20-2-2008

 

 

António de Oliveira de Cadornega (1623- 1690)

 

 

 

Nascimento e ida para Angola

 

António de Oliveira de Cadornega não é muito conhecido, o que é uma injustiça. Concluiu em 1681 os três volumes da sua História Geral das Guerras Angolanas, mas a obra só veio a ser impressa em 1940-1941. Também não é muito citado no estrangeiro, onde crescem as dificuldades para o conseguir perceber totalmente, o que já não é fácil por vezes para nós, portugueses.  Mas o seu livro é de uma pureza, espontaneidade e veracidade, de um entusiasmo e um patriotismo que nos deixam encantados. Entendo que alguém deveria pegar nos três volumes e reescrevê-los em português corrente de hoje, e daí surgiria certamente um best-seller que toda a gente teria prazer em ler. O seu carácter de homem bom está espelhado nos seus textos, mas vale a pena fazer algumas referências também à sua vida.

António de Oliveira de Cadornega nasceu em Vila Viçosa, tendo sido baptizado em 2 de Março de 1624. Terá, pois, nascido no início de 1624 ou finais de 1623. Não tem razão Heintze ao dizer que poderia não ter sido baptizado em criança. Sendo do conhecimento geral que tinha uma parte qualquer de cristão novo, o baptismo era realmente obrigatório desde o início do sec. XV. Veríssimo Serrão afirma que nasceu em 1610, mas sem oferecer provas concretas disso. Sua irmã Violante de Azevedo dizia em 1662 ter 35 anos de idade, tendo nascido, portanto, em 1627. Com toda a probabilidade esta era a irmã mais nova, tendo vindo antes dela os irmãos  Manuel, o mais velho, António e Francisca, sendo racional este espaço de 3 ou 4 anos entre o nascimento de António e o de Violante.

Por outro lado, quando Cadornega diz no seu livro ser em 1680, o português mais antigo em Angola, não quer dizer que é o mais velho em idade (como supõe Heintze), mas sim o que está há mais tempo na Conquista, isto é, há 41 anos; o que não admira, dada, por um lado, a mortalidade que ali grassava entre os brancos e, por outro, o facto de estes, em geral, abandonarem o país assim que podiam, depois de terminada a missão que tinham vindo cumprir.

Nem há que se admirar de ele, aos 15 anos, embarcar como soldado para Angola. Naquele tempo, abandonava-se nessa idade a casa dos pais, para ir para a Universidade, ou para iniciar o exercício de uma profissão.

Foi seu pai, António de Cadornega e Oliveira que, tendo estado emigrado na Argentina, ao  serviço dos Filipes de Espanha, dizia ter perdido todos os seus bens quando o navio em que regressava foi saqueado pelos piratas. Foi depois nomeado escrivão de notas da Vila de Ourém, o que lhe permitia sobreviver e ir sustentando a família. Sua mãe chamou-se Antónia Simões Correia e dela falaremos em detalhe a seguir. Avós paternos foram Cristóvão Peres de Cadornega e mulher Violante Gomes de Azevedo. Ele, oficial da Executoria de Estremoz. Seu bisavô, Damião Peres de Cadornega, fora criado da Casa Real.

Juntamente com seu irmão Manuel, terá estudado português e latim nas aulas dos Frades de Santo Agostinho, em Vila Viçosa. Em 1639, queria o pai que ambos prosseguissem os estudos – era a altura de entrarem na Universidade. Mas os dois irmãos decidiram em vez disso ir à aventura para Angola, oferecendo-se como voluntários para a vida militar – Manuel como alferes e António como soldado. Para isso, pediram ao Duque de Bragança, futuro D. João IV, que escrevesse uma carta de recomendação para o recém-nomeado Governador-Geral, Pedro César de Menezes, com quem acabaram por embarcar no mesmo navio.

Porquê esta decisão? Entendo que os dois irmãos, inteligentes como eram, concluíram à evidência que, se tivessem algum sucesso na vida, acabariam mais cedo ou mais tarde nas masmorras da Inquisição, destino fatal de todos os cristãos novos que de qualquer maneira se salientavam.  Todo o êxito despertava invejas e, na sequência destas, surgiam as denúncias junto do terrível Tribunal. E os réus presos, para salvarem a vida, não tinham outra solução que não fosse confessar um vago judaísmo em que nem sequer acreditavam e denunciar todos os cristãos novos que conheciam, amigos e inimigos, parentes e estranhos.

António certamente e também, com toda a probabilidade, Manuel, acabaram por morrer em Angola, não tendo nunca manifestado o desejo de regressar à Metrópole.

Partiram, pois, os dois irmãos no mesmo navio que o Governador Geral nomeado, Pedro César de Menezes, tendo aportado a Benguela, como era carreira habitual das naves na altura e depois a Luanda, em 18 de Outubro de 1639. Pouco tempo depois, acontece a tomada de Luanda pelos holandeses e a população branca acaba por se refugiar toda na Vila da Vitória de Massangano.

A carreira militar de António prosseguiu e em 29 de Janeiro de 1649 foi elevado ao posto de capitão, posto em que, bastantes anos mais tarde, se reformou, tendo ficado a residir naquela fortaleza, pelo espaço de cerca de 28 anos.

Ali conheceu a Fernão Rodrigues, um dos antigos conquistadores, com cuja filha casou.

 

Desgraça na família: prisão da mãe e da irmã nos cárceres da Inquisição

 

A 1 de Janeiro de 1662, ocorreu em Portugal uma desgraça que não pode deixar de ter chegado aos ouvidos de Manuel e de António, em Angola: sua mãe, Antónia Simões Correia e sua irmã, Violante de Azevedo foram presas pela Inquisição e encarceradas nos Estaus, em Lisboa, sob a acusação de judaizantes. Tinham, na altura, respectivamente, 70 e 35 anos. Vejamos o que nos dizem os respectivos processos.

 

Processo n.º 2056 (online)– Antónia Simões Correia

 

Na Genealogia a fls. 33 v - Imagem 66, declara a 11 de Janeiro de 1662 ser  cristã nova, não sabe em quanta parte. Que é viúva de António de Cadornega, de quem teve filhos que morreram meninos, e Violante de Azevedo, solteira, de mais de 25 anos; e Francisca de Azevedo que faleceu há quatro anos, sendo solteira.  Que sabe ler e escrever .

Como mãe extremosa,  não hesita em mentir para salvaguardar os filhos.

É acusada pelo testemunho de treze cristãos novos que, certamente para salvarem a própria pele, não haviam hesitado em a acusar.

Porém, a idade avançada e a saúde precária não a deixaram resistir aos sofrimentos do cárcere e a senhora ali faleceu em 2 de Janeiro de 1665. Os notários foram verificar a morte do que dão fé,  assegurando a fls. 129 v. que a Ré “fora por vezes visitada dos médicos e se confessara com um religioso da Ordem de São Domingos . E na dita defunta não vimos sinais alguns de que sua morte fosse violenta, senão natural, pela muita idade que tinha.”

Mas o processo tem  de prosseguir “para efeito de se proceder contra sua memória, honra e fazenda”.

Os autos são conclusos a 10 de Fevereiro de 1668, e os Inquisidores exaram:

“…é bem julgado pelos Inquisidores ordinário e Deputados em determinarem que ela está convicta no crime de heresia e apostasia, e como herege apóstata da nossa Santa Fé Catholica, convicta, negativa e pertinaz, sejam seus ossos desenterrados e entregues, com sua estátua, à justiça secular, e que incorreu em sentença de excomunhão maior, e confiscação de todos seus bens, para o fisco e câmara real, e nas mais penas de Direito. Confirmam sua sentença por seus fundamentos, e pelo mais dos Autos e mandam que assim se cumpra e dê a sua devida execução. Lisboa, 10 de Fevereiro de 1668.”

Os ossos e a estátua da falecida foram ao auto da fé de domingo, 11 de Março de 1668, no Terreiro do Paço.

Vem a seguir a conta de custas de 9 470 reis.

 

Processo n.º 9939 – Violante de Azevedo

 

Na Genealogia (fls. 38 - imagem 75) a 13 de Janeiro de 1662, Violante de Azevedo disse que se tinha na conta de cristã velha e não escondeu a existência dos irmãos;  diz ter “dois irmãos e uma irmã, Manuel Correia de Cadornega e António de Oliveira de Cadornega, ambos que se ausentaram para fora do reino há anos e Francisca de Azevedo que faleceu há uns anos, sendo solteira. “ Diz que se comporta como cristã, que sabe ler e escrever e que nunca saiu do Reino;  que só saiu de Vila Viçosa para ir a Estremoz visitar sua tia, D. Catarina de Azevedo.

Perguntada se sabe ou suspeita a causa da sua prisão, disse que entende seria por alguns testemunhos falsos de seus inimigos.

Violante orienta a sua defesa no sentido de negar toda e qualquer existência de sangue judeu nas suas veias.  Era uma defesa nitidamente muito arriscada: sua mãe já reconhecera ter parte de cristã nova e isso mesmo afirmaram dezoito  testemunhas de acusação no processo dela própria, Violante.

Em 24 de Janeiro de 1664 depôs no processo ( Imagens 143/144) Lopo Vaz de Almeida, moço do guarda roupa de Sua Majestade e Cavaleiro do hábito de Cristo, de 50 anos, o qual disse “que Violante de Azevedo por parte de seu pai é cristã velha, mas por parte de sua mãe, tem alguma parte de cristã nova, e por tal a ouviu sempre reputar em Vila Viçosa, e nunca ouviu duvidar disso, e corria a dita Violante de Azevedo em amizade muito estreita com Manuel Vaz Ruivo, mercador cristão novo, morador em Vila Viçosa; e reparando ele testemunha algumas vezes nesta amizade e correspondência, lhe disseram algumas pessoas em Vila Viçosa que ela tinha ainda alguma razão de parentesco com o dito Manuel Vaz, e que por esta razão ia a sua casa e também porque ele ajudava com algumas esmolas.

Entretanto vinte testemunhas acusaram a Ré de ter convicções e práticas judaizantes. Muitas testemunhas de defesa, porém, afirmaram que ela só tinha práticas de cristã.

Na imagem 332, figura uma informação dos inquisidores de 13 de Julho de 1665 afirmando com certeza que a Ré tem parte de cristã nova por via de sua mãe – é o que dizem 18 testemunhas.  Para além disso, 10 testemunhas de Estremoz dizem que o avô Cristóvão Peres de Cadornega tinha fama de cristão novo, embora seu pai António de Cadornega e Oliveira tivesse fama em Vila Viçosa de cristão velho.

Na mesma data, a Ré é notificada dessa conclusão: de que o Tribunal averiguou que tem parte da nação dos cristãos novos e por tal está julgada.

Esta conclusão é claramente falha de lógica jurídica: ter sangue de cristão novo não constituía nenhuma espécie de crime, nem sequer para a “santa” Inquisição.

Havia porém, os testemunhos de práticas judaizantes, muito difíceis de contradizer.

A 22 de Março de 1666 (Imagem 366 e ss.), Violante de Azevedo faz uma confissão geral de suas “culpas”: diz ter tido convicções judaicas e denuncia dezenas de cristãos novos conhecidos, incluindo suas falecidas mãe e irmã.  Não tinha outra solução para escapar à fogueira (e não apenas para evitar a excomunhão maior, como escreve Heitor Gomes Teixeira).

A Ré é então considerada confitente diminuta.

A sentença de 26 de Março de 1666 decreta (Imagens 412/413):

 

O que tudo visto e o mais que dos Autos consta, declaram que a Ré foi herege apóstata de nossa Santa Fé Católica, e que incorreu em sentença de excomunhão maior, e confiscação de todos seus bens para o Fisco e Câmara Real, e nas mais penas em Direito contra os semelhantes estabelecidas.

Visto porém como, usando a Ré de bom conselho, confessou suas culpas na mesa do Santo Ofício, com mostras e sinais de arrependimento, pedindo delas perdão e misericórdia, com o mais que dos Autos resulta.

Recebem a Ré Violante de Azevedo ao grémio e união da Santa Madre Igreja, como pede. E mandam que em pena e penitência de suas culpas, vá ao Auto público da Fé na forma costumada, e nele ouça sua sentença e abjure seus heréticos erros em forma, e terá cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão; e a degradam por tempo de 3 anos para o Estado do Brasil; e será instruída nos mistérios da Fé necessários para salvação da sua Alma, e cumprirá as mais penas e penitências espirituais que lhe forem impostas. E mandam que da excomunhão maior em que incorreu seja absoluta in forma Ecclesiæ.”

 

Saiu no auto da fé de 4 de Abril de 1666, Domingo, no Terreiro do Paço.

Seguiram-se a abjuração em forma e o Termo de segredo em  5 de Abril de 1666.

Do termo de ida e penitências de 14 de Maio de 1666 (Imagem 421/422), consta: “No primeiro ano, se confessará nas quatro festas principais: Páscoa de Espírito Santo, Assunção de Nossa Senhora, Natal e Páscoa da Ressurreição, de que mandará certidão a esta Mesa, e sem licença sua não comungará. Rezará cada semana dois Rosários à Virgem e cada sexta feira cinco Padre Nossos e cinco Ave Marias às cinco Chagas de Cristo. Não usará ouro, prata, pedraria, nem vestidos de seda.  Foram comutados os 3 anos de degredo no Brasil para fora da comarca de Vila Viçosa, mas não sairá do sítio onde morar, sem licença desta Mesa. Na terra onde for morar, apresentar-se-á na Igreja, irá Domingos e Dias Santos à Missa Conventual, e pregação quando houver, vestindo o hábito penitencial. “

 

Segue-se um requerimento pedindo a comutação do degredo (Imagem 426 ss.), por ser moça donzela, e honrada, órfã de pai e de mãe, e correr grande perigo sua honestidade pelos mares, e terras estranhas.

Pede a V. Senhoria, pela sagrada ressurreição de N.S. Jesus Cristo, usem com ela de misericórdia, perdoando-lhe ou comutando-lhe o degredo”.

O pedido foi despachado favoravelmente a 11 de Maio de 1666, e comutado em “degredo para fora da comarca em que vivia”, isto é para fora de Vila Viçosa.

No processo, figura ainda um requerimento de 6 de Julho de 1666 (Imagem 429), em que pede licença para comungar. Despacho: “Passe-se-lhe licença para as quatro festas principais do ano e obrigação da Quaresma em 7 de Julho de 1666”.

Finalmente, a conta de custas (Imagem 433): 10 466 reis.

 

Angola

 

Sentindo-se impotentes face ao poderoso Tribunal, os dois irmãos não tinham outra solução senão prosseguirem a sua vida em Angola, o melhor que podiam.

A certa altura, António reformou-se no posto de capitão e foi nomeado Juiz ordinário de Massangano.

Nesta qualidade, trocou correspondência com a Rainha Jinga, e dela temos uma carta,  datada de 15 de Junho de 1660, que ele transcreveu no seu livro e é do teor seguinte:

 

 

 Senhor Juiz:

 

A Carta que V m.ce me escreveo sobre de sua gente fugida, que a minha gente os vendão e os furtão, isso deve de dizer quem me quer mal para estas pazes e Christandade, porque se pode Vm ce perguntar a todos os Pombeiros dos brancos, que nesta minha Corte vem com fato de seus Senhores a negociar; pois saiba V m.ce que os negros de V m.ce são tão atrevidos sendo quando vendemos com elles as peças lhe damos avizo que as peças seje bem vigiadas, e prezas; elles os ditos como são velhacos mandão as peças soltas a fazer o seu serviço, para dizer a V m.ce que nesta minha bamza me fogem muitas Damas soltas antigas como os ditos dirão; quanto mais gente nova: se estiverão aqui podião fazer diligencia como fez do Negro de João Pilato a cabo de tantos annos e do reverendo Padre Vigario, como dirão os Reverendos Padres que levão esta; não largo mais. Guarde Deus muitos annos como pode &. Minha Corte de Matamba, hoje 15 de Junho de 1660 annos.

 

                                                           R. D. ANNA.

 

 

 in História Geral da Guerras Angolanas, António de Oliveira de Cadornega, Tomo II, pp. 172-173.

 

 Atente-se também no modo como ele referencia a carta no índice do 2.º volume, que ele chama "Alphabeto do que contém este tomo desta Historia General das Guerras Angolanas":

 

 

 "E vai aqui a cópia da carta que escreveu esta reduzida Rainha ao Juiz Ordinário da Vila de Masangano em resposta da sua, para que se veja o quanto estava domesticada ."

 

 

António de Oliveira de Cadornega fez parte do Senado da Câmara de Massangano. Em representação da Câmara, foi a Luanda solicitar ao Governador diligências para a oficialização da Misericórdia da Vila que, embora funcionando de facto, não tinha existência legal.

Em 1669, mudou a sua residência para Luanda, onde foi vereador da Câmara, assinando papéis nessa qualidade ainda em 1685.

Segundo Barbosa Machado, faleceu em 1690.

 

Obras

 

Para além da “Historia Geral das Guerras Angolanas”, Cadornega escreveu também a “Descrição da muito populosa e sempre leal Vila Viçosa, Corte dos Sereníssimos Duques dos Estados de Bragança e Barcelos”, que concluiu em 1683, mas que só foi publicada em 1983, em edição preparada por Heitor Gomes Teixeira.

Barbosa Machado atribui a Cadornega dois manuscritos que se perderam:

- Compendio da expugnação do Reyno de Benguela, e das terras adjacentes. fol.

- Historia de todas as cousas, que succederão em Angola no tempo dos Governadores, que a governarão depois da guerra atè D. João de Lancastro. fol. Tom. 4.

Este último seria a continuação da História Geral das Guerras Angolanas (3 vols.). Apesar de este ter sido aprovado na altura pela Inquisição para ser publicado, a verdade é que só o foi no sec. XX. Deveu-se isso à persistência e ao trabalho do Cónego José Matias Delgado (1865-1932) que, com muito saber e enorme paciência, anotou os dois primeiros volumes. O terceiro não se refere propriamente à história, mas à descrição da geografia e etnografia de Angola, pensando Delgado que não tinha necessidade de anotações. Mas também ele não viu a obra impressa. Mons. Manuel Alves da Cunha (1872 – 1947) anotou o 3.o volume e promoveu a impressão da obra em 1940 e 1941.

As anotações são de facto, indispensáveis. Apesar do estilo franco e espontâneo de Cadornega, ele tinha as suas limitações que não o desonram, pois derivam sobretudo da sua falta de formação académica.  

Sobre o seu estilo e o conteúdo do livro, seguiremos o texto de Beatrix Heintze, que é especialmente incisivo.

Cadornega começou a escrever os seus livros tarde na vida e teve desde logo dificuldades em relação aos acontecimentos ocorridos antes sua chegada a Angola em 1639. Aí errou praticamente todas as datas, tal como diz o anotador Matias Delgado. 

Quando descreve um acontecimento, não julga nem critica ninguém, limita-se a dizer o que se passou. No intuito de o saber, falou com toda a gente, e especialmente com os missionários capuchinhos, António de Gaeta e João António Cavazzi de Montecuccolo.

A Rainha Jinga é a personagem mais presente na sua história. Cadornega estava literalmente fascinado por ela, ora marcando-a com adjectivos  incisivos, como “bicha peçonhenta”, ora admirando a sua conversão à Fé de Cristo, com outros adjectivos: “isto faz o tempo e estas cousas obra Deus como Pai de misericórdia, que de Leoas bravas, faz Cordeiras mansas”.

Como o título da obra indica, as campanhas militares são o assunto principal dos livros, especialmente dos primeiros dois.  Não é um historiador objectivo, não esconde que defende o partido dos portugueses. As batalhas ganhas pelos portugueses são descritas em detalhe em muitas páginas, ao passo que resume as derrotas a poucas linhas. Com base no livro dele, J. Thornton escreveu uma belo artigo monográfico sobre a arte da guerra em Angola (ver bibliografia).

Passa ao lado do tráfico negreiro, que era um dado adquirido e indiscutido, tal como se diz na Consulta do Conselho Ultramarino de 14-12-1652: “… e a causa que para isto dá, é que faltam os escravos, único cabedal daquela Conquista (i.é, Angola), os que os havia antigamente por resgate nas feiras, ou por se cativarem na guerra.” (MMA, XI, 245). Mas acaba por sugerir para o sec. XVII o número de um milhão de escravos embarcados para as Índias ocidentais no seguinte trecho: "E se pode julgar a máquina de gentio que têm estes reinos; pelo que diremos que haverá cem annos que se começou a conquista destes reinos e têm hido hum anno por outro despachadas deste porto outo a dez mil cabeças de escravos, que são quasi um milhão de almas, salvo melhor arithmetica: por aqui se pode ver o que isto vem a ser; tirado os sete annos que estes reinos estiveram no cativeiro de Faraon ou dos Hollandezes. E a fora muitos que forão furtados aos direitos novo e velho, e ao subsídio; e isto succede em todos os navios que deste porto vão, qual mais, qual menos." (Vol. III, pag. 254).

A crónica das guerras angolanas de Cadornega representa ainda uma homenagem aos povos de Angola, que resistiram tanto quanto puderam a quem os queria subjugar e que venderam cara a sua liberdade, não parando de por ela lutar.

 

 

 

OBRAS CONSULTADAS

  

 

António de Oliveira de Cadornega, História geral das guerras angolanas - 1680, anot. e corrigido por José Matias Delgado, Lisboa, Agência-Geral do Ultramar, 1972, 3 vols., Reprodução fac-similada da ed. de 1940

 

António de Oliveira de Cadornega, Descrição de Vila Viçosa, introd., proposta de leitura e notas de Heitor Gomes Teixeira, Lisboa, INCM, 1982

 

C.R.Boxer, voz “Cadornega”, in Dicionário de História de Portugal, ao cuidado de Joel Serrão, Edit. Figueirinhas, Porto, 9 vols., 1984-2000,  vol. I, pag. 427

 

Joaquim Veríssimo Serrão, A historiografia portuguesa: doutrina e crítica, Lisboa, Verbo, 1972, 3 vols.

 

Beatrix Heintze, António de Oliveira de Cadornega e a sua “História geral das guerras angolanas”: um Historiador e Etnógrafo do Sec. XVII, natural de Vila Viçosa, trad. do Prof. Doutor Olívio Caeiro, in Callipole, n.º 3/4, 1995/1996, pags. 75-86

 

Beatrix Heintze, António de Oliveira de Cadornegas Geschichtswerk über Angola. Eine außergewöhnliche Quelle des 17. Jahrhunderts, Capítulo 4.º de Beatrix Heintze, "Studien zur Geschichte Angolas im 16. Und 17. Jahrhundert, Ein Lesebuch", Köln, Rüdiger Köppe, 1996, pags. 48-58.

 

Beatrix Heintze, A obra de António de Oliveira de Cadornega: uma fonte extraordinária para a História e Etnografia de Angola no século XVII, Capítulo 5.º de "Angola nos séculos XVI e XVII. Estudos sobre Fontes, Métodos e História", de Beatrix Heintze. Luanda: Kilombelombe 2007, 633 pp, pags. 133-161.

 

MMA - Monumenta Missionaria Africana: África ocidental, coligida e anotada pelo Padre António Brásio, Agência Geral do Ultramar, 1952, 15 vols. + 6 vol. (2.ª série)

 

Charles Ralph Boxer (1904-2000), A "História" de Cadornega no Museu Britânico, sep. da Revista Portuguesa de História, n.º 8, Coimbra, 1961, 12 pp.

 

Gladwyn Murray Childs, The Peoples of Angola in the Seventeenth Century According to Cadornega, in The Journal of African History, Vol. 1, n.º 2 (1960), pp. 271-279.

 

Thornton John K., The Art of War in Angola, 1575-1680, Comparative Studies in Society and History, Vol. 30, No. 2 (Apr., 1988), pp. 360-378

 

Maria Emília de Castro e Almeida e Maria Cristina dos Santos Neto, Cadornega e sua obra – uma consequência dos descobrimentos portugueses, (Breves Notas), in Garcia de Orta, Série de Antropobiologia, Volume 4, Nºs 1 e 2, Lisboa, 1985-1986, pags. 11-14.

 

Rui Miguel da Costa Pinto, António de Oliveira Cadornega – Um natural de Vila Viçosa, in CALLIPOLE, n.º 5/6, Câmara Municipal de Vila Viçosa, 1997/1998, pags. 85-88

 

José Carlos Gaspar Venâncio, António de Oliveira Cadornega: Protagonista de uma viagem sem retorno, in  CADERNOS HISTÓRICOS n.º 8, 1997,  pags. 71-84

 

Faustino Gitibá, O comércio de escravos na obra de Cadornega, Estudos ibero-americanos,  ISSN 0101-4064, XVI (1-2), (1990) pags. 105-115 

 

Fernando Heitor Pinto Gomes Teixeira,  A visão da cidade no séc. XVII: Luanda vista por Cadornega [Texto policopiado],  Tese de doutoramento em Literatura Portuguesa, apresentada à FCSH da UNL, Lisboa, 1982, 393 fls.

 

 

 

 

ANTONIO DE OLIVEIRA CADORNEGA natural de Villa-Viçosa filho de Antonio Cadornega de Oliveira Fidalgo da Casa Real, e Criado, como o foram seus Ascendentes da Serenissima Casa de Bragança. Na adolescencia estimulado do nobre ardor da gloria militar acompanhou por Soldado a Pedro Cesar de Menezes na ocasião, que partio por Governador de Angola no ano de 1639, em cujo teatro obrou heroicas façanhas contra os Olandezes, assim no posto de Alferes, como de Capitão pelo largo espaço de trinta anos. Depois que inimigo tão poderoso foi lançado daquelas terras assistiu na Cidade de Luanda Capital do Reino de Angola onde como Capitão reformado viveu atè o ano de 1690. Pela vasta noticia, que tinha adquirido daquela região Africana jà pela lição dos Livros, jà pelo exame dos olhos, escreveu

 

Historia geral da guerra de Angola. fol. 3. Tom.

 

Historia de todas as cousas, que succederão em Angola no tempo dos Governadores, que a governarão depois da guerra atè D. João de Lancastro. fol. Tom. 4.

 

MS. Compendio da expugnação do Reyno de Benguela, e das terras adjacentes. fol.

 

MS. Descripção da sua patria Villa-Viçosa acabada no anno de  1683 . Dedicada ao Excellentissimo Conde de Ericeira D. Luiz de Menezes, em cuja grande Livraria se conservam todas estes obras.

 

Bibliotheca lusitana historica, critica, e cronologica : na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das obras, que compuserão desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até ao tempo presente, por Diogo Barbosa Machado (1682-1772), 4 vols., 1741.