16-5-2009
José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho
(1742 - 1821)
ANÁLISE SOBRE A JUSTIÇA DO COMÉRCIO DO RESGATE DOS ESCRAVOS DA COSTA DE ÁFRICA (Conclusão)
§ LIX. Quem dirá que José, condenado à morte por seus irmãos, posto que injustamente, quando viu trocada a pena da sua morte pela sua escravidão não se deu por muito feliz? Dir-se-á que ele devia antes se deixar matar do que sujeitar-se à escravidão para se não dizer cúmplice de um crime contra a Lei da Natureza, que fez a todos os homens livres? Não, certamente, porque, sendo como é a primeira e a suprema Lei da Natureza a conservação da vida (§ XI), ele obraria contra essa primeira e suprema Lei se, podendo salvar a sua vida, ainda que à custa de um grande mal feito a si mesmo (§ XI), ele a deixasse destruir.
§ LX. Os Irmãos de José, depois de darem o seu primeiro passo precipitado contra seu Irmão e contra seu Pai, viram-se obrigados a ocultar o seu crime; e, como um erro traz consigo outro, era-lhes necessário, em tais circunstâncias, ou matá-lo ou vendê-lo como escravo, o que já naqueles tempos era um género de Comércio de cuja legitimidade não duvidavam aquelas Nações (§ XLV). Se dirá que os Negociantes aos quais José foi oferecido em venda, deveriam primeiramente examinar se ele tinha sido justamente condenado à morte ou à escravidão? Quem os havia de informar? Os mesmos que lho vendiam? Não lhes bastava ser um género de Comércio aprovado e permitido pelas Leis daquele País? Dir-se-á que eles obrariam mais conforme ao Direito Natural se o deixassem antes matar do que comprá-lo? Não, certamente, porque em tal caso eles se diriam verdadeiros homicidas, pois que, podendo salvar a vida de um Homem sem perigo algum das suas, eles o deixavam matar.
§ LXI. Se diria cheio de humanidade a aquele que a sangue frio deixasse matar o aflito José, que com os olhos arrasados em lágrimas, com os joelhos em terra, com as mãos levantadas aos Céus, lhe pedisse que o salvasse das garras daquelas feras, posto que seus Irmãos, que ele serviria de todo o seu coração, por toda a vida que ele lhe desse ? [45] Quem não vê que a humanidade dos Filósofos em tal caso seria o sublime da crueldade? Dir-se-á que aqueles Comerciantes fariam melhor se depois de o resgatarem o deixassem livre? Suponhamos que sim: mas porque eles assim não obraram, dir-se-á que eles obraram mal? Não, sem dúvida, porque entre o mau e o melhor há o bom. Além de que, quem assegurava àqueles Comerciantes, e ao mesmo José, que, ficando ele no País onde o vendiam, não fosse de novo cair nas mãos dos seus inimigos que, querendo desfazer-se dele e vendo que não bastava o vendê-lo, o matassem finalmente ? E quais seriam os Comerciantes que tivessem forças para tantas heroicidades e para comprar todos os escravos da Costa de África, sem por outra parte receberem ao menos o equivalente do que eles despendiam e dos riscos que eles corriam? Não é isto o mesmo que dizer claramente que se deixem antes matar tais desgraçados do que salvar-lhes as vidas, ainda que à custa de ficarem escravos? E a humanidade que dirá em tal caso? [46]
§ LXII. Falemos claro: a decantada Humanidade de que os Filósofos da moda se dizem defensores, foi um pretexto para acusarem de injustas as Leis de todas as Nações que impõem penas de morte ou da perda de liberdade, e assim, com a capa dos Negros, quebrarem o freio que contém os homens maus e corrompidos, que são a maior parte, para os aliciarem e os alistarem debaixo das suas bandeiras [47] e com eles fazerem a terrível revolução que tem posto a todo o mundo em convulsão [48].
§ LXIII. A França, que foi uma das primeiras que pôs em prática o sistema da Humanidade, que se dizia em favor dos escravos da Costa de África, foi também a primeira a confessar à custa própria que ela se tinha enganado com os falsos princípios dos seus mestres [49]: logo que ela fez a paz de Amiens, um dos seus primeiros cuidados foi o de reparar o mal que ela tinha feito, estabelecendo como regra: 1) que nas Colónias restituídas à França em execução do Tratado de Amiens, em data de 6 de Germinal, ano X, a escravidão seja mantida conforme as Leis e os Regulamentos anteriores a 1789; 2) que o mesmo se observe nas outras Colónias francesas além do cabo da Boa Esperança; 3) que o Comércio dos Negros, e sua importação nas ditas Colónias, tenham lugar conforme as Leis e Regulamentos existentes antes da dita época de 1789 [50].
§ LXIV. No Parlamento da Inglaterra, o General Tarleton, depois de mostrar que o jacobinismo tem uma estreita afinidade com o sistema sobre a abolição do resgate dos Escravos da Costa de África, e que ele estava persuadido de que a maior parte das infelicidades que têm acontecido desde vinte anos são devidas aos princípios semelhantes aos que servem de pretexto à abolição do dito Comércio, afirmou na presença de todo o Parlamento que em Paris, no ano de 1791, se lhe tinha dito que um diploma de Jacobinismo tinha sido enviado ao honorável membro que no mesmo Parlamento insistia sobre a abolição do dito Comércio; o mesmo, em suma, disse o General Gascoine [51].
§ LXV. Os sectários da opinião contra o Comércio do resgate dos Escravos da Costa de África deviam lembrar-se que a Inglaterra mesma fez cultivar as terras do continente da América Setentrional por Escravos brancos, vendendo aos plantadores aqueles Réus, de crimes que eram condenados perpetuamente aos serviços públicos, e ainda mesmo os condenados por certo tempo; da mesma sorte, vendiam por certo número de anos de serviço aos plantadores daquele Continente as vítimas das revoluções ou das perseguições da Religião que, fugindo da Europa, pediam uma passagem e um asilo naquela Região; se algum daqueles desgraçados fugia, era obrigado pelas Leis do pais a servir mais seis dias por cada um de fugida; eles não se podiam casar sem licença dos seus senhores, que punham um preço arbitrário ao seu consentimento [52]. Então se dizia que a política da Inglaterra era muito justa e muito conforme à Humanidade, porque trocava ou comutava a pena de morte em serviço público; muito sábia, porque tirava proveito até mesmo da peste da Nação, e muito previdente, porque povoava as suas Colónias com braços estrangeiros, sem fazer algum sacrifício da sua população: os escravos que então vendia a Inglaterra eram homens brancos, nascidos livres no meio das Nações Cristãs civilizadas, onde as Leis protegem a vida dos Escravos e ainda mesmo a dos facinorosos e condenados perpetuamente aos serviços públicos. Os escravos que se compram na Costa de África são homens pretos, nascidos no meio de Nações bárbaras, e idólatras, condenados pelas Leis do seu pais à escravidão perpétua, e onde as Leis não protegem nem mesmo a vida dos inocentes; por que razão, pois, se dizia então muito justo e muito conforme à humanidade e à boa política o Comércio da venda dos homens brancos nascidos livres na Europa, no centro da civilização, só porque se diziam condenados à escravidão pelas Leis do seus País, e hoje se diz contra a humanidade e contra boa política o Comércio da venda dos homens pretos, nascidos escravos na África, no centro da barbárie, e ainda quando eles se dizem condenados à escravidão perpétua pelas Leis do seu País? Porventura os brancos da Europa são de pior condição do que os pretos da África, ou deverá dizer-se que a Humanidade, a política e o Direito Natural da Inglaterra se mudou, porque então a América Setentrional fazia parte do Reino da Inglaterra e hoje não? Siga cada um a opinião que lhe parecer; eu declaro que me não posso acomodar a um sistema inconsequente e só próprio para revoluções sem fim [53].
LXVI. Dizem alguns que, se não houver quem compre tais Escravos, não se fará um Comércio tão injurioso à Humanidade e tão contrário à Natureza. Isto é uma prova da ignorância da história destas Nações; é, pois, necessário dizer-lhes que as Nações africanas não só fazem este Comércio entre si, mas também com os Mouros e com as Nações da Ásia; e, por isso ainda que os europeus não façam este Comércio, eles continuarão da mesma sorte com os Mouros e com as outras Nações Africanas e Asiáticas. Além disto, a barbaridade em que ainda estão as Nações da África e que durará ainda por muitos Séculos, não lhes permite de saber fazer um melhor uso dos braços supérfluos que não são empregados nos trabalhos da Agricultura: entre eles, a Agricultura se limita ao absolutamente necessário para a sua subsistência. Saber tirar vantagem do trabalho dos homens e aproveitá-los é um dos primeiros objectos da grande arte de governar; aqueles povos estão ainda muito longe desta perfeição.
§ LXVII. Os Povos bárbaros, não tendo nem artes, nem ciência, nem indústria, ou não têm algum Comércio regulado, ou é tão pequeno e tão restrito que não merece o nome de Comércio. O seu trabalho não vai acima do simples necessário para as necessidades da vida, ou seja colhendo os frutos silvestres que a Natureza produz espontaneamente, ou seja pela pesca ou pela caça, ou quando muito semeando algum grão por meio de uma cultura rude e grosseira. Daqui vem que estes povos desde que eles têm acabado o trabalho necessário para as necessidades da vida, se entregam à preguiça e à indolência como os brutos, sem saber em que empregar o seu tempo e os seus braços.
§ LXVIII. Desta ociosidade geral, fruto da ignorância, nascem entre estes povos mil desordens: a aguardente e o jogo são duas paixões que os dominam ao excesso; quando chega algum navio que leva aguardente, cada um disputa a honra de ser o primeiro a comprar; eles, em tais ocasiões, se esquecem até das Leis da Natureza: os pais vendem seus filhos, e, se os filhos são mais fortes ou mais espertos do que os pais, os vendem também, e às suas mães [54]. Eles arriscam ao jogo tudo quanto possuem e depois de ter perdido o seu dinheiro e as suas mercadorias, são capazes de jogar suas mulheres, seus filhos e a si mesmos, e são vendidos por aquele que os ganhou, ou que foi mais favorecido pela fortuna [55].
§ LXIX. O abuso do sexo, a paixão insaciável de aumentar o número de suas mulheres e de ter muitos filhos para se fazerem poderosos e temidos dos seus inimigos, são todos os seus cuidados; as suas paixões e os seu caprichos são a única regra de todas as suas acções. Quando eles têm abatido a seus pés milhares de cabeças, e que o sangue corre ao redor deles, só então é que se reputam superiores aos outros. Um dos mais terríveis abusos e que ainda praticam estes Povos bárbaros, é o costume que eles têm de sacrificar seus escravos e prisioneiros de guerra para aplacar a ira dos seus Deuses ou de seus Feitiços, e de matar as pessoas mais amadas dos que morrem para os ir servir na outra vida [56].
§ LXX. O maior sinal da compaixão e o menor abuso que eles fazem da vida dos vencidos, ou dos réus de grandes crimes, é de os reduzir à escravidão [57]. Eles crêem possuir muito, quando têm de que subsistir. Eles não conhecem as comodidades da vida; eles não têm outro supérfluo mais do que os braços inúteis e que muitas vezes até mesmo lhes são pesados e perigosos, e que por isso se vêem na necessidade de se livrar deles por todos os modos, ou seja matando-os, ou seja vendendo-os às outras Nações, e principalmente aos Comerciantes, que os levam para fora da África [58].
§ LXXI. A Natureza não faz as suas obras por salto; ela faz tudo por uma marcha lenta e progressiva, num tempo proporcionado ao princípio, aumento e declinação que ela tem marcado a cada uma das suas obras; os homens, os irracionais, os vegetais, as pedras, mesmo tudo que tem sua vida particular desde a sua infância até à sua velhice; querer que o menino que principia a balbuciar, discorra logo como um Homem feito, é querer atropelar a ordem que a Natureza tem marcado ao Homem; é uma loucura só própria dos Filósofos da Revolução, que quiseram reduzir os homens à igualdade, civilizar o mundo inteiro e fazer em dois dias uma das primeiras obras, que a Natureza só faz no decurso de muitos séculos, por caminhos imprevistos à sabedoria humana.
§ LXXII. A comunicação dos homens uns com os outros, e das Nações entre si, chamadas pelo seu mesmo interesse, é a que os vai polindo e civilizando; é a que forma a grande massa dos conhecimentos humanos; a que os instrui nas ciências e nas artes e tira pouco a pouco as Nações da sua infância e do seu primeiro estado de barbaridade até levá-las ao seu maior estado de civilização e de entes verdadeiramente racionais; e suposto o interesse, a ambição, as riquezas, o luxo, estes primeiros móveis do Comércio e da civilização dos homens e das Nações, quando chegam ao excesso, principiam logo a corrompê-las e a destruí-las pelo seu mesmo princípio da vegetação; contudo, a comunicação dos bárbaros da Costa de África com os Comerciantes estrangeiros os vai já fazendo mais humanos do que os do interior daqueles Sertões, ou seja porque deles vão aprendendo alguma civilização e costumes mais doces, ou porque o seu mesmo interesse lhes vai ensinando que, para as suas Nações ainda nascentes é um maior bem ou um menor mal vender antes os seus cativos e os réus dos crimes graves, do que matá-los [59].
§ LXXIII. Esta tem sido a marcha com que a Natureza tem civilizado todas as Nações sem exceptuar nem ainda as que hoje se dizem mais civilizadas; elas não têm saltado de repente do estado de barbaridade ao estado de civilização em que hoje se acham. A França, no tempo das conquistas de Júlio César era uma das mais supersticiosas e das mais bárbaras Nações da Europa; os seus habitantes até sacrificavam os homens vivos para aplacar a ira das suas Divindades infernais; matavam os objectos mais amados dos que morriam, as mulheres, os filhos, os animais, para os irem servir no outro mundo; eles se diziam descendentes de Plutão; o furto, entre eles, principalmente o que se fazia fora das Cidades, não era de alguma infâmia; eles diziam ser necessário para tirar a mocidade da preguiça e da ociosidade [60].
§ LXXIV. Os Alemães não tinham Sacerdotes, eram idólatras, adoravam o que viam, o Sol, a Lua, o Fogo; a sua vida era caçar e exercitar-se para a guerra; desde pequenos se aplicavam ao trabalho e a toda a austeridade; eles louvaram muito à mocidade a continência; eles diziam contribuir muito para terem grandes corpos e muitas forças; os seus vestidos eram de peles, tendo nua a parte maior do corpo; não tinham Agricultura, o seu principal sustento era leite, queijo, carne, etc. [61]
§ LXXV. Os Bretões ou Ingleses viviam também de leite e carne, e não semeavam trigo; vestiam-se de peles e todos se pintavam de azul com uma certa erva, para se fazerem horrendos e medonhos na guerra, com os cabelos caídos e grandes bigodes; muitos tinham entre si as mulheres em comum, os irmãos com as irmãs, os pais com as filhas, etc. [62]
§ LXXVI. Que retrato mais fiel do estado actual das Nações mais bárbaras dos Sertões de África? E por quantas guerras, cativeiros e até escravidão não têm passado a França, a Alemanha, a Inglaterra, e toda a Europa para chegar ao estado da civilização em que hoje se acha? Quantas vezes os seus habitantes não foram escravos, vendidos, açoitados e castigados por seus Senhores com a pena de morte? Quem não vê aqueles que quiseram igualar de repente em Direitos a barbaridade da África à civilização da Europa, foi o mesmo que querer ganhar de um salto aquele espaço de terreno que a Natureza tinha gastado em correr perto de dois mil anos? E que sucederia a tais saltadores ? O mesmo que sucedeu aos Autores da Revolução da França, quebrar as pernas, esmagar o corpo e fazer a cabeça em mil pedaços; a África ficou como estava no seu estado de barbaridade, sem se aproveitar das lições dos seus defensores e, o que mais é, sem saber que havia tal humanidade no mundo; o Comércio da venda dos seus escravos vai continuando da mesma sorte, e a Natureza vai seguindo a sua marcha zombando da orgulhosa filosofia dos homens.
§ LXXVII. Se o fim dos que se diziam Filantropos fosse civilizar a África, como eles publicavam, deveriam seguir a Ordem da Natureza, ajudando-a e aperfeiçoando-a pelos mesmos caminhos que ela tem indicado a sua marcha, assim como faz o sábio observador que, para ter no seu clima frio uma árvore ou um fruto de País quente, lhe prepara uma estufa e um clima análogo ao do seu nascimento, pois que as obras que dependem da Natureza hão de sempre seguir aquele caminho que ela tem marcado a cada uma delas; e por isso é necessário confessar que tais Filantropos ou não conheciam a marcha da Natureza e o abismo que eles tinham a saltar, e por consequência que eram uns ignorantes, faladores e presumidos, ou que eram uns hipócritas da humanidade, ou, finalmente, uns loucos furiosos, destruidores da ordem Social, dignos só de ir dar as suas lições aos Negros seus amigos, bem no centro da barbaridade.
§ LXXVIII. É um princípio reconhecido pelos mesmos Filósofos que ninguém pode discorrer sem ideias, e que todas as ideias são adquiridas; e que ideias pode ter de civilização e de liberdade uma Nação ou bandos de homens que eles e seus vizinhos se estão continuadamente matando, para ou extinguirem de todo os seus inimigos, ou aplacarem a ira dos seus Feitiços ou Divindades, e que são continuadamente escravos, ora de uns, ora de outros, sem jamais saberem que coisa seja Humanidade, nem liberdade, nem até onde ela se estende? E de que lhes serviram tantos Escritos, que se dizem obras da Humanidade, feitos em benefício de tais homens, que não conhecem género algum de escritura? [63] Logo, é necessário que tais Nações sejam sempre bárbaras e sem conhecimento algum de civilização, e, por consequência, que sejam para sempre perdidos para elas todos os Escritos e sentimentos da humanidade, dos que se diziam seus amigos, ou que tais princípios de civilização lhes sejam comunicados imediatamente pelas Nações civilizadas.
§ LXXIX. A História, Mestra dos tempos, nos faz ver constantemente que a comunicação das Nações entre si tem sido sempre ou o Comércio pelo seu mútuo interesse, ou as guerras e as conquistas feitas debaixo de um pretexto qualquer [64]. Sendo, pois, de absoluta necessidade para o maior bem daquelas Nações que elas se comuniquem com as Nações civilizadas, e sendo os meios indicados pela Natureza para a civilização das Nações bárbaras o Comércio e as guerras, não é melhor e mais conforme a Humanidade que tais Nações sejam antes civilizadas pelo meio do Comércio do que pelo meio das guerras e das conquistas?
§ LXXX. Um dos principais objectos da Política de todas as Nações civilizadas é desterrar para fora de si toda a ociosidade, esta mãe fecunda de todos os vícios, e promover o trabalho de todos os seus membros, como um corpo bem organizado que não tem alguma parte ociosa. Desta geral ocupação nascem os espíritos criadores que de tudo sabem tirar proveito, até dos mesmos erros dos outros, e onde uns acabam, outros sabem principiar. Daí a indústria, as artes, as ciências, o Comércio, etc.; mas, à proporção que as Nações vão aperfeiçoando a sua civilização e aumentando as suas manufacturas, o Comércio, a Navegação, uma força sempre armada para a defesa das suas mesmas riquezas e das suas vidas, etc., é de necessidade que lhes faltem os braços para os objectos de primeira necessidade, e principalmente para a Agricultura e para a defesa do Estado, porque o pobre, que só tem o seu braço, enquanto pode ganhar para a sua sustentação à sombra e sentado, ou vendendo contrabandos ou fazendo trapaças e promovendo a chicana do foro, ou trepado na traseira de uma sege, não vai trabalhar de pé ou curvado ao Sol e à chuva, exposto a todas as inclemências do tempo.
§ LXXXI. Logo, é necessário que uma tal Nação ou sofra todos os horrores da fome, todos os incómodos e faltas dos géneros de primeira necessidade, que não tenha uma força armada que a defenda, que seja dependente e quase escrava das Nações agricultoras dos géneros de primeira necessidade e das que têm uma força sempre pronta, ou que faça taxar os salários dos seus trabalhadores, dos géneros de primeira necessidade e dos Defensores da Nação e obrigá-los de alguma sorte a uma espécie de escravidão política e a uma condição limitada, ou, enfim, será necessário que os de condição superior desçam à condição de trabalhadores das primeiras necessidades, que sejam criados de si mesmos, que todos sejam soldados sem disciplina e que tornem para o seu primeiro estado de barbárie, sem artes, sem Comércio, sem ciência, sem ordem, ou, ao menos, para um estado de civilização muito inferior ao das outras Nações suas vizinhas [65]. Não é, pois, um bem para as Nações civilizadas, que no mundo haja Nações tão bárbaras, que lancem fora de si os seus braços para elas as aproveitarem ? Não é pois um bem para as Nações bárbaras, que no mundo haja Nações que saibam aproveitar aqueles braços, que elas se vêem na necessidade ou de os aniquilar ou de os lançar fora de si? E não é mesmo um bem para a humanidade que se façam estas trocas e que as Nações bárbaras e civilizadas se prestem estes mútuos socorros ? Esta política é tão simples que até os mesmos negros bárbaros a conhecem [66]
§ LXXXII. Se dirá, talvez, que enquanto houver braços indigentes de Nações pobres e agricultoras que se quiserem alugar por um salário cómodo e moderado, não se deve forçar a uma parte dos membros da Nação rica a que trabalhe por um salário módico e em uma quase escravidão política, e muito menos comprarem-se escravos da Costa de África, por ser contra a Humanidade ou contra o Direito Natural, que faz a todos os homens livres? Suponhamos que sim; mas logo que esses braços indigentes estrangeiros se acham num País onde eles podem ganhar a sua vida à sombra e sentados, não deixarão a Agricultura e os trabalhos mais pesados de primeira necessidade e a mesma defesa do Estado? E não serão um peso demais para uma Nação que já não tem pão para os seus habitantes, nem para quem os defenda?
§ LXXXIII. Nem se diga que uma Nação muito rica, muito comerciante, tem muito com que comprar os géneros de primeira necessidade e pagar aos braços que a defendam, sem contudo se ver na precisão de taxar o salário, ou o soldo de uma parte de seus habitantes, porque, sendo os habitantes de uma tal Nação todos consumidores dos géneros da primeira necessidade e sendo muito poucos ou nenhuns os trabalhadores desses géneros, serão poucos todos os lucros do seu Comércio, ainda que grandes para saldar o muito de que ela necessita, ou será necessário viver sempre numa economia forçada, ou, enfim, obrigar, se puder, a que os seus vizinhos a sustentem, ou a servir ela mesma aos seus vizinhos, sendo vencida.
§ LXXXIV. Se me dirá ainda que Portugal, por exemplo, que não tem pão para comer seis meses, contudo conserva um Comércio tão vantajoso, que lhe dá muito, não só para comprar todos os géneros de primeira necessidade e sustentar um grande exército, mas até para competir com o luxo das Nações mais ricas e mais Comerciantes [67]. Eu quero supor, por um pouco, que assim seja; sabe-se que Portugal, no seu terreno da Europa, à excepção do vinho (cuja mão-de-obra já lhe é muito pesada), do sal e de algum pouco de azeite e de fruta, que contudo não chega para pagar o débito do seu absolutamente necessário, não tem outro supérfluo para o seu grande Comércio da Europa mais do que as produções da Agricultura das suas dilatadíssimas Colónias, principalmente do Brasil: o tabaco, o açúcar, o algodão, o café, o arroz, o pau-brasil, os couros, as aguardentes para a Costa de África e outros muitos géneros que produzem e podem produzir aquelas Colónias se houvesse mais indústria e mais braços trabalhadores (porque vadios e forros ou libertos não faltam) dão todos os anos a Portugal um supérfluo para o seu Comércio de muitos milhões de cruzados. Eis aí uma riquíssima Agricultura que vem suprir a que falta a Portugal no terreno da Europa; e por isso não se podendo dizer que Portugal, considerado no seu todo, é uma Nação muito rica sem Agricultura.
§ LXXXV. Mas suponha-se que, para fazer a vontade aos que se dizem Defensores da humanidade, se desterrasse do meio das Nações civilizadas o nome de escravo e se proibisse para sempre o resgate dos Escravos da Costa de África e de qualquer outra Nação bárbara, que seria da Agricultura das Colónias e, por consequência, de Portugal? E como poderia Portugal subsistir sem Agricultura, sem Comércio e sem ter nem com que pagar a quem o defendesse ? [68] Seria necessário ou morrer de fome ou sujeitar-se a quem o sustentasse, ou forçar uma parte da Nação a servir à outra por um salário taxado muito módico e uma parte a defender a todos por um soldo absolutamente necessário para viver, com a proibição rigorosa de não poder emigrar nem de desertar, nem de ir servir a outras Nações mais ricas; ou, finalmente, obrigar a cada um a servir a si mesmo, a que não passe do absolutamente necessário, sem artes, sem Comércio, sem luxo, em um estado propriamente das Nações bárbaras e escravas. E de que serviriam, no meio de um tal montão de barbaridade, os que se dizem Filósofos da Humanidade?
§ LXXXVI. Se tais Filósofos, que também se fazem honra de se dizerem os amigos dos negros, fossem os primeiros que se sujeitassem a servir aos seus irmãos brancos de graça, ou ainda tão somente pelo sustento e vestuário que se dá a um escravo sem mais luxo algum, de servir a sua Nação por um soldo muito moderado, sem esperança alguma de pilhagem, talvez que eu desse algum crédito à sua humanidade e fraternidade; mas querer que não haja escravos, que não resgatem nem ainda os braços que de necessidade pela sua mesma barbaridade vão a ser mortos ou lançados para o meio de outros bárbaros, onde não há Leis que ao menos afiancem a existência das suas vidas, e querer ao mesmo tempo que os brancos seus irmãos já civilizados sejam obrigados a servi-los e a trabalhar para eles só porque se dizem Filósofos, e por um salário muito módico, e talvez nenhum, e que outros defendam a sua vida e os seus bens por um pobre soldo certo e determinado, e sem a liberdade de poder largar o trabalho quando e como quiser, é ou ser inconsequente e não ser Filósofo da humanidade, ou é querer fazer dos outros seus tolos.
§ LXXXVII. O que fica exposto procede igualmente a respeito de qualquer Nação; ou ela tenha, ou não, Colónias, ou se sirva ou não, com escravos, logo que ela suba a um luxo excessivo, ainda que por força do seu Comércio muito extenso, se ao mesmo tempo não providenciar, à proporção do seu Comércio e das suas riquezas, a subsistência e conservação dos braços necessários para a Agricultura, para a defesa do Estado e para os trabalhos mais pesados da Nação, ou seja assinando a tais braços prémios, privilégios e salários proporcionados às circunstâncias [69], ou seja alugando braços estrangeiros debaixo de certas restrições, ou finalmente comprando-os onde eles se vendem, porque, sendo livre a cada um subir a todos os graus, a todas as condições e a todo luxo sem termo, é de necessidade absoluta que alguns desçam ou que todos caiam; logo, é necessário confessar que a necessidade da existência é a suprema Lei das Nações [70].
§ LXXXVIII. Em um País onde há muitas fábricas e muitas artes, em que se ocupam muitos braços que sobejam ou que não servem para a Agricultura, pode não haver um grande número de ociosos sem ocupação; mas num País onde as artes e as fábricas são proibidas por causa do monopólio da Metrópole, onde a opinião pública diz que o servir é só para escravos, logo que se tira um braço da Agricultura, vai de necessidade aumentar o número de ociosos e vadios, sempre prejudiciais ao Estado, por isso, a imperiosa necessidade que manda que numa Nação bem regulada se conservem os braços para a Agricultura, ainda que comprados, é também a mesma que manda que aqueles que nasceram numa condição escrava, não subam arbitrariamente à condição de libertos ociosos [71], já por si muito pesada, sem ao menos terem feito serviços muito relevantes ao Público, ou aos seus Senhores, que não deixam de ser agradecidos aos que bem os servem.
§ LXXXIX. Eu não duvido que haja alguns abusos na compra ou no Comércio do resgate dos escravos da Costa de África, mas qual é o Comércio em que não há abusos? É justo que se grite contra os abusos e que se faça saber ao Soberano Legislador para dar providências pelas suas Leis para se evitarem; mas não é justo gritar contra a Justiça das Leis que mandam ou que aprovam um tal Comércio, porque, uma vez admitido o princípio de que a qualquer é permitido gritar contra a Lei do seu Soberano e acusá-la de injusta debaixo de algum pretexto, qual quer que for, seria quebrar todas as ligas da obediência, da subordinação, e convidar a todos a pegar nas armas uns contra os outros e contra o seu Soberano. Todas as Leis seriam julgadas injustas, desde que elas fossem contrárias aos interesses e às paixões daqueles mesmos que deveriam obedecer, e para os quais elas foram feitas para servir de freio; ninguém se diria sujeito, todos os vassalos seriam Juízes, todos os Legisladores se diriam Réus; e, finalmente, condenados à pena última sem apelação alguma. Eis aí o transtorno da ordem social e o objecto que tinham em vista os revolucionários que com tanta arte, debaixo do pretexto da Humanidade e de amigos dos Negros, que eles não conheciam, nem com eles tiveram jamais alguma correlação, pregaram a desobediência por toda a parte.
§ XC. É certo que há alguns Senhores que tratam mal os seus escravos, assim como há muitos amos que tratam mal os seus criados, e, que a respeito deles se esquecem dos deveres da caridade e até mesmo dos seus próprios interesses; mas esses abusos particulares não fazem que um tal Comércio seja injusto; eles só se fazem dignos de providência, para se dar uma melhor educação aos que possuem escravos [72] se fazerem Leis próprias para acautelar os abusos; mas estas providências não se devem pedir por um meio revolucionário, qual é o das declamações ou escritos contra a Justiça das Leis ou contra um Comércio que elas aprovam; tais providências só se devem pedir a quem as pode dar, fazendo saber os abusos ao Legislador Soberano ou aos seus Tribunais para isso autorizados, pelo meio legítimo das propostas para que ou se corrijam tais abusos, ou se revogue a Lei, conforme o Legislador julgar ser o maior bem da Nação em tais ou tais circunstâncias; de outra sorte, será convidar os Povos à revolta, meter-lhes as armas nas mãos uns contra os outros, o que é contrario às máximas do Verdadeiro Defensor da Humanidade, que não deve fazer correr o sangue de seus irmãos, sem para isso ter algum direito, e, sim só trabalhar para a conservação da vida deles e não para a sua destruição.
§ XCI. Seria, parece-me, muito útil que se mandasse por uma Lei [73] que todos os que tivessem escravos fossem obrigados a dar conta dos seus procedimentos ao Magistrado do Lugar dos escravos, todas as vezes que houvessem ou de servir algum lugar público, ou receber heranças, legados, doações ou qualquer interesse, tudo debaixo de certas penas para obras pias ou públicas, no caso de serem convencidos de tratarem mal os seus escravos, e que os escravos fossem defendidos pelo Fiscal Público, assim como são os menores, os quais recebem todos os cómodos e toda a protecção das Leis sem eles mesmos o saberem, nem virem a Juízo malquistar-se com pessoa alguma, nem entrarem em contenda com seus tutores.
§ XCII. Desta sorte, evitar-se-ia, por uma parte, que os Senhores tratassem mal os seus escravos, e, pela outra, que os escravos se vissem na necessidade de sofrerem a crueldade de seus Senhores, temendo, a incerteza do remédio contra um contendor mais poderoso, ou que, rompendo por todas as dificuldades, fossem queixar aos Magistrados, e talvez em distância de muitas léguas, chamando os seus Senhores a Juízo para entrar em disputa com eles, o que geralmente produziria um ódio implacável entre o Senhor e o escravo, e uma guerra intestina que passaria logo ser geral, em ruína e destruição de todos e do mesmo Estado.
NOTAS QUE SERVEM PARA ILUSTRAR ALGUMAS PALAVRAS DA PRECEDENTE ANÁLISE
NOTA I
Razão Natural
§ XCIII. Muitos se deixam facilmente surpreender do tom enganador com o qual os Filósofos louvam as vantagens da Razão; reclamam sem cessar os Direitos sagrados dela, e dispõem com indústria os seus Discípulos a estabelecer esta razão por Juiz único de todas as coisas. Eles convidam todos a ir aprender com eles a se elevar acima das preocupações da credulidade e das superstições, eles chamam à razão um presente da Natureza, uma tocha celeste, uma emanação, uma porção e um raio da Divindade. Tudo isto é mais próprio para esquentar a imaginação do que para fazer nascer ideias claras no espírito. Mas nós, cingindo-nos à mais Filosófica exactidão, diremos que a razão é a luz que Deus espalha na alma para a ilustrar sobre os seus deveres e para a fazer chegar ao conhecimento da verdade. Estes são os únicos dois fins para os quais Deus tem dado a Razão ao Homem.
§ XCIV. Esta Razão é a mesma em todos os homens, relativamente às primeiras verdades, às verdades necessárias, e que são como naturais. Tais são as verdades da existência de Deus: da obrigação de lhe oferecer cultos, da Justiça que manda dar a cada um o que é seu, da sinceridade e verdade nas palavras, da fidelidade às promessas e às obrigações, da benevolência para com os outros, etc. Por pouco que um Homem consulte a luz da Razão Natural, percebe todas essas primeiras verdades, e não se tem achado Homem algum, atento e de boa fé, que não as tenha conhecido, amado e adoptado, como demonstra Cícero no livro I das Leis.
§ XCV. Essas primeiras verdades são como germes preciosos, ou como princípios fecundos que contêm uma infinidade de outras verdades; mas como a actividade e a força da razão não são iguais em todos os homens, nem todos os homens percebem com a mesma facilidade estas verdades secundárias, e que estão como fechadas e contidas nas primeiras, quando temos de expor algumas verdades desta segunda ordem a pessoas cuja razão é ainda fraca, como vemos nos meninos ou em algumas pessoas cuja razão não tem sido exercitada nas subtilezas, análises e formas de raciocínios, como há um grande número neste mundo, então, para lhes fazer perceber estas verdades, é necessário proceder com eles como se procede com aqueles aos quais se ensina a Geometria.
§ XCVI. Se começa por definições claras, por proposições muito simples e que se compreendem facilmente, com uma pouca de atenção. Não se passa a proposições ulteriores enquanto as antecedentes não têm sido bem compreendidas, e que não se tem percebido bastantemente a demonstração.
§ XCVII. A Razão não encontra obstáculos na indagação das verdades especulativas da Física, da Álgebra e da Matemática, porque alguma paixão não é aí interessada. Quando se dá conta da marcha de um Cometa, das observações sobre a figura da Terra, etc., o espírito se ocupa e se nutre, e o coração não se opõe. Mas quando se trata das verdades que vão regular o coração, reprimir as paixões e combater este gosto de independência, de presunção e de orgulho que é muito forte na moda, então tudo se levanta no Homem contra essas verdades, tudo reclama, tudo resiste, então se prova tudo o que nos representa. Ovídio, com energia, no quadro em que ele pinta uma alma agitada de paixões, no livro VII das Metamorfoses, [diz]: “A recta razão fala de um modo, mas a paixão fala de outro”
Aliud (…) Cupido
Mens alius suadet.
Desde logo cada um constitui a si mesmo o Juiz destas verdades que se não amam e destas Leis que se acham incómodas; cada um se arroga o Direito de examinar se elas são justas e se são sabias.
Nam cur jussa patris nimium mihi dura videntur?
Depois de ter deliberado um pouco, corta-se a dificuldade e pronuncia-se atrevidamente que estas Leis não são nem sábias, nem justas:
Sunt quoque dura nimis.
Combate-se, contudo, por algum tempo, mas, enfim, a paixão triunfa da razão.
Postquam ratione furorem
Vincere non potuit.
E a conclusão de todas estas belas deliberações e decisões é que contra a sua consciência e contra as suas próprias luzes, toma-se sempre o pior partido.
Video meliora, proboque
deteriora sequor.
§ XCVIII. Por esta breve exposição das palavras de Ovídio, aquele de todos os poetas que melhor tem conhecido e representado a marcha do coração humano, se vêem facilmente os muitos obstáculos que pode encontrar a razão na indagação da verdade. É muito necessário, contudo, fazer diferença da razão do raciocínio: a Razão, por isso que e a luz que Deus nos dá para nos conduzir ao conhecimento da verdade, não é a que nos conduz ao erro, mas, sim, o raciocínio; e, suposto convenham todos que há regras seguras para raciocinar de um modo justo e concludente, contudo é indubitável que há muitos homens que não sabem servir dessas mesmas regras, outros que, sim, sabem, mas não querem, outros, cuja imaginação é a única regra das suas decisões, outros, enfim, que não sabem falar senão pelo interesse das paixões.
§ XCIX. Daí nasce esta infinidade de obras de certos Escritores, que, muitas vezes parecendo que deduzem os seus discursos de uma verdade primária que se conhece pela simples luz da razão, contudo os seus raciocínios não são mais do que um tecido de sofismas e falsidades, mais próprios a enganar do que ilustrar; outros, ridículos, miseráveis, absurdos, e que só merecem o desprezo e a indignação. Há mais de dezoito séculos que Cícero dizia já, no De Divinatione, livro II: “Na verdade, não sei como acontece que, de todos os absurdos que podem entrar na cabeça de um Homem, não haja algum que não tenha sido avançado e sustentado por algum dos Filósofos” (Sed nescio quomodo nihil tam absurde dici potest, quod non dicatur ab aliquo Philosophorum).
NOTA II
Liberdade
§ C. O Temor do castigo das Leis Divinas e Humanas tem sido sempre o flagelo dos homens maus, que só fazem a sua glória em viver no meio dos vícios e da corrupção; para sufocar até os remorsos da consciência a respeito das Leis Divinas e destruir a força das Leis Humanas, eles têm inventado mil absurdos, e a palavra Liberdade tem sido aquela de que eles têm feito um maior abuso para impor à multidão e enganar a todos aqueles dos quais eles se querem servir para os seus fins.
§ CL Quanto ao castigo das Leis Divinas, eles dizem que ou é injusto, ou que não há nem pode haver tal castigo, porque o Homem não tem liberdade para obrar, e que tudo quanto faz é necessitado e constrangido pela mesma Natureza. Para estabelecer este absurdo, eles não se embaraçam com a contradição do outro princípio em que eles dizem que a simples luz da Razão basta para ensinar ao Homem a abraçar o bem e a fugir do mal. Se, pois, o Homem não tem liberdade alguma para obrar, como dizem eles, como hão-de ter eles a escolha e a liberdade de abraçar o bem e fugir do mal? De que lhes servirá essa luz da Razão, se eles não têm a liberdade para executar o que ela lhes dita?
§ CII. O autor do monstruoso Sistema da Natureza, que diz que o Homem não tem liberdade, é o mesmo que diz que Leis sábias, princípios honestos, exemplos virtuosos, a estimação e as recompensas dadas ao merecimento e às belas acções e os castigos rigorosamente aplicados aos vícios e ao crime, são algumas coisas que determinam o maior número de homens a mostrar algumas virtudes. Se, pois, os homens não têm alguma liberdade para obrar, de que lhe servirão esses prémios e esses castigos? Aqueles não serão perdidos e estes não serão injustos? Ó Bom Deus, quem não vê que estas belas palavras não são mais do que um engano para autorizar o Homem a se deixar ir sem temor pela impetuosidade das suas paixões, sufocar em si todos os remorsos, tranquilizá-lo no crime e na impiedade e fazer inúteis todas as lições da sabedoria e da Religião?
§ CIII. E, pelo que pertence às Leis Humanas, não se atrevendo eles a dizer claramente que os maus, ainda os homicidas voluntários, não podem ser castigados, dizem que as Leis de qualquer Sociedade não têm poder algum sobre os indivíduos dela que não seja cedido por eles, mas que essa cessão nunca pode ser em prejuízo da vida nem da liberdade de cada um deles, vindo desta sorte a dizer, por um rodeio, que o malfeitor, o matador, só pode ser castigado se ele quiser, mas nunca com a pena de prisão ou da perda da sua liberdade, nem da sua vida.
§ CIV. Debaixo do título de proporcionar as penas aos delitos, têm trabalhado por todos os modos para debilitar a força das Leis, desculpando todos os crimes, ainda os mais atrozes, e pintando com as cores mais negras as penas das Leis mais justas; eles, enfim, para escaparem ao castigo das Leis que lhes mandam obrar bem, todo o seu ponto é sustentar que o Homem não tem liberdade; mas quando é para obrarem mal, dizem eles com franqueza que todos os homens são livres; então, soltam-se todos os diques da eloquência e se prodigalizam os raciocínios mais absurdos para sustentar este grande ídolo da liberdade, sem advertirem que, se o Homem é tão livre como eles dizem, está na sua mão cometer, ou não, o delito, e, por consequência, fazer nula e de nenhum efeito a pena, qualquer que for, sem que seja mais preciso pesá-la, nem balançá-la com tanto escrúpulo.
§ CV. A liberdade, por isso que é tão natural ao Homem, e ainda mesmo aos irracionais, não é preciso ensinar-lhes, nem inculcar-lhes tanto; a palavra por si só é tão encantadora que é capaz de embebedar os homens e fazê-los sair fora de si; é necessário, pois, ou não inculcar-lhes tanto para os não fazer cair e precipitar, ou dizer-lhes logo, sem rebuço, que a liberdade do Homem, no estado da Sociedade, é limitada, e circunscrita dentro dos limites das Leis de cada uma das Sociedades ou Nações.
§ CVI. A História, mestra dos tempos, nos tem feito ver, constantemente, que todas as vezes que em um Estado se quis fazer uma revolução, nada foi mais necessário do que pregar aos Povos a liberdade e gritar contra o jugo da tirania, debaixo de um pretexto qualquer que fosse. Aqueles mesmos que mais se têm inculcado por seus maiores Defensores, e da Humanidade, têm sido os seus maiores tiranos, que, armando-se uns contra os outros cegamente, os têm destruído sem compaixão [74]; as revoluções da Europa estão diante dos nossos olhos, as de África no estão muito longe.
§ CVII. Os Mouros dos Sertões da África, no princípio do século passado, conhecendo a quase estupidez daqueles Povos, e querendo fazer-se senhores deles e pilhar as suas terras, principiaram a fazer grandes elogios à Liberdade, dizendo que era um dos maiores bens do Homem, e lhes fizeram persuadir que eles eram livres e que os seus Reis eram uns tiranos, e que logo que eles sacudissem o jugo e os destruíssem, eles seriam felizes e teriam grandes colheitas de arroz e de milho, que nasceriam para eles naturalmente, e sem trabalho.
§ CVIII. Com efeito, caíram os pobres tolos no logro, levantaram-se, mataram e destruíram os seus, reis, e mutuamente se foram enfraquecendo; os Mouros aproveitaram-se logo da desordem, caíram sobre eles e foram conquistando e pilhando todo o País, matando e cativando a todos, sem fazer diferença de inimigos, nem dos que tinham implorado o seu socorro, até que os Negros, já cansados de se matarem, e desenganados de que as grandes colheitas prometidas eram só para os seus conselheiros de liberdade, e que para eles só ficava o cativeiro, a fome e a miséria, se voltaram de novo contra os Mouros, seus Conselheiros, lançaram-nos fora e se restituíram ao seu antigo estado. Eis aí o fruto de uma liberdade desenfreada, e a boa fé dos elogiadores dela. Oxalá fora aquele o último exemplo desta Natureza [75].
NOTA III
Soberania do povo
§ CIX. O Povo, propriamente, eu entendo por uma multidão de homens juntos por qualquer causa, sem algum vínculo ou subordinação entre si, por exemplo, num grande campo, chamados pelo interesse comum de uma feira, de um divertimento, da abundância e da fertilidade de um certo lugar, ou fugindo para ele por causa de uma epidemia, de uma esterilidade ou dos ataques das feras, dos homens, ou mesmo num Exército, numa Nação na qual pela corrupção geral das suas partes foram-se pouco a pouco afrouxando, até finalmente se destruírem, todos os nervos e vínculos que sustentavam e mantinham a obediência e a subordinação e ficar cada um dos indivíduos desse povo ou multidão entregue a si mesmo, à sua força, aos seus caprichos, aos seus interesses e às suas paixões no estado propriamente de anarquia, em que os interesses de uns e de outros se chocam, se batem e se encontram continuamente [76].
§ CX. Sendo, pois, esta a ideia que corresponde propriamente a palavra Povo, é fácil de ver quanto é absurdo o sistema que admite a soberania em um ente ainda em embrião, informe e sem um ligamento geral, e que por isso se pode dizer ainda não existente para o seu fim, que é fazer mover o seu todo com uniformidade, ao mesmo tempo que a Soberania, por sua Natureza, pode ser movida por um Ente activo, forte e pensador, capaz de dar a toda a máquina do Povo, ou da multidão, um movimento certo e uniforme.
§ CXI. Os romanos, quando diziam o Senado e o Povo Romano, não entendiam pela palavra Povo a multidão em desordem, ou sem ligamento algum legítimo, não entendiam um corpo qualquer em tumulto, um bando de assassinos, uma parte furiosa da Nação, com os punhais na mão, mas sim uma parte da Nação Romana constituída e ligada debaixo de certas fórmulas e obrigações para fazer as Leis ou se opor as que houvessem de ser executadas ou mandadas executar pela outra parte da Nação, constituída para isso debaixo do nome de Senado, assim como se vê em algumas Nações a soberania dividida em Poder Legislativo e em Poder Executivo, em Rei e em Parlamento, etc., por cujos canais é que a multidão se move e se dirige para o bem geral, mas nunca solta e desligada, nem reduzida em anarquia.
§ CXII. É verdade que, do meio deste caos, desta multidão, desta massa informe, nasce a organização, a forma e o movimento uniforme dos grandes corpos das Nações; mas, essa organização vem já de muito longe, disposta pela Mão do Omnipotente e não da multidão do caos e da desordem, pois que assim como o caos e o acaso não podem produzir a bela harmonia do mundo, assim também a desordem não poderá jamais produzir a ordem e a experiência; e a experiência tem já feito ver muitas vezes que a organização dos grandes Corpos das Nações depende de mil e mil circunstâncias, que não cabem na compreensão dos homens: elas saem muito acima, ou ainda mesmo às avessas das esperanças humanas e de todos aqueles que pretenderam mover a multidão a seu modo.
CXIII. A necessidade da existência do Homem, este princípio activo que o Autor da Natureza infundiu, no Homem, é o que o faz obrar, e muitas vezes, sem ele o perceber, por caminhos que o conduzem ao fim destinado pela Providência, pois, logo que o Homem, por qualquer causa, se acha metido no meio da multidão, da desordem e da anarquia, ele se vê na necessidade de trabalhar com todas as suas forças para salvar a sua existência, e, em consequência, de concorrer quanto puder para reduzir a multidão à ordem e à uniformidade, ou sujeitar-se ele mesmo a essa ordem e uniformidade logo que ela for estabelecida; de outra sorte, ele ou será logo morto e destruído, ou deixará de existir no meio dessa multidão e desordem; e, por isso, não se pode dizer que a organização e existência de uma Nação depende absolutamente do consentimento tácito ou expresso de cada um dos indivíduos, pois que, ou ele queira ou não queira, ele deve necessariamente seguir a ordem estabelecida em a Nação, porque assim o pede a necessidade da sua existência.
§ CXIV. Conheço que esta opinião não agrada ao que se diz Filósofo, a este miserável Ente que, satisfeito de si mesmo, cheio de orgulho e de soberba, não querendo conhecer acima de si nem a um Deus, quer pisar e dar Leis a todo o mundo, porém tenha paciência., que quando menos o esperar, ele sentirá sobre a sua cabeça a pesada Mão do Omnipotente, e então conhecerá, se puder, que aquela Providente Mão, que se ocupa a formar uma flor, não havia de deixar a formação das Nações destes grandes corpos do género humano entregue tão-somente aos desvarios, aos caprichos e às paixões dos homens, por mais que eles se digam Filósofos.
§ CXV. Estabelecida, pois, a ordem geral na multidão, ou pelo meio das eleições, ou por uma proclamação ou por qualquer outro meio, é também de absoluta necessidade que ela se destrua; e, para que ela não se destrua, é de absoluta necessidade que se castiguem os transgressores, ou mesmo, que se destruam aqueles que a pretenderem destruir, ou eles queiram, ou não; e para castigar os transgressores, é necessário que haja um Juiz não só imparcial e independente para os julgar, mas também, que tenha mais força, ou que seja assistido e protegido de uma força maior do que a de todos os transgressores juntamente; e como não se pode dizer independente aquele cujas acções ou decisões dependem do juízo e censura do outro, necessariamente se deve confessar que o Poder ou Poderes, quaisquer que eles sejam, uma vez constituídos e estabelecidos numa Nação, devem absolutamente ser independentes do juízo e censura dessa multidão ou anarquia de que o mesmo Povo ou, para melhor dizer, cada um dos indivíduos de que ele se compõe, se quis tirar pelo estabelecimento de certos Poderes que o dirigissem e governassem, posto que nem todos fossem conformes no modo, nem no como eles deveriam ser constituídos; de outra sorte, ou os Poderes constituídos não seriam mais do que a mesma multidão em desordem, por isso que obrassem com dependência dela, conforme o axioma bem sabido, que aquele que obra por outro se reputa obrar por si mesmo, ou viria esse Povo e cada um dos seus indivíduos a estar em contínua contradição consigo mesmo, por isso que ao mesmo tempo quer e não quer existir num estado de anarquia, de confusão e de desordem [77]. Ora, esta manifesta contradição repugna a um Ente pensador que discorre, ou, ao menos, que deve discorrer consequentemente; logo, a Soberania do Povo é uma quimera [78] ou é só de nome.
§ CXVI. Contra isto gritam os novos Filósofos, que se dizem amigos do Povo e Defensores da Humanidade oprimida. E, se esse Poder ou Poderes constituídos abusarem do poder que lhes foi confiado, não poderão ser castigados e, mesmo, destronizados? Suponha-se que sim; mas como, conforme o mesmo Direito Natural, ninguém pode ser castigado e privado do seu estado sem ser ouvido e julgado, pergunto agora: qual deverá ser o Juiz da causa? O Povo, a multidão, aquela mesma que por se não saber governar nem dirigir-se, estabeleceu ou conveio em que se estabelecessem certos Poderes para a governar e dirigir? Não, certamente, porque seria tornarmos para trás, e para aquele princípio já reprovado, ou para aquele estado já reconhecido e confessado como impossível de se viver no meio dele, ao menos com ordem, sossego e quietação; logo, qual deverá ser o Juiz de semelhante causa? Eu confesso, ingenuamente, que não vejo outro senão Deus; e esta é a razão porque até antes da seita dos novos Filósofos era reconhecido como um princípio de eterna verdade em política que a pessoa do Soberano ou Soberanos é um ente sagrado, acima do qual, neste Mundo, não há Juiz.
§ CXVII. Dizem mais, que ainda que se diga que o Povo não é o Soberano, não se pode contudo negar que, assim como o Povo é o que elege o Soberano ou os Administradores da Soberania da Nação, assim também este mesmo Povo é o que deve castigar, destruir e destronar o Soberano ou os Administradores da Soberania, quando ele ou eles abusarem do poder que lhes foi confiado. Para não discorrermos com ideias confusas, é necessário lembrar o que já dissemos, que um Povo, quando chega ao ponto de fazer as eleições dos seus Representantes ou dos seus Soberanos, já não é uma multidão desenfreada ou um Povo propriamente no estado de anarquia; a desordem, por mais que ela vá ao infinito, nunca poderá jamais produzir a ordem, nem fazer eleições em forma regular; é, sim, em toda ou grande parte da Nação, já de alguma sorte coalizada, ligada e metida em ordem pela invisível mão da Providência, que pouco a pouco a foi tirando do caos em que ela se achava envolvida, assim como todos os dias estamos vendo nascerem umas da destruição das outras, que sem que os homens possam fazer outro tanto, nem perceberem o como isto se faz, por mais que o seu orgulho e soberba os persuada que são capazes de tudo. Esta distinção de Povo ligado e de Povo desenfreado, solto e desligado, é absolutamente necessária para não se dar jamais ocasião a que qualquer multidão de assassinos e de ladrões, arrogando a si o nome de Nação ou de Povo legitimamente congregado, pretenda fazer respeitar como justos os seus roubos e assassinatos.
§ CXVIII. Feita, pois, essa necessária distinção, é fácil de ver que, acima do Soberano, qualquer que ele seja, não há nem pode haver outro Juiz mais do que Deus; os mesmos Democratas que supõem a soberania no povo, não poderão sustentar o contrário, porque se este Povo Soberano abusar do seu poder e se fizer um tirano, como se viu muitas vezes no Povo grego e no romano, tendo à testa aquele os seus Éforos, e estes os seus Tribunos, atropelando a inocência e os homens mais beneméritos da sua mesma Nação [79]. Qual devera ser o Juiz e o castigador de um tirano? O mesmo Tirano? É impossível; a plebe, a canalha, o povo desenfreado? Como, se ela é a mesma desordem? Logo, qual deverá ser o Juiz ou o Castigador de um tal Soberano? Torno a dizer que não vejo outro senão Deus, e só em Deus vejo um poder capaz de alterar, mudar e destruir os Impérios quando e como bem lhe parecer para os seus fins [80], assim como muda e tem mudado muitas vezes a face da Terra por uma calamidade geral, por uma peste, por um terramoto, por uma submersão, por um dilúvio, etc., sem que jamais o possam impedir nem acautelar as forças humanas [81].
§ CXIX. Se a raiva se faz senhora de dois rivais poderosos numa República, eles têm, um e outro, seus sectários; no Senado, os Magistrados se dividem entre si, eles formam partidos sem se perceberem, abrem-se os olhos muito tarde: uma parte da Autoridade se acha armada contra a outra, ela se faz nula. Se a desconfiança se mete entre os Nobres e o Povo, qual é a Autoridade que se faz respeitar? Assim, os remédios aos quais se tem sido forçado a recorrer, são cheios de males e de inconvenientes. As facções, em tal caso, não se podem reprimir, porque toda a autoridade reside nas Leis; a dos Magistrados é emprestada e passageira; os chefes das facções não reconhecem superiores. Eles mesmos dividem a autoridade; ela falta inteiramente em tais ocasiões.
§ CXX. A guerra foi longo tempo o recurso dos Romanos, e foi necessário que ele fosse contínuo: o templo de Jano não foi fechado senão duas vezes em setecentos anos. Viam-se cessar, a chegada da Primavera, as perturbações que tinham agitado Roma no tempo do Inverno. A paz interna era devida à guerra externa. Roma arriscou-se cem vezes a ser arruinada por mãos estrangeiras, para não ser destruída pelas suas. Os Romanos levavam contra o inimigo o calor que deixavam nos espíritos as queixas domésticas; depois da campanha, à vista das feridas que o Cidadão tinha recebido pela Pátria, servia de excitar o povo a uma nova perturbação. A guerra não era um remédio, era um paliativo cruel e sanguinolento.
§ CXXI. Um Povo, qualquer que seja, será sempre insolente na prosperidade, perturbado e desconcertado na desgraça, cruel na sua cólera, pródigo e cego nos seus favores, incapaz de tomar prontamente uma boa resolução. Todo o Povo Soberano deve necessariamente cair na mais abominável corrupção. Ela é a consequência da liberdade muito excessiva e muito jactada na democracia. Jamais república alguma, governada pela voz do povo, não tem gozado de uma felicidade sossegada; elas não têm sido florescentes senão quando um Senado ou grandes homens as têm governado, e, em tais casos, já não se pode dizer governo Democrático [82]. Sendo abolido o Areópago e morto Péricles, Atenas, diz Políbio, foi como uma nau sem leme: uns queriam soltar todas as velas, outros tornar a ganhar o porto; sobreveio a tempestade e a nau foi submergida. As Repúblicas têm mais sofrido no tempo em que elas se tem debatido pela escolha de uma situação fixa, do que debaixo dos seus mesmos Tiranos.
§ CXXII. Isto é o que eu entendo, digam o que quiserem os novos Filósofos ou os novos Restauradores da antiga Filosofia revolucionária, algum dia se verá que eles não têm feito mais do que fomentar a anarquia e reduzir as Nações a um contínuo giro de revoluções, de mortes, de roubos e de assassinatos, debaixo do pretexto de castigar os tiranos e de dar a todos a liberdade [83]; eles, de propósito, estabeleceram os seus sistemas e princípios para fazerem que os ignorantes, que sempre serão a maior parte dos homens, sirvam de instrumento às paixões e aos interesses dos ambiciosos que, não podendo conseguir os seus intentos pelos meios lícitos, se fingem Defensores da Humanidade oprimida e amigos dos homens, não sendo eles mais do que uns disfarçados sectários de Cromwell e uns egoístas refinados, inimigos da humanidade e do bem dos homens [84]
§ CXXIII. Os Atenienses mais de uma vez tiveram a insolência de confessar que eles não conheciam Direito algum das Gentes senão a força; Atenas estava então num estado de guerra contínua e essa guerra tinha dois objectos; um, que se publicava em altas vozes, consistia em sustentar a liberdade dos Povos da Jônia; o outro, que se temia confessar, consistia em destruir os povos da Grécia. Da mesma sorte, hoje, os novos Filósofos em altas vozes se dizem os Defensores da Humanidade oprimida, quando o seu fim (que eles temem declarar) é transtornar todo o estado das coisas para lhes dar uma nova forma, a seu modo.
PROJECTO
de uma Lei para obrigar o senhor a que não
abuse da condição do seu escravo.
§ CXXIV. Para se conseguir o fim do bom tratamento dos Escravos, sem que de alguma sorte se destruam ou se afrouxem totalmente as rédeas da obediência e da subordinação, absolutamente necessárias não só para a boa harmonia entre o senhor e o escravo, mas também para o sossego e segurança do Estado, parece-me que bastaria que se mandasse que todo aquele que tiver escravos não possa ser admitido a algum lugar honorifico, ou seja Eclesiástico, Civil ou Militar, nem perceber utilidade ou interesse algum, ainda mesmo para receber heranças, legados, doações, etc., sem primeiramente se mostrar habilitado por uma Sentença sumária, pela qual conste da sua bondade, assim como se pratica a respeito daquele que, para entrar a servir qualquer Lugar público, deve primeiramente mostrar-se livre de crime, e sem culpa.
§ CXXV. Neste processo sumário deverá ser parte, debaixo da pena de nulidade, um Fiscal público da Justiça, como Curador e Defensor dos Escravos, e duas ou três testemunhas, de conhecida probidade, além de duas indispensáveis atestações, uma do Pároco do domicilio dos escravos, outra do Comandante Militar ou Capitão do mesmo distrito, para lhes poupar o trabalho de irem muitas vezes a Juízo jurar nas causas dos seus Paroquianos ou súbditos; e, para maior expedição, deveria haver um Juiz privativo para tais causas. Os artigos do processo deveriam ser:
I
Que ele, o habilitando, tem sempre dado aos seus escravos o sustento e o vestuário necessários, e o tempo indispensável para dormir em cada noite, ao menos seis horas seguidas, e que sempre os tem feito curar e tratar nas suas enfermidades com toda a caridade.
II
Que tem feito instruir os seus escravos na Doutrina da nossa Santa Religião, nos bons costumes, e que os fez casar logo que para isso teve comodidade.
III
Que ele só tem castigado os seus escravos sem exceder os limites da Justiça.
§ CXXVI. No caso de se proferir Sentença contra o Senhor dos escravos, sempre se deveria julgar habilitado para o fim que pretendesse, mas debaixo da condição de não se lhe entregar a coisa pedida em Juízo, sem primeiramente pagar pela primeira vez, sendo negócio de interesse, a quantia, v.g., de meio por cento do valor total da herança, doação, legado, etc., para obras pias ou públicas do Lugar, e pela segunda e terceira, o dobro e tresdobro, e assim por diante.
§ CXXVII. E, sendo negócio público ou honorífico, o dobro v.g. das custas do processo para obras pias, ou públicas do Lugar, pela primeira vez, e pela segunda vez o dobro, e pela terceira o quadruplo, e assim por diante; alem de ficar, pela terceira vez, excluído de mais servir algum lugar público ou honorífico, sem uma nova Graça do Soberano ou do Magistrado para isso autorizado. E as Sentenças de condenação deveriam ser lançadas em lembrança no livro para isso deputado, para depois se extrair por Certidão e ajuntar-se ao novo processo, para por ele ser acusado pelo Fiscal público todas as vezes que o Habilitando fosse obrigado a extrair nova Sentença de habilitação de bondade, para, no caso de ser, condenado, se lhe irem proporcionalmente agravando as penas.
§ CXXVIII. Por este meio, ainda que o Senhor do escravo não fique totalmente privado do interesse da coisa para a qual se habilitou, contudo o escravo irá de alguma sorte percebendo a protecção da Lei, assim como os menores, sem entrar em contestação com pessoa alguma. O Senhor, ainda no caso de lhe ser possível subornar à força de dinheiro as testemunhas, os juízes, etc., isto mesmo ficara castigado para ir ao menos pouco a pouco aprendendo à sua custa a ter mais caridade com os seus escravos e a dar-lhes um melhor tratamento.
§ CXXIX. O meio de permitir que o escravo seja admitido em juízo a acusar a queixar-se contra seu Senhor, é de perniciosíssimas consequências, pois que ou a queixa seja justa ou injusta, não deixa de produzir uma desconfiança e até mesmo um ódio, uma raiva e um desejo de vingança, que facilmente passará a ser fatal a algum deles ou a ambos, e por consequência ao Estado, pela facilidade com que tais crimes se podem cometer no íntimo de uma família ou num deserto sem testemunhas, e para obrigar o senhor a vender o seu escravo em tal caso, seria por na mão do escravo o mudar todos os dias de Senhor, e, por consequência, não servir a algum deles só com se queixar, ou chamá-los a juízo, ainda que injustamente, e sem razão.
§ CXXX. O simples facto da apresentação do escravo açoitado ou ferido, como querem alguns, não é uma prova bastante para o Juiz condenar o Senhor, porque: 1) sendo permitido ao Senhor castigar o seu escravo dentro dos limites da Justiça, seria necessário examinar-se ele se excedeu ou foi cruel; 2) sendo possível que o escravo fosse açoitado ou ferido por um terceiro, v.g., por algum furto, ofensa ou injúria que lhe tivessem feito, ou em alguma briga ou bebedice entre os mesmos ou outros escravos ou algum ferimento que o escravo tivesse feito a si mesmo para ter ocasião de acusar e de se vingar de seu Senhor, etc., seria necessário examinar se com efeito o escravo tinha sido açoitado e ferido por seu Senhor ou por ordem dele: e onde se achariam testemunhas de maior excepção e sem suspeita para provar um fato que de necessidade só pode ter acontecido em particular, dentro do interior de uma casa a portas fechadas, ou numa fazenda distante da povoação, sem mais testemunha do que o mesmo Senhor e seu escravo? E se as demandas e litígios num Estado não deixam de ser um mal, posto que necessário para que não se recorra as armas, que de males não se aumentaria mais num Estado já por si muito embaraçado e perturbado com demandas, e quando de tais demandas não se conseguiria descobrir a verdade, nem outro fim mais do que uma sublevação geral e a total ruína do Estado? Eu não duvido de que este seja o verdadeiro fim dos Revolucionários, que tanto se jactam de amigos dos Negros debaixo da capa da humanidade, sem que jamais tivessem nem talvez esperem ter com eles alguma correlação, mas por isso mesmo é que eu tenho trabalhado tanto por desmascará-los.
§ CXXXI. Também não se deve admitir o meio das devassas porque por uma parte seria dar ocasião a que um Juiz imprudente, condenando a muitos senhores ao mesmo tempo e pelos mesmos crimes de crueldade contra os escravos desafiasse a todos a fazer causa comum e darem as mãos entre si para uma sublevação geral, ou contra o magistrado ou contra o Estado que o protegesse; e, por outra parte, seria ocasião a que um Juiz ambicioso extorquisse dinheiros à sua vontade, absolvendo a uns que dão, e condenando a outros porque não dão; os mesmos escravos, sabendo que se devassava de seus senhores por causa deles, iriam talvez em multidão forçar o Juiz a que castigasse os seus Senhores, etc. Eu não digo que este projecto evitaria totalmente o mal, eu só digo que me parece ser o mais útil no estado das coisas, e o menos prejudicial ao sossego, a quietação e a tranquilidade do Estado; este é um daqueles males da Sociedade que é necessário tolerar para que não haja maiores males e esperar que a civilização dos Povos, uma boa educação dos filhos e o tempo façam o seu dever.
F I M
N O T A S :
[45] José poderia bem dizer, como disse a Libertadora dos Judeus: “Traditi enim sumus ego, populus meus, ut conteramur, jugulemur, et pereamus. Atque utinam in servos, et famulos venderemur: esset tolerabile malum, et gemens tacerem”, Ester, VII, 4.
[46] Parece-me estar já ouvindo dizer: desta sorte é lícito a qualquer ladrão agarrar e prender um Homem livre e inocente e vendê-lo ao primeiro que encontrar; eu não digo semelhante barbaridade, nem dos meus princípios se podem tirar tais consequências; eu só digo que a venda de um escravo, feita na conformidade das Leis do seu País, fica justificada, legítima e legalmente; por exemplo: todos sabem que, nas praças públicas, nem todas as coisas que se vendem são dos mesmos que as vendem, e que muitas delas são furtadas; mas como se não sabe nem pode saber qual é individualmente a coisa furtada, basta que uma tal coisa se ache com o selo da sua Nação, ou que a venda de uma tal coisa seja mandada ou permitida a qualquer pelas Leis da sua Nação, para ela se dizer adquirida com justo título, tanto no foro externo como no interno; de outra sorte não poderemos comprar mesmo o pão para a boca, porque não sabemos, nem podemos saber, se ele na sua origem foi furtado.
[47] É digno de notar-se que os que se diziam defensores da Humanidade, enquanto Escritores, quando passaram a ser Soberanos Legisladores, foram os mais desumanos, cruéis e sanguinários. V. Mémoire, et accusation contre M. Brissot de Warville, Consors, Fauteurs, et Adhérens, par Dubu de Longchamp.
[48] Confesso que, quando vejo um destes intestados Hipócritas da Humanidade, se me representa um cego que não vê junto a si o cutelo que se esgrime para lhe separar a cabeça do corpo, ou um insensato que não conhece nem percebe o que se passa ao redor de si; ou finalmente um jacobino soberbo e orgulhoso que acima de si não reconhece nem quer reconhecer alguma Lei e que, ao mesmo tempo, a quer dar a todos por força; da mesma sorte, os que trabalham por destruir a Moral Cristã debaixo do pretexto de uma Moral mais perfeita e que, não sabendo o em que ela consiste, só repetem “Direito Natural”, como os papagaios, sem jamais nos darem uma definição clara e distinta nem nos dizerem o como um princípio abstractamente tomado possa servir de regra invariável em todos e qualquer estado e circunstâncias.
[49] Sabe-se (disse o Cavalheiro de Estado Dupuy) como as ilusões da liberdade e da igualdade têm sido propagadas para os Países distantes, onde a diferença notável entre o Homem civilizado e o que não o é, a diferença dos climas, das cores, dos costumes e principalmente a segurança das famílias Europeias, exigiam imperiosamente grandes diferenças no estado civil e político das pessoas. Sabe-se também qual tem sido o funesto resultado destas inovações ardentemente solicitadas por alguns zelosos, de que a maior parte sem dúvida não tinham sido estimulados senão pela intenção honrosa de servir à causa da Humanidade e que, querendo fazer indistintamente todos os homens das Colónias iguais em Direitos, só os fizeram igualmente infelizes. Se numa matéria tão grave fosse permitido usar de figuras, nós diríamos que a teórica de uma filantropia falsamente aplicada tem produzido nas nossas Colónias o efeito do canto das Sereias, com o qual têm vindo males de toda a espécie, a desesperação e a morte. Duas consequências funestas resultam desta experiência: a primeira, que as Colónias que nos são restituídas pelo Tratado de Amiens, e as Ilhas da França e da Reunião, que sem terem sido conquistadas, se têm igualmente conservado, devem ser mantidas no regime debaixo do qual desde a sua origem elas têm constantemente prosperado. A segunda, que nas Colónias, onde as Leis revolucionárias têm sido postas em execução, é necessário apressar-se de substituir às enganadoras teorias, um sistema reparador, cujas combinações se ligam as circunstâncias, variam com elas e são confiadas à sabedoria do Governo. Tal é o voto dos Homens sem prevenção, que não temem confessar que a revisão das Leis e a reforma daquelas que têm sido prejudiciais são um dever essencial do Legislador. Tais são também os motivos do projecto de Lei que nós vos apresentamos em nome do Governo, e cuja adopção necessária para as Colónias vos parecerá ainda infinitamente útil à Nação inteira, pois que as Colónias, o Comércio e a Marinha são inseparáveis nos seus interesses: Courier de Londres, numéro, 42, art. de Paris, le 22 mai 1802.
[50] Courier de Londres.
[51] Le Général Tarleton: (…) il est presque démontré que le Jacobinisme a une étroite affinité avec le système, que l’on veut faire prévaloir, aujourd’hui dans cette chambre. “Le Général Tarleton se rappelle qu’étant en France en 1791, il voulut par curiosité assister à une séance du club des jacobins; mais le Marquis de La Fayette a qui il parla de ce projet lui conseilla de n’en rien faire, en lui disant qu’il courrait de grands dangers, étant connu pour s’être opposé à l’abolition de la traite des Nègres. On lui fit en même temps entendre que si l’honorable membre auteur de la motion, venoit dans le club, il y serait reçu avec applaudissement, et que le président lui donneroit même le baiser fraternel (on rit). Le Général Tarleton assure qu’on lui a dit à Paris qu’un diploma de jacobinisme avoit été envoyé au très honorable membre (M. Wilberforce). Il conclut par dire qu’il est persuadé que la plupart des malheurs qui sont arrivés depuis 20 ans, sont dus à des principes semblables à ceux qui servent de prétextes à la mesure proposée. Cour. de Lond. numér. 19. Grande-Bretagne, chambre des communes, séance du 28 Février 1805. Le Général Gascoine représente les fâcheux effets que résultent des discussions si souvent provoquées sur cet objet. Les nègres confondent leur afranchissement avec l’abolition de la traite. Quel droit ont d’ailleurs ces nègres de réclamer une liberté qu’ils ont déjà perdue dans leurs pays? (...) Seroit il prudent d’abandonner un système suivi depuis un siècle et demi pour se livrer à des idées spéculatives, qui ont produit à St. Domingue des résultats si funestes? (...) Le principe sur lequel on fonde la nécessité de l’abolition de la traite, s’applique également à l’affranchissement des noirs, et il seroit inconséquent d’adopter une des conséquences de ce principe, tandis qu’on rejetteroit l’autre. Cour. de Lond., numér. 19. Séance du 28 Février 1805.
[52] Histoir. Philos. et Politiq., tom. VII, liv. 18, chap. 23, .pág. 99: “La seconde classe de leurs colons fut autrefois composée de malfaiteurs, que la métropole condamnoit a être transportés en Amérique, et qui devoient un service forcé de sept, ou de quatorze ans aux planteurs, qui les avoient achetés des tribunaux de justice... on les a remplacés par des hommes indigents, que l’impossibilité de subsister en Europe a poussés dans le nouveau monde. Embarqués sans être en état de payer leur passage, ces malheureux sont à la disposition de leur conducteur, qui les vend à qui bon lui semble. Cette espèce d’esclavage est plus ou moins long: mais il ne peut jamais durer plus de huit années. Si parmi ces émigrants il se trouve des enfants, leur servitude doit durer jusqu’à leur majorité, qui est fixée à vingt et un ans, pour les garçons, et à dix huit ans pour les filles. Aucun des engagés n’a le droit de sa marier sans l’aveu de son maitre, qui met le prix qu’il veut à son consentement. Si quelqu’un d’eux s’en fuit, et qu’on le rattrape, il doit servir une semaine pour chaque jour de son absence, un mois pour chaque semaine, et six mois pour un seul. Le propriétaire, qui ne veut pas reprendre son déserteur, peut le vendre à qui bon lui semble: mais ce n’est que pour le temps de son premier engagement. Du reste ce service, cette vente, n’ont rien d’ignominieux”.
[53] “Il (le système religieux des Anabaptistes) paroit fondé sur la charité, et la douceur; il ne produisit que des brigandages, et des crimes. La chimère de l’égalité est la plus dangereuse de toutes dans une société policée. Prêcher ce système au peuple, ce n’est pas lui rappeler ses droits, c’est l’inviter au meurtre, et au pillage, c’est déchainer les animaux domestiques, et les changer en bêtes féroces (…). une doctrine, qui avoit pour base la communauté des biens, et l’égalité des conditions, ne pouvoit guère trouver des partisans que dans le peuple. Les paysans l’adoptèrent avec d’autant plus d’enthousiasme, et de fureur, que le joug dont il les délivroit, étoit plus insupportable. Condamnés la plupart à l’esclavage, ils prirent de tous côtés les armes pour accréditer une doctrine, qui de serfs, les rendoient égaux aux seigneurs”. Histoir. Philos. tom. VII, liv. 18, chap. 1, pág. 3 e 4.
[54] La Harpe, Histoir. génér. des Voyag. tom. II, liv. 3, chap. 3, pág. 108: “Ils sont passionnés pour l’eau-de-vie (...) Alors le plus faible devient la proie du plus fort. Dans ces occasions, ils oublient les lois de la Nature, le père vend ses enfants; et si ceux-ci peuvent l’emporter par la force, ou l’adresse, ils traitent de même leurs pères, et leurs mères.
[55] La Harpe, op. cit., tom. III, liv. 5, chap. 3, pág. 240: “Leur principale passion (des Nègres de Juida) dans ce genre est pour le jeu. Bosman rapporte qu’ils y risquent volontiers tout ce qu’ils possèdent, et qu’après avoir perdu leur argent, et leurs marchandises, ils sont capables de jouer leurs femmes, leurs enfants, et de finir par se jouer eux-mêmes. Desmarchais observe qu’avec autant de passion pour le jeu que les Chinois, ils se dispensent de les imiter sur un seul point. C’est qu’au lieu de se pendre, après avoir tout perdu, ils jouent leur propre corps, et sont vendus par celui, que la fortune favorise: ce désordre avoit engagé un de leurs Rois à défendre tous les jeux de hasard, sous peine de l’esclavage.”. Dir-se-á talvez: e os comerciantes estrangeiros, para que vão vender àqueles miseráveis um género que lhes causa tantos males? Eu perguntarei também: e para que na Europa, entre Nações civilizadas, se cultiva e se fabrica o vinho, a aguardente e outros muitos licores, causa de tantos males?
[56] Les Nègres (de Kazigut) sont idolâtres, et d’une cruauté extrême pour leurs ennemis. ils coupent la tête à ceux qu’ils tuent dans leurs guerres; ils emportent cette proie pour l’écorcher, en faisant sécher la peau du crâne avec la chevelure, ils en ornent leurs maisons comme d’un trophée. Au moindre sujet de chagrin, ils tournent aussi facilement leur furie contre eux mêmes. Ils se pendent, ils se noient, ils se jettent dans le premier précipice. Leurs héros prennent la voie du poignard. La Harpe, op. cit., tom. II, pág. 108: “Dans le temps de la famine, un grand nombre de Nègres se vendent eux mêmes pour s’assurer du moins la vie”. La Harpe, op, cit., tom. III, pág. 39: “Snelgrave vit un petit Nègre, attaché par la jambe à un pieux fiché en terre. Ce petit misérable étoit couvert de mouches, et d’autres insects (…) Le Capitaine surpris de ce spectacle, en demanda au Roi l’explication. Ce Prince répondit que c’étoit une victime, qui devoit être sacrifiée la nuit suivante au Dieu Egho, pour la prospérité de son Royaume”; e págs. 63 e 64: “La tête fui jetée sur l’échafaud. Mais le corps, après avoir été quelque temps à terre pour laisser au sang le temps de couler, fut emporté par des esclaves, et jeté dans un lieu voisin du camp. L’interprète dit à Snelgrave que la tête étoit pour le Roi, le sang pour les Fétiches, et le corps pour le peuple. Le sacrifice fut continué, avec les mêmes formalités pour chaque victime (...) un Colonel Dahomay (...) demanda ce qu’ils pensoient du spectacle: Snelgrave lui répondit qu’il s’étonnoit de voir sacrifier tant d’hommes sains, qui pouvoient être vendus avec avantage pour le Roi et pour la nation. Le Colonel lui dit, que c’étoit l’ancien usage des Dahomays; et qu’après une conquête le Roi ne pouvoit se dispenser d’offrir à leur Dieu un certain nombre de captifs, qu’il étoit obligé de choisir lui-même; qu’ils se croiroient menacés de quelque malheur, s’ils négligoient une pratique si respectée, et qu’ils n’attribuoient leurs dernières victoires, qu’à leur exactitude à l’observer; que la raison, qui faisoit choisir particulièrement les vieillards pour victimes, étoit purement politique; que l’âge, et l’expérience leur faisant supposer plus de sagesse, et de lumière qu’aux jeunes gens, on craignoit que, s’ils étoient conservés, ils ne formassent des complots contre leurs vainqueurs, et qu’ayant été les Chefs de leur Nation, ils ne pussent jamais s’accoutumer à l’esclavage. Il ajouta qu’à cet âge d’ailleurs les Européens ne seroient pas fort empressés à les acheter, et qu’à l’égard des jeunes gens que se trouvoient au nombre des victimes, c’étoit pour servir dans l’autre monde, les femmes du Roi que les Tuffos avoient massacrées (... )“ E pág. 66: “Les corps des Tuffos avoient été bouillis, et dévorés. Snelgrave eut la curiosité de se transporter dans le lieu où il les avoit vus. Il ne restoit plus que les traces du sang; et son interprète lui dit en riant que les vautours avoient tout enlevé. Cependant comme il étoit fort étrange qu’on ne vit pas du moins quelques os de reste, demanda quelque explication. L’interprète lui répondit alors plus sérieusement, que les Prêtres avoient distribué les cadavres dans chaque partie du camp, et que les soldats avoient passé toute la nuit à les manger. Voilà donc les Dahomays reconnus anthropophages”. E pág. 57: “L’interprète leur apprit que les Dahomays avoient sacrifié dans ce lieu à leurs Divinitês, quatre milles prisonniers de Juida, et que cette exécution s’etoit faite il y avoit environ trois semaines. Ce témoignage formel prouve sans réplique l’usage des sacrifices humains dans ces contrées”; pág. 82: “Là on lui fit entendre que s’il (M. Testesole, Gouverneur Anglais) vouloit écrire à ceux qui commendoient dans son absence, et faire venir pour sa rançon plusieurs marchandises qu’on lui nomma, il obtiendroit aussitôt la liberté. Mais lors que les marchandises furent arrivées, au lieu de le renvoyer libre, on l’attacha par les pieds, et les mains, le ventre à terre entre deux pieux. On lui fit aux bras, et aux dos, aux cuisses, et aux jambes, quantités d’incisions, où l’on mit du jus de limon mêlé de poivre, et de sel. Ensuite on lui coupa la tête; et le corps divisé en pièces, fut rôti sur les charbons, et mangé”; et pág. 132: “Parmi les chefs barbares dont les guerres, et les brigandages troublèrent souvent le commerce du pays, les voyageurs parlent d’un Négre nommé Anqua, né avec des inclinations si féroces qu’il ne pouvoit vivre en paix. C’étoit d’ailleurs un monstre de cruauté. S’étant saisi de cinq ou six des principaux de ses ennemis, il prit plaisir de sang froid à leur faire de sa propre main une infinité de blessures; ensuite il huma leur sang avec une brutale fureur. Un de ces malheureux, qu’il haïssoit particulièrement fut lié par ses ordres; jeté à ses pieds, et percé de coups en mille endroits, tandis qu’avec une coupe à la main il recevoit le sang qui ruisseloit de toutes parts. Après en avoir bu une partie, il offrit le reste à son Dieu. Cést ainsi qu’il traitoit ses ennemis; mais faute de victimes, il tournoit sa rage contre ses propres sujets”. Et pág. 272: “Aussitôt le nouveau Roi s’est mis en possession du Palais, il donne les ordres pour les funérailles de son père (...). Alors le Grand-sacrificateur choisit huit des principales femmes, qui sont vêtues de riches habits et chargées de toutes sortes de provisions, pour accompagner le mort dans l’autre monde; on les conduit à la fosse, où elles sont enterrées vives, c’est-à-dire, étouffées presqu’aussi tôt par la quantité de terre qu’on jette dans le caveau. Après les femmes, on amène les hommes que sont destinés au même sort. Le nombre n’en est pas fixé. Il dépend de la volonté du nouveau Roi, et du Grand Sacrificateur (…) de tous les officiers du Palais il n’y en a qu’un dont le sort soit réglé par sa condition et qui ne peut éviter de suivre son maître au tombeau; c est le titre de favori’. Eis aqui os negros, de que os Filósofos da moda se fazem honra de se dizer amigos; e com razão, porque tais monstros, que debaixo da capa da Humanidade têm devorado seus pais, seus filhos, suas mulheres, seus irmãos, sua pátria, só podem ter por amigos e companheiros tais canibais pela semelhança que eles têm entre si.
[57] “Ils (les Nègres) épargnent néanmoins leurs ennemis, dans l’espérance de faire un plus grand nombre d’esclaves. C’est le sort de tous les prisonniers, sans exception d’âge ni de rang”. La Harpe, op. cit., tom. II, pág. 194. “On ne connoit dans le Royaume d’Angola qu’une sort de punition pour les crimes, c’est l’esclavage au profit du Sova”, Idem, tom, III, 364.
[58] Dans le cas d’adultère, les deux coupables sont vendus pour l’esclavage étranger, sans espérance d’être jamais rachetés. Cette punition est celle des plus grands crimes; car les supplices capitaux son rares parmi les Nègres. On prend soin que ces esclaves soient vendus aux Portugais parce qu’on est sur alors qu’ils seront transportés au delà des mers. La Harpe, op. cit., tom. II, pág. 212.
[59] “À la mort des Empereurs de Bissao, les femmes qu’ils ont aimées le plus tendrement, et leurs esclaves les plus familiers sont condamnés à perdre la vie, et reçoivent la sépulture près de leur Maître, pour le servir dans un autre monde. L’usage étoit même autrefois d’enterrer des esclaves vivants avec le Monarque mort. Mais l’Auteur (Brue) prétend que cette coutume commençoit à s’abolir. Le dernier Roi n’avoit eu qu’un esclave enterré avec lui; et celui qui regnoit, paraissoit disposé à détruire une Loi si barbare.” La Harpe, o. cit., tom. II, pág. 106. “Quoique les habitants de la Côte d’Or soient beaucoup plus civilisés par l’ancien commerce qu’ils ont avec les Européens, leur politique ne souffre pas non plus qu’on pénètre dans le sein de leur pays”. La Harpe, o. cit., tom. V, pág. 37.
[60] Caesar, De Bello Gallico, lib. 6: “Natio est omnis Galiorum admodum dedicata Religionibus; atque ob eam causam, qui sunt afflicti gravioribus morbis, qui que in praeliis, perisculisque versantur, aut pro victimis homines immolant, aut se immolaturos vovent, administrisque ad ea sacrificia Druidibus utuntur, quod pro vita hominis, nisi vita hominis reddatur, non posse aliter Deorum immortalium numen placari arbitrantur (…) Galli se omnes ab Dite Patre prognatos praedicant (…) Viri in uxores, sicuti in liberos vitae, necisque habent potestatem; et cum paterfamilias illustriore loco natus decessit, ejus propinqui conveniunt, et de morte, si res in suspicionem venit, de uxoribus in servilem modum quaestionem habent, et si compertum est igni, atque omnibus tormentis excruciatos interficiunt (. ..) Omniaque, quae vivis corde fuisse arbitrantur, in ignem inferunt, etiam animalia (…) servi, et clientes, quos ab iis dilectos esse constabat, justis funeribus confectis una cremabantur (…) Latrocinia nullam habent infamiam, quae extra fines cujusque civitates fiunt, atque ea juventutis exercendae, ac desidiae minuendae causa fieri praedicant”, etc. Bossuet, Histoir. Univers., p. 2, cap. 19: “Gallis, multisque aliis gentibus id saevitiae, et vesaniae genus patrabatur”.
[61] Caesar, op. cit., lib. 6: “Germani multum ab hac consuetudine differunt: nam neque Druides habent, qui rebus divinis praesint, neque sacrificiis student: Deorum numero eos solos ducunt, quos cernunt, et quorum opibus aperte juvantur: Solem, et Vulcanum, et Lunam, reliquos ne famma quidem acceperunt: ita omnis in venationibus, et in studiis rei militaris consistit: ab parvulis duritiei, ac labori student: qui diutissime impuberes permanserunt, maxime inter suos ferunt laudem: hoc ali staturam, ali vires, nervosque confirmari putant (…) pellibus, aut parvis rhenorum tegumentis utuntur, magna corporis parte nuda; Agriculturae non student, majorque pars victus eorum in lacte, et caseo, et carne consistit”, etc.
[62] Caesar, op. cit. lib. 5: “Plerique (Britani) frumenta non serunt, sed lacte, et carne vivunt, pellibusque sunt vestiti: omnes vero se Britani vitro inficiunt, quod caeruleum efficit colorem; atque hoc horribiliore sunt in pugna adspectu: capilloque sunt promisso, atque omni parte corporis rasa, praeter caput, et labrum superius; uxores habent deni, duodenique inter se communes et maxime fratres cum fratribus, et parentes cum liberis”, etc.
[63] V. a Nota [34].
[64] Fleury, sobre a História Eclesiást., Diss. 6, n.º 13
[65] Um corpo, cujos membros todos querem ser olhos e cabeça, necessariamente se há de fazer um monstro, que cairá morto e precipitado, por falta de pernas e braços que o sustentem.
[66] Snelgrave refere o que lhe aconteceu com um negro que tinha morto um soldado inglês que estava de sentinela, o qual, vendo-se condenado à morte, disse-lhe que conhecia muito bem ter feito uma acção má, porem que ele, Snelgrave, considerasse que, fazendo-o morrer, perdia o dinheiro que tinha dado por ele: tal é o costume em que estão aqueles negros de comutar a pena de morte por dinheiro em favor do senhor, e pela escravidão em favor do escravo. La Harpe, Histoir. génér., tom. III, chap. 3, pág. 93
[67] Note-se que esta Análise estava já escrita muitos anos antes da famosa Época do ano de 1807, cujas consequências são incalculáveis.
[68] V. o meu Ensaio económico sobre o Comércio de Portugal e suas Colónias, cap. 2, pag. 1.
[69] Em Hannover há uma Lei que manda que nenhum paisano possa casar sem primeiramente fazer certo que ele tem plantado vinte árvores. Na China, o Imperador todos os anos em um certo dia vai por suas mãos lavrar e semear a terra, e faz muitas honras e mercês aos lavradores para os animar à cultura. Entre muitos bons regulamentos do Imperador Yong-ching, Duhalde refere um, que nota uma consideração singular pela agricultura. Esse príncipe, para animar os lavradores, exigia de todos os Governadores das Cidades que lhe fizessem saber todos os anos o nome de um paisano do seu distrito, distinto por sua aplicação a cultivar a terra, por uma conduta irreprovável, pela união da sua família e pela paz entretida com os seus vizinhos, enfim, sua frugalidade e sua sabedoria. Sobre o testemunho do Governador, o Imperador elevava este sábio e diligente Lavrador ao grau de Mandarim da oitava Ordem e lhe remetia as patentes de Mandarim honorário, distinção que lhe dava o Direito de trazer o vestido de Mandarim, e visitar o Governador da Cidade, de se assentar em sua presença, de tomar chá com ele e gozar de todas as honras de Mandarim em sua vida. Depois de sua morte se lhe fazem os funerais convenientes à sua graduação e seus títulos de honra são escritos na sala dos seus antepassados. Qual deve ser emulação dos Lavradores depois dos exemplos desta Natureza? Eles não estão jamais ociosos, jamais as terras da China ficam por cultivar. La Harpe, Histoir des Voyag., tom. et chap. 7, pág. 399.
[70] A necessidade não tem Lei, porque ela é a origem de todas as Leis.
[71] Os romanos só davam a manumissão ou a liberdade aos seus escravos debaixo de certas fórmulas para se conservarem os direitos dos Patronos dos Libertos; hoje, dever-se-ia acrescentar que não se concedesse a liberdade a algum escravo que ou não tivesse algum ofício dos trabalhos de primeira necessidade, ou um património de que sustentar-se debaixo da pena de ser o senhor obrigado a sustentá-lo para se não aumentar o número dos vadios, ladrões e facinorosos; e ainda mesmo dos mendigos, principalmente nos Estados assim como no Brasil onde não há Fábricas, nem manufacturas, nem outros semelhantes trabalhos em que os ocupar.
[72] Eu tenho feito tudo quanto está da minha parte: no meu Bispado de Pernambuco estabeleci uma Casa de Educação para as Meninas que seus pais destinarem a ser Mães de Famílias; eu lhes dei Estatutos, que foram impressos em Lisboa em 1798; e entre os princípios da sua educação, eu não me esqueci de lhes dar as máximas que me pareceram próprias para as que um dia hão-de ser as primeiras mestras dos homens e as primeiras governantes de suas casas; mas, porque talvez os ditos estatutos se não achem nas mãos de todos, seja-me permitido transcrever aqui uma parte do cap. 7, pág. 90, dos ditos estatutos, que também me parece própria para êste lugar: “Como há também algumas pessoas que, por orgulho, soberba, ou falsa ideia do seu elevado nascimento, olham para os criados e escravos como para Gentes de outra espécie, supondo talvez que eles foram feitos para a comodidade de seus amos e dos seus senhores, a Directora deve ter especial cuidado de desenganar as educandas destas máximas tão contrárias à sua modéstia e ao amor de Deus e do próximo, e de fazer entender como certo que Deus não criou os homens para serem servos ou escravos, que é um erro brutal o crer que nascem umas pessoas para lisonjear a preguiça e a soberba das outras; que todos somos Irmãos e filhos do mesmo Pai, mas que a necessidade de uns e a escravidão dos outros, imposta pelas Leis humanas, ou em pena dos seus delitos, ou para lhes acautelar um maior mal a que os tinha sujeito a sua mestria barbárie, ou a de seus inimigos vencedores foram as que estabeleceram esta acidental desigualdade que vemos por todo o mundo; que o serviço que um faz a outro é por interesse de ambos; e, por isso, é necessário adoçá-lo o mais que puder ser para que fiquem ambos satisfeitos; que, se os amos è os senhores que nascem na abundância e tiverem boa educação ainda assim mesmo estão cheios de defeitos e de erros não se deve estranhar que os criados e os escravos os tenham faltando-lhes os meios da instrução e dos exemplos da virtude e da honra.
A respeito dos Escravos, é necessário dizer mais em um País onde quase todo o serviço é feito por eles. Alguns senhores, mais por ambição e força de génio do que por justiça, castigam os seus escravos com rigor e crueldade muito acima dos seus delitos, e dão por isso ocasião a que eles ou adoeçam, ou fujam para os matos; outros, para pouparem o pouco sustento e vestuário que deveriam dar aos seus escravos, deixam-nos morrer de fome e de miséria, sem advertirem que mais perdem que ganham, ou seja nos lucros que lhes poderiam resultar dos serviços de tais escravos se não adoecessem ou não fugissem, ou nos danos que lhes resultam das grandes quantias de dinheiro que gastam com compra de novos escravos para os servirem, quantias muito acima da soma de todas as suas miseráveis economias.
Estas perdas, ainda que pareçam pequenas, contudo, pelo decurso de muitos anos, se fazem grandes e muitas vezes até o ponto de reduzirem casas muito ricas a uma pobreza suma; estas verdades, muito patentes por si mesmas, não podem deixar de ser manifestas a todos, sem ou se considerar em tais senhores uma total falta de sentido comum, e uma brutal ignorância dos seus mesmos interesses, ou uma educação má e um costume inveterado de pais a filhos, acumulando tantos males sobre as suas cabeças, sem jamais reflectirem nas causas das suas desordens e decadências.
É necessário dizer-lhes que a pobreza, ainda que por si não seja uma vileza, ela passa logo a ser culpável e até digna de castigo, quando procede da desordem e da maldade do sujeito; que tais pessoas parece que se fazem indignas de compaixão, e que até o Céu e a terra muitas vezes conjuram contra elas, pois que, devendo e podendo fazer o bem de suas famílias, não servem mais do que de estragá-las e reduzi-las à desgraça e à miséria, fazendo infelizes a si, a seus filhos e aos seus escravos.
Que, devendo as Mães de Famílias ensinar aos seus filhos e aos seus escravos a nossa Santa Religião, cuja principal base consiste no amor de Deus e do próximo, vem a negar esta verdade pelos factos contrários da sua tirania e crueldade, fazendo talvez recair contra a Santidade da Religião todo aquele: ódio e aversão que só deveriam recair contra os seus transgressores; que Deus sendo, como é, Justo, não pode deixar de castigar os que são injustos, e que por isso devem ensinar a seus filhos que quando não tratem bem os seus escravos pelo amor de Deus, o façam ao menos pelo temor dos castigos eternos e da vergonha do mundo, para que não pareçam tão malcriados e tão brutos que nem ao menos conhecem os seus mesmos interesses.
Nós seríamos infinitos se quiséssemos dar aqui todas as providências sobre estas desordens, e, por isso, nos cingimos tão somente a indicar o mal, esperando que a Directora das educandas não perca de vista este objecto, para arrancar delas esta semente de barbárie fazendo-lhes persuadir que, além da obrigação comum imposta a todos por Direito Natural e Divino, de fazerem todo o bem que puderem aos pobres necessitados, acresce mais aos senhores a obrigação do seu mesmo interesse em sustentar uns braços sem os quais eles cairiam em pobreza e se veriam na necessidade de se servirem por suas mãos.
[73] V. § CXXXIV e seguintes.
[74] Os que se vêem arruinados e perdidos, ordinariamente apelam para as sedições, em que sempre esperam ganhar; sabe-se que isto é o que fez a conjuração de Catilina. Os homens ambiciosos, ou os que estão cheios de dinheiro alheio, ou os miseráveis, que nada têm a perder, amam sempre a mudança dos Estados.
[75] V. L’Histoir. génér. des Voyag., liv. 6, chap. II, Troisième voyage de Sieur Brue sur le Sénégal, pág. 3, 1715.
[76] Muitas são e podem ser as causas que reduzam os homens a uma multidão informe e desordenada, mas essas causas, ainda que pareçam casuais, são, contudo, ordenadas de muito longe por Aquela Mão Omnipotente que do nada fez tudo, e que só se serve dos homens como de instrumentos, assim como dos pais para a geração dos filhos.
[77]
Voyage du jeune Anacharsis en Grèce, second édition, tom. 1, pág. 51:
‘L’idée d’obéir et commander tout à la fois, d’être en même temps sujet, et
souverain, suppose trop de lumières, et de combinaisons pour être aperçue par le
commun des hommes”. De la Législation des Empires. Extrait de Bodin, tom.
et liv. 1, chap. 19, pág. 167: “II est nécessaire pour empêcher l’usurpation
qu’il règne une méfiance éternelle du peuple vis-à-vis du chef. Cet état n’est
pas naturel, il est forcé, il faut du sang, et du plus sacré pour l’entretenir.
Cette situation est trop incertaine, trop agitée pour la désirer”.
[78] Entregar a espada da Soberania ao Povo ou à multidão desenfreada é o mesmo que entregar uma espada a um menino, ou a um furioso, que se não sabe governar, nem dirigir as suas acções.
[79] Os atenienses, cujo Governo era Democrático, conhecendo quanto era perigosa a intriga e o suborno dos votos num tal governo, estabeleceram a Lei do Ostracismo, pela qual eram condenados a degredo os que aspiravam à dominação da sua República; essa Lei, que parecia ditada pela sabedoria, passou logo a ser o verdugo da inocência. Os maiores homens, os mais beneméritos e os que mais serviram à sua pátria foram as primeiras vítimas da Lei do Ostracismo. Teseu, a grande general dos atenienses, foi desterrado para a Ilha de Sciros. Sólon, o sábio legislador dos atenienses, foi desterrado para o Egipto. Aristides, por sobrenome o Justo, foi desterrado pelas intrigas de Temístocles. Mitrídates, um dos maiores Generais dos Atenienses, aquele que venceu os Trácios, ou Citas, e desbaratou com doze mil homens mais de trezentos mil persas na célebre batalha de Maratona, junto a Atenas, foi condenado a uma prisão perpétua, onde morreu de miséria, perseguido por aqueles aos quais ele fez maior bem. Címon, por sobrenome o Liberal, e Grande General dos Atenienses, aquele que se assinalou na batalha de Salamina, foi desterrado pelas intrigas de Péricles e de Efialtes. Péricles, o Grande Orador, chamado Olímpico pela força da sua eloquência, como de um raio, foi desterrado pelas intrigas de Tucídides Milésio, general do mar; este foi também desterrado pelas intrigas dos Sectários de Péricles.
O Povo romano não foi menos tirano. Marc. Jun. Brut., filho de Júnio Bruto e de Servília, irmã de Catão, um dos maiores defensores da liberdade romana e que mais concorreu para a morte de César, seu benfeitor, foi depois perseguido até a morte por este mesmo Povo, para cuja Soberania ele mais trabalhou. Marco António, o orador cuja eloquência, como atesta Cícero, fizera então a Itália rival da Grécia, depois de ter feito grandes serviços à República Romana, sendo Pretor da Sicília e Procônsul da Cilícia, e, finalmente, censor, foi perseguido e morto nas perturbações de Mário e de Sila. Caio Mário Coriolano, célebre capitão romano, depois de ter servido com zelo e desinteresse a sua pátria, e de ter tomado a cidade de Coriolos dos Volscos, da qual tomou o nome, não quis por prémio dos seus serviços mais que um cavalo e a permissão de dar a liberdade a um dos prisioneiros de quem tinha sido hóspede quando esteve no seu País; esse Homem célebre, tão servidor da sua pátria e tão desinteressado, foi depois acusado, perseguido e desterrado pelas intrigas do tribuno Décio. Públio Cornélio Cipião, por sobrenome o Africano, um dos maiores generais da antiga Roma, aquele que pôs fim à guerra de Espanha pela grande batalha que ele deu na província de Bética, hoje Andaluzia, que, passando à África, venceu em duas famosas batalhas os Cartagineses comandados por Asdrúbal e por Sifas, rei dos Númidas, e no ano seguinte desfez a Aníbal na batalha de Zama, junto à cidade de Cartago, e sujeitou a mesma Cartago com condições muito vantajosas para os Romanos, foi depois acusado e perseguido pelos dois irmãos Petilianos, Tribunos do Povo, até que, já cansado de sofrer a ingratidão daquele Povo, retirou-se para Liberno, na campanha de Roma, onde passou o resto de seus dias. Públio Rutílio Rufo, Cônsul e o exemplo da inocência, como atesta Cícero foi desterrado para Esmirna; depois, sendo convidado pelos seus amigos a tornar para a sua pátria, respondeu com as palavras que refere Séneca no liv. 6, De Benef. Pont., c. 37: Malo ut patria exilio meo erubescat, quam reditu maereat. Ovid., liv. 1, Ep. 3, ex., v. 63:
Et grave magnanimi robur mirare Rutili,
Non usi reditus conditione dati.
Smyrna virum tenuit, non Pontus, et hostica tellus.
Estes e outros exemplos das vítimas que por brevidade omito, sacrificadas à cega tirania do Povo, cuja maior parte se compõe de homens ignorantes, de fácil sedução, e que não sabem mesmo o que querem, nem o que dizem, fazem bem ver que o chamado “Povo Soberano” é também capaz de ser, como os outros, enganado e seduzido pelos intrigantes e, por consequência, ser também um tirano, e tanto mais cruel, quanto os combates das suas intrigas são mais fortes e mais combinados pelos diversos partidos.
[80] “Solus Deus beatus, potens Rex Regum, et Dominus Dominantium.” Apost. 1 Timóteo (VI, 15).
[81] “In voluntate tua, Domine, universa sunt posita,et non est qui possit resistere voluntati tuae: tu enim fecisti omnia, caelum, et terram, et universa, quase Caeli ambitu continentur: Dominus universorum tu es”. Ester, (XIII, 9 a 11).
[82] Se, pois, os governos democráticos só têm sido florescentes quando foram governados e dirigidos por monarcas de facto, não é melhor que eles sejam Monarcas de Direito? É verdade que todos os Governos são susceptíveis de corrupção, mas sempre com a diferença que o monárquico, ainda no meio da sua maior corrupção, por isso que pela sua constituição todas as rédeas cio Governo se reúnem em uma só mão, logo que nelas pega uma mão forte, sábia e prudente, tudo entra na ordem; não assim nos Governos Democráticos ou Aristocráticos, que, uma vez caídos na corrupção, por isso que pelas suas constituições as rédeas do Governo estão espalhadas pelas mãos de todos ou de muitos, ou nunca mais se tiram da corrupção, ou puxando cada um para a sua parte, mutuamente se destroem.
[83] M. de Real Scienc. de Gouvernem,, tom. 1, chap. 3, § 12 e seg., e sect. 4, § 27: “Le gouvernement quelqu’en soit la forme, n’est jamais tyrannique, lorsque l’utilité publique est la règle de l’administration, et ni la liberté, ni la tyrannie ne sont l’apanage d’aucune sorte de Gouvernement. Quand l’administration est sage, la liberté se trouve au milieu de la monarchie, et lorsque l’administration est partiale, la tyrannie règne dans les Républiques. De là il suit que la tyrannie est tout aussi à craindre dans les Républiques, que dans les monarchies”, etc.
[84] Os males que cercam a Natureza humana já são mais que bastantes para o seu maior tormento; não é necessário reduzir as revoluções a sistema para a sua total destruição.