14-8-2007
O REINO DO CONGO
Sublevação e derrota; as guerras civis
A tensão era grande entre o Governo de Luanda e o Rei do Congo, Garcia II. Este afrontava os portugueses, cobrando xicacos (taxas) nas passagens dos rios e impedindo o negócio dos pombeiros. Para além disso, tinha em S. Salvador um quilombo (aglomeração de escravos fugidos aos seus donos), com o nome de Jaga Cabuco e não os queria entregar. Era também acusado de não cumprir as capitulações feitas com Salvador Correia de Sá e Benevides.
Quando o marquês de Mpemba pediu socorro a Luanda pelas ameaças de morte que lhe fazia o Rei Garcia II, o Governador de então, Sousa Chichorro, decidiu levar a guerra ao Congo, em 1657. As tropas, que eram comandadas por Diogo Gomes de Morales, atravessaram os rios Zanza e Dande, a partir do qual começavam as terras do Congo. Encontraram as primeiras forças congolesas que puseram em debandada e chegaram ao Rio Lozi. Os acontecimentos conjugaram-se para a expedição terminar ali. Por um lado, as tropas portuguesas tinham um receio supersticioso de atravessar o rio, a que chamavam rio do esquecimento, pois diziam que quem o passava, não o tornava a ver; além disso, o socorro ao marquês de Mpemba já não ia a tempo, porque o Rei Garcia já o tinha degolado. Então, o Rei do Congo mandou embaixadores a Luanda, com pagamentos à conta das capitulações de 1649, prometendo de novo guardar a paz e a boa amizade, e entregar aos portugueses os escravos que tinha no quilombo. O Governador mandou retirar a coluna para Luanda.
Veio a seguir para Luanda como governador o herói de Pernambuco, João Fernandes Vieira (1658-1661), que encontrou situações de revolta. Havia também, em Luanda e em Lisboa, a ilusão de que o Congo poderia esconder minas de ouro ou de prata, recusando-se o rei a dar acesso a elas, como lhe fora determinado nas capitulações de 1649. Mas João Fernandes Vieira não conseguiu levar para a frente os propósitos de formar um exército para atacar o Rei do Congo.
A Fernandes Vieira sucedeu o seu companheiro de Pernambuco, André Vidal de Negreiros (10/5/1661 – 28/8/1666). No início de 1661, tinha falecido o velho rei Garcia II, já desavindo com os Capuchinhos. Sucedeu-lhe seu filho D. António I, Nvita-a-Nkanga, marquês de Kiva (“mwana” Nlaza), de carácter exaltado e turbulento.
D. Afonso VI escreveu em 22 de Dezembro de 1663 uma carta a Vidal de Negreiros, ordenando-lhe que tomasse posse das minhas de cobre no Congo, as explorasse e remetesse o mineral nos navios que iam para Lisboa. O Rei do Congo respondeu negando a existência das minas e dizendo “posto que as houvera, não as devo a nenhum”.
Vidal de Negreiros prepara o seu exército para o combate e D. António responde com um exaltado apelo à guerra (Paiva Manso, 244). O exército português tinha ordem para ir ocupar as minas situadas no outeiro do Embo. Para isso, seguiria para os Dembos, atravessando o rio Dande e caminharia para Mbwila. Era comandado por Luis Lopes de Sequeira. Chegaram ao rio Zenza, com uma força de 300 homens armados de arcabuzes, levando consigo duas peças de artilharia. Ali se juntou a chamada “guerra preta”, constituída por quilambas, jagas e escravos dos portugueses.
Anunciava-se que o Rei do Congo vinha ao encontro dos portugueses com uma multidão de gente. Houve quem indicasse um milhão, Cadornega diz 100 000, mas é mais racional dizer uns 20 000. Lopes de Sequeira pediu reforços a Luanda e enviaram-lhe mais 100 homens. O exército português seria assim de 360 mosqueteiros portugueses e de 6 a 7 mil da “guerra preta”. Estes últimos tinham sido escolhidos entre gente com prática de combate e especial aptidão para a guerra, como os Imbangalas. O exército do Rei do Congo tinha cerca de 300 mosqueteiros.
O recontro deu-se a 29 de Outubro de 1665. Uma vanguarda de 10 000 homens comandados pelo duque de Mbamba , chegou à frente do quadrado português, com os mosqueteiros e as peças de artilharia. O Rei deu-lhes ordem para atacar. O avanço da massa inimiga assustou a “guerra preta” do lado português e cerca de 4000 pretos puseram-se em fuga. O quadrado português aguentou o embate e as peças de artilharia começaram a despejar fogo e a semear o pânico. A vanguarda congolesa recua, destroçada. O Rei do Congo fica furioso e comanda pessoalmente nova carga, seguido pela sua fidalguia, e por toda a mole humana das suas tropas. Uma bala perdida atinge o Rei que, ferido, cai por terra. Um quilamba do lado português identifica-o e, com um golpe certeiro, corta-lhe a cabeça e ergue-a espetada numa lança. O desânimo é geral entre os congoleses, deixam de combater e tentam fugir, mas são perseguidos pelas “guerra preta” que os chacina. Os portugueses lamentam a deserção dos 4 000 pretos, que lhes teriam permitido fazer milhares de prisioneiros, que seriam vendidos como escravos. Na refrega, houve do lado português, 12 feridos brancos, 25 pretos mortos e 250 feridos. Do lado congolês, morreram mais de 5 000, dos quais 98 titulares e mais 400 fidalgos. Entre os mortos, o Padre Manuel Rodrigues, confessor do Rei e Fr. Francisco de S. Salvador, o capelão mulato. Foram feitos prisioneiros o Capelão-mor Manuel João de Medeiros, Francisco, filho do Rei, de um ano, e dois filhos de Afonso, cunhado do Rei, Álvaro, de 6 anos e Pedro, de 7.
Entre os despojos, estava a coroa de prata dourada com pedraria, que fora oferecida ao Rei Garcia II, por Inocêncio X e transportada para o Congo pelo Capuchinho Giovanni Francesco da Roma.
Após a batalha, Lopes de Sequeira enviou homens ao Outeiro do Embo descobrir as minas e recolher amostras. Terminou ali a lenda da existência de ouro ou prata no Congo. O minério era malaquite (carbonato de cobre).
A batalha de Mbwila marca o início da decadência do Reino do Congo.
Abro aqui um parêntese para uma reflexão sobre as guerras civis e as suas consequências. Um dos resultados imediatos para o vencedor era que este transformava em escravos todos os prisioneiros, melhorando assim a sua situação económica, pois eram expedidos para as Américas, de preferência de contrabando para não pagar direitos (altíssimos, pois chegaram a atingir 8 000 reis por cabeça). Assim, durante o decénio de 1700 a 1709, cerca de 70 000 escravos foram exportados a partir do Congo, uma média de 7 000 por ano (Thornton).
A venda de escravos permitia-lhes, para além do resto, comprar armas de fogo, que, por sua vez, tornavam os combates mais violentos e mortíferos. No final do sec. XVII, senhores regionais como por ex. o Conde de Soyo, tinham já peças de artilharia. Na altura, o mecanismo de disparo dos arcabuzes era a mecha (matchlock), só mais tarde substituída pela faísca de pederneira (flintlock), descoberta na América do Norte em 1630. O aumento do número de armas de fogo e a procura de escravos para vender contribuíram também para o aumento dos embates no período de guerras civis no Reino do Congo de 1665 a 1710.
Quando se soube em S. Salvador da morte de D. António I, um parente do Rei, Álvaro Mpanzu-a-Mabondo, fez-se eleger com o nome de Álvaro VII, eliminando fisicamente o rival D. Álvaro, Marquês de Matari, e os seus apoiantes , o Duque de Nsundi e o Mani-Vunda. Outro rival, Afonso, casado com a irmã de Garcia II, Ana Afonso de Leão, fugiu de S. Salvador para as montanhas a leste, para um local chamado Kingi.
No Natal de 1665, o novo rei enviou a Luanda um Capuchinho de confiança, Fr. Girolamo da Montesarchio, para fazer as pazes com os portugueses. Da Montesarchio foi retido por uma rebelião em Mbamba e teve de regressar à capital em Junho de 1666, onde encontrou Alvaro VII morto. Fora o poderoso Conde de Soyo, Paulo da Silva, que marchara sobre S. Salvador, matara o Rei e pusera no seu lugar D. Álvaro VIII (1666), do clã de Kimpanzu. O clã dos Kinlaza foi afastado do trono.
Também D. Alvaro VIII enviou um seu embaixador, D. Anastácio, em 1667 a Luanda para aplacar os portugueses. Este negociou um tratado de paz em que cedeu o direito à exploração das minas do Congo. Os Kinlaza (titulares das províncias do Mbamba e Mpemba) não gostaram desta concessão e o Rei quis tomar conta daquelas províncias. D. Teodósio, Duque de Mbamba, começou por concordar com o rei, mas Pedro, Duque de Mbemba, recusou. Este, com um pequeno exército, atacou Mbamba, matou D. Teodósio e foi a S. Salvador atacar o Rei, que matou, ficando no seu lugar com o nome de Pedro III. Os Kinlaza estavam de novo no poder. O Cónego Kinlaza, Estêvão Castanho, coroou este novo senhor em Janeiro de 1669.
Logo em Junho de 1669, o novo Conde de Soyo, Paulo II da Silva, chegou com o seu exército a S. Salvador, levando um novo pretendente Kimpanzu ao trono, de nome Álvaro. As tropas saquearam e destruíram a cidade, demoliram os edifícios e entronizaram Álvaro IX. D. Pedro III conseguiu fugir da cidade e refugiar-se com um bando de seguidores em Mbula ou Lemba, a norte de S. Salvador, nas margens do Zaire.
Entretanto, o novo Marquês de Mpemba, Rafael, nomeado por D. Pedro III, talvez pensando que o Rei estava morto, pediu a ajuda dos portugueses para colocar de novo um Kinlaza no trono do Congo.
S. Salvador era agora uma cidade despovoada; de uma população de 60 000 habitantes nos meados do sec. XVII, não teria em 1670 mais de 3 000.
D. Rafael ofereceu ao Governador, Francisco de Távora, o pagamento de uma indemnização de 20 000 cruzados, o direito de exploração das minas e autorização para construir um forte em Mpinda, em troca de ajuda militar contra o Soyo, para a restauração do clã Kinlaza no poder.
Os portugueses juntaram um exército poderoso com 400 mosqueteiros, um destacamento de cavalaria, quatro canhões ligeiros e “tropa preta”, incluindo um grupo de Imbangalas. A estes juntou-se um exército inexperiente de Rafael e um destacamento de seis navios que deveria atacar por mar. Saíram de Luanda em 15 de Março de 1670.
Paulo II da Silva preparou também o seu exército que incluía quatro canhões ligeiros. As duas forças encontraram-se no sul de Soyo e o exército do Soyo foi posto em debandada, os canhões perdidos e o próprio Conde foi levado, ferido mortalmente, para Mbanza Soyo. D. Rafael partiu com o seu exército e proclamou-se Rei do Congo, depondo Álvaro IX. A tropa portuguesa avançou para norte, lentamente, saqueando as povoações e aterrorizando os habitantes. O avanço foi tão lento que deu tempo aos de Soyo para reagrupar o seu exército. Por sorte deles, receberam também na altura um barco holandês com abastecimentos militares.
Em 18 de Outubro de 1670, Estêvão I da Silva, irmão e sucessor de Paulo II, à frente do exército reconstituído, caiu sobre a força portuguesa e aniquilou-a em Kitombo. Os portugueses foram apanhados de surpresa e não tiveram tempo de utilizar a artilharia. Os Imbangala fugiram, a artilharia foi perdida e centenas morreram tentando atravessar o Rio Mbrize a nado.
Durante mais de um século, os portugueses não voltaram a combater no Congo.
Depois da batalha, o Soyo ficou exausto e incapaz de intervir de novo no Congo, deixando D. Rafael I a reinar na despovoada S. Salvador. Entretanto, os holandeses ficaram à vontade em Mpinda e no seu porto.
Havia, porém, divergências entre os próprios Kinlanzu, o clã de D. Rafael I. Por volta de 1670, faleceu em Kibangu D. Afonso, o cunhado de D. Garcia II, e foi eleito Rei no mesmo local D. Garcia III, de Água Rosada, novo clã derivado ao mesmo tempo dos Kinlaza e dos Kimpanzu. A viúva de Afonso, Dona Ana Afonso de Leão, irmã de Garcia II, recusou-se a reconhecê-lo como Rei e retirou-se com um grupo de Kinlaza descontentes, para o marquesado de Nkondu, nas margens do Rio Mbrize.
Também em Mbula ou Lemba, estava, como se disse, o Rei Pedro III, que em 1672, conseguiu destronar Rafael I, apoderar-se do trono e renegar o acordo que este fizera com os portugueses. Por volta de 1673, já o Soyo tinha recuperado o seu exército e voltou de novo a interferir nos negócios do Congo. Assim, colocaram outro Kimpanzu no trono do Congo, Afonso II. Este morreu pouco tempo após a coroação, sucedendo-lhe seu filho Afonso III. Em 1674, D. Pedro III atacou a cidade (agora, povoação) e conseguiu matar Afonso III, mas o sobrinho deste, Daniel I, conseguiu reter Pedro III e ser coroado como Rei.
Em 1678, Daniel I tomou a iniciativa de atacar Pedro III em Mbula. O ataque falhou e Pedro III, com a ajuda dos Jagas, perseguiu-o até S. Salvador e destruiu totalmente a cidade. Os que não conseguiram fugir para Lobata com Daniel I, foram mortos pelos Jagas ou vendidos como escravos.
A rivalidade entre o Soyo e o Congo, as lutas pelo poder, e as sequelas da batalha de Mbwila tinham destruído o Congo e o reino só seria reposto em diferentes condições trinta anos depois, por D. Pedro IV.
Entretanto, a paz com a Espanha na Guerra da Restauração (Tratado de 13 de Fevereiro de 1668) permitiu a Portugal reatar em 1671 as relações com a Santa Sé e nomear bispos para as sedes vacantes. Mas os bispos nomeados para o Congo nunca foram a S. Salvador e permaneceram em Luanda.
A destruição de S. Salvador levou à dispersão do poder pelas províncias e também pelas regiões periféricas. Assim, Dona Ana Afonso de Leão tinha uma área de influência que incluía os Marquesados de Nkondu e de Mpemba, o Ducado de Mbamba e outros lugares no sul da País. Na oposição, tinha o clã Kimpanzu dirigido por D. Manuel I e apoiado pelo Soyo. Quando D. Manuel I marchou do Soyo para tomar S. Salvador em 1690, os seus primos Pedro Constantino da Silva e Aleixo conduziram um ataque ao grupo de Ana Afonso de Leão. As forças dos Kimpanzu depressa conquistaram muito do território e ficaram a reinar sobre a área por um período de seis anos.
Dona Ana e os seus sobrinhos expulsaram o clã de D. Manuel I de Mpemba e de Mbamba em 1696, mas em 1707 ainda não tinham reconquistado Wandu e o sul de Mbamba, dominados ainda pelo grupo de Pedro Constantino da Silva e Aleixo.
Por vezes, mais que os laços de família, era o interesse político que contava. Pedro Constantino da Silva (ou Pedro “Kibenga”) e Aleixo entregaram em 1693 o seu primo D. Manuel I ao rival deste, o Rei Álvaro X de Água Rosada, de Kibangu, para ser degolado, conseguindo assim uma aliança temporária com os Água Rosada da montanhosa capital.
Alianças eram levadas a cabo através de casamentos. Pedro IV casou com a sobrinha de Pedro Constantino da Silva, Hipólita.
Embora, até ao século seguinte, não tenha havido grandes confrontações, houve no entanto pequenas escaramuças entre facções rivais. No Soyo, dominava o grupo Kimpanzu liderado por Dona Suzana de Nóbrega, cujo clã tinha dado ao Congo reis como Afonso II, Afonso III e Daniel I. Este grupo defrontou o de D. Manuel I, seguidores de Dona Ana Afonso de Leão, em 1682, 1696, 1702 e 1714.
Em 1695, faleceu no Kibangu Álvaro X e sucedeu-lhe D. Pedro IV de Água Rosada, Nsaku-a-Mvemba (nascido em 1671), havendo apenas outro Rei em Mbula, D. João II. Porém, nenhum deles se atrevia a ir residir para S. Salvador.
Dona Beatriz Kimpa Vita
Há duas características da vida do Congo nesta época, que são muito importantes.
A primeira é o facto de os Capuchinhos se imiscuírem na vida política do Congo, tomando partido por um ou outro dos poderosos ou dos pretendentes ao poder. Os frades estavam muito presentes na vida do Congo. Em relatório redigido em 1708 para a Propaganda Fide, relatando os 28 anos compreendidos entre 1673 e 1701, o prefeito Fr. Francesco da Pavia, diz que naquele período tinham morrido 49 capuchinhos no Congo e em Angola, que 6 tinham morrido antes de chegar a África, e 38 haviam regressado no fim da sua comissão, muitos dos quais com doenças incuráveis; em 1701 restavam 5 nas missões. No mesmo período de 28 anos, tinham feito 340 960 baptismos e celebrado 50 085 casamentos entre os congoleses.
A outra é a importância crescente que o Soyo e os seus interesses representavam nos jogos de poder. A proximidade do mar e a riqueza crescente da região eram mais que evidentes. No final do sec. XVII, o Soyo tinha cinquenta peças de artilharia e o seu exército era suficientemente forte para derrotar, não só qualquer outro do Congo, mas também outros vizinhos que contavam com ajuda europeia. Assim, por volta de 1685, o exército do Soyo derrotou o Rei de Ngoyo e assim desviou um contingente de marinheiros ingleses, a quem apreendeu a artilharia, como despojos de guerra. Estas vitórias permitiram jogar com uma posição de força quando finalmente fizeram as pazes com Portugal em 1690, acabando com o estado de guerra existente desde o ataque português de 1670. O tratado de paz restabeleceu o comércio com os portugueses, mas interessava-lhes mais o comércio com a Inglaterra e os Países Baixos, pois estes estavam dispostos a fornecer munições.
O Soyo queria ver restabelecido o Reino do Congo, mas não queria ver lá um rei muito ambicioso. As esperanças residiam agora em Pedro IV Afonso Água Rosada Nusamu-a-Mvemba que ficara Rei no Kibangu em 1695, por morte de seu irmão Álvaro X. Fora em 2 de Agosto de 1696, que ele tinha marchado para S. Salvador com um pequeno destacamento militar, para que o padre secular Luis de Mendonça o coroasse como Rei do Congo. Apenas um gesto simbólico, pois no dia seguinte regressou a Kibangu, temendo um ataque de D. João II, de Mbula.
Também os portugueses se preocupavam com o restabelecimento do rei em S. Salvador. Na Carta Régia de 24 de Janeiro de 1693, o Rei congratula-se com a paz concluída com o Conde de Soyo e mostra-se preocupado por não se chegar a acordo sobre a eleição do Rei do Congo. E, na Carta Régia de 5 de Março de 1700 (Paiva Manso, 340), manda que se reúnam os Condes de Soyo, o Duque de Mbamba e o Duque de Mpemba, para aplanar as divergências que tinham sobre o Rei a eleger. Esta ordem não teve sequência.
No virar do século, D. Pedro IV mostrava-se o candidato ideal para regressar a S. Salvador como Rei. O seu clã, Água Rosada, tinha raízes tanto no Kimpanzu como no Kinlaza. E, de facto, D. Pedro IV iniciou uma campanha diplomática para o efeito. Fez as pazes com Pedro Constantino da Silva que liderava o grupo de D. Manuel I, morto em 1693. Tomou a sobrinha deste como sua mulher em solene cerimónia realizada em Kibangu em 13 de Julho de 1699, ao mesmo tempo que o nomeava capitão general das suas tropas.
No ano seguinte, D. Pedro IV conseguiu persuadir Dona Ana Afonso de Leão a aderir à trégua. Faltava apenas o acordo de D. João II. Este estava velho, doente e sem fala, mas sua irmã recusou as propostas do enviado de D. Pedro IV, o capuchinho Francesco da Pavia. Nesta altura, os capuchinhos apoiavam D. Pedro IV, embora, três anos antes, Luca da Caltanisetta fosse um activo apoiante de D. João II.
Havia que reocupar a capital. Em 1701, D. Pedro IV mandou o capitão general Pedro Constantino da Silva com um grupo de colonos para S. Salvador, para fazer a sementeira, a fim de que o Rei pudesse regressar no ano seguinte na altura das colheitas. Em 1702, porém, Pedro IV recuou em virtude de Pedro Constantino da Silva, fora do alcance do Rei, ter começado a actuar com demasiada independência. O regresso foi adiado.
O ambiente de guerra civil vivido nas últimas dezenas de anos no Congo, a aspiração à unificação do Reino, misturada com um cristianismo muito superficial, era propício ao desenvolvimento de misticismos, visões e superstições. Assim, no acampamento de Pedro Constantino da Silva (ou Pedro “Kibenga”), uma mulher do povo veio contar que a Virgem lhe aparecera e mandara rezar pela salvação das gentes do Congo. Isto foi relatado ao Rei pelo mordomo do Capitão General Kibenga, Manuel da Cruz Barbosa, que acrescentava estar convencido que este preparava alguma partida. D. Pedro IV pediu a Fr. Bernardo da Gallo que fosse investigar. O frade pediu a Kibenga licença para entrevistar a vidente, mas este respondeu que não a conhecia. Ficou então claro ao padre que o Capitão General estava a manipular sentimentos religiosos com finalidades políticas.
O movimento ganhava cada vez mais conotações políticas. A raiva de Deus era dirigida aos que, atrasando a reocupação de S. Salvador, dilatavam também a realização do processo de paz.
No fim de 1703, apareceu outra profetisa, Apolónia Mafuta, mulher já de idade, com outras mensagens. Também ela tivera uma visão da Virgem. Esta dissera-lhe que se prostrara aos pés de seu Filho, pedindo misericórdia para o povo congolês. Jesus dissera-lhe que estava zangado com o povo de Kibangu, por não descerem da montanha para restaurar a cidade.
Mafuta encontrou Fr. Bernardo, mas este não ficou nem impressionado nem convencido.
Mafuta rejeitava todos os nkisi. Como a palavra englobava tanto os feitiços como os símbolos religiosos (ex., os crucifixos), ela queimava tudo na fogueira, incluindo as cruzes e as medalhas religiosas. Mafuta espalhou a sua doutrina no acampamento de Kibenga e no vale do Mbidizi. Vinham multidões ouvi-la, sendo uma das principais aderentes, a própria esposa do Rei, Hipólita.
Fr. Bernardo pressionava o Rei para mandar prender Mafuta, para que ele a interrogasse. O Rei interrogou Mafuta, mas não a prendeu, o que desgostou Fr. Bernardo.
Em Agosto de 1704, na corte de D. Pedro IV em Kibangu, Dona Beatriz Kimpa Vita ficou doente de uma doença sobrenatural que a levou a morrer e ressuscitar como Santo António (dizia ela). Era o início do movimento Antoniano.
Dona Beatriz Kimpa Vita nascera em 1686 nas margens do rio Mbidizi, junto dos montes de Kibangu. A sua família pertencia à fidalguia local. Os seus pais não trabalhavam, tinham escravos para o fazer. Foi certamente baptizada e depois educada na doutrina cristã e deverá ter sido alfabetizada. Na sua juventude, foi uma nganga marinda, uma actriz religiosa tradicional. Ao chegar à idade da razão, deve ter sofrido com a decadência do Reino do Congo e sentido vontade de fazer alguma coisa para lutar contra isso.
Em Agosto de 1704, Beatriz fora já casada duas vezes e, em ambas, o casamento falhara. É então que se diz possuída por Santo António e decide pregar ao Rei em Kibangu. Depressa ganhou fama de milagreira.
O Rei ouviu-a mas não a prendeu como pretendia Fr. Bernardo.
O teor dos seus sermões era: “Santo António é o santo mais importante. Só a ele o povo deve rezar. Os devotos de Santo António vão descobrir dentro em pouco que no Congo também existem santos como Santo António. Jesus nasceu em S. Salvador do Congo. Jesus e Maria eram congoleses.”
Modificando a história da Igreja, Dona Beatriz, mudou também as palavras da Ave Maria e da Salve Rainha. Esta última transformou-a na Salve Antoniana, que chegou até nós na tradução italiana de Fr. Bernardo. Este nem a comenta, dizendo apenas que contém “tantas horríveis afirmações, que não sabe se a chamar loucura diabólica ou simplesmente blasfémia pura”.
Salve, voi dite e non sapete il perché. Salve recitate, e non sapete il perché. Salve bastonate, e non sapete il perché. Iddio vuole l’intenzione, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve il casamento, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve il battesimo, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve la confessione, l’intenzione Iddio piglia. Nulla serve l’orazione, l’intenzione Dio vuole. La Madre e il figlio nella punta di ginocchio. Se non era S. Antonio, come avevano da fare? S. Antonio è il pietoso, S. Antonio è il rimedio nostro, S. Antonio è il restauratore del regno del Congo, S. Antonio è il consolatore del regno del cielo. S. Antonio è lui la porta del cielo. S. Antonio tiene le chiavi del cielo. S. Antonio è sopra gl’Angioli, e la vergine Maria. S. Antonio è lui il secondo Dio… |
Salve, dizeis vós e não sabeis porquê. Salve, recitais e não sabeis porquê. Salve pancada, e não sabeis porquê. Deus quer a intenção, é na intenção que Deus pega. O casamento não serve para nada, é na intenção que Deus pega. O baptismo não serve para nada, é na intenção que Deus pega. A confissão não serve para nada, é na intenção que Deus pega. A oração não serve para nada, Deus quer é a intenção. A Mãe e o filho na ponta do joelho. Se não fosse Santo António, o que teriam de fazer? Santo António é que tem piedade, Santo António é o nosso remédio, Santo António é o restaurador do Reino do Congo, Santo António é o consolador do reino do céu. Santo António é ele mesmo a porta do céu. Santo António tem as chaves do céu. Santo António está acima dos Anjos e da Virgem Maria. Santo António é ele mesmo o segundo Deus. |
D. Pedro IV pediu a Fr. Bernardo para falar com D. Beatriz, mas proibiu-o de lhe fazer algum mal. D. Beatriz disse ao Padre: “Eu sou Santo António, vindo do Céu”.
“Mas se tu és uma mulher, como podes tu ser Santo António?”, perguntou-lhe o padre.
“Santo António entrou na minha cabeça para pregar em Kibangu”, retorquiu ela.
Depressa Fr. Bernardo concluiu a entrevista, ficando convencido que ela estava possuída do demónio. Assim o disse ao Rei no mesmo dia. Ao mesmo tempo, decidiu que, no domingo seguinte, denunciá-la-ia do púlpito durante a missa. Porém, D. Beatriz abandonou Kibangu antes disso (Outubro de 1704). Dirigiu-se para a Corte de D. João II em Bula, sempre acompanhada por uma multidão de fiéis. Ali teve mau acolhimento e, por isso, desceu para sul, para S. Salvador. Nessa altura, ela proclamava que sofreriam todos os que não a apoiassem. Pedro Constantino da Silva apoiou-a e acolheu-a na seu grupo.
D. Beatriz instituiu grupos de jovens que iam pelo Congo pregando a sua doutrina, a quem chamou Antoninhos. Faziam pouco de Fr. Bernardo, o principal antagonista deles, e chamavam-no pequeno Bernardo ou finganga – padrezinho.
D. Pedro IV sabia que tinha de agir e decidiu finalmente avançar para S. Salvador. Chegou a Mulumbi e enviou uma mensagem a Pedro Constantino da Silva Kibenga para que viesse ter com ele jurar fidelidade. Kibenga recusou e declarou-se rebelde.
Na Quaresma de 1705, dois Antoninhos chegaram a Mbanza Soyo e conseguiram ser recebidos pelo Príncipe António III Barreto da Silva, mas este expulsou-os do condado, proibindo que continuassem ali a pregar. Deslocaram-se então para o sul do Congo, onde tiveram mais sorte. O movimento Antoniano estava agora intimamente ligado à política do Congo.
A vida privada de Dona Beatriz trouxe-lhe também algumas complicações. No final de 1704, ligou-se a um homem chamado João Barro. Este passou a ser o seu Anjo Principal, conhecido como S. João. Por duas vezes engravidou, mas conseguiu abortar, usando remédios locais. Mas em meados de 1705, engravidou de novo e os remédios abortivos falharam desta vez. Isto era muito embaraçoso, porque ela impunha a castidade aos seus Antoninhos. Para esconder a gravidez, em Março de 1706, começou a dizer aos seus fiéis que, para resolver os seus problemas, teria de permanecer no Céu durante algum tempo. Refugiou-se então na aldeia da sua naturalidade, junto das margens do Rio Mbidizi. O nascimento da criança, em Abril de 1706, coincidiu com a tomada de posição do Duque de Mbamba, Pedro Valle das Lágrimas e da Rainha Ana Afonso de Leão. Estes enviaram mensageiros ao Rei Pedro, para juntarem forças contra os Antonianos e sobretudo contra Kibenga. De passagem pelo Rio Mbidizi, encontraram Dona Beatriz, o companheiro e o filho de ambos, prenderam-nos e foram entregá-los a D. Pedro IV.
O Rei hesitava sobre o que havia de fazer. Decidiu finalmente enviar os presos para Luanda, ao cuidado do Bispo do Congo e Angola. Mas no final de Maio, Fr. Bernardo foi visitar o Rei e fê-lo mudar de ideias, no sentido de julgar D. Beatriz ali mesmo. Ela e o seu companheiro, João Barro, foram condenados a morrer na fogueira. À última hora, Fr. Bernardo da Gallo conseguiu salvar o filho de ambos de morrer na fogueira com eles como pretendia o povo de Kibangu, em 2 de Julho de 1706.
O movimento Antoniano ia desaparecendo, mas as rivalidades políticas, essas mantinham-se. Em 1708, prosseguiram as guerras civis. Pedro Constantino aliado aos Nóbregas de Lobata atacou D. Pedro IV, mas saiu derrotado. Em 15 de Fevereiro de 1979, D. Pedro IV deu o assalto final contra Kibenga e pôs fim à rebelião. Dos seguidores de Kibenga (que morreu na refrega), alguns foram capturados, outros fugiram para Lobata, onde os Kimpanzu de Manuel da Nóbrega continuaram a luta contra D. Pedro IV.
O Soyo, sob a liderança de Paulo IV da Silva, aceitou pagar um tributo nominal a D. Pedro IV, recusando prestar ajuda aos seguidores de Pedro Constantino que ali se refugiaram. Alguns anos depois, em 1715, D. João II reconheceu também a soberania de D. Pedro IV e no mesmo ano, Manuel da Nóbrega foi capturado e degolado por Pedro Valle das Lágrimas.
Reinando sobre o Congo de novo unido, D. Pedro IV quis casar-se de novo, já que sua mulher Hipólita tinha sido infiel. Contra o parecer dos capuchinhos, Estêvão Botelho, um padre secular, aceitou casá-lo. D, Pedro faleceu em 1718, com a satisfação de ter reunificado o Congo.
Continua aqui
A decadência final do Reino do Congo