14-1-2013

 

NOTÍCIAS RECÔNDITAS

DO MODO DE PROCEDER

A

INQUISIÇÃO DE PORTUGAL

COM OS SEUS PRESOS

 

INFORMAÇÃO

que ao Pontífice Clemente X deu o P. António Vieira:

A qual o dito Papa lhe mandou fazer, estando ele em Roma,

na ocasião da causa dos Cristãos novos com o Santo Ofício

para a mudança dos seus estilos de processar;

em que por esse motivo esteve suspensa a Inquisição

por sete anos, desde 1674 até 1681. Ao que se segue uma

Carta impugnatória dirigida ao Padre Vieira, sobre o mesmo objecto;

e a eloquente resposta deste.

 

Documentos curiosíssimos, e nunca publicados até agora.

 

LISBOA: Na Imprensa Nacional. Ano 1821.

Com licença da Comissão de Censura.

Vende-se na Loja de Jorge Rei, mercador de Livros aos Mártires N.° 19.   

  

 

 

Caso n.º 1  N R 63 – Maria da Conceição (ou de Sequeira)   

Pr. n.º 1369 E 03/01/1654-18/04/1660  A d F de 18-4-1660   

irmãs:  

Joana Baptista – Pr. n.º 10095 - E;   

Maria Juliana – Pr. n.º 9043 - E    

 

63. Maria da Conceição, natural da Vila de Estremoz, filha de Manoel Soares Pereira, que ainda hoje vive na Cidade de Lisboa em casa de um irmão seu, que chamam Álvaro Pereira. Foi presa esta, e duas irmãs suas, todas três donzelas bem reputadas; e saíram no dito Auto livres, abjurando de vehementi. Esta Maria da Conceição, tendo já quase vencido o tormento do potro, (assim o declarava a Sentença) confessou. Tiraram-lhe os cordéis; levantou-se, vestiu-se, tomaram-lhe a confissão, fê-la legalmente; e mandaram-na para o cárcere. Curada daqueles rigorosos tractos, estando para isso, foi levada à Mesa, para diante de duas testemunhas costumadas, ratificar aquela confissão. Respondeu que tudo o que havia confessado era falso; porque ela era, e fora sempre Cristã; e só por força do tormento, vendo-se nele morrer, confessou tais falsidades. Mandaram-na para o cárcere; e logo outra vez pôr a tormento: no fim dele, tornou a confessar e no mesmo potro lhe tomaram a confissão; a qual feita, voltou para o cárcere: e curada tornou à Mesa para ratificar a primeira, e segunda confissão diante de duas testemunhas. Tornou a dizer o mesmo; e que se desenganassem, porque se cem vezes a levassem a tormento, havia de fazer o mesmo até morrer, ou Nosso Senhor Jesus Cristo lhe dar valor para o levar até ao fim; porque ainda que confessasse por sua miséria e fraqueza no tormento, fora dele não havia de ratificar. Foi terceira vez ao tormento; e o levou até ao fim constante: assim se publicou na Sentença; e por este crime se não ratificar, o que o rigor do tormento lhe fez confessar duas vezes, e pelo levar até ao fim terceira vez, foi condenada em açoites pelas ruas públicas, com dez anos de degredo para a Ilha do Príncipe; e com estas penas saiu no Auto; e suas duas irmãs abjurando de vehementi.

Para darem o tal tormento às donzelas, e mais mulheres, as mandam despir; e vestidas em umas ceroulas de linho, as põem no potro com pouca honestidade, e decência. E quantas aqui, em razão do pejo, e por não serem indecentemente tratadas, confessam o que não fizeram! Deus é boa testemunha.

Uma donzela, açoitada pelas ruas públicas! e dez anos de degredo para a Ilha do Príncipe! e três vezes posta no potro ! No mesmo Auto saiu reconciliado André Franco (Pr. n.º 9736 E), tendeiro de Vila Viçosa; que ouvindo ler a Sentença da tal Maria da Conceição, disse que era rigorosa. Logo o Padrinho que o acompanhava, e ouviu, foi dar parte na Mesa e nela o reprenderam com aspereza, dizendo-lhe que por piedade, o não metiam outra vez no cárcere, pelo atrevimento de dizer aquela palavra contra a Sentença.

Até os discursos aqui se cativam, e as línguas!

 

64. Mas já que referimos o caso, contemos também a prisão das três irmãs, como a repetiu seu pai que já é morto; e teve a prisão notáveis circunstâncias.  Morava o dito Manoel Soares Pereira em Évora; tinha quatro filhas, estas três, e outra mais moça que todas. Entraram três familiares, e vendo quatro irmãs, perguntaram como se chamavam? E dizendo a mais velha, que Joana Baptista, a levaram presa, e deixaram as outras três. Dali a quinze dias, ou vinte, tornaram os familiares; e na presença do pai, sem lhe perguntarem pelos nomes, perguntaram qual era a mais velha; e qual a que se seguia? E deixando a mais moça, levaram as duas mais velhas, que eram a dita Maria da Conceição, e a outra Maria Juliana. Esta foi a forma da prisão; e como o discurso é livre, presumiu o pai que as testemunhas, que juraram contra suas filhas, as conheciam tão mal, que só sabiam o nome à mais velha Joana Baptista; nem sabiam ser quatro; e entendendo eram três, jurariam contra elas, dizendo Joana Baptista, e suas duas irmãs; e supunha ele, que assim iria o mandado; e que os familiares achando quatro, levaram a Joana Baptista, que vinha nomeada, em que não havia duvida, para dar conta na Mesa como não levaram suas duas irmãs, por serem três: que determinassem quais eram as duas. E também discursava o pai, como a quem tanto doía: que aqueles quinze, ou vinte dias, se gastariam em apurar com as testemunhas, quais eram as duas irmãs; as quais testemunhas, vendo-se a risco de as apanharem na falsidade, diriam que eram as mais velhas. E assim as foram prender sem nomes, só perguntando pelas duas mais velhas, deixando a mais moça, que escapou por não saberem as testemunhas que eram quatro; que se o souberam tanto lhes custava dizer três, como quatro. Isto era presunção do pai; e assim, se não afirma por certo mas dos processos das três irmãs, e das que juraram contra elas, constará se é assim; e se o é, deve fazer-se reflexo, como é crível que era tal caso se declarassem três mulheres recolhidas, e muito honestas com quem as conhecia tão mal, que nem os nomes lhes sabiam, nem quantas eram? E para as prender, bastam estas testemunhas; e para se livrarem, o que se viu na Sentença desta desgraçada Maria da Conceição.  Tudo o referido constará do processo e Sentença, que se leu no Auto das Fé; e assim se achará.     

 

Caso n.º 2  N R 67 – Manuel Rodrigues da Costa   

Pr. n.º 9948 L - 11/11/1658-27/6/1672  

A d F de 21-6-1671   

 

67. (…) Manoel Rodrigues da Costa, Fidalgo filhado nos livros d’El-Rei, Secretário do Tribunal da Junta dos três Estados; um dos mais autorizados homens, e ricos do Reino, e dos que mais serviços fizera, saiu em corpo com uma vela na mão, como os mais vis; posto em uma padiola aos ombros de dois homens de ganhar, por ser gotoso, e não poder ir por seu pé.   

 

Caso n.º 3  N R 109 – Jorge Fernandes Mesas   

Pr. n.º 326 E - 07/02/1656-18/04/1660  

A d F de 18-4-1660, Relaxado    

 

109. Jorge Fernandes Mesa, natural, e morador em Vila-Viçosa,  foi preso em Évora, e logo era entrando confessou, parecendo-lhe que se fazia Auto, com ânimo de sair logo nele, e se livrar daquelas horrendas prisões. Foi dando em todos os que sabia os nomes, assim da sua terra, como de fora dela, e se entende que deu em mais de quinhentas pessoas.  Tinha uma filha, que de cinco anos havia recolhido no Convento da Esperança da mesma Vila, a qual criaram no dito Convento umas Religiosas, Cristãs velhas, e sempre a tiveram em sua companhia, e as poucas vezes que seu pai lhe falava, era em presença das ditas Religiosas. Cresceu no Convento, e feita a idade professou, e viveu sempre no Convento com opinião de virtude. Também nesta filha deu o pai, e deu em sua mulher, e em todos os seus filhos, e em seus irmãos, e em todos os seus parentes: e com tudo, nada bastou. Foi relaxado com sentença de diminuto; e sendo o tempo tão largo para purgar a diminuição no tormento, não purgou, nem bastou dar em toda a sua geração, e por fim de contas morreu queimado.  Desenganado este miserável de que não tinha remédio, revogou todas as confissões que tinha feito, declarando serem todas falsas porque ele era Cristão, que por temor da morte, e por se livrar daqueles horrendos cárceres, havia imposto a si, e a seus próximos aqueles falsos testemunhos. E assim, foi a sentença de diminuto revogante.    

 

Caso n.º 4  N R 110 – Maria Mendes, de 70 anos, natural de Fronteira, moradora em Elvas, viúva de Gaspar Gomes Jacinto, sapateiro --   

Pr. n.º 3963 E 15/09/1654-06/05/1657  

A d F de 6-5-1657, Relaxada    

 

110. Maria Mendes, natural de Fronteira, moradora em Elvas, viúva de Gaspar Gomes Jacinto, sapateiro de obra grossa, foi presa: confessou logo. Deu em todos quantos filhos tinha, netos, e parentes, e em todos quantos conhecia, e lhes sabia os nomes, que se entendeu dela, que havia dado em mais de seiscentas pessoas. Ainda assim foi relaxada a morrer diminuta: e revogou tudo, declarando serem tudo falsidades, que havia posto sobre si, e sobre seus próximos, por remir a vida. Estando esta mulher no Auto já para morrer, uma filha sua, que saiu no mesmo Auto, em altas vozes lhe quis lembrar alguns parentes, para que ali no Auto fosse dar neles, e não morresse, parecendo-lhe, que era diminuta por não dar nos parentes. Respondeu-lhe a mãe: filha, nada disso está por fazer: não me ficou Castela, nem Portugal: tudo corri, e nada me valeu.     

 

Caso n.º 5  N R 114 – Jácome de Melo Pereira, de Elvas   

Pr. n.º 7346 E 21/05/1665-16/10/1667   

A d F de 16-10-1667, relaxado    

 

114. Jácome de Melo Pereira, natural de Lisboa, Fidalgo qualificado, e Cavaleiro do Habito de Cristo, morador em Elvas; que foi muitos anos Capitão de cavalos, e serviu ao Reino com grande valor, e crédito, tinha uma parte de Nação ele, sua mulher, e dois filhos; e por encobrir esta sua falta, quando havia prisões por mandado da Inquisição, eram os que mais zelosos se mostravam contra os presos, e contra os que saiam penitenciados. Com este ódio, e com este achaque comum de dar em todos, juraram contra o dito Jácome de Melo; e contra sua mulher e dois filhos.  A mulher, e os filhos, vendo- se naquela horrenda prisão, como eram mimosos, mal costumados, e que nunca imaginaram tal fadário, com ignorância, e cegueira, dirigidos de más, e mal intencionadas companhias, confessaram todos três, e deram no sobredito Jácome de Melo, e saíram logo no Auto seguinte.  Foi condenado Jácome de Melo a morrer queimado por negativo morreu com  grandes demonstrações de Cristandade; tratando só da sua salvação até o ultimo ponto que o afogou o garrote. Note-se, que em tendo a carga do testemunho da mulher, e filhos não esperaram mais dois, ou três anos, que se começasse o livramento; mas logo abreviaram.     

 

Caso n.º 6  N R 115 – Afonso Nobre, de Vila Viçosa   

Pr. n.º 4385, de Coimbra 23/03/1658-26/10/1664  

A d F de 26-10-1664, relaxado    

Filho: António Nobre de Matos – Proc. n.º 7600, de Coimbra 

 

115. Afonso Nobre, natural, e morador em Vila Viçosa, e da principal Nobreza daquela Vila, onde serviu muitas vezes de Vereador, e Provedor da Misericórdia, cargos que se não dão em Portugal senão aos mais nobres, e limpos de sangue, foi preso, e levado aos cárceres de Coimbra, e com fama de que tinha parte de Cristão novo. Dali a algum tempo foram presos uma filha e um filho seu de pouca idade. Estes, ou mal aconselhados dos companheiros, ou cegos do temor, confusão, e inocência; deram em seu pai, que saiu a morrer negativo.  No Auto, quando passava por junto ao filho, lhe pediu este perdão, e a bênção. Respondeu: perdão vos dou de me pordes neste estado, para que Deus me perdoe: bênção não; porque não é meu filho quem confessou o que não fez, e sendo Cristão Católico, disse que era Judeu. Ide embora; Deus vos perdoe.  E foi a morrer este homem com tais colóquios, e actos de piedade, que a todos causou admiração. Destes casos se podiam repetir inumeráveis, que por serem semelhantes se deixam, e por evitar prolixidades.     

 

Caso n..º7  N R 118 – João de Sequeira, de Torres Novas   

Pr. n.º 5427 – L - 03/03/1634 -11/10/1637   

A d F 11-10-1637, Relaxado     

 

António de Sequeira, irmão do anterior,  

 Pr. n.º 2416 L -- 30/09/1637 - 24/03/1642  

A d F de 24-3-1642, Relaxado     

 

118. João de Sequeira, e um seu irmão, que do processo constará como se chama, naturais de Torres-Novas, eram filhos de uma lavadeira, gente muito humilde, e de baixo nascimento. Foram ambos presos em Lisboa haverá 33 anos pouco mais, ou menos, e para mais certeza, sucedeu este caso no mesmo tempo em que foi preso João Travassos da Costa, também natural de Torres-Novas, que foi muitos anos Vigário Geral do Arcebispado de Lisboa.  Este João de Sequeira, e seu irmão, constantemente defenderam sua inocência; porém não lhes valeu, porque como eram gente vil, todos se temiam deles, e assim, todos os que confessavam iam descarregando neles; e se apuraram o caso, havia de achar-se, que deram nestes dois irmãos pessoas que nunca falaram com eles, e que os não haviam de querer para seus criados. E achá-los-iam capazes para se declararem com eles em matéria tão grave, da qual depende a alma, vida, honra, e fazenda? Será verdade, porém não é crível e se tudo se julga por presunções, estas estavam por João de Sequeira: mas nada lhe valeu, suposto que bem o requeria.     

 

Caso n.º 8  N R 119 - João Travassos da Costa, de Alqueidão – Torres Novas   

Pr. n.º 9781 L- 28/11/1622-24/1/1637  

A d F de 3-8-1637    

 

119. O Vigário Geral João Travassos da Costa, havia ido muitos anos, como Vigário Geral, despachar ao Santo Ofício; e como sabia as confissões dos processos, e dificuldades do livramento, tendo por mais certo morrer, que livrar; com o aperto da prisão abafou de maneira, que logo fez Confissão e deu em todo o Mundo. Tratando de sair para fora, entre os mais, deu também em João de Sequeira, e em seu irmão (parece que pelas companhias soube, que o tal Vigário geral estava preso confitente, e que havia dado nele).   Então dizia João de Sequeira na Mesa: como crêem VV. Senhorias, que o Vigário Geral se havia de declarar com João de Sequeira, filho de uma lavadeira; quando não o queria para seu lacaio de mula? e assim, que ele Vigário Geral com outros, juraram contra João de Sequeira, cuidando que a ele lhe tem feito mal: mas eu lhe perdoo, para que Deus me perdoe os meus pecados, que são muitos; mas este não confessarei; porque o  não fiz; e se eu o fizera, que perdia em o confessar? que honra, e que fazenda perdia nisso? Nosso Senhor Jesus Cristo me deu esta ocasião para me salvar: não a quero perder.  E assim, foram ele, e o irmão a morrer negativos; continuando até ao fim em demonstrações de verdadeiros Cristãos.

Considere-se aqui, como é crível que o Vigário Geral se declarasse com tal sujeito!  Saiu o Vigário Geral confesso penitenciado: viveu nesta Cidade miseravelmente. Houve fama, que na hora da morte, por descargo de sua consciência, mandara declarar, que tudo quanto havia confessado era falso, mas disto se não fez caso. Lá constará dos autos o que se passou neste caso de João, que é muito para ver. Veja-se o processo do Vigário Geral, e o de João de Sequeira, e confira-se o juramento do Vigário Geral com o do mesmo João de Sequeira, e se achará que tinha oito anos quando o Vigário Geral jura que se declarou com ele. E considere- se, que figura seria um filho de uma lavadeira, sendo de oito anos, para com ele se declarar um Vigário Geral? Que homens estes para se deixarem matar, havendo cometido o crime? Note-se, que o irmão era um menino; e esperaram tivesse idade para sair a morrer, e os contra quem ele jurou, perecendo. Vejam se há danos mais irreparáveis!     

 

Caso n.º 9  N R 122 – Baptista Fangueiro Cabral   

Pr. n.º 4741 E 09/05/1657-12/11/1662  

A d F 12-11-1662 e 16-10-1667     

 

122. Bautista Fagueiro Cabral, natural de Elvas, e da mais qualificada nobreza daquela Cidade, foi preso por se dizer que tinha oitavo de Cristão-novo, ou ainda menos (e quem anda medindo estes graus, senão a opinião, ou, o mais certo, a malévola inclinação?). Esteve anos preso: correu seu livramento: foi sentenciado à morte, e veio a confessar de mãos atadas. E como estas não purgam o tormento de diminuições, são obrigados a acertar com todos os que têm sobre si (devia ter muitos este miserável). Foi correndo os ferrolhos, casa por casa, e dando em tudo para remir a vida, e como o primeiro que fazem os que chegam a tal estado, é darem em todos os parentes; entre os mais se lembrou de uma mulata; chegada à obrigação de sua casa, com o nome de filha bastarda de um seu tio, por aquela parte por onde dizem que tinha a desaventurada peste de Cristão novo. Saiu no Auto, degredado para as galés, como saem todos os que confessam de mãos atadas, e foi para elas cumprir o seu degredo.  

 

123. Prenderam a mulata pelo juramento referido; e não tratou esta mulher de outro livramento, mais que alegar era Cristã velha; e parece provou o que alegou, julgando- se por tal. E tornou segunda vez para os cárceres o dito Bautista Fagueiro; e depois dele preso, deitaram fora a mulata, sem sair em Auto, julgando-se Cristã velha.   

 

124. Esta segunda vez, esteve preso o dito Bautista Fagueiro muito tempo; e no fim, saiu encarochado, julgado por falsário, e condenado a açoites pelas ruas públicas, e trazido segunda vez às galés com 8 anos de degredo, que cumpriu nelas com tanto aperto, que porque o Cabo dos Forçados se compadecia dele, (o Cabo se chama João Fialho, que poderá dizer, se é assim), por ser homem nobre, e conhecido, foi repreendido asperamente do Santo Ofício, porque o não mandava andar em todo o serviço como os forçados. É o serviço destes forçados, por não haverem galés, andarem dois, presos com uma cadeia, pelos lugares públicos da Cidade de Lisboa, acarretando água às costas, e outros materiais para casa do Provedor dos Armazéns, e outros Oficiais, e para a Ribeira das Naus. Neste serviço andava o miserável Fagueiro, preso em cadeia com um mouro, ou com um negro, ou com um vil ladrão, que desta gente consta a chusma dos forçados; e com este rigoroso castigo são tratados os que juram contra Cristãos velhos.  Note-se, que este Bautista Fagueiro falou nesta mulher de mãos atadas; e como está dito, não tinha tormento que purgar a diminuição. Suponhamos, que esta mulher tinha outra testemunha, e que a deram de junta com este Bautista Fagueiro: se não dera nela, havia de sair a morrer diminuto; e porque deu nela, saiu falsário encarochado açoitado, e com cinco anos de galés, e com o tratamento referido.      

 

Caso n.º 10  N R 136 – Fr. Diogo da Assunção   

Pr. n.º 104 L 25/10/1599 - 03/08/1603  

A d F de 3-8-1603, Relaxado       

 

136. No Convento de Santo António dos Capuchos de Lisboa, no Campo do Curral, houve um Religioso Letrado, natural da mesma Cidade, de uma família nobre, cujo apelido era Travassos da Costa, e pela tradição se diz, ser de geração de um Escrivão, ou Secretário da Mesa do Paço. Era ele Cristão velho; enfim Capucho, que tiram inquirições apuradas. Este desaventurado prevaricou, e publicamente no Convento começou a publicar seu erro, e persuadir a sua cegueira. Não puderam os Frades reduzi-lo, e assim obrigados o entregaram ao Santo Ofício, que também o não pôde reduzir, e saiu a queimar pertinaz. E como este sucesso foi depois do Regimento, que os Cristãos velhos não possam ser tidos por Judeus, lhe puseram na Sentença que tinha parte de Cristão novo.   

 

137. Os parentes, como isto era labéu que se lhes punha na geração se opuseram à causa, dizendo: estava bem queimado, pois fora claramente Judeu; mas que o dizer a Sentença, que tinha parte de Nação, era infamá-los a todos; e assim lhes tocava defendê-lo, e apurar sua limpeza, e qualidade. Isto se abafou em forma, que a geração ficou limpa no sangue, apurada, e assim permaneceu em Lisboa.  Veja-se o processo deste Frade, e os dos requerimentos dos parentes, e achar-se-á ser puro Cristão velho. E se este foi Judeu tão claramente, porque o não seria a mulata em que deu o Fagueiro? Preservou-a o Regimento?     

 

Caso n.º 11  N R 138 – Francisco de Azevedo Cabras, de Elvas   

Pr n.º 2314 E 12/05/1672-15/12/1673  

A d F de 31-5-1665 e 2.º na sala em 15-10-1673     

 

138. Francisco de Azevedo Cabras, natural de Elvas, filho de André Martins Cabras, da principal nobreza daquela Cidade, nas prisões que se faziam pelo Santo Oficio, era grande perseguidor dos Cristãos novos. Com esta causa, e com haver fama na terra, que sua mãe, já morta, tinha parte de Nação por um avô do Algarve que os outros três eram naturais da mesma Cidade de Elvas conhecidamente Cristãos velhos; como também o eram os quatro avós do Pai, André Martins Cabras, sem nenhuma fama, nem dúvida em contrário; de sorte, que este Francisco de Azevedo tinha sete bisavós naturais de Elvas, conhecidamente Cristãos velhos, e um por parte de sua mãe do Algarve; e deste nasceu a fama. Juraram contra ele, e contra Dona Brites de Sequeira, irmã inteira de sua mãe: foram presos, e o dito Francisco de Azevedo logo em entrando confessou, e saiu no Auto reconciliado com Sambenito. O pai André Martins, vendo-se afrontado, o fez ir para Castela ainda no tempo da guerra: donde veio feito Frade de S. Francisco depois das pazes. E o tornaram a prender, e lá está nos cárceres de Évora.   

 

139. Depois de feito o Auto público em Évora em 26 de Novembro de 1673, fizeram outro particular na sala da Inquisição em que deitaram somente o Francisco de Azevedo Cabras, e com tal segredo, que não chamaram para este Auto mais que alguns Religiosos, e Eclesiásticos, que não passaram de doze pessoas as quais deram juramento de não dizerem fora o que ali se lesse no Auto. Leram a Sentença, a qual em substância vinha a dizer, que por confessar o Judaísmo, sendo Cristão velho, e por impor o mesmo crime falsamente a muitos, o privavam das Ordens, e o condenavam em dez anos de degredo para a Ilha do Príncipe. E com efeito está na cadeia pública para ir cumprir o degredo.  Pondere-se bem este caso que é evidente confirmação de tudo o que neste papel passa, e se oferece. Tais como estas são as Confissões, que se fazem, e admitem no Tribunal do Santo Oficio. E quantos, pelo testemunho de Francisco  de Azevedo estariam presos, e apertados, e sentenciados! Como se refazem estes danos?   

 

140. A tia Dona Brites de Sequeira, alegou que era Cristã velha (os três avós naturais de Elvas provada, e notoriamente eram Cristãos velhos). E parece, que também prova o mesmo por parte do Algarve. Em fim saiu julgada Cristã velha; e saíram encarochadas, açoitadas, e degradadas para as galés as testemunhas que juraram contra ela. Tudo constará do seu processo; e se Dona Brites fora Cristã velha, que remédio? Aqui se vêem as mesmas testemunhas confirmadas pelo sobrinho, e convencidas de falsas pelo tio.   

 

141. A segunda prisão de Francisco de Azevedo se presume foi por haver jurado também contra o tio. A sua sentença mostrará qual é o crime desta segunda prisão: que pode ser por confessar ser Judeu, sendo Cristão velho, que é contra o Regimento; ou por jurar contra a tia, que provou era Cristã velha; e sendo-o ela, também Francisco de Azevedo o é por parte do pai André Martins Cabras, em que não há dúvida alguma. E eis-aqui um, Cristão velho, judeu e falsário. E pode ser, que se Francisco de Azevedo não viera de Castela feito frade, que saísse no Auto encarochado, açoitado, e degredado para as galés por falsário, e que o puseram com parte de Cristão novo.     

 

Caso n.º 12  N R 142 e 143 - Manuel Lopes Sotil ou Subtil, de Elvas, não aparece o processo-foi ao auto da fé em Évora de 11-5-1664 sob o n.º 34;  o 2.º processo é o n.º 4732, da Inq. de Lisboa, foi ao auto da fé de 11-3-1668 (a fls. 44, tem certidão do processo de Évora)

filhos:  André Lopes Sotil – Pr. n. º 10441 E e 10441A E  

Maria Nunes Sotil – Pr. n.º 1975 E  

Gaspar Coelho – Pr n.º 4575 E  

esposa, mãe dos anteriores: Maria Coelha, cristã velha – Pr. n.º 7150 E - repreendida em Mesa em 11-1-1667, por falsas declarações  

cunhado: Lourenço Coelho Delgado, cristão velho, irmão da anterior – Pr. n.º 445 E, libertado, sem pena      

 

142. Manoel Lopes Sotil, natural de Elvas, que actualmente está ainda nas galés, foi preso em Évora. Saiu no Auto reconciliado, e degredado; porque parece confessou de sentença de morte, ou já de mãos atadas. Isto se não alcançou com certeza; porque o estar nas galés pode ser pena acrescentada pelo caso que estamos referindo. Veja-se o seu processo donde tudo pode constar.  Este homem era casado com sua mulher, Cristã velha, a qual tinha um irmão cujo nome constará dos processos. Quando confessou o Sotil, deu em sua mulher, e nos filhos, e no cunhado; e logo levado para a cadeia pública de Vila-Viçosa, avisou à mulher, que ela, seus filhos, e irmão se fossem acusar; porque ele naqueles últimos apertos (parece que de mãos atadas) havia dado neles: que se fossem remediar; que assim chamam às acusações.   

 

143. A mulher se resolveu logo a fazê-lo; e dizendo ao irmão (advirta-se que eram irmãos inteiros) fosse também com ela para também se acusar, respondeu ele que não queria, porque eram Cristãos velhos: que fossem os seus filhos dela, os quais pela parte de seu pai tinham a sua parte. A mulher, sem embargo destas advertências do irmão, foi; e se presume que ela, e os filhos, com efeito se acusaram. O irmão vendo isto, se foi a Évora, estando lá a irmã, com instrumentos de como eram Cristãos velhos, e os apresentou no Santo Ofício; e por estas causas foi de novo apertado o dito Manoel Lopes Sotil, e os filhos da mulher; e não se tratou mais dele depois que o irmão chegou com o tal instrumento.  Dos processos constará a verdade, que nisto passou; e como todos são vivos, bem se pode saber deles o que houve em todo este caso. Eis aqui Cristã velha acusada!     

 

Aditamento: No primeiro processo, Manuel Lopes Subtil foi condenado a 5 anos de degredo para o Brasil. Preso de novo por perjúrio (acusar de judaísmo sua mulher que era cristã velha), foi condenado a 10 anos de degredo para as galés (tinha já mais de 65 anos).  Também os três filhos foram presos duas vezes por idênticos motivos. Ao André, condenado a degredo para o Brasil, foi-lhe perdoada a pena, por ir casar. À filha, com idêntica condenação, foi-lhe comutada a pena para degredo para o Algarve; e foi depois presa terceira vez por não cumprir a pena de degredo. O filho Gaspar partiu mesmo para o degredo.

 

Caso n.º 13  N R – 144 – Francisco Lopes Margalho, natural de Elvas   

Pr. n.º 7829 E - 31/05/1665-15/06/1665  

A d F de 31-5-1665   

 

144. Francisco Lopes Margalho, (este Francisco Lopes Margalho é irmão inteiro de Alvariannes Margalho, pai de Manoel Lopes Terra), natural de Elvas, tido, e havido por Cristão velho sem contradição alguma, presa sua mulher, se resolveu ir acusar-se.   Tinha este um sobrinho, filho de seu irmão, o qual se chama Manoel Lopes Terra. Foi o filho dizer- lhe que ele se ia acusar, que fosse também ele. O sobrinho respondeu: que não queria, porque eram Cristãos velhos. O tio ainda assim foi; e com efeito se acusou. O sobrinho foi; e mostrou ser Cristão velho. Vejam-se estes processos, que têm muito que examinar. Eis aqui outro Cristão velho Judeu.     

 

Caso n.º 14  N R 145 – António Gonçalves, natural de Oliveira do Conde, morador em Cabanas -   

Pr. n.º 1155 C - 25/07/1657-23/05/1660  

A d F de 23-5-1660     

 

145. António Gonçalves, natural de Oliveira do Conde, rendeiro, e morador em Cabanas, do Bispado de Viseu, Cristão velho, e por tal conhecido, e havido sem contradição alguma, foi preso em Coimbra: confessou que era Judeu: saiu reconciliado; e conforme a notícia que nos deram da sua sentença, no Auto se declarou que era Cristão velho: o que duvidamos;- porque conforme o Regimento, o Cristão velho não havia de ser condenado por Judeu: mas assim é referido; e pode constar a verdade do seu processo. Este homem saiu em Coimbra no ano de 1660, pouco mais, ou menos. E se adverte, que apurando-se a verdade, se há-de achar ser Cristão velho; porque assim o afirma gente de crédito, que o conheceu. Procure-se este processo, que contém cousas notáveis. E se este Cristão velho for Judeu, como ficam convencidos de falsários os Cristãos novos, que dão em Cristãos velhos? Pode ser, que por este, e outros muitos casos semelhantes, seja certa a presunção que chegou a presumir com fundamento, que por se verem enleados com tantas confissões, se tomou resolução de não prender a ninguém com menos de um quarto de Cristão novo. Este Assento, se é certo, já não dura; e mostra bem, que se tiram, e põem leis. Também de António Gonçalves se afirma, que saiu declarado Cristão velho; e foi acusado por outros Cristãos velhos diante do Vigário Geral do lugar de Cabanas. Tudo constará do processo e das circunstâncias das testemunhas, e outras muitas particularidades.     

 

Caso n.º 15  N R 148 – António Pires, o “Meia Noite”  

Pr. n.º 4791 L - 03/04/1656 - 17/10/1660  

A d F de 17-10-1660, Relaxado       

 

148. O Meianoite de Abrantes, homem tido, e havido por Cristão velho, sem fama em contrário, nas prisões que houve naquela Vila foi acérrimo perseguidor dos Cristãos novos. Assolou-se a terra; e saiu em Lisboa a morrer; protestando pelas ruas, e gritando desacordadamente que era Cristão velho.    

 

149. Em Coimbra nas prisões grandes que houve, há quarenta, ou cinquenta anos naquela Cidade, saiu a morrer um familiar, que havia feito muitas prisões. Depois parece se lhe descobriu alguma partezinha de Cristão novo, por que foi preso. E finalmente saiu a morrer. Este sempre levou a teima, até ser queimado, dizendo: “não digo mais, senão que queimam a um Cristão velho". E nunca os Padres o puderam tirar deste cuidado, para tratar do que mais importava ao remédio da sua alma, e da sua salvação. Estes dois Cristãos velhos sentiam não lograrem o privilégio do Regimento. 

150. De tudo o referido, e de muito mais que há- de constar dos processos, Directórios, e Regimentos, se se examinarem com a devida consideração, e com as noticias que damos, se pode palpavelmente conhecer, que a forma, e estilo praticado de presente nas Inquisições de Portugal, em lugar de extinguir o Judaísmo (que esta é tenção da Igreja), o está produzindo, e fazendo de Cristãos Judeus; uns, que obrigados dos apertos, e confusões, por remirem as vidas, e liberdades, sendo Cristãos, confessam serem Judeus, e chamam a isto remédio, por não terem outro caminho para escaparem.

 

 

 

NOTA:

O texto das “Notícias Recônditas” foi escrito em 1673 supostamente para mostrar ao Papa as injustiças da Inquisição de Portugal. Ficou em manuscrito e teve relativamente pouca divulgação na altura. Em 1708 foi impressa em Londres uma tradução inglesa, com o título “An account of the cruelties exercised by the Inquisition in Portugal, written by one of the secretaries to the Inquisition”. Daqui nasceu o boato de que teria sido escrito pelo Padre Pedro Lupina Freire. Diz-se que a publicação foi da iniciativa do Rabi David Nieto (1654-1728), mas não há a certeza disso.

Em 1722, foi impressa em Londres uma tradução para Português e Castelhano, com o título Noticias Reconditas y Posthumas del Procedimiento de las Inquisiciones de España y Portugal con sus Presos. Divididas en dos Partes; la Primera en Idioma Portuguez. La Segunda en Castellano; deduzidas de Autores Catholicos, Apostolicos, y Romanos; Eminentes por Dignidad, o por Letras. Obras tan Curiosas como instructivas, compiladas, y anadidas por un Anonimo. En Villa Franca 1722.” Vieram para Portugal alguns exemplares.

Em 1821, já extinta a Inquisição, foi o texto publicado em Portugal com algumas adaptações. É desta edição que reproduzi o extracto supra.

Não se pode pôr em causa o conteúdo das “Notícias Recônditas” porque aí estão os processos para fazer a prova real.