais. Entre os  Romanos, era lícito a um Pai vender o filho e de algum modo, esta escravidão era mais dura [8], /8/porque outro qualquer escravo, uma vez manumisso não tinha o Senhor liberdade para o poder vender até três vezes, como o pai o filho [9]. Justiniano determinou que aquele filho que se vendesse, passando de vinte anos, ficasse escravo [10]. Pelas leis anteriores, o que se não alistava no censo Romano, ou fugia da Milícia, ficava também escravo [11].  Entre os antigos, até mesmo o casamento da escrava com Marido Livre, fazia este também escravo. Houve lugares, que os que neles se iam estabelecer, ficavam, por isso mesmo cativos [12] . Algum dia, por um efeito de ambição, eram no Brasil os gentios feitos escravos /8 v./, tanto que eram cativos. Ao que ocorreu a Lei de El-Rei D. Sebastião, declarando os gentios livres, e que na justa guerra só, é que se podiam cativar [13]. Mas como os gentios costumavam ter guerras uns com outros, as nossas Ordenações [14] concederam poder comprar os prisioneiros, quando os vencedores os quisessem matar, como era seu costume.

Se todos estes modos de entrar na escravidão são conformes à Lei Natural, isso pedia um tratado mais dilatado, e seria de alguma sorte fora do objecto que nos propusemos, pelo que desçamos ao ponto da nossa questão.

 

§ 1.º A escravidão é aquele estado em o qual o homem  está  a fazer tudo o que lhe manda /9/ o Senhor, sendo conforme às suas forças, e não contrariando em nada as Leis.

§ 2.º Desta definição se vê que a escravidão é das maiores penas com que se pode castigar o homem. Todos os dias vemos a aflição em que andam aqueles a quem o nascimento ou desastre fez perder alguma parte do corpo. Os que chegam à última idade não cessam de lamentar-se por se verem privados daqueles bens que os ornavam na flor dos seus anos: que fará o homem que vê perdida a mais bela qualidade da sua alma, quero dizer, a liberdade [?]

§ 3.º É pois certo que o homem não deve ser tratado com uma tão grande pena se não por alguma reparação de dano grave, porque então, visto a sua culpa, não se poderia /9 v./ justamente queixar de tal castigo. Porque a violação das Leis, que antes fez, o põem a ele na obrigação de reparar o dano, tanto quanto pode [15].

§ 5.º Do que temos dito até aqui, se deduz com toda a evidência que a escravidão, sendo um grande castigo, só pode cair naquelas pessoas, que são capazes de merecer ou desmerecer.

Postos, pois, estes princípios, desçamos ao estudo da questão e ajuntemos tudo em um ponto de vista.

 

A escravidão é uma das maiores penas ( pelos §§ 1 e 2); a pena não deve ser cominada senão àquele, que comete dano e é capaz de merecimento ou desmerecimento pelo acto que fez (pelo § 3); parece que se infere claramente /10/ (pelo § 5) que aquele que não tiver cometido dano, ou não for capaz de merecer ou desmerecer, não deve ser tratado com tal pena. Ora que culpa tem, e que dano tem feito aos demais homens aquelas tenras criaturinhas, filhos dos escravos, para que, desde que chegam a esta Luz fiquem num estado de infelicidade? Porventura é o nosso Criador diferente do seu [?] ou pôs-lhe Deus outro fim diverso do nosso [?] Nós vemos a cada passo nas Sociedades Civis: os pais cometem roubos, fazem mortes, são blasfemos, contudo os filhos, ainda aqueles que estão já no estado da razão, não lhes sendo provado que tiveram parte no delito, não são castigados do mesmo modo que os pais. Que /10 v./ grande culpa é pois a escravidão, que há-de ser como o pecado de Adão, que vai de pais a filhos.

Mas dirão os Jurisconsultos Romanos que o escravo, não sendo pessoa mas άπρόσωπόσ [16], isto é, não tinha estado civil, porém que era contado no número das coisas, seguia a natureza das mesmas coisas; as quais, tudo o que produzem é para o seu Senhor, do mesmo modo que a árvore frutifica para o seu dono. Porém, é muito fácil a resposta. Porque não abrogando em nada as hipóteses do Direito Romanos as Leis, que são consequência da nossa Constituição, e das relações que temos com aqueles que nos cercam, fica sempre em todo o seu vigor, o que /11/ deixamos estabelecido, e condenando por injustas as Leis hunas, que lhe são contrárias.

 

Contra o que fica provado, talvez que se nos oponha a autoridade dos Jurisconsultos Naturais e entre eles principalmente a de Pufendorf e do seu grande Ilustrador Barbeyrac.

 

Nos países, diz Barbeyrac, onde a escravidão é estabelecida, é o uso que os filhos dos escravos, seja de Pai ou Mãe, ou de Mãe somente, sigam a mesma condição dos Pais, de sorte que o filho pertença sempre ao Senhor da Mãe. As razões em que se funda este direito são estas. A pessoa da escrava, pertencendo a seu Senhor, é justo que o fruto, que dela vem, pertença também ao Senhor: e muito mais, que o filho não viria ao Mundo se o Senhor quisesse usar do Direito /11 v./ que a guerra lhe dava de fazer morrer a Mãe. Por outra parte, a Mãe, não tendo nada próprio, e seus filhos não podendo ser criados e alimentados senão dos bens de seu Senhor, que os provê das coisas necessárias para a vida, muito tempo antes que eles estejam em estado de o servir, o preço do trabalho que eles fazem quando estão já crescidos não vai muito além, principalmente nos primeiros anos, do valor que o Senhor emprega no seu sustento. Assim, eles não se podem tirar da escravidão sem consentimento do seu Senhor. É porém claro, contudo, que os filhos dos escravos estando reduzidos à escravidão pela infelicidade do seu nascimento, e sem que da sua parte houvesse alguma falta, não há pretexto plausível, que possa autorizar o Senhor a trabalhos com mais aspereza que os mercenários perpétuos.

§ VI. Denique et id passim receptum, ut quæ ex servis parentibus nascitur proles, servulis et ipsa sit conditionis, pertineatque, tanquam mancipium, ad dominum matris. Id quod isthoc argumento defenditur: quod cuius est corpus, eius quoque par sit fructum esse, qui ex eo corpore provenit. Et quia ista proles nascitura plane non erat, si dominus iure belli in parentem usus fuisset. Et quia parens nihil habet proprii: nulla ratio prolem eiusmodi lanedi superest, nisi ex bonis herilibus. Cum igitur dominus alimenta præbeat eiusmodi proli diu ante, quam ipsius opera utilis esse queat: et sequentes operæ sui temporis alimenta non multum fere excedant: effugere eidem servitutem, invito domino, non licebit. Manifestum tamen est, cum eiusmodi vernae nulla sua culpa in servitutem perveniant, nullum esse praetextum, quare isti durius debeant tractari, quam conditio perpetuorum mercenariorum admittit.

       (Lib. II, Caput IV,  § VI)

 

A esta doutrina de Pufendorf, acrescenta Barbeyrac: /12/

 

A juntar a isto, que o pai, ou mãe, como já vimos no capítulo precedente, podem vender seus filhos, quando eles não têm outro modo de prover na sua subsistência. Donde se segue pela mesma razão, que, quando eles mesmos são escravos, e que eles não têm nada próprio, por consequência, podem sujeitar os filhos que lhes nascem à mesma condição. Por outra parte, aqui há um consentimento tácito dos mesmos filhos. Porque se eles queriam entrar nos Direitos da Liberdade Natural, eles deviam declará-lo e buscar os meios desde que chegaram à idade da discrição. De sorte que não o fazendo assim, eles são julgados que por si mesmo consentiram ficar na escravidão. E tanto mais há lugar de presumir um tal consentimento, que eles não poderiam /12 v./legitimamente pretender a Liberdade sem recompensar o Senhor de sua Mãe de tudo aquilo que ele empregou no seu sustento. Cuja recompensa é prescrita por uma das Leis mais evidentes do Direito da Natureza, a qual, como nota nosso autor, depois de Grócio, eles nunca fariam, ou pelo menos em tempo muito dilatado. Além disto, ainda que os homens sejam livres por sua natureza, isto não impede ainda quando eles nascem serem reduzidos à escravidão por algum acto humano, ao qual se lhe há dado essa força. Os homens são independentes de toda a autoridade civil, contudo os filhos nascidos dos Cidadãos de um Estado, nascem sujeitos às Leis desse mesmo Estado. /13/

Adde, quod parentes, prout capite superiori conspectum est, prolem, si nulla alia ratio alendi suppetat, vendere possint unde paritatione sequitur, ubi ipsi servi fuerint, ademque nihil habeant proprii, posse eos natam prolem eidem conditioni sibiscere. Accedit porto ipsius quoque prolis tacitus consensus. Nam si recuperate iura naturalis libertatis erat animus: significate illud, quam primum adolevit, eiusque sectari media oportebat. Quod eum neglexerit, consensisse ipsa in servitutis durationem intellegitur. Atque eo validius praesumere eiusmodi consensum licet, quod postulare vernae libertatem jure nequeant, nisi restituris matris domino expensis in sui alimentationem factis; quae restitutio, ut liquidissimo naturalis iuris praecepto praescripta: ita vero comparata est, ut, observante post Grotium Auctore nostro, praestare eam ipsi vix unquam, aut saltem non nisi per longissimum tempus valeant. De cetero, quamvis natura homines sint liberi: hoc tamen non obstat, quominus etiam nascentes, redigi in servitutem facto aliquo humano, cui adtributa haec vis est, queant. Aeque naturaliter homines ab omni civili império immunes existunt: Nec minus tamen liberi ex subditis alicuius civitatis progeniti, subditi et ipsi istius civitatis nascuntur.

      

      (Lib. II. Caput IV, § VI, Nota)

 

Estas são as razões de Pufendorf e Barbeyrac. Porém, como elas não desfazem em nada o que acima deixámos provado, poderíamos concluir esta dissertação com uma regra, cujo uso os sábios têm aprovado por utilíssimo. E é que quando uma verdade está suficientemente provada, com razões sólidas, nada do que se lhe pode opor deve abalar ou enfraquecer a nossa persuasão. [17]

Mas para que não pareça que deste modo fugimos [a] responder aos argumentos destes tão grandes Jurisconsultos, eis aqui a nossa resposta, com a brevidade que pede um escrito desta natureza.  /13 v./

Pufendorf põe duas causas dos filhos nascerem escravos como seus pais. Uma, porque os filhos dos escravos são um fruto, que provém deles, e por consequência pertencem ao Senhor da causa produtiva. A outra é porque o escravo nunca, ou depois de muito tempo, é que poderia reparar a perda que o Senhor recebeu na sua criação.

Enquanto à primeira causa, como ela é tirada da hipótese do Direito Romano, já acima fica respondido. Só acrescentamos que parece que Pufendorf não se ajusta aqui com os seus mesmos princípios. Ele supõe que é lícito pelo direito da guerra, matar o prisioneiro, pois que ele nos quis causar um dano semelhante; e se o /14/ conservamos, é por um efeito da nossa benevolência: de cujo direito se nos quisermos usar, o filho do escravo não teria a felicidade de vir ao número das criaturas. Porém, como se poderá este direito deduzir daquela base do sistema do autor, isto é, o amor mútuo dos homens, ou a sociabilidade [?]

 

Como a sociabilidade é obrigação recíproca entre os homens – diz o grande Burlamaqui  [18]aqueles que, ou por malícia, ou por injustiça, quebram o vínculo da Sociedade, não poderiam queixar-se racionalmente de que aqueles a quem ofendem os não tratem ao depois como amigos: ou também que se sirvam contra eles de alguns meio de facto /14 v./ Mas se temos direito de suspendermos para com o inimigo os actos de benevolência, contudo nunca é permitido destruir este princípio. Como somente a necessidade é que nos autoriza para recorrermos à força contra o agressor injusto, também esta mesma necessidade é também quem deve ser a regra e medida do mal que lhe podemos fazer; e devemos estar sempre dispostos para tornarmos à amizade dele todas as vezes que tivermos alcançado Justiça, e não tivermos nada que temer da sua parte.

Pelo que é necessário distinguirmos a justa defesa própria da vingança. A primeira não faz mais que suspender por necessidade, e por algum tempo, o exercício da benevolência, e não tem nada que seja oposto à sociabilidade. Mas a outra, destruindo /15/ o princípio da benevolência, põe em seu lugar uma paixão de ódio viciosa em si mesmo e contrária ao bem público, e que a Lei Natural formalmente condena.

  4. La Sociabilité étant d’une obligation réciproque entre les hommes, ceux qui par leur malice ou leur injustice rompent le lien de la Société, ne sauroient se plaindre raisonnablement, se ceux qu’ils offensent ne les traitent plus comme amis, ou même s’ils en viennent contr’eux à des voies de fait. Mais si l’on est en droit de suspendre à l’égard d’un ennemi les actes de Bienveillance, il n’est jamais permis d’en étouffer le principe. Comme il n’y a que la nécessité qui nous autorise à recourir à la force contre un injuste agresseur, c’est aussi cette même nécessité qui doit être la Règle et la mesure du mal que nous pouvons lui faire ; et nous devons toujours être disposés à rentrer en amitié avec lui, dès qu’il nous aura rendu justice et que nous n’aurons plus rien à craindre de sa part.

Il faut donc bien distinguer la JUSTE DÉFENSE de soi-même, de la VENGEANCE. La première ne fait que suspendre, par nécessité, et pour un temps, l’exercice de la Bienveillance, et n’a rien d’opposé à la Sociabilité. Mais l’autre étouffant le principe même de la Bienveillance, met à sa place un sentiment de haine et d’animosité, vicieux en lui-même, contraire au bien public, et que la Loi Naturelle condamne formellement.  

(Part. 2, Chap. IV, § XVI, 4)

 

Façamos aplicação desta excelente doutrina àquele direito que Pufendorf supõe tem o vencedor para matar o vencido.

Se a necessidade é quem deve ser a regra, e a medida do Mal, com que devemos tratar o nosso agressor; todas as vezes que não depender a minha vida ou o bem público da morte de um meu semelhante, não há necessidade alguma de o tratar de tal sorte, e por consequência não tenho esse direito.  Como não tememos já nada dos cativos em guerra e eles mostrarem arrependimento /15 v./, não somente cessa todo o direito de os matarmos, mas devemo-los tratar com o amor que pede a sociabilidade. A fraternidade que deve haver entre os filhos do pai comum assim o requer: o que a Revelação não somente autoriza, mas ainda passa além. Eu vos digo, diz Jesus Cristo, amai os vossos inimigos e fazei o bem àqueles que vos aborrecem.

A outra razão de Pufendorf é que os filhos dos escravos, estando obrigados a recompensar tudo o que o Senhor empregou na sua criação, e não sendo eles suficientes, principalmente nos primeiros anos, de fazerem esta recompensa, quando já crescidos, vai o seu trabalho pouco além do dano, que teve o Senhor. Por esta eles não se poderiam tirar da /16/ escravidão sem consentimento do Senhor.

Pufendorf faz aqui um sofisma, que os Lógicos chamam o dicto secundum quid ad dictum simpliciter, isto é, porque o filho do escravo nos primeiros anos não está capaz de recompensar seu Senhor, logo por toda a vida não está capaz. Ora, a experiência quotidiana, e o uso das sociedades nos está mostrando o contrário. Todos os dias vemos que ficam órfãos de pai e mãe desde os mais tenros anos, que por autoridade pública se dão a criar; e contudo, raros são aqueles que chegam aos vinte anos sem que tenham recompensado os danos que deram aos seus benfeitores. Além disto, supondo Pufendorf que, se o filho do escravo pudesse recompensar o Senhor /16 v./, então se poderia subtrair do cativeiro, eu não vejo por que razão, todas as vezes que o seu trabalho passar um pouco além do dano que deu ao Senhor, seja necessário consentimento deste para se tirar da escravidão.

Examinemos agora as razões de Barbeyrac. Por três causas, diz este Filósofo, nascem os filhos dos escravos também escravos. A primeira, porque os pais, podendo vender os filhos, os podem também sujeitar à escravidão; a segunda, porque os filhos chegando à idade de discrição, deviam reclamar e procurar meios de se subtrair ao cativeiro; a terceira porque, assim como o homem nascendo livre, por algum acto humano se acha no estado civil, também por algum acto humano se pode achar no estado da escravidão. Do mesmo modo que os filhos dos cidadãos de /17/ uma República nascem sujeitos às Leis da República, assim também os filhos dos escravos nascem sujeitos à lei da escravidão.

Eu confesso ingenuamente que não compreendo como se possa deduzir do direito que os pais têm que venderem os filhos para proverem na conservação da sua vida, o direito de os sujeitarem à escravidão. No primeiro caso, eu vejo bem incluída a definição, que os Jurisconsultos Naturais  dão do poder moral; isto é, que o poder moral é um direito que o homem tem de se servir por certo modo da sua Liberdade, ou das suas forças naturais, seja a respeito de si, ou dos outros, enquanto este exercício das suas forças e da sua Liberdade é aprovado pela Razão.

A Razão aprova bem que por um pai não ter com que manter a si ou a seus /17 v./ filhos, os sujeite a escravidão, com a condição, como declara Pufendorf, de os poder tornar a comprar, todas as vezes que puder [19]. Porque neste caso a utilidade dos filhos é bem manifesta. Porém, eu não sei que a razão aprove, que por o pai sofrer um grande castigo, qual é a escravidão, em razão de algum delito, tenha por isso direito de sujeitar o filho inocente ao mesmo castigo.

A segunda razão é fundada no tácito consentimento dos filhos. Porque, se eles se queriam tirar da escravidão, deviam, tanto que chegam ao estado da razão, procurar os meios. Porém, se os pais têm poder para sujeitar os filhos à escravidão, como ensina Barbeyrac, como podem esses mesmos filhos procurar /18/ meios de se livrar da escravidão? E de que modo poderiam eles procurar esses meios naqueles países onde as Leis autorizam a escravidão de geração em geração [?] Além disto, por esta razão parece que todas as vezes que eles reclamarem, os Senhores os devem pôr em sua liberdade; porque então já há tácito consentimento em virtude do qual Barbeyrac supõe que eles existem na escravidão. Salvo só se ele quiser em tal matéria admitir as antigas prescrições do Direito Romano.

O último argumento é que parece ter mais força; porém, examinando-o de perto, perde toda a sua eficácia. Diz este céle[bre]/18 v./ Moralista, que assim como os filhos de um cidadão de qualquer Estado quando nascem ficam sujeitos às Leis do Estado, às quais estavam obrigados seus pais, assim também os filhos dos escravos nascem sujeitos às mesmas obrigações, que tinham aqueles que os geraram. Porém, é muito fácil a resposta. Todos os homens estão obrigados a fortificar mais e mais o amor dos seus semelhantes; esta é a vontade do nosso Criador, e que seria do homem sem esta base do seu sistema? Ora, como as Sociedades nas suas Leis não tendem a outro fim mais do que a firmar o mútuo amor dos homens, /19/ procurando deste modo a felicidade dos seus indivíduos [20] daqui vem que para o homem é uma gloriosa sujeição nascer obrigado às Leis da Sociedade. Porém na escravidão, que felicidade tem o homem? Que Leis são essas que vão direitamente a constituir a sua felicidade que desde o seu nascimento se acha a elas sujeito? Se o homem nasce sujeito às Leis da Sociedade, é porque elas são as mesmas da Natureza, e vão todas a procurar a sua felicidade; pelo contrário não nasce o homem sujeito às Leis da escravidão, porque elas são contrárias à Lei da Natureza.

 

Concluamos pois que, sendo a escravidão uma das maiores penas com que o homem pode ser castigado, só com ela devem ser tratados os que cometerem grandes delitos. E que, por outra parte, não sendo as criaturas racionais nos primeiros tempos, que vêm a esta vida, capazes de merecer ou desmerecer, segue-se também, que as Leis Naturais as pronunciam incapazes de merecer sem culpa um tão grande castigo, como é a escravidão.

 

F I M 

  

    NOTAS:

[1] Ver o discurso de M. Leibniz junto às “Obrigações do Homem”, de Pufendorf

[2] Quintiliano Institutiones Met. Lib. 3 Cap. 4

[3] Buchanan, L. 7, Polidor Virgil. Host.Angl. L. x.

[4] Ver o excelente discurso do benefício das Leis de M. Barbeyrac.

[5] Servi autem aut nascuntur, aut fiunt. Nascuntur ex ancillis nostris. Inst. L. 1, titul. 3

[6] Cicero apud Laetantium.

[7] Burlamaqui, P. 2.ª, Lop. ( ?).

[8] Dionis. Alicarn. L. 2

[9] Jo. Phil. Datt. De Venditione liberorum, C. 2, pag. 25

[10] Inst. L. 1

[11] Cice. Orat. Pro Cacinna, Cap. 3

[12] Heinecio Elementa Juris, L. 1, £ 3, P. 86

[13] Colecção 1.ª do L. 4 das Ordenações. Tit. 42.

[14] Ibidem.

[15] Pufendorf, Obrig. do H. e do Cid., L.º 1, Cap. 6.

[16] Apiano, fragm. Tit. 19, § 2

[17] Burlamaqui, P. 1, C2.

[18] Burlamaqui, tradução de José Caetano de Mesquita, P. 2, C.2. § 4

[19] De Off. Hom. L. 2 C. 3 § 10

[20] Que benefícios não goza o homem em virtude da Sociedade, em que vive, desde os primeiros momentos do seu Ser! Pelas Leis das Sociedades é que os filhos são educados; por elas é que os pais e mães contratam os casamentos, por elas é que gozam os direitos, que ninguém os ofenda. Estes benefícios são os que as Leis de Atenas alegam a Sócrates para que haja de obedecer a Sócrates, para que haja de obedecer a seus mandatos, ainda que duros -  οὐ πρωτον μέν σε ἐγεννήσαμεν ἡμεις, καὶ δι ἡμων ἔλαβε τὴν μητέρα σου ὁ πατὴρ καὶ ἐφύτευσέν σε; φράσον οὐν, τούτοις ἡμων, τοις νόμοις τοις περὶ τοὺς γάμους, μέμφῃ τι ὡς οὐ καλως ἔχουσιν; Não te gerámos nós, ó Sócrates, e conforme as nossas determinações, teu pai não recebeu em casamento tua mãe e te gerou ? Diz, acusas tu por não serem boas as Leis, que dispõem a respeito dos casamentos? Platão, no Diálogo Crito.

 

Notas sobre a transcrição :

Actualizei a ortografia, mas não a pontuação.

Alguns acrescentos meus, entre parênteses rectos, normalizam o texto.

Juntei também, em segunda coluna, os originais de algumas citações traduzidas.

(1) Leitura duvidosa.

(2) Idem. Maria do Rosário Pimentel numa citação pôs “não ofendessem”.