14-04-2019

     

 

Le piccole virtù”, de Natalia Ginzburg

Un'assenza. Racconti, memorie, cronache 1933-1988", de Natalia Ginzburg

La corsara. Ritratto di Natalia Ginzburg” de Sandra Petrignani

 

 

   

NOTA DE LEITURA

A qualidade do “Léxico Familiar” levou-me a procurar outras obras da autora, Natalía Ginzburg. Soube assim que estão traduzidos para Português, os livros “O caminho da cidade” (original de 1945), “Foi assim” (1947) e “Todos os nossos ontens” (1952) e consegui adquiri-los por aqui e por ali. Comprei no Kindle as versões italianas de “Le piccole virtù” e “Un'assenza. Racconti, memorie, cronache 1933-1988 e ainda uma biografia recente dela muito detalhada com o título   La corsara. Ritratto di Natalia Ginzburg” de Sandra Petrignani, que foi amiga dela.

Fiquei muito impressionado com a leitura de “Le piccole virtù”, colecção de ensaios todos muito bem escritos, que referem sobretudo a vida familiar e a educação dos filhos. Vou colocar aqui a tradução que fiz do ensaio que dá o nome ao livrinho e que é de uma simplicidade e argúcia muito comoventes. Apenas para suscitar a curiosidade do leitor, direi que as pequenas virtudes consideradas positivamente pela sociedade não são, ao fim e ao cabo, “virtudes” mas sim defeitos como muito bem defende a Autora.  

 

 

 

As pequenas virtudes

 

No que toca à educação dos filhos, acho que devemos ensinar-lhes não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e desprezo pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo do sucesso, mas o desejo de ser e de saber.

Em vez disso, fazemos geralmente o contrário: apressamo-nos a ensinar o respeito pelas pequenas virtudes, baseando nelas todo o nosso sistema educativo. Desta forma, escolhemos a maneira mais cómoda: porque as pequenas virtudes não contêm nenhum perigo material e, pelo contrário, evitam os golpes da sorte. Negligenciamos ensinar as grandes virtudes, e todavia apreciamo-las  e gostaríamos que os nossos filhos as tivessem: mas confiamos que elas brotem espontaneamente na alma deles, num dia vindouro, considerando-as instintivas na natureza, ao passo que as outras, as pequenas, nos parece serem o fruto de uma reflexão e um cálculo e, por isso, pensamos que elas devem absolutamente ser ensinadas.

Na realidade, a diferença é apenas aparente. Mesmo as pequenas virtudes vêm das profundezas do nosso instinto, de um instinto de defesa: mas nelas a razão fala, dá sentenças, disserta, brilhante defensora da segurança pessoal. As grandes virtudes brotam de um instinto no qual a razão não fala, um instinto a que me seria difícil dar um nome. E o melhor de nós mesmos está nesse instinto mudo: e não no nosso instinto de defesa, que argumenta, dá sentenças, disserta com a voz da razão.

A educação nada mais é do que uma certa relação que estabelecemos entre nós e os nossos filhos, um certo clima em que florescem os sentimentos, os instintos e os pensamentos. Ora eu acredito que um clima inteiramente inspirado pelo respeito por pequenas virtudes, insensivelmente amadurece no cinismo, ou no medo de viver. As pequenas virtudes, em si mesmas, nada têm a ver com o cinismo, ou com o medo de viver: mas todas juntas, e sem as grandes,  geram uma atmosfera que leva a essas consequências. Não que as pequenas virtudes, em si mesmas, sejam desprezíveis: mas o seu valor é de ordem complementar e não substancial; elas não podem ficar sozinhas sem as outras, e são sozinhas sem as outras um alimento pobre para a natureza humana. O modo de exercer as pequenas virtudes, em uma medida temperada e quando for absolutamente indispensável, pode o homem achá-lo ao redor de si e bebê-lo no ar: porque as pequenas virtudes pertencem a uma ordem bastante comum e difundida entre os homens. Mas as grandes virtudes, essas não se respiram no ar, devem ser a primeira substância da nossa relação com os  nossos filhos, o primeiro fundamento da educação. Além disso, o grande pode também conter o pequeno: mas o pequeno, pela lei da natureza, não pode de modo algum conter o grande.

Não ajuda o facto de tentarmos lembrar e imitar, na relação com os nossos filhos, os modos que os nossos pais tiveram connosco. O da nossa juventude e infância não foi um tempo de pequenas virtudes: foi um tempo de palavras fortes e soantes, que porém pouco a pouco perdiam a sua substância. Agora é um tempo de palavras suaves e frígidas, onde aflora  talvez o desejo de uma reconquista. Mas é um desejo tímido e cheio de medo do ridículo. Assim, envolvemo-nos em prudência e astúcia. Os nossos pais não conheciam nem a prudência nem a astúcia; não conheciam o medo do ridículo; eram inconsistentes e incoerentes, mas nunca davam conta isso; contradiziam-se continuamente, mas nunca admitiam que os contradissessem. Eles usavam connosco uma autoridade, que nós seriamos completamente incapazes de usar. Fortes dos seus princípios, que acreditavam ser indestrutíveis, reinavam com absoluto poder sobre nós. Ensurdeciam-nos com palavras tonitruantes; um diálogo não era possível, porque assim que suspeitavam que estavam errados, mandavam-nos calar; batiam os punhos na mesa, fazendo a sala tremer. Lembramo-nos desse gesto, mas não saberíamos imitá-lo. Podemos enfurecer-nos, uivar como lobos; mas no fundo dos nossos uivos de lobo há um soluço histérico, um balido rouco de cordeiro.

Portanto, não temos autoridade: não temos armas. A autoridade em nós seria uma hipocrisia e uma ficção. Estamos demasiado conscientes da nossa fraqueza, demasiado melancólicos e inseguros, demasiado conscientes das nossas inconsequências e incoerências, demasiado conscientes dos nossos defeitos: procurámos demasiado fundo dentro de nós e vimos em nós coisas demais. E como não temos autoridade, temos de inventar outro relacionamento.

Hoje que o diálogo se tornou possível entre pais e filhos - possível, embora sempre difícil, sempre cheio de preconceitos recíprocos, de timidez e inibições recíprocas - é necessário que nos revelemos, neste diálogo, tais como somos: imperfeitos; confiantes de que eles, os nossos filhos, não se pareçam connosco, que sejam mais fortes e melhores que nós. 

Como somos todos pressionados, de um modo ou de outro, pelo problema do dinheiro, a primeira pequena virtude que nos vem à cabeça para ensinar aos nossos filhos é a poupança. Damos-lhes um mealheiro, explicando como é bonito economizar dinheiro em vez de o gastar, de modo que, depois de meses, haja muito, uma boa quantia; explicando como é bonito resistir ao desejo de gastar, poder comprar, no final, algum objecto valioso. Lembramos ter recebido como presente, em nossa infância, um mealheiro igual; mas esquecemos que o dinheiro, e o gosto de preservá-lo, era na época de nossa infância menos horrível e sujo do que hoje: porque o dinheiro, quanto mais tempo passa, mais sujo fica. O mealheiro,  portanto, é o nosso primeiro erro: instalámos uma pequena virtude no nosso sistema educativo.

Aquele mealheiro de barro de aspecto inócuo em forma de pêra ou de maçã fica no quarto dos nossos filhos por meses e meses e eles habituam-se à presença dele; habituam-se ao prazer de introduzir dinheiro na ranhura dia a dia;  habituam-se ao dinheiro guardado ali dentro, que, secretamente e no escuro, cresce como uma semente no ventre da terra; afeiçoam-se ao dinheiro, a princípio com inocência, pois afeiçoamo-nos a todas as coisas que crescem graças ao nosso zelo, plantinhas ou bichinhos; e sempre sonhando com aquele objecto tão caro visto na montra de uma loja, e que será possível comprar, como lhe dissemos, com o dinheiro poupado. Quando finalmente o mealheiro é quebrado e o dinheiro gasto, os rapazes sentem-se sós e desiludidos: já não há dinheiro no quarto, guardado no ventre da maçã, e não existe já a maçã cor de rosa; em vez disso há um objecto cobiçado quando estava na montra, do qual nós  tínhamos realçado a importância e valor: mas que agora, na sala, parece cinzento e feioso, murcho depois de tanta espera e depois de tanto dinheiro. Os rapazes não culparão o dinheiro por este desapontamento, mas o próprio objecto: porque o dinheiro perdido preserva, na memória, todas as suas lisonjeiras promessas. Os rapazes vão pedir um novo mealheiro e dinheiro novo para guardar; e eles darão ao dinheiro os pensamentos e uma atenção que é negativa. Preferirão o dinheiro às coisas. Não é mau que eles tenham sofrido uma decepção; é mau que eles se sintam sozinhos sem a companhia do dinheiro.

Não devemos ensinar a poupar: devemos habituar a gastar. Devemos dar periodicamente às crianças um pouco de dinheiro, pequenas quantias sem importância, exortando-as a gastá-lo imediatamente e como quiserem, seguindo um capricho momentâneo: elas comprarão qualquer coisita, que esquecerão imediatamente, como esquecerão o dinheiro gasto tão rapidamente e sem pensar, e ao qual se não apegaram. Vendo nas mãos essas coisitas, que logo serão estragadas, os rapazes ficarão algo desapontados, mas esquecerão rapidamente tanto a decepção como as tais coisitas e o dinheiro; na verdade, eles associarão o dinheiro a algo momentâneo e estúpido; e pensarão que o dinheiro é estúpido, como é justo pensar na infância.

É correcto que as crianças vivam, nos primeiros anos da sua vida, ignorando o que é dinheiro. Às vezes isso é impossível, se formos muito pobres; e às vezes é difícil, porque somos muito ricos. No entanto, quando somos muito pobres, quando o dinheiro está intimamente ligado a uma situação de sobrevivência diária, a uma questão de vida ou morte, isso traduz-se imediatamente aos olhos de uma criança em comida, carvão ou roupas,  que ele não tem, na via para estragar seu espírito. Mas se somos assim assim, nem ricos nem pobres, não é difícil deixar um menino viver, na infância, sem saber o que é dinheiro e sem se importar com isso. E, no entanto, é necessário, não cedo demais e não tarde demais, desfazer essa ignorância: e, se tivermos dificuldades económicas, é necessário que os nossos filhos, não tão cedo e nem tão tarde, sejam informados disso; assim como é justo que em algum momento eles compartilhem connosco as nossas preocupações, as nossas razões para contentamento e os nossos projectos, e tudo o que diz respeito à vida familiar. E acostumando-os a considerar o dinheiro da família como algo que pertence a nós e a eles em igual medida, e não a nós mais do que a eles, ou ao contrário, também podemos convidá-los a ficar sóbrios, a prestar atenção ao dinheiro que gastam: e desta forma, o convite para poupar não é já respeito por uma pequena virtude, não é um convite abstracto respeitar algo que não merece respeito em si, como o dinheiro; mas é um lembrete para as crianças de que não é muito o dinheiro em casa, é um convite a sentir-se adultos e responsáveis ​​diante de algo que pertence a nós como a eles, algo que não é especialmente belo nem amável, mas sério, porque está ligado às nossas necessidades diárias. Mas não cedo demais nem tarde demais: e o segredo da educação está em adivinhar os tempos.

Ser sóbrio consigo mesmo e generoso com os outros: isso significa ter um relacionamento correcto com o dinheiro, ser livre face ao dinheiro. E não há dúvida que, nas famílias onde o dinheiro é ganho e prontamente gasto, onde ele flui como águas claras de nascente e, na prática, não existe como dinheiro, é menos difícil educar um menino para tal equilíbrio, para uma semelhante liberdade. As coisas tornam-se complicadas onde existe dinheiro e existe com muito peso, água estagnada e plúmbea que exala fermentos e cheiros. Rapidamente os rapazes sentem a presença na família desse dinheiro, poder oculto, que nunca é falado em termos claros, mas ao qual os pais aludem, conversando entre si, com nomes complicados e misteriosos, com uma fixidez de chumbo nos olhos, com uma prega amarga nos lábios; dinheiro que não é simplesmente colocado na gaveta da mesa do escritório, mas emerge não se sabe onde, e poderia a qualquer momento ser sugado para a terra, desaparecer sem remédio para sempre, engolindo a família e a casa. Em tais famílias, as crianças são continuamente admoestadas a gastar com parcimónia, todos os dias a mãe as convida a prestar atenção e poupar, dando-lhes algumas moedas para o autocarro; e há no olhar da mãe essa plúmbea preocupação, na sua testa aquela ruga profunda, que sempre aparece quando o dinheiro entra na discussão; existe o medo sombrio de que todo dinheiro se dissolva no nada, e que mesmo esses poucos centavos possam significar a primeira poeira de um colapso súbito e mortal. Os filhos de tais famílias muitas vezes vão à escola com roupas gastas e sapatos usados, e têm de suspirar por muito tempo, às vezes em vão, por uma bicicleta ou uma máquina fotográfica, objectos que alguns de seus companheiros certamente mais pobres já possuem há muito tempo. E quando lhes é dada a bicicleta que eles desejam, o presente é no entanto acompanhado pela recomendação severa de não estragar, de não emprestar a ninguém um objecto tão luxuoso, que custou tanto dinheiro. As chamadas de atenção para a poupança, em casa, são perenes e insistentes: há uma ordem para comprar livros escolares usados, cadernos dos mais baratos. Isto é em parte porque os ricos são frequentemente avarentos e porque se consideram pobres; mas sobretudo porque as mães, em famílias ricas, mais ou menos inconscientemente, têm medo das consequências do dinheiro e tentam proteger seus filhos moldando ao seu redor uma ficção de hábitos simples, até mesmo acostumando-os a pequenas privações. Mas não há erro pior do que fazer uma criança viver em tal contradição: o dinheiro fala em toda parte, na casa, na sua linguagem inconfundível: está presente nas porcelanas, nos móveis, em peças grandes de prata, está presente nas confortáveis ​​viagens, nos locais de magníficas férias, nas saudações do porteiro, nas cerimónias dos criados; está presente nos discursos dos pais, é a ruga na testa do pai, a plúmbea perplexidade do olhar materno; o dinheiro está em toda parte, intocável porque talvez assustadoramente frágil, é algo sobre o qual não é permitido brincar, um deus funerário que só pode ser tratado com um sussurro; e para honrar esse deus, a fim de não molestar a sua lutuosa imobilidade, é preciso usar o sobretudo do ano anterior que ficou apertado, estudar a lição em livros destroçados e esfarrapados, divertir-se com a bicicleta do camponês.

Se quisermos educar os nossos filhos, sendo ricos, com hábitos simples, deve ficar claro que todo o dinheiro economizado usando tais hábitos é gasto sem parcimónia por outras pessoas. Tais hábitos só têm sentido se não forem avareza ou medo, mas escolha livre, no meio da riqueza, da simplicidade. Um menino de família rica não aprende a sobriedade porque lhe fazem usar roupas velhas, ou porque lhe dão a comer ao lanche  maçãs verdes, ou porque é privado de uma bicicleta que há muito deseja: a sobriedade no meio da riqueza é pura ficção e as ficções são sempre moralmente deseducativas. Desta forma, ele só vai aprender a avareza e o medo do dinheiro. Privando-o de uma bicicleta que ele deseja e lha poderíamos comprar, só o frustraremos de uma coisa legítima para um menino, só tornaremos a sua infância menos feliz em nome de um princípio abstracto, sem justificação na realidade. E tacitamente estaremos a dizer diante dele que o dinheiro é melhor que uma bicicleta: ora, em vez disso, é necessário que ele saiba que uma bicicleta é sempre melhor que o dinheiro.

A verdadeira defesa contra a riqueza não é o medo da riqueza, a sua fragilidade e as consequências viciadas que ela pode trazer: a defesa real contra a riqueza é a indiferença face ao dinheiro. Para educar uma criança nesta indiferença, não há outra maneira senão dar-lhe dinheiro para gastar, quando há dinheiro: para que ela  aprenda a desfazer-se dele sem preocupação e sem arrependimento. Dir-me-ão que deste modo a criança  se acostuma a ter dinheiro para gastar, e já não poderá passar sem ele; se ela não for rica amanhã, como é que fará? Mas é mais fácil não ter dinheiro quando tivermos aprendido a gastá-lo, quando tivermos dado conta de como ele voa rapidamente das nossas mãos; é mais fácil prescindir do dinheiro quando o tivermos bem conhecido, do que quando lhe tivermos tributado na infância reverência e medo, tenhamos sentido a presença dele em nosso redor e não nos fora permitido abrir os olhos e vê-lo na cara.

Assim que nossos filhos começam a frequentar a escola, nós imediatamente lhes prometemos dinheiro como recompensa se eles estudarem bem. Isso é um erro. Assim, misturamos dinheiro, que é uma coisa sem nobreza, com uma coisa meritória e digna, que é o estudo e o prazer do conhecimento. O dinheiro que damos aos nossos filhos deve ser dado sem motivo; deveria ser dado com indiferença, para que aprendam a recebê-lo com indiferença; e deve ser dado não para que aprendam a amá-lo, mas para que aprendem a não o amar, a compreender o seu verdadeiro carácter e a sua impotência para satisfazer os desejos mais verdadeiros, que são os do espírito. Ao elevar o dinheiro à função de prémio, de ponto de chegada, a meta a ser alcançada, damos-lhe um lugar, uma importância, uma nobreza que não deve ter aos olhos dos nossos filhos. Afirmamos implicitamente o princípio - falso - de que o dinheiro é o culminar de um esforço e o seu último termo. Em vez disso, o dinheiro deve ser concebido como o salário do trabalho: não o seu termo final, mas o seu salário, que é o seu crédito legítimo: e é evidente que os trabalhos escolares dos rapazes não podem ter um salário. É um pequeno erro - mas é um erro - oferecer dinheiro às crianças em troca de pequenos serviços domésticos,  de pequenas tarefas. É um erro, porque não somos para os nossos filhos, dadores de trabalho: o dinheiro da família é tanto seu quanto nosso: esses pequenos serviços, essas pequenas tarefas devem ser sem compensação, uma colaboração voluntária à vida familiar. E, em geral, acredito que devemos ter muito cuidado em prometer e dar recompensas e punições. Porque a vida raramente terá recompensas e punições: geralmente os sacrifícios não têm recompensa, e muitas vezes as más acções não são punidas, pelo contrário, às vezes são lautamente recompensadas ​​com sucesso e dinheiro. Por isso, é melhor que nossos filhos saibam desde a infância que o bem não recebe recompensa, e o mal não recebe castigo; no entanto, devemos amar o bem e odiar o mal; e a isso não é possível dar nenhuma explicação lógica.

Ao desempenho académico de nossos filhos, damos geralmente uma importância completamente infundada. E isso também não é nada senão respeito pela pequena virtude do sucesso. Deveria ser suficiente que eles não ficassem muito atrás dos outros, que não tivessem falhado nos exames; mas não estamos satisfeitos com isso; queremos o sucesso deles, queremos que eles satisfaçam o nosso orgulho. Se eles vão mal na escola, ou simplesmente não são tão bons como pretendemos, logo levantamos a barreira do constante descontentamento entre eles e nós; tomamos com eles o tom rouco e choramingas de quem se queixa de uma ofensa. Então os nossos filhos, entediados, afastam-se de nós. Ou então acompanhamo-los nos seus protestos contra os mestres que não os entendem, mostramo-nos, tal como eles, vítimas de injustiça. E todos os dias lhes corrigimos os seus deveres, e até nos sentamos ao lado deles quando fazem os deveres de casa, estudamos com eles as lições. Na verdade, a escola deveria ser desde o começo, para um menino, a primeira batalha a enfrentar sozinho, sem nós; desde o início, deveria ficar claro que este é o seu campo de batalha, onde só podemos dar-lhe uma ajuda completamente casual e irrisória.    E se ele sofre lá injustiças ou é mal compreendido, é necessário deixá-lo entender que não há nada de estranho, porque na vida devemos esperar ser continuamente mal interpretados e mal compreendidos, e sermos vítimas de injustiça: e a única coisa que importa é nós mesmos não cometermos injustiças. Os sucessos ou fracassos de nossos filhos, nós compartilhamo-los com eles porque lhes queremos bem, mas da mesma maneira e em igual medida que eles partilham, à medida que se tornam grandes, os nossos sucessos ou fracassos, as nossas alegrias e preocupações. É falso que eles tenham o dever, diante de nós, de serem bons na escola e de darem o melhor de sua inteligência ao estudo. O seu dever perante nós é puramente que, visto que os iniciámos nos estudos, sigam em frente. Se o melhor da sua habilidade querem gastá-la não na escola, mas em outra coisa que os fascina, coleccionar coleópteros ou estudar a língua turca, é lá com eles e não temos o direito de os censurar, de nos mostrarmos ofendidos no nosso orgulho, frustrados da satisfação que não tivemos. Se o melhor de sua habilidade não parece quererem utilizá-la agora, e passam os dias à mesa mastigando uma caneta, nem mesmo nesse caso temos o direito de repreendê-los muito: quem sabe, talvez o que nos parece ocioso é na realidade, devaneio e reflexão, que dará frutos amanhã. Se o melhor de sua energia e habilidade parece estar a ser desperdiçado, com eles deitados no fundo de um sofá a ler romances estúpidos, ou lançados num campo a jogar futebol, mais uma vez não podemos saber se é realmente um desperdício de energia e engenho, ou se mesmo isso, amanhã, de alguma forma que agora ignoramos, dará frutos. Porque as possibilidades do espírito são infinitas. Mas não devemos permitir que nós próprios, os pais, sejamos tomados pelo pânico do fracasso. As nossas repreensões devem ser como rajadas de vento ou uma tempestade: violentas, mas imediatamente esquecidas; nada que obscureça a natureza das nossas relações com os nossos filhos, poluir a sua limpidez e a paz. Aos nossos filhos, lá estamos para os  consolar, se ficaram doridos de um fracasso; lá estamos para lhes dar coragem, se um fracasso os tiver mortificado. Também estamos lá para fazê-los abaixar a crista, se um sucesso os deixar soberbos. Estamos lá para reduzir a escola ao seu âmbito que é humilde e reduzido; nada que possa hipotecar o futuro; uma simples oferta de instrumentos, entre os quais talvez seja possível escolher um para dele se servirem amanhã.

O que devemos desejar na educação, do fundo do peito, é que em nossos filhos o amor pela vida nunca falhe. Pode assumir diferentes formas e, às vezes, um rapaz abúlico, solitário e tímido não perdeu o amor pela vida, nem está oprimido pelo medo de viver, mas simplesmente em estado de espectativa, empenhado em preparar-se para a sua vocação. E o que  é a vocação de um ser humano, senão a mais alta expressão de seu amor pela vida? Devemos esperar, então, ao lado dele, que surja a sua vocação e tome forma. A sua atitude pode assemelhar-se à da toupeira ou da lagartixa, que permanece imóvel, fingindo-se morta: mas na realidade ela cheira e espia o  percurso do insecto, sobre o qual ela se deita com um salto. Junto dele, mas em silêncio e um pouco distantes, devemos esperar pelo despertar do seu espírito. Não devemos pretender nada: não devemos perguntar ou esperar que ele seja um génio, um artista, um herói ou um santo; ainda assim, devemos estar dispostos a fazer qualquer coisa; a nossa expectativa e a nossa paciência devem conter a possibilidade do mais elevado e do mais modesto destino.

Uma vocação, uma paixão ardente e exclusiva por algo que não tem nada a ver com dinheiro, a consciência de ser capaz de fazer algo melhor do que outros, e amar essa coisa acima de tudo, é a única possibilidade para um menino rico, de não ser de todo condicionado pelo dinheiro, de ser livre diante do dinheiro: de não sentir, entre os outros, nem o orgulho da riqueza nem a sua vergonha. Ele nem notará as roupas que veste, os costumes que o rodeiam e amanhã será capaz de qualquer privação, porque a única fome e sede será sua própria paixão, que terá devorado tudo o que é fútil e provisório, ter-se-á despojado de qualquer hábito ou atitude contraídos na infância, e reinará sozinho sobre o seu espírito. Uma vocação é a única verdadeira saúde e riqueza do homem.

Que possibilidades temos de despertar e estimular o nascimento e desenvolvimento de uma vocação nos nossos filhos? Nós não temos muitas: e todavia ainda temos talvez algumas. O nascimento e desenvolvimento de uma vocação requer espaço - espaço e silêncio - o livre silêncio do espaço. A relação entre nós e os nossos filhos deve ser uma troca viva de pensamentos e sentimentos e, no entanto, também deve incluir áreas profundas de silêncio; deve ser um relacionamento íntimo e, no entanto, não se misturar violentamente com a sua intimidade; deve ser o equilíbrio certo entre o silêncio e as palavras. Devemos ser importantes para nossos filhos, e todavia não demasiado importantes: devemos agradar-lhes um pouco, e todavia não lhes agradar demais: para que não lhes venha à cabeça tornarem-se idênticos a nós, copiarem o trabalho que fazemos, procurarem, nos companheiros que escolherem para a vida, a nossa imagem. Devemos ter, com eles, numa relação de amizade: e, no entanto, não devemos ser demasiado amigos deles, para que não se lhes torne difícil terem amigos de verdade, a quem possam dizer coisas que nos ocultam. A sua procura por amigos, a sua vida amorosa, a sua vida religiosa, a sua procura de uma vocação, é necessário que sejam rodeadas de silêncio e sombra, que sejam feitas sem a nossa intervenção. Dir-me-ão que assim a nossa intimidade com os nossos filhos é reduzida a bem pouco. Mas nas nossas relações com eles, tudo isto deve ser contido em grandes capítulos, e a vida religiosa, a vida da inteligência, a vida afectiva e a apreciação dos seres humanos; devemos ser, para eles, um simples ponto de partida, oferecendo-lhes o trampolim de onde fazem o salto. E devemos estar lá para um socorro, ajudar, se tal socorro for necessário; eles devem saber que não nos pertencem, mas nós pertencemos a eles, sempre disponíveis, presentes no quarto vizinho, prontos para responder, como sabemos, a todas as questões possíveis, a todos os pedidos.

E se nós mesmos temos uma vocação, se não a traímos, se continuamos com o passar dos anos a amá-la, a servi-la com paixão, podemos manter longe de nossos corações, no amor que damos aos nossos filhos, o sentido de propriedade. Se, ao contrário, não temos uma vocação, ou se a abandonámos e a traímos, devido ao cinismo ou por medo de viver, ou a um amor paternal mal compreendido, ou por alguma pequena virtude que se instalou em nós, então agarramo-nos aos nossos filhos como um náufrago ao tronco da árvore, pretendemos  que eles nos devolvam tudo o que lhes havíamos dado, que sejam absolutamente e sem escapatória como nós queremos, que obtenham da vida tudo o que nos faltou; acabamos por lhes pedir tudo o que só a nossa própria vocação nos pode dar: queremos que estejam em todo o nosso trabalho, como se, para os ter uma vez procriados, pudéssemos continuar a proclamá-lo ao longo de toda a nossa vida. Queremos que eles sejam em tudo a nossa criação, como se, tendo-os procriado uma vez, pudéssemos procriá-los ao longo da vida inteira. Queremos que eles sejam em tudo a nossa criação. Como se se tratasse não de seres humanos mas sim de obra do espírito.  Mas se nós mesmos tivermos uma vocação, se não a renegámos e a traímos, então podemos deixá-los germinar pacatamente fora de nós, cercados pela sombra e pelo espaço que requer o gérmen de uma vocação, o gérmen de um ser. Esta é talvez a única possibilidade real que temos de conseguir dar-lhes qualquer ajuda na procura de uma vocação, e ter uma vocação nós mesmos, conhecê-la, amá-la e servi-la com paixão: porque o amor pela vida gera amor pela vida.