16-8-2015

 

 

Ana de Amsterdam, de Ana Cássia Rebelo

 

 

 

 

 

NOTA DE LEITURA

 

Não sei porquê, mas em Fevereiro passaram-me despercebidas, quer a publicação de Ana de Amsterdam, de Ana Cássia Rebelo, quer a recensão que do livro foi feita no Público. Valeu-me a nota que sobre ele escreveu Pedro Mexia no Expresso. Fui comprar o livro e li-o em dois dias.

A autora escreve muito bem. É provável que, de vez em quando, misture realidade com ficção, o que pode sair um tanto da natureza do blog. Nessa perspectiva, ganharia qualidade se escrevesse directamente para publicação em livro.

De toda a maneira, foi muito bom que os artigos dela tenham sido publicados em livro. Em Portugal, com poucas excepções, os literatos e a Academia não têm consideração por quem escreve e publica só na Internet. Às vezes andam por lá à pesca, mas se encontram coisa que lhes interessa, aproveitam mas não citam, não se dão a esse trabalho.

É admirável como a autora, sendo embora mestiça e não o escondendo, tem orgulho em ambas as suas raças de origem, ou seja, não tem qualquer complexo por isso. A sua afeição ao pai é uma coisa bonita de se ler.

Bem haja a João Pedro George que tomou a iniciativa da publicação.

 

 

 

 

 

Revista E n.º 2231, de 1-8-2015

 

 

Ana de Amsterdam

Ana Cássia Rebelo

Quetzal, 2015, sel.  e prefácio de João Pedro George, 224 pgs.

Diário

 

Ana de Amsterdão (o título vem de uma canção de Chico Buarque) é sem dúvida um dos melhores blogues portugueses.  Um diário íntimo, honesto, impiedoso, excepcionalmente bem escrito. E que dialoga com aquela figura, em geral pouco estimada, da mulher que assume as suas frustrações. na linha de Irene Lisboa, Maria Judite Carvalho ou Maria Ondina Braga. Ou de Adília Lopes e Isabela Figueiredo. Ana Cássia Rebelo mostra-se entediada com o seu quotidiano profissional de jurista, escuta desgostantes conversas em transportes públicos, regista episódios lisboetas escabrosos, observa a fauna dickensiana da cidade, tem sonhos bizarros, toma medicação antidepressiva, sobrevive a tentativas de suicídio, isola-se. Várias entradas deste volume dedicam-se a um autoexame anatómico detalhado e disfórico, masoquista. A diarista confessa-se descontente com tudo, ou quase: testa, nariz, lábios, mamas, umbigo, vagina, pernas, pés. E faz a sua própria caricatura, tão implacável como quando caricatura terceiros. Divorciada, solitária, amarga, Ana considera os homens umas bestas e alimenta essa androfobia. Embora admita que sofre de frigidez, entrega-se a uns casos amorosos de pausa de almoço, às fantasias, à pornografia. Um episódio de sedução à porta de um talho, muito bem contado, torna-se de tão abjecto, uma alegoria da masculinidade. E lado a lado com as páginas autobiográficas vão surgindo pequenas ficções com personagens femininas enganadas, maltratadas, abusadas pelos homens, algumas delas vingativas, bíblicas na sua fúria. O agastamento niilista só se suspende quando Ana fala da sua família, em especial a paterna, goeses retornados de Moçambique. Perdoa-lhes os preconceitos, minimiza os queixumes, valoriza os gestos e as delicadezas. O amor deles parece-lhe o único amor incondicional. E então ela usa ao pescoço lenços que herdou, descreve amorosamente costumes antigos e bibelôs gastos, deita-se na cama dos pais, cheira o corpo aos filhos. Este diário comovido e feroz, que começa em 2006, quando a autora tinha 35 anos, termina em 2014 (a selecção de textos, impecável, é de João Pedro George). Quase uma década de textos muitíssimo literários na maturidade narrativa e na eloquência descritiva, mas totalmente hostis à literatura enquanto modalidade de bons sentimentos. Porque esta Ana, como a da canção, é a Ana dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, do cabo, do raso, do rabo, dos ratos.

Pedro Mexia

 

 

                           

 

 

CRÍTICA

Afinal, é apenas o meu sangue

HUGO PINTO SANTOS 

13/02/2015 - 01:06

Com a sua escrita, Ana Cássia Rebelo posiciona-se num limiar: entre a atenção ao real e um sortilégio estranho, sem limites definíveis

Entre estas páginas está alguma da mais poderosa escrita entre nós produzida. Elas não são uma bomba, um murro, nem uma pedrada. Contêm palavras. Essas palavras estão escritas e ordenadas de uma forma que é peculiar à autora que as assina. Os núcleos por elas formados são textos de uma intensidade nada comum. A violência que neles deflagra, a honestidade de que são capazes, e a sua valia literária, tornam este caso alguma coisa de distinto. É preciso dar notícia da medida a que está submetida a expressão, o modo como é verificado tudo aquilo que sai de controlo. É essa matéria altamente volátil, a humana, que se estende diante do olhar leitor. Desse modo, há uma tensão, que logo se estabelece, entre a nervura rasgada e a serenidade discursiva – “O desejo é literário, o prazer, simplesmente pornográfico.” (p.65) Longe de encerrar qualquer revelação gritada – “não aprecio a devassa” (p.140) –, riscada com esse afinco de demasia escrita, que às vezes acontece, este livro sóbrio e duro chega como o explicitar de uma suspeita antiga. O que Ana Cássia Rebelo tem vindo a escrever só por um conjunto de circunstancialismos não se tinha ainda fixado num livro que lhe fornecesse lugar adequado.

Ana de Amsterdam constitui uma antologia de textos retirados do blogue com esse nome, mantido por Ana Cássia Rebelo desde 2006. A recolha e selecção estiveram a cargo do crítico e escritor João Pedro George, responsável ainda pelo empenhado prefácio. O propósito de produzir esta colectânea motivou releituras e revisões, da parte de autora e organizador, bem como mudanças no próprio corpo do texto. No processo dessas revisitações, houve lugar ao que poderíamos chamar ficcionalização de um percurso verídico. Percurso esse que, já de si, era uma reconstrução, dado que não é, naturalmente, concebível uma identificação absoluta entre o vivido e o recriado pela escrita. Contudo, a essa constatação de base acresce algo específico a este livro. Na medida em que, por exemplo, a sequência pela qual surgem as entradas não é exactamente a mesma dos registos originais. Esses efeitos ficcionais estão especialmente patentes no modo como termina Ana de Amsterdam. A última entrada começa com a frase: “Morri no princípio de Outubro.” (p.216) Não se trata do paradoxo pelo paradoxo, mas da assunção de uma estrutura narrativa, que o próprio livro monta, de um percurso intensamente vivido nos seus descalabros. Um caminho em que o suicídio é tentativa repetidamente evocada, fantasma, tema avistado de forma cíclica. A conclusão pela morte, narrada de dentro desse limite lógico, é um sinal, dentro do livro, de que se levou até às últimas consequências uma certa arquitectura.

O trabalho levado a cabo para esta edição não esquece uma intenção comunicativa que é a do diário, mas serializa as suas ocorrências de modo a produzir certos núcleos narrativos em torno de importantes zonas temáticas: solidão, desejo, família, o espaço dos subúrbios e o da cidade, o corpo próprio e o outro. Do ponto de vista da pragmática, pressupõe-se, efectivamente, um eu que se exprime e um tu invisível, imaterial – inviável. Aquele que lerá o que, em princípio não deveria ser lido. A própria autora descreve Ana de Amsterdam como o diário de um desespero, de uma angústia que tem por companheira frequente “a amiga-tristeza” (p.21). Condições que lhe pertencem e que a escrita porfia para capturar. Deixar viver as suas palavras, por entre as redes apertadíssimas de estados de espírito no limite, como os que aqui tantas vezes estão patentes, é um dos zelos desta escrita. À medida que se extrema a experiência humana, vive-se a depressão e a angústia, conhece-se a abulia e a miragem sucessiva da terapia. O mais natural seria que o discurso acompanhasse essa descida, esse movimento centrífugo, que arrasta, sem nunca levar brandamente de passeio; mas ele segue de modo terminantemente diferente. A escrita que Ana Cássia Rebelo revelou no blogue organiza-se como se seguisse um duríssimo regime auto-imposto. De acordo com ele, aboliu qualquer sobrecarga emocional, mas, acima de tudo, excessos que emprestassem ao seu texto uma sobredosagem emotiva de molde a entravar a escrita. E no entanto, um dos prodígios operados por esta escritora é a capacidade de subverter essa lógica e de radicalizar a sua expressão, com a mesma tenacidade com que a modera, na maior parte dos casos. Um dos melhores exemplos desse movimento de intensificação é a opção vocabular que a leva a produzir enunciados como: “Há moscas varejeiras que vivem dentro de mim, alimentando-se da porcaria que por cá há.” (p.47), ou “tenho a sensação que dentro do meu corpo habita um bicho voraz que se alimenta da minha tristeza” (p.55). Talvez um dos mais eficazes paralelos para este grau de abjecção e violência se encontre, não na prosa, mas numa poesia como a de Sylvia Plath, com a hipnose de uma depreciação do eu, e essa espécie de volúpia da maldição, esse gozo da decadência. Pense-se, por mero exemplo, num poema como “Lady Lazarus”: “Como uma concha./ Tiveram de me chamar e voltar a chamar/ E arrancar de mim os vermes como se pérolas pegajosas.” (Ariel, Relógio D’Água, 1996).

Existem claramente dois hemisférios no mundo de Ana de Amsterdam. Um oriental: solar, aberto à vida e ao esplendor da natureza, oloroso e pleno de vida. Outro, ocidental e predominantemente interior: com uma vitalidade enfraquecida pela rotina e o cansaço, urbano e artificial. Várias vezes se referirá Goa como a casa, e é a respeito dessas paragens que se descreve a “quietude da minha noite indiana” (p.147), num contraste ambiental notório com os restantes espaços mapeados em Ana de Amsterdam. Como se apenas em Goa a autora vivesse. É, na verdade, algures nesses meridianos que A. Cássia Rebelo encontra a expressão para certo vitalismo que apenas lá parece colher – “Só as noites em Goa me trouxeram sossego e felicidade.” (p.59)

Com a sua escrita, Ana Cássia Rebelo posiciona-se num limiar. Entre a atenção ao real, graças ao qual “o vulgar e o banal são mostrados como parecem” (p.10), na expressão de J. Pedro George, e um sortilégio estranho, sem limites definíveis – “Não tenho salvação e já pensei em ir ao templo pedir um exorcismo. Não durmo, não sereno, ando cansada. Continuo a procurar a cabeça do abutre no manto da virgem e, nos olhos bondosos do menino, a maldade original, mas sou agora capaz de enunciar as características osganolépticas da seiva alexandrina: líquido opalino, de um branco suave, consistência de ovo, cheiro de ervas esmagadas, sabor intenso, ligeiramente adocicado, a fazer lembrar leite de espelta.” (p.205)

 

 

 

Anatomia de uma mulher

HUGO PINTO SANTOS 

13/02/2015 - 08:20

Ana Cássia Rebelo acaba de publicar Ana de Amsterdam, antologia de textos do blogue homónimo que mantém desde 2006. É uma das vozes mais aguardadas no panorama editorial português. As suas palavras não desiludem a expectativa gerada.

 

Stendhal lia aplicadamente livros de direito para treinar e cumprir um estilo desafectado e sem rodeios, à luz fria da linguagem jurídica. Ana Cássia Rebelo diz-nos algo semelhante: “Aprendi a escrever com a escrita do direito.”

Dirá que essa experiência, no domínio jurídico, deixa marcas no seu estilo. Marcas na língua que escreve. “O gerúndio. A forma como a frase é concluída.” Há-de mesmo afirmar que aprendeu a escrever dessa forma. “Com o direito e com o blogue”, esclarece. Quando começou a trabalhar, conta, nem sequer sabia redigir com correcção e propriedade, tão-pouco pontuar. Os Ana Cássia Rebelo tem quarenta e poucos anos, três filhos, e é jurista numa instituição da banca. Tem o que é costume chamar um emprego das nove às cinco. E é muitas vezes no meio da elaboração de pareceres, na redacção de ofícios ou de contestações, que assume o seu outro papel. Esse papel é o de uma escritora de enorme singularidade, que, até ao momento, se deu a conhecer no blogue que mantém desde 2006, Ana de Amsterdam. Acerca do nome do blogue, elucida: “Gostava da canção, e foi apenas por essa razão que, há quase dez anos, a escolhi para dar nome a um blogue. Havia a letra – tão simples quanto forte – e aquele verso com o qual me identificava: “Sou Ana do Oriente, Ocidente, acidente, gelada.” “Ao longo destes anos”, diz-nos ainda a autora, «muitas vezes, me interroguei sobre a mulher da canção, mas nunca procurei saber quem era. Ana de Amsterdam, mulher gelada, gelada como eu própria me sentia, permaneceu durante muito tempo uma desconhecida para mim.» E relata-nos o percurso que a levou a Ana, a de Amsterdam: “Até que o PÚBLICO, há uns anos, editou toda a obra de Chico Buarque. Só então descobri que Ana de Amsterdam é uma canção cantada pela personagem homónima na peça Calabar – O Elogio da Traição, escrita por Chico Buarque em parceria com Ruy Guerra, em 1973. A peça conta a história de Domingos Fernandes Calabar, nascido em 1600, mulato pernambucano, contrabandista, considerado um dos grandes traidores da história brasileira. Durante a ocupação holandesa, Calabar troca de lado, fornecendo auxílio aos holandeses, revelando-lhes os segredos das matas, dos caminhos e do recorte da costa. Ana, uma das personagens principais da peça, existiu mesmo. Francesa, prostituta, dotada de um espírito livre, terá chegado ao Brasil para distrair os ocupantes holandeses nos intervalos dos seus assuntos. Na peça, Ana, que atravessou o mar para casar, cansada dos homens, sua violência e iniquidade, acaba por se apaixonar por Bárbara, viúva de Calabar. Juntas, cantam uma das mais belas canções de amor do repertório buarquiano (Bárbara). A revelação da história de Ana de Amsterdam, sobretudo desse seu amor por Bárbara, causou-me alegria, emoção profunda.” E, num remate, confia-nos: “Atribuo muita importância ao conhecimento imprevisto, acidental, daquilo que verdadeiramente me importa: descobrir o nome de uma árvore, de um pássaro, de um peixe, ou, como foi o caso, descobrir a história atrás de uma canção.»

Antes do blogue Ana de Amsterdam ainda houve, por 2003, Alice no País dos Matraquilhos, depois Pano-Cru e, mais tarde, 2.º Andar Direito. Tanto este como o seu primeiro blogue roubavam o nome a músicas de Sérgio Godinho – como o actual o rouba a Chico Buarque. Fazem parte da “santíssima trindade, Sérgio Godinho, Fausto e Chico Buarque”. Quando andava na faculdade, algumas colegas, entre as quais uma próxima do cantor português, lembrou-se de oferecer a Ana Cássia Rebelo um disco autografado pelo músico. Ana, que, em tempos, escreveu sobre Godinho: “Se o tivesse à mão dava-lhe um beijo na boca.”, diz-nos, acerca daquela bem intencionada oferta: «Ali estava o meu Sérgio Godinho. E escreveu isto, o normal: “Um abraço, Sérgio Godinho”. Ficamos com a sensação de que as colegas erraram o alvo. Mas também que seria difícil que isso não acontecesse. Ana não é de “deslumbres”, palavra que usará mais do que uma vez. Como se perceberá, nunca pelos melhores motivos.

Um dos lugares privilegiados pela sua escrita é Goa. Não a Índia, clarifica Ana. “A Índia não me diz nada, é um país como outro qualquer, é em Goa que me sinto em casa.” Essa geografia é um dos agregadores de aspectos centrais no universo de Ana Cássia Rebelo, como a família, a importância dos sentidos, a luta contra o carácter opressor da vida moderna. “Os meus pais passam metade do ano em Maina, aldeia que fica entre Corturim e Margão”, conta. “A minha mãe trata da horta, atravessa a estrada movimentada, vai à mercearia e ao mercado. Senta-se na cadeira de baloiço, lê, vê a RTP Internacional, estuda inglês, passa os olhos pelas fotografias dos netos. O meu pai, com 80 anos, levanta-se muito cedo e, durante uma hora, na sua passada acelerada, caminha no grande terreiro que fica em frente da igreja de Corturim.” Deixando-se transportar para aquele subcontinente, mas mantendo-se firme no mapa sentimental de Goa, explica: “Gosto de acreditar que se apercebe da singular beleza daquele local, a lagoa com os nenúfares, o alçado branco da igreja, a grade árvore de pune que floresce em cor de fogo. Volta a casa, toma um duche. Passa o dia em serviços administrativos, repartições, tribunais. Aguenta estoicamente a burocracia indiana, para tratar dos seus assuntos e nos facilitar a herança. Em Goa há praias de águas mornas, restaurantes onde se servem pratos típicos, feiras de artesanato, monumentos de interesse mundial e vistas assombrosas de paisagens.” Não se trata de uma fantasia indiana, ou de um desejo de escapismo. É por isso que afirma: “Não é isso que me faz todos os anos desejar voltar (volto quando tenho dinheiro e arranjo quem fique com os miúdos). Preciso de estar em Maina como preciso estar na Portela de Sacavém ou em São Bartolomeu da Serra. São os lugares dos meus pais, da minha tia, da minha família. E a família é tudo para mim.”

Quando se deu a grande explosão dos blogues em Portugal, sentiu um certo entusiasmo por alguns desses espaços de escrita. Foi o caso de Mónica Marques. O livro da autora, contudo, desiludiu-a. Talvez por esse motivo tenha hesitado tanto antes de aceitar transpor a escrita do seu blogue para um livro. Porque temia, porventura, o teste da página impressa, publicada, a passagem para qualquer coisa de mais definitivo. Esclarece: “As minhas reservas não eram morais mas formais”. Não a retinha o pudor de assumir o «lado mais negro», nem a vulnerabilidade da mulher que expõe o interior descarnado da sua condição. Seja pelo desabar da sexualidade e do desejo, seja pela roleta russa da doença e do antídoto. Qual dos dois será o veneno? Ou ainda por aquilo que a autora vê como fealdade própria, e classifica em termos ríspidos, cobertos de uma pele dura e rugosa, como a do “caimão”, que usa para se descrever, a dado ponto. Não é vulgar este tipo de entrega, mas, acima de tudo, o despudor com que se assume a mágoa e o sofrimento. Sem fingimentos nem subterfúgios literários ou outra técnicas de camuflagem e guerrilha escrita. “O blogue é o diário do meu desespero, da minha angústia”, diz numa síntese com a qual se mostra tranquila, mas que não consegue ocultar por completo as camadas de crise que mal se ocultam. E que a escrita, medida, burilada, sabe levar a bom termo.

Basta ouvi-la. Independentemente de se ter lido o blogue. Mas isso ajudará a compor o retrato-robô. Basta ouvi-la, dizia-se, para se perceber que toda a fragilidade é aparente. Ou que toda a fragilidade está bem no fundo desta mulher que se dirige a nós como se trouxesse uma arma nas mãos. Bem despidas, por sinal, pequenas e lisas. Limpas e escovadas, como a escrita que delas sai. Sem qualquer adorno, ambas. Por vezes, desviará o olhar; muitas vezes, quase cerrará os olhos, num franzir honestamente pensador, de quem calibra o que pronuncia. Porque a fatuidade não passa por aqui. É possível que, em certos momentos, procure refrear o fluxo do seu discurso. Apesar de sereno, é inegável a sua firmeza, e em certas alturas será duro. É-o, com certeza, em muitas alturas. Como nos disse em relação a certos textos recolhidos em Ana de Amsterdam, o livro que acaba de publicar na Quetzal, podemos imaginar muitas horas, ou dias a fio, meses, mesmo, a remoer. Para ser justa, para dizer de forma leal. Quando as palavras lhe fogem dos lábios, que têm alguma coisa de tenso, já saem armadas, no entanto – como a deusa do mito. Mas tudo isto é uma reflexão diferida. A conversa decorre quase sem paragens, salvo as inevitáveis. O dia é frio, de chuva intermitente, obstinada. A sensação é de que não podia ter sido pior. O calor talvez se adequasse mais à violência de que a escrita de Ana Cássia Rebelo é capaz. E contudo, nada a impede de falar com frontalidade, como quem não afronta ninguém. Não precisa. Ana falará, sem a mínima hesitação, da sua frigidez, da terapia que faz há anos, dos progressos alcançados no seu tratamento. Do desejo e da fuga dele. Do sexo e da sua ausência. “É costume dizer que é difícil escrever sobre sexo”, diz Ana Cássia Rebelo, reflectindo, “e que nenhum autor português consegue escrever bem sobre esse tema. Eu acho que é muito mais difícil escrever sobre amor. Eu nunca escreveria sobre isso. Eu não escrevo sobre o amor.» «Se este livro tem um força», afirma, «é a de assumir que a frigidez é um assunto importante”. Ana considera que o tema é tabu, no nosso presente. Como o são outros que se prendem com a sexualidade feminina. “A masturbação”, aponta, de modo pronto e inequívoco. Para ela, não há tabus. Mas não há qualquer cálculo da sua parte. Apesar da ponderação que rapidamente se percebe na sua escrita, tanto ela como a forma como Ana se exprime, ao falar, é toda carne e sangue, e o artifício não tem lugar. Definitivamente, é o contrário do “anúncio a telemóveis” a que alude para descrever grande parte da sua e da nossa actualidade. Vivemos, diz ela, “num mundo de aparência”, em que, no fim, é Ana quem parece “um bicho raro”. Pensando nas mulheres de hoje, diz: “Elas esquecem-se de si próprias”. Quando confrontada com o nome de Simone de Beauvoir, e com o que chama “servidão” da maternidade, propõe um outro nome, o da historiadora Élisabeth Badinter, que tem vindo a descobrir nos últimos tempos. E declara peremptória: “Eu não sou uma fêmea. Eu não sou como as mães gatas, as mães cadelas. Sou uma mulher.” A sua consciência feminina, que é, sobretudo, uma profunda lucidez humana, fá-la questionar a irredutibilidade do instinto maternal, e derrubar, como quem passa com pé firme, mitos como os da amamentação. Ciente daquilo que diz, elenca traumas, padecimentos físicos e psicológicos, que abalam até à raiz mais funda o que é ser mulher. Fala na primeira pessoa, revê a sua própria biografia, a pressão docemente sufocante da mãe, da tia, em defesa intransigente do aleitamento materno; mas extrapola, porque, visivelmente, pensou muito no assunto. Vê que este é apenas um exemplo: importante, sem dúvida, mas apenas parte de um quadro bem mais vasto e complexo. Porque a questão mulher é questão por excelência.

A imagem da capa do seu livro reproduz uma fotografia a preto e branco que mostra um conjunto de rosas-de-pedra. Não é só pelo nome desta planta carnuda e pelo seu aroma exótico que este elemento se adequa de forma tão plena ao livro. Ana Cássia Rebelo encontra nas plantas alguns dos lugares mais certeiros do seu afecto – “Herdei da minha mãe o feminino deslumbre pelas jarras com arranjos barrocos», escreve em Ana de Amsterdam. Motivo pelo qual uma afirmação como «Gosto de ter a casa florida.” ganha o estatuto de uma simples constatação de facto, que não necessita de desenvolvimento ou explicitação.

Interessam-lhe as obras, mais do que os autores. Tantas vezes desiguais, não é raro desiludirem-na. Mas não Virginia Woolf, uma redescoberta recente. Ana tem lido os romances em conjugação com os diários correspondentes à escrita da ficção. Mas o seu olhar, nada brando, pousa também numa outra autora, desta vez portuguesa: Maria Judite de Carvalho. Uma obra, como sublinha Ana, que “não se resume a Tanta Gente, Mariana”. A resposta, quando lhe perguntamos porquê M. Judite de Carvalho, é elucidativa. E revela uma relação muito peculiar com os livros e a escrita. Não é habitual, este tipo de franqueza e despretensão. “Porque me revejo nos livros dela. Ela fala das mulheres. Num tempo diferente, claro. Mas eu identifico-me com ela. A linguagem dela é tão simples, sem artifícios. Flui. É poderosa. Chega até nós.” É difícil não fazer comparações com a escrita de Ana Cássia Rebelo. Como é difícil não ver que, para esta autora, a escrita é parte da vida. Ainda que não seja a única. Também isso não deixará de repetir. “Mas ao mesmo tempo, eu gosto muito de que o autor seja só para mim. O pior que podia acontecer era ver certas pessoas, que eu abomino, a falar dela, cheias de prosápia.” Esta contradição não diminui a energia da sua adesão. É, antes, o sinal de uma personalidade forte, de uma individualidade marcada e incisiva. É ela que explica as suas palavras de uma agressividade com sentido, que não tem qualquer vizinhança com um escárnio fútil. São os «deslumbres bovinos» de que nos fala. “E depois há os consensos. É a minha opinião, que vale tanto como as outras. Nisso tenho segurança. Daí eu gostar tanto de uma autora esquecida, como M. Judite de Carvalho.” E há, enfim, uma casta à parte. São os “deslumbrados da literatura. Como se a literatura fosse a coisa mais importante. Como se eles fossem os eleitos. Parece que têm orgasmos quando falam de livros.» Ana procede por outra via. Gosta de ler em recato, como prefere ir ao cinema sozinha. Parece-lhe estranho que se acabe de ver um filme logo a ter ideias, e em animada discussão. Ana escolhe sair a sós do escuro do cinema e, já na rua, caminhar, reflectindo acerca daquilo que viu. Deve sair da escrita da mesma maneira, ficamos a pensar.