16-6-2001

 

 

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA

 

 

 

 

M. Rosário Pedreira - escritora

É poeta, ficcionista, também na área da literatura juvenil. Maria do Rosário Pedreira (n. 1959) desempenha ainda as funções de editora na Temas e Debates. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade Clássica de Lisboa (1981), foi também professora de Português e Francês (durante cinco anos), actividade que a influenciou decisivamente no sentido do assumir de uma escrita para um público jovem. Trabalhou como coordenadora dos serviços editoriais da Gradiva, foi directora de publicações da Sociedade Portugal-Frankurt 97 e editora dos catálogos oficiais temáticos da Expo'98, tal como redactora das brochuras inerentes aos Festivais dos Cem Dias e Mergulho no Futuro, promovidos durante a Expo'98. O seu romance Alguns Homens, Duas Mulheres e Eu constrói-se na vertigem de uma identidade perdida. Enquanto poeta publicou A Casa e o Cheiro dos Livros (1996), recentemente reeditado pela Gótica, O Canto do Vento nos Ciprestes (2001) e agora Nenhum Nome Depois.

ANA MARQUES GASTÃO

 

           

 

 

 

   LINKS:

 

O Ser Suspenso: sobre António Ramos Rosa e Maria do Rosário Pedreira
Rui Magalhães

Nota crítica de Maria João Cantinho sobre "O Canto do Vento nos Ciprestes"

Pode ver um dossier e uma entrevista da autora aqui

 

 

NENHUM NOME DEPOIS

 

 

As raparigas amam muito. Riem

atrás das mãos uma manhã inteira

para esconder o vermelho dos

beijos que alguém lhes roubou e

um nome que vão deixar escapar

entre as primeiras palavras que

disserem. Vestem do avesso os

 

aventais de chita e fazem o leite

sobrar do fervedor e o caldo ser

mais salgado do que o mar. Mas

 

é bonito vê-las caminhar descalças

ao longo do corredor, como se

pedissem um par para dançar. As 

 

raparigas amam tanto. Sentam-se

em rodas de segredos uma tarde

inteira e esquecem no tanque os

colarinhos sujos das camisas, e os

cueiros, e uma barra de sabão a

 

Maria do Rosário Pedreira

 
 

derreter-se como o seu coração.

 

Mas é bonito vê-las beijar a boca

ao espelho no quarto das traseiras

e também a outra boca no retrato

que a seguir escondem amordaçado

na algibeira, não lhes cobice alguém

o que não tem. As raparigas amam

 

de mais. Deixam-se ficar sem dizer

nada uma noite inteira, bordando

no linho dos enxovais letras secretas

ao calor do fogão. E picam os dedos

 

distraídos nas agulhas que usaram

para descobrir o sexo de cada filho

que terão num jogo que jogaram

entre elas à tardinha. Mas é bonito

 

vê-las ao serão, quando o vento as

chama atrevido da cozinha e dão

um pulo seco na cadeira, e largam o

 

bordado e a lareira, e correm até à

porta a colher beijos que lhes deixam

risos nos lábios tão vermelhos como

as mais doces cerejas deste verão.

 

(págs. 50-51)

 

“Nenhum nome depois", edição da Gótica, 74 pág., 11 €, Fevereiro de 2004. ISBN 972-792-101-9

     

 

 

 

3 de Março de 2004

A FICHA

Nenhum Nome Depois
Autor. M. Rosário Pedreira
Editora. Gótica
Páginas. 76
Género. Poesia
Preço. e 11,00
Classificação. ****

Amando o amor num crescendo romanesco

ANA MARQUES GASTÃO


Muito mais numerosas na história da poesia amorosa são as páginas de lamento - que abordam o ser na perspectiva da separação - do que as de júbilo, embora o amor triunfante possa ter tido, ao longo dos tempos, textos decisivos. Maria do Rosário Pedreira seguiu esse caminho, desde o belíssimo A Casa e O Cheiro dos Livros (1996) ao não menos conseguido O Canto do Vento nos Ciprestes (2001). Acaba agora de publicar Nenhum Nome Depois (2004).

Não entrando em ruptura com o passado - o que pode constituir um risco -, exprime-se, neste livro, uma forma de afectividade desmesurada perante a impossibilidade de fruição do amor como «sensação de tudo», na acepção hegeliana. É da antecipação da morte, a do sentimento como possibilidade ontológica, que fala o sujeito poético, na consciência de uma perda, da ausência, do abandono, da memória do que outrora foi desejado e hoje se configura como obstáculo. Não se trata apenas da edificação de acontecimentos psicológicos no plano das palavras, mas de uma tentativa de assumir a descontinuidade do fulgor e de viver a linguagem como experiência amorosa e poética fundamentais.

O livro de Maria do Rosário Pedreira constitui-se com um quarteto, dividido em Os Nomes Inúteis, Os Nomes Interditos, Os Nomes de Família e Nenhum Nome Depois. Um nome ou uma voz podem expressar-se em diferentes tempos e espaços, mas nesta obra dir-se-iam a causa de uma (im)permanência, a da sua significação, a de uma queda que não é contorno ou substância, mas função de uma existência do sujeito poético abalado pela catástrofe. Mais do que tudo ama-se o amor num crescendo romanesco.

Os nomes são marcas arbitrárias com as quais nos fazemos entender perante os outros; pontos de referência no fluir do pensamento. Em geral, podem ser compreendidos como signos ou em função das ideias que designam.

Assim, na paisagem deste livro, vamos encontrando a inutilidade de um nome: inútil nomear o que não permanece e se esvai: «Ninguém esquece um corpo que teve/nos braços um segundo - um nome sim.» Virá depois o nome interdito: o nosso, o de um destino baço, e aquele que não é reconhecível: «(...) limito-me a adivinhar um nome para o que não sinto e/recuso-me a acreditar que seja o teu». Surgirá ainda o nome de família, de que somos herdeiros, e o do pai morto, ou da mãe viva.

O último capítulo, Nenhum Nome Depois, atravessa o livro no registo da ausência, do temor da morte («Quis-te/ainda quando a morte era já uma/ transparência, lente invisível para o/escândalo»), na junção dos desamparos. É solitário o amor, porque incomunicável e amar dir-se-ia uma dinâmica desconcertante, vertigem de identidade e de palavras. Daí a importância do que é ou não nomeável.

Menos contido do que as obras anteriores, este conjunto de poemas persiste em revelar a autora como um nome relevante da sua geração. A escrita de Maria do Rosário Pedreira aproxima-nos, na sua atenção ao mínimo, concreticidade tão feminina, de uma fragilidade emergente perante a instabilidade do Eu. Nessa revolução súbita com a qual o sujeito poético se confronta, vai reconstruindo o mundo. A ideia de amor é, para Agamben, «viver na intimidade de um ser estranho, longínquo e mesmo imperceptível, de tal forma que o seu nome o contenha inteiramente.» O amor, neste livro, revela-se como desejo e mal. Até que a voragem do vento o apague no cansaço da dor.

 

                                

Todos Os Nomes do Amor
PÚBLICO, Sábado, 03 de Abril de 2004

Fernando Pinto do Amaral

É quase sempre difícil e arriscado escrever poesia de amor. Sendo o género mais praticado desde a adolescência - e por isso presente na produção juvenil de muitos poetas - , o lirismo amoroso costuma implicar alguns perigos tanto ao nível de uma certa monotonia temática (encontros e desencontros, desejos impossíveis ou concretizados, etc.) como no campo da própria linguagem, geralmente algo codificada e por vezes sujeita aos habituais lugares-comuns eróticos e sentimentais.

É por causa destes riscos que se torna mais grato saudar a publicação do último livro de poemas de Maria do Rosário Pedreira (n. 1959), que escapa bem a tais armadilhas e se dá a ler como uma bela colectânea de textos em que o amor ultrapassa a dimensão mais óbvia, servindo quase sempre de ponto de partida para um conhecimento do enigma que o move, nesse infinito labirinto de relações humanas a que só o amor pode conferir alguma hipótese de sentido.

Revelada em 1996 com "A Casa e o Cheiro dos Livros" e prosseguida em 2001 com "O Canto do Vento nos Ciprestes", a poesia de Maria do Rosário Pedreira tem-se distinguido por um tom profundamente intimista, feito de palavras para repetir em voz baixa, segredadas em confidências cujos destinatários se pressentem a cada instante, através de pequenos sinais dispersos pelo tempo e pelo espaço das memórias que um dia lhes deram plena substância, e cujo fulgor persiste sempre, como uma cicatriz que ainda pode doer quando lhe tocamos: "Entre nós há uma ferida que já não / sangra, mas não sara - um amor / que perdura e está perdido" (p. 33).

Envolvendo sempre, em maior ou menor grau, uma ideia do amor como ferida sem cura, este livro oferece-nos quatro possíveis declinações para essa dor, agrupadas segundo os nomes que as originaram: começaria por destacar a sequência "Os Nomes de Família", facilmente distinguível das restantes, na medida em que remete para lembranças bebidas no núcleo familiar e condensadas em poemas situados em cenários de infância ou sobretudo adolescência, evocações da mãe, dos avós e de outras figuras tutelares às quais os textos se dirigem como se assim procurassem saldar uma dívida antiga, recuperando os elos que ligam gerações portadoras do mesmo nome: "porque há sempre perdão para / quem tem o nosso sangue, o nosso nome" (p. 55). Desta atitude é também exemplo um poema endereçado à memória de um pai com quem só é possível falar durante os sonhos: "Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante /o sono - a ausência não te apaga como a bruma /sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos /meus sonhos um território suspenso de toda a dor, / [...] //Aí nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo/que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te/chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com/lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum/ruído que envenene as palavras: pai, pai" (p. 41).

Mas este livro não vive apenas dos apelos do sangue, inscritos à superfície do seu DNA. O amor que aqui predomina e mais nos interpela provém da força da paixão, dos efeitos luminosos e por vezes devastadores dessa energia que tudo consome, do fogo que em nós arde quando amamos alguém e corresponde a um "incêndio capaz de devorar o coração do mundo" (p. 13). Se nos aproximarmos para averiguar de que género de incêndio se trata, verificaremos que a primeira e a última parte deste conjunto dizem respeito a sentimentos cuja densidade se concentra em ambientes de alguma solidão - "São tantos os anos sem ti nos vincos/da minha saia" (p. 19) - em que o "eu" se apercebe de um fogo que não chegou a arder, num clima de desencanto ou frustração marcado por uma galeria de "nomes inúteis" ou de seres sem nome: "Não, prefiro não saber como te chamas" (p. 15).

Esta mesma atmosfera pode ainda projectar-se num espaço interior quase póstumo, em que a consciência amorosa subsiste, acima de tudo, como um incómodo fantasma ou serena recordação - "Já só consigo saber de ti pelos/jornais" (p. 64). É o que sucede ao longo do último ciclo - "Nenhum Nome Depois" - , quando o incêndio já ardeu e foi deixando em seu lugar uma paisagem calcinada de brasas ainda quentes ou de cinzas pouco a pouco mais frias, sob a acção do tempo que tende a apagar os nomes de quem amámos: "Deixei cair o tempo sobre o teu nome,/como se deita o mármore sobre a terra e/a água se derrama sobre as brasas [...] //e vi/o sangue calar-se finalmente sobre a ferida,/[...]/E a casa está hoje mais fria do que//nunca: deixei passar o tempo sobre o teu/nome e não há lareira, não há lar, não há/filhos que se pudessem perder de mim, nem/velas para encher de memória este silêncio" (p.70).

Guardei propositadamente para o fim a sequência talvez mais intensa de todo este livro, sintomaticamente intitulada "Os Nomes Interditos". O que aí está em jogo equivale a uma espécie de emoção-limite, por vezes próxima dessa certeza absoluta capaz de iluminar o caminho de quem se entrega ao abismo do amor, assumindo-o sem alternativa - "ambos descobríramos que o/destino nunca se engana no nosso nome" (p. 35) - e absorvendo essa experiência a dois até à última gota, como se pudesse desvanecer-se no minuto seguinte: "Eu sabia que adormecer//era deixar de sentir, e não queria perder os/teus gestos no meu corpo um segundo que fosse" (p. 28). Perante isto, acrescentaria apenas que a dimensão do ciúme se torna em certos momentos quase insuportável, pairando sobre uma relação amorosa que se sabe condenada à mentira e mesmo assim prefere continuar, entretecida numa sombra ou no secreto reverso desse terceiro nome que nunca chegará a ser dito:

"Os seus vestidos pretos fechados/no armário lançam uma sombra/funesta nos meus dias. A sua voz/eterna na fita do telefone é outro/espinho cravado no meu silêncio./Roubei-lhe, sem saber, todas as//palavras que te disse - porque,/num beijo meu, são ainda os seus/lábios que procuras, é dela o corpo/que abraças quando me abraças.//Se adormecer ao teu lado mais/esta noite, sei que os seus olhos/hão-de pousar gelados nas minhas/pálpebras [...]//[...] e, entretanto,/basta que me mintas, sim, mente,/mas nunca me digas o seu nome" (pp. 30/31).

 

 

mAGAZINE artes

 

n.º 16, Março de 2004

 

NENHUM NOME DEPOIS

A poesia imensa de Maria do Rosário Pedreira

 

R.L.

 

Maria do Rosário Pedreira volta à edição com “Nenhum Nome Depois”. Regressam os versos e os poemas impregnados de uma dor que é também lugar de confluência do belo e da palavra iluminada.

 

 

Tendo publicado vai para três anos o seu anterior e fulgurante livro de poemas a que chamou “O Canto do Vento nos Ciprestes”, livro bem recebido pela crítica, Maria do Rosário Pedreira, escritora, poetisa e editora, reincide agora com a edição deste “Nenhum Nome Depois”, em edição da Gótica. Malgrado seja ainda algo reduzida a sua “obra poética” (que se resume a quatro títulos até ao momento), acode-nos de imediato a certeza de reencontrarmos aqui uma voz poética pessoalíssima e de enorme ímpeto emocional. É na verdade de uma magnífica enunciação dos afectos, do viver e do morrer, do silenciar e do gritar, do sorrir e do chorar, do amar e do perder, que estes poemas nos falam. Tudo porque, dizer, lembrar, nomear, é bem melhor do que proibir, guardar, esconder, sobretudo porque “a vida nunca foi só Inverno/nunca foi só bruma e desamparo”.

Há nos poemas de MRP uma narratividade implícita, um desfiar de memórias e afectos que faz com que o poema se institua como uma muito breve ficção, íntima, aberta em sentimentos, confessional, pulsando emoções, mas nunca frívola, banal ou melodramática:”

 

Mãe, agora que guardaste na arca

as blusas pretas e os teus olhos

voltaram a ser azuis; que os meus

irmãos dormem no seu quarto um

sono de poderem ser felizes, que

 

já conseguimos dizer uma à outra

o nome dele no meio de um sorriso

porque a morte, afinal, é uma coisa

tão longe – deixa-me perguntar-te

 

porque não há retratos do meu pai

comigo ao colo, como os dos meus

irmãos que ele trazia sempre junto

ao peito e tu depois dividiste pela

casa para ele poder saber que ainda

 

te lembravas; ou então debruçado

no meu berço – que tu escondeste

no sótão ainda eu era pequena e te

sentavas a embalar vazio quando ele

não entendia porque estavas tão

triste. Mãe, eram tão azuis os olhos

 

do meu pai no dia em que levou os

meus irmãos à escola e tinham tanto

medo do que pudesse acontecer-lhes;

são tão azuis também os olhos deles

debaixo do seu sono, e os meus tão

 

negros de dúvidas – porque foste

sempre tu que me levaste sozinha

para as coisas difíceis da minha vida,

que o meu pai nem nunca quis saber

que coisas eram. Mãe, estão hoje tão

 

azuis os teus olhos com essas roupas

claras, e eu ainda tenho o nome do

meu pai entre as minhas lágrimas, mas

agora, que os meus irmãos descansam

 

no seu quarto, que já todos podemos

dizer o nome dele sem nos cortar os

lábios, diz-me a verdade: esse homem

que chorámos era mesmo meu pai?   (págs. 42-43)

 

 

A casa (ou as casas), neste como nos seus livros anteriores, volta a ser um local de regresso, epicentro de um descobrir da vida para sempre perdido na dor imensa da irreversibilidade do tempo.

 

Que guardarão para mim as casas que

deixei? O pó sobre o meu nome?    (pág. 39)

 

pergunta a autora antecipando um rememorar de lugares, cheiros, objectos, conversas perdidas entre as sombras. Encontraremos nesse regresso ao lugar da “felicidade” perdida escolhos e traços de uma tragicidade latente, por vezes lancinante e incómoda como no poema que assim começa:

 

Mãe, os meninos andam distraídos junto

ao rio e tu não queres saber de os perder.

Sentaste-te a pensar nesse homem que

apareceu e a desfolhar os malmequeres

da tua bata nova – e não viste que te

largaram a mão nem para onde fugiram

com a pressa do vento. Mãe, os meninos

 

………………………………………………………………..” (pág. 44)

 

É também uma escrita que prescinde do hermetismo (mal de que sofre muita poesia contemporânea),

(e)levando a cristalinidade dos afectos a níveis altíssimos:

 

Agora há uma dor que pousa nas palavras.

Não as digas – um nome basta para

dividir o coração. Se me esqueceste entre

 

um livro e outro, finge que não sei; despede-te

de mim como uma lâmpada antiga, deixa que

a tua sombra seja a minha única paisagem.  (pág. 26)

 

Como se observa, MRP escreve a favor do leitor, nunca contra ele, nunca contra as palavras.

Poemas de saudades e poemas de adeus, de um acertar contas com o tempo. São poemas de lembrar, de olhar para trás e lembrar os nomes, os “inúteis”, os “interditos”, os de “família”, e também os outros, os outros nomes que não existem “depois de ti”. Assim se lêem, põe entre uma dor pressentida, poemas tão belos e desmesurados como este:

 

Onde quer que o encontres

escrito, rasgado ou desenhado:

na areia, no papel, na casca de

uma árvore, na pele de um muro,

no ar que atravessar de repente

a tua voz, na terra apodrecida

sobre o meu corpo – é teu,

 

para sempre, o meu nome.  (pág. 52)

 

Ou assim:

 

Lê, estes são os nomes das coisas que

deixaste – eu, livros, o teu perfume

espalhado pelo quarto; sonhos pela

metade e dor em dobro, beijos por

todo o corpo como cortes profundos

que nunca vão sarar; ……………………… (pág. 66)

 

 

 

          

 

 

 

O CANTO DO VENTO NOS CIPRESTES

 

 

 

   

 

Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada

daquilo que disseste quando os meus seios começaram

a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,

murcharam tão depressa as rosas que me deram –

se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu

deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

 

 

Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão

cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,

só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais

que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos

os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,

deitei-me com mais homens do que aqueles que amei

e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

 

 

Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre

caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.

Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez

não chames pelo meu nome, não me peças que fique –

as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me

embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue

de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como

uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

 

 

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem

nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta

hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.

Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas

essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre

o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias

foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão

tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam

virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

 

De "O Canto do Vento nos Ciprestes", Gótica,  2001, 80 pags. 

 

   

 

Nostalgia e amores perfeitos

 

Um terceiro livro de belos poemas de amor, a confirmar a grande qualidade de uma autora discreta

 

Começa este livro com um poema - «A Criação do Mundo» - inaugurando-se com um acto demiúrgico a invocar o Génesis: «Olhou as mãos em concha e viu arredondar-se/ um sonho dentro delas - um mundo/ que ninguém podia adivinhar, pois dele/ fariam também parte os magos e os profetas.// Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,/ para que então servissem unicamente de sombras/ e prolongassem a memória das coisas por vir. Foi assim/ que inventou a luz e separou um dia do seguinte./...» (pág. 9). Trata-se porém de uma criação à medida da efemeridade humana, da pouca resistência das coisas: «...sentiu que o seu/ mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria/ por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém/ que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo» (pág. 10).

Encontra-se aqui uma espécie de programa para orientar a leitura dos restantes versos, mudando-se o poema em mapa da «primeira geografia dos caminhos» abertos a cada novo título. O mundo é ainda mais pequeno que as mãos em concha - inscreve-se entre as folhas do livro, vai-se construindo poema a poema - e depois ultrapassa-os enchendo o vasto da imaginação possível a cada um. Tem por habitantes um «eu» sempre só que se dirige a um «tu» sempre ausente ou na eminência de chegar: «O meu mundo tem estado à tua espera; mas/ não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa/ nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei/ que um poema se escreveria entre nós dois; mas/...» (pág. 13). Mas. A adversativa insistente e reiterada a puxar para o real, para o racional, para o argumento oposto à conjectura do desejo. Porque são muito concretas as situações descritas - bem à semelhança do livro anterior da autora, A Casa e o Cheiro dos Livros (Quetzal, 1996) - ligadas ao mundo pelos gestos e pelas coisas do quotidiano, que a incerteza e inquietação próprias da expectativa vão colorir de nostalgia e sombra. O Canto do Vento nos Ciprestes são poemas de amor(es) transformado em poema. De amores tão perfeitos e variegados como as pequenas flores que recebem tal nome. E Maria do Rosário Pedreira correu um enorme risco - porque os poemas de amor estão fora de moda e facilmente se tornam ridículos. Mas. Sai vencedora voando por cima das armadilhas do confessionalismo primário, seja pelo recurso à estratégia do diálogo sem resposta que nalguns casos se assume como monólogo dramático, seja porque o «tu» de um dado poema se insinua como podendo não ser o mesmo do seguinte

E diz: «Se terminar este poema, partirás. Depois da/ mordedura vã do meu silêncio e das pedras/ que te atirei ao coração, a poesia é a última/ coincidência que nos une. Enquanto escrevo/...» e adiante: «Mas agora pedes-me que pare, que fique por aqui,/ que apenas escreva até ao fim mais esta página/...» Ironicamente, a responsabilidade da permanência do encontro é transferida para o acto de escrita, para as palavras do verso, para o momento do «verbo» que lhe dá, em simultâneo, a dimensão perversa da separação própria do dilema amoroso: «em qualquer caso: se terminar o poema, partirás;/ e, no entanto, se o interromper, desvanecer-se-á/ a última coincidência que nos une» (pág. 27). Por sua vez, também a escrita se vem a revelar como demasiado estreita: «O meu amor não cabe num poema - há coisas assim,/ que não se rendem à geometria deste mundo;/...// O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil/ a agitação dos dedos na intimidade do texto -/...// O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras/ com a nudez do teu nome - é um fantasma que estrebucha/ no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas/...» (pág. 18). De espaço possível à existência do amor, alternativa e prolongamento à «memória das coisas por vir», unem-se nos versos passado e futuro, tentando escamotear um presente de morte: «Devo por isso afastar-me de ti - não/ por ter medo de morrer (que é de já não/ o ter que tenho medo), mas porque a chuva/ que devora as esquinas é a única canção/ que se ouve esta noite sobre o teu silêncio» (pág. 32).

Um belíssimo livro de versos a confirmar a maturidade da poesia de Maria do Rosário Pedreira.

 

HELENA BARBAS                     

  no EXPRESSO, Cartaz, de 28-4-2001

         

   

 

Microfísica do Amor

 

Em "O Canto do Vento nos Ciprestes", de Maria do Rosário Pedreira, os poemas repetem, cada um, a irreparável dor amorosa, a irreparável espera feminina por algo que não cessa de não chegar.

 

 

"O Canto do Vento nos Ciprestes", segundo livro de poesia de Maria do Rosário Pedreira, relança a delicadeza lírica do anterior ("A Casa e o Pó dos Livros", 1998), a pouco e pouco aqui desenganada. É que a partir de certa altura "os degraus só se podem descer". 

Habitualmente, na poesia lírica o sujeito que enuncia existe, ou constitui-se, enquanto sensitividade momentânea, epifania local de uma emoção contigente, de uma impressão que o próprio poema conclui. Habitualmente também, o "tu" emerge apenas no contexto de uma experiência lírica particular, dissipa-se no fim de cada poema, e, ao contrário do romance, não lhe costuma ser ficcionalizada uma substância, nem um enredo, nem sequer simulada a duração de personagem.

É claro que aqui se repete a tensão, que escapa à dialéctica, entre o singular e o universal, e que cada poema se situa no equilíbrio frágil entre a contingência e o que se exclui ao tempo. Mas, para além disso, ou mais do que isso, neste livro, sob o mesmo "ethos" detecta-se estranhamente uma história (por isso deve ser lido de fio a pavio e não aleatoriamente, como tantas vezes se faz com a poesia). A inscrição no tempo deste sujeito que enuncia liricamente um amor, a sequencialidade de um mesmo amor, transporta-nos para o universo da ficção, da simulação de identidades psicológicas mais ou menos estáveis deste eu e deste tu, capazes de serem percebidos quase como personagens. Mas, ao mesmo tempo, uma poética intemporal do próprio amor se vai desenhando, insistindo sempre, tantas vezes em belíssimos versos no fim de cada poema (eles próprios, se isolados, poderiam constituir títulos de uma sequência narrativa). À medida que se lê este livro, dois versos de Ruy Belo ecoam, tornam-se quase o seu emblema: "é triste no outono concluir/ que era o verão a única estação".

"O verão desarruma os sentimentos". "Nesse Verão" (porque o discurso simula escrever-se a partir de um "agora" textual muito mais disfórico), o imaginário do amor e da natureza animizada que o suporta era ainda expansivo, solar, febril, inflamado e contagiante. Embora sobre ele pairassem "sempre brumas e nevoeiros/ e profecias de temporais maiores", "um temor que desmaia as pregas do vestido e um sortilégio/ urdido nas paisagens suspensas de um mapa que aperto/ na mão sem desdobrar." Mesmo assim, "quando na tua boca cantou subitamente uma voz", o dia emudeceu e "então, foi possível ouvir o vento soprar nas asas das borboletas", "é no momento que encerra a beleza de um gesto/ que se prolonga a vida". O curso dos dias interrompe-se, o instante suspenso reencontra a eternidade, e "pode pintar-se o retrato do vento/ no esquadro da janela". Nesse tempo, que se encena como anterior, o amor não podia ainda ser dito, "nenhum poema/ podia ser o chão da sua casa", "há coisas assim,/ que não se rendem à geometria deste mundo". Só a partir da ausência (da dor?) se escreve. Nos poemas que se sucedem, uma mesma impossibilidade amorosa se repete e adensa, uma mesma disforia se vai estendendo. Como se se tratasse de um fio constante que se expande e diversifica através de deslizes elementares, variações incessantemente contíguas (por isso, talvez, a metonímia seja uma das figuras emblemáticas da autora), desvios sintácticos de palavras num só verso que surpreendem a normatividade semântica. E, nesse fio aparentemente contínuo e idêntico em que se vai desenrolando e intensificando uma história, suspendem-se microscopicamente momentos mínimos de perfeição verbal (irresistivelmente: "tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar"; "talvez procure ainda um gesto teu nos braços").

"Neste outono", tu começaste a partir e no meu corpo começaram a gelar os lugares de onde a tua mão se ausentou. Escreve-se a efemeridade do amor. A natureza vai-se animizando de um modo cada vez mais agreste ou recolhido. Repete-se todo um imaginário do "eu", do amor e do mundo nocturno, frio, térreo, rasteiro, a desabar ou em rarefacção, do lado do peso e da queda: "as pedras agasalham-se no cobertor/do musgo"e o vento passou a viajar "rente aos muros", e "se te pergunto o caminho(...)/Contas que a noite geme nas fendas/dos penhascos porque as cidades apodrecem junto/às margens; que o vento é um chicote que desaba/os chapéus; que a terra treme; que o nevoeiro cega; e/ que as casas onde o medo se extinguia na longa bainha do/vestido da mãe cederam ao peso das mádoas dentro delas" e ainda "que não há/mapas para os sonhos de quem morre de amor." O eu produz cenários da sua própria morte e da morte do outro ("a morte separa-nos da dor e da sua memória"). Aliás, ao longo destes poemas, o sujeito que enuncia torna-se sujeito do seu próprio luto. Multiplica figuras do desdobramento em que o eco, o sonho, apenas o teu nome ("como um músculo tenso/escondido sob a pele") ou o espelho lhe devolvem a identidade, tal como uma voz que se continua depois da morte lhe restitui a eternidade.

Recorrente e renovadamente, a escrita fala de si e da existência que, através dela, o destinatário textual destes versos guarda. Porque "o poema é o único refúgio onde/ podemos repetir o lume dos antigos encontros" e a "tua sombra", ou "o teu silêncio", ou os teus despojos mantêm acesa uma ideia de amor assim (impossível não relembrar David Mourão-Ferreira - "Nas teias da ficção ficarás presa/e acordarás, mais tarde, na surpresa/de ser outra por toda a eternidade").

 

MARIA DA CONCEIÇÃO CALEIRO

no PÚBLICO, MIL FOLHAS, Sábado, 7 de Abril de 2001

 

 

 

 

    DNa

 

   29 de Dezembro de 2001  

 

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA (N. 1959) estreou-se no domínio da poesia em 1996, com o notável “A casa e o cheiro dos livros”, um começo invulgar que levou a que o volume se esgotasse (para quando a reedição?). Também autora de livros infantis de sucesso e editora de gosto impecável, regressa agora à poesia com “O Canto do Vento nos Ciprestes”, que não desmerece a estreia e confirma a sua relevância entre os novos poetas. Se o livro anterior a revelava como uma espécie de Cesário dos interiores (das casas), neste acentua-se a faceta do que não podemos realmente chamar ultra-romantismo mas que empresta aos sentimentos uma notória grandiloquência, mesmo se – esse é o grande paradoxo desta poesia – é uma grandiloquência sussurrada. Numa palavra, não é apenas um livro sobre o amor: é um livro sobre morrer de amor.

            Escritos numa sequência que é, do ponto de vista estrutural (que não imagético) cinematográfica, estes poemas, quase todos de um certo fôlego, dão voz à mulher antes, depois ou para além do amor, mas nunca no momento amoroso propriamente dito. O que existe é sempre a espera, a ausência, o temor, a solidão, a memória, o abandono.

 

O meu mundo tem estado à tua espera; mas

não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,

nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei

 

que um poema se escreveria entre nós dois; mas

não comprei o vinho, não mudei os lençóis,

não perfumei o decote do vestido.

 

Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome

(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);

se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira –

estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro

com a violência de um incêndio; mas parto

antes de saber como seria. Não me perguntes

 

porque se mata o sol na lâmina dos dias

e o meu mundo continua à tua espera:

houve sempre coisas de esguelha nas paisagens

e amores imperfeitos – Deus tem as mãos grandes”. (pág. 13)

 

É um livro extremamente pudico e extremamente doloroso, feito de vestígios e de uma fragilidade extrema, que no entanto nunca se entrega ao nosso voyeurismo. O que vale acima de tudo nesta poesia é o ser íntima sem ser confessional.

            Não é de qualquer amor que se fala, mas de um amor concreto (“este amor”), de um amor único que nada tem a ver com os outros amores, meramente carnais. A intensidade desse sentimento, sobretudo aliado à decepção e à quase perda de sentido da vida, lembra por vezes o imaginário das “Cartas Portuguesas”, mas tal como nesse clássico sentimental, há uma certa dignidade que não descamba no melodrama nem na lamechice, com duas ou três excepções menores. Quase todos os poemas são construídos com base numa fluida acumulação de “topoi” amorosos, recorrentes: do corpo (coração, dedos), da natureza (noites, verão, aves, mar) e das casas (quartos, cama, livros, retratos). Muitas das situações são também clássicas, como as várias albas, poemas em que os amantes de despedem de manhã, outras não são biograficamente reais mas apenas dramatizações que provam como, mesmo levado a extremos, o amor sobreviveria. É nesse contexto que surge a morte, de tal modo presente que a autora já confessou que alguns leitores confundiram os poemas com elegias; na verdade, se em meia-dúzia de poemas há a presença da doença e da morte reais de um terceiro, na verdade, a morte aparece quase sempre não exactamente como uma metáfora mas como uma exasperação do sentimento amoroso; é mesmo esse o grande tema do livro, sendo que a certa altura se afirma

            “quando morrer de amor

            não tinha ainda perdido o efémero estatuto de metáfora”. (pág. 42).

            Mas “morrer de amor” metaforicamente ou não, é um extremo que não caracteriza bem o sentimento amoroso; ele vive sobretudo na (ou da) instabilidade, na precaridade, na insegurança. Como não é o amor consumado e feliz que Maria do Rosário Pedreira aborda, estes poemas estão pejados de desolação, medo, ameaças, pressentimentos. Há um poema com este verso: “Eu não sabia que todas as noites do mundo eram efémeras” (pág. 24), enquanto o poema seguinte, que começa “Se partires, não me abraces” termina com “”Se me abraçares, não partas”. É a “doença do amor” que agrega todos estes sentimentos difusos; esta é, aliás, uma poesia dos sentimentos, da fragilidade tanto do sujeito como do mundo (como no conhecido poema de Sophia de Mello Breyner). É também uma poesia de ternura: o erotismo aqui não tem autonomia, e se a expressão “fazer amor” é recorrente é porque em si mesma transporta um sentido de complemento face ao sentimento amoroso. A ternura aqui é como o lenço de seda atado de um poema de Herberto, em que é a própria seda que desata o laço. O modo como a ternura se expressa é através de uma dedicação sincera mas também ritualizada, aqui e além, na tradição sacramental do “Cântico dos Cânticos”. É uma atenção minuciosa, incondicional, ao ser amado, sem calculismos nem cinismo, o que torna este livro uma raridade.

 

“(.......................................................…) Se

hoje vieres por esse livro que deixaste (e cuja

lombada acariciei todos os dias que durou a tua

ausência como uma nesga  de sol acaricia um

rosto no Inverno), encontrarás a sopa a fumegar

na mesa, e a camisa engomada no cabide, e os

lençois da cama imaculados, e um corpo pronto

para qualquer aventura – e ainda o cão deitado

à porta, à tua espera, como na véspera de partires.

 

Porque os anos não contam para quem assim ama. (Pág. 67)

 

Alguns acharão isto submissão, sem perceber que os gestos são símbolos de gestos maiores (na verdade, este poema lembra o tão diferente “Caso do Vestido” de Drummond de Andrade). Em resposta a esse amor o sujeito poético tem apenas despojos, os lugares, “uma colcha amarrotada”. E tem, claro, o poema: se por um lado o amor não se deixa exprimir nem aprisionar no poema, este é um refúgio e também uma reconstrução do mundo: “não estarias aqui se eu não escrevesse”. O livro acumula poderosas imagens de tristeza: “uma escarpa pronta a desabar”, “os degraus só se podem descer”, “o verão desarruma os sentimentos”, “há coisas que uma mala nunca leva”.

O vento que canta nos ciprestes (árvore fúnebre) é como o espírito que sopra onde quer e onde nós queremos.

 

“Quero falar-te deste amor, como de um vento

amordaçado na camisa; uma febre de verão

que o mercúrio não acha; um telhado esmagado

pela ideia da chuva. (…) (Pág. 14)

 

E para quem tenha dúvidas, vale a pena remeter para dois poemas longos demais para citar aqui: o lancinante poema da página 56 sobre morrer e escrever e o extraordinário poema final, “Anima Mundi” (pág. 71). O “medo da tragédia” de que a a autora fala, é apenas o medo de se dizer o que à partida se sabe ser trágico, e por isso enorme. A “mais pequena história do mundo” que este livro se propõe contar é, afinal, a maior história do mundo.

 

Pedro Mexia                    

 

 

 

  

Sobre o mais recente dos seus livros de poesia – O Canto do Vento nos Ciprestes – Maria do Rosário Pedreira (n. 1959), manifestou o  desejo de que ele fosse lido como um minirromance (cfr. entrevista concedida a Ana Marques Gastão, Diário de Notícias, 2-5-2001). Percebe-se porquê. Nestes poemas, o recorte elegíaco fixa o plot com nitidez:

 

“Na tua boca cantou subitamente uma voz.

E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,

o rio que outrora bordava o campo emudeceu (…)

São assim as mais pequenas histórias do mundo.” (pág. 15)

 

E a trama narrativa sai reforçada com a exactidão denotativa:

 

“Dei-te o meu corpo como quem estende

um mapa antes da viagem […]

Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas

nas minhas mãos – tristes geografias,

labirintos de razões improváveis, tão curtas

linhas que a minha vida não teve tempo

senão para pressentir-se. Por isso guardo

 

dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,

muros e regressos – nem sequer feridas

ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,

as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.” (pág. 30)

 

Com efeito, nenhuma espécie de maneirismo perturba estes versos exemplares:

 

“Pudesse eu morrer hoje como tu me morreste nessa noite –

 

[……………………………………………..] e pudesse

 

eu deixar de escrever nesta manhã, o dia treme na linha,

dos telhados, a vida hesita tanto, e pudesse eu morrer,

mas ouço-te a respirar no meu poema.” (pág. 56)

 

Por outro lado, o desassombro com que Maria do Rosário Pedreira põe em cena a voz do EU não deve confundir-se com psicologismo:

 

“Se alguém me perguntar, hei-de dizer que sim, que foi

verdade – […]

 

Se alguém me perguntar, nada desmentirei, nem negarei

que os frutos todos que me deram a provar na tua ausência

me pareceram demasiado azedos ao pé dos que explodiam

em sumo nos teus lábios; […]

 

Trata-se de focalização omnisciente – isto é, representação narrativa do fio da intriga - , registo que a autora domina com segurança, mesmo quando, como acontece no poema final, apenas sobram estilhaços da história:

 

“Atropelam-se os rios em demanda do mar; vergam-se

as costas ao chicote das ondas. Os espinheiros

que crescem sobre as dunas iniciam as aves

nas punições do mundo. Quem se encosta

 

ao ombro descarnado da falésia vê o fantasma

da morte acenar-lhe do abismo; e o mesmo sol

que ofende os muros em ruínas e açoita os pontões

humilha os deuses e desafia os homens. Por isso,

 

[…] iludindo a arquitectura da luz, espreitou

impunemente no decote do mundo e lhe arrancou a alma.” (pág. 71).

 

À laia de conclusão, não me parece excessivo afirmar que O Canto do Vento nos Ciprestes é um livro singular no contexto da poesia portuguesa mais recente.

 

de O Som & o Sentido, de Eduardo Pitta – LER n.º 52, Outono de 2001.