12-6-2013

 

 

ISAAC DE CASTRO, de 21 anos, queimado vivo pela Inquisição

 

 

Esta é a história triste de um jovem preso pela Inquisição no Brasil, quando ia fazer 18 anos, cuja saga não tem sido muito estudada em Portugal. No Brasil, escreveu a sua biografia em 1992 o estudioso judaico Elias Lipiner, chamando-o Izaque de Castro, tal como ele se assina no processo; mas o livro só o encontrei na Torre do Tombo e na Faculdade de Letras do Porto. Em 2010, o Prof. Ronaldo Vainfas dedicou-lhe 24 páginas do seu livro “Jerusalém Colonial”, pondo os pontos nos iis na descrição da personalidade do réu, um jovem certamente inteligente, mas também "destemperado", conflituoso e que não tinha prestígio entre os judeus para ser docente da Lei de Moisés.

Pensei em fazer um resumo do processo, a partir do registo digital da Torre do Tombo (usei a numeração das imagens) indo assim à mesma fonte de ambos os biógrafos.

Isaac de Castro, teve no Brasil a alcunha de “Tartas”, por ser o nome da terra onde nasceu na Gasconha, em França, em Julho de 1626; mais tarde foi adoptado como sobrenome de toda a família, já então residente em Amsterdam. Era sem dúvida um rapazinho muito inteligente, como o processo demonstra à evidência. Nascera em terra de católicos, filho de pais nascidos em Bragança e de católico manteve a aparência enquanto criança, chamando-se Tomás Luis. Quando tinha 14 anos, toda a família se mudou para Amsterdam, todos foram circuncidados e passaram a ser judeus às claras; ganhou então o nome de Isaac de Castro, que mais tarde na Baía trocou pelo de José de Liz.

Seria também rapaz de ferver em pouca água e quando estava a preparar a sua entrada na Universidade de Leiden, teve um desaguisado com um colega que feriu e possivelmente matou. Viu-se então obrigado a fugir para Pernambuco, no Brasil, que nessa altura, estava em poder dos Holandeses. Ainda não chegara nessa altura aos 16 anos. Com essa idade, não tem assim o mínimo sentido  a hipótese de Lipiner, de que ele teria sido enviado ao Brasil para doutrinar na Lei de Moisés os judeus que ali se encontravam e que gozavam de bastante liberdade entre os Holandeses.

Andou pelo Recife, mas a vida não lhe deve ter corrido muito bem. Conheceu sem dúvida muita gente, sobretudo da comunidade judaica, cujos membros denunciará mais tarde na Inquisição.  Mas, como diz o Prof. Ronaldo Vainfas, deveria ter pouco jeito para o negócio e acabou cheio de dívidas. Ao fim de 20 meses, decidiu fugir para a parte portuguesa e ir para Salvador da Baía. Deu como desculpa que teria outra fez ferido ou matado alguém, mas há testemunhos que dizem que ele fugiu para não ser executado por dívidas.

Sendo declaradamente judeu, corria sério perigo de ser preso na Baía. Parece-me do processo que a ideia dele era arranjar ali uma passagem para a Europa, isto é, para Amsterdam. O problema da religião resolvia-o assim: dizia que não era baptizado e assim ser-lhe-ia perdoado o passado de judeu, pois não seria herege; e pedia para ser baptizado, secretamente de preferência, e diria que se queria converter à fé católica.

Para isso, dirigiu-se ao Bispo da Baía, D. Pedro da Silva de Sampaio, e esse foi o seu erro fatal. O Bispo fora Inquisidor durante 17 anos e era pessoa dura e de mau feitio. Aliás, tinha uma péssima relação com o Governador. Mas surgiu a ideia de que podia ser um espião dos Holandeses e assim foi mandado prender pelo Governador. Este depois soltou-o, pôs um espião a segui-lo e voltou a prendê-lo. Interrogou-o de novo e, quando ele disse que era judeu circuncidado e queria ser católico, mandou-o de novo para o Bispo. Isto diz o Governador, mas o Bispo diz que o Governador o pôs em liberdade e que ele Bispo é que o mandou prender por um familiar. Tudo isto se passou num curto espaço de tempo, 15 dias, quando muito. O Bispo remeteu-o à Inquisição de Lisboa e mandou-o meter num barco para Lisboa que zarpou a 5 de Janeiro de 1645, tinha ele pois, 18 anos.

Daí em diante, acabou para Isaac de Castro a ideia de se converter ao catolicismo. Era judeu e como tal queria viver e morrer. É que, de facto, a Inquisição era a instituição mais absurda que se pode imaginar: como é que a violência em nome da religião católica pode levar alguém a converter-se a ela? Isaac de Castro não teria o mínimo jeito para representar, aliás, vê-se no processo que é totalmente desastrado quando diz alguma mentira. Não seria capaz de representar uma fé que não tinha.

Os Inquisidores bem lhe mandaram padres doutos (cinco, ao todo), para o tentarem convencer, mas sem quaisquer resultados. Aliás, o dogma e os mistérios não têm explicação possível, ou se acredita ou não se acredita.

Dizia Isaac de Castro que “a Lei de Moisés não tem coisa repugnante à razão e à verdade natural”. Por acaso, não é totalmente correcto, porque um dos artigos da fé judaica que ele elenca é a ressurreição dos mortos, que não tem explicação natural.

O Prof. Vainfas não me parece muito crítico da actuação dos inquisidores, achando que o Conselho Geral agiu com prudência, ao contrário da “lenda negra” da Inquisição. Mas é preciso não esquecer que toda a actuação da Inquisição está baseada na prepotência e na perversidade. O Regimento, apesar de ter um aspecto formal correcto, é basicamente perverso, os Inquisidores estão lá para condenar o réu, não para o absolver. A defesa nunca serve para nada, os Procuradores só formalmente estão do lado do réu, na realidade são instrumentos da máquina inquisitorial. A Inquisição tinha o desplante de fazer curadores dos menores os seus carcereiros.

O processo tem um exemplo claro da perversidade inquisitorial na img. 417 (fls. 210 r): O réu diz que não se vai defender, porque quer pedir elementos do processo para isso; os Inquisidores encerram a fase da defesa, nos termos do Regimento (III,X,XI).  Por isso, a defesa de fls. 217 e ss. não serve para nada, nem sequer teve um despacho sobre ela.  Saberia o Procurador disso? Não tinha acesso ao processo, mas possivelmente sim, porque não assina essa "defesa".

Para a acusação, foram também utilizados os testemunhos dos companheiros (especiais para isso) do réu, dois padres, um sodomita e o outro solicitante, dois personagens de museu, como se vê dos depoimentos que transcrevo do pr. n.º 4810, do Padre António Lourenço Veloso.  Como é evidente, acho totalmente despropositado que se possa acreditar neste padre quando um dia disse no cárcere que na noite anterior, tivera relações sodomíticas com o Isaac de Castro por três vezes. Para isso, teriam de fazer barulho que o companheiro de cela ouviria, nem a personalidade do réu permite uma tal ideia e, se houvesse alguma probabilidade de ser verdade, teria sido processado pela Inquisição por sodomia, que abrangia tanto os agentes como os pacientes (ainda que estes tivessem sido  violados!).

O P.e Veloso, condenado a degredo por 10 anos para a Ilha do Príncipe, conseguiu que a pena fosse comutada em degredo para o Brasil, mas por toda a vida.

Isaac de Castro não tinha qualquer possibilidade de se converter na cadeia da Inquisição. Era o seu amor próprio que lho impedia. Pusera a hipótese de voltar formalmente à religião católica na Baía para ali viver em paz e poder regressar a Amsterdam, mas essa ideia abandonou-a logo que foi preso.

A pgs. 299, o Prof. Vainfas cita uma frase de uma declaração, que foi retirada do seu contexto  (ver img. 169, de 19-11-1645) e não tem o sentido de o réu considerar a hipótese de se converter.

É verdade, porém, que, já no cárcere, ele teve ainda alguma esperança de ganhar a liberdade.  Como todos os réus da Inquisição, teve ele também a ilusão de que a defesa podia servir para alguma coisa e pôs muito cuidado na sua redacção. Mas, como disse acima, nada lhe ligaram. Depois, as numerosas denúncias que fez podem ter-lhe dado a ilusão de que poderia ainda com elas ganhar a liberdade. Perdeu logo as ilusões.

Nunca poderia dizer: “sim senhor, quero converter-me” e ficar livre. A Inquisição tinha por método humilhar os réus que tinham de se mostrar muito pequeninos e compungidos para conseguir a misericórdia dos inquisidores.

Mais que um mártir da religião judaica, foi um mártir da própria dignidade.

 

RESUMO DO PROCESSO

 

img. 1 – Processo n.º 11550, de Joseph de Liz ou Isaac de Castro, solteiro, natural de Tartas, Província de Gasconha do Reino de França.

img. 5 – 15-3-1645 – Entrada no cárcere da Penitência, vindo do Brasil na caravela do mestre António Borges.

img. 6 – 6-9-1645 – Entrada no cárcere secreto.

img. 7 – 4-1-1645 – Relato do Bispo do Brasil D. Pedro da Silva de Sampaio, que foi Inquisidor da Inquisição de Lisboa de 1617 a 1634.

Vindo de Pernambuco, ou melhor, fugido de lá, Isaac de Castro, então com 18 anos apresentou-se ao Bispo no início do mês de Dezembro de 1644. Disse que era judeu, que queria ser baptizado e começar a viver como cristão. Num primeiro tempo, o Bispo deixou-o ir embora e ele foi detido pelo Governador. Este interrogou-o, soltou-o e mandou-o seguir por um espião. Não tendo encontrado nenhuma razão para o prender, soltou-o. Foi então que o Bispo o mandou prender por um familiar.  O Bispo, que tinha um mau feitio assinalável, não se dava com o Governador, de quem fazia imensas queixas.

Abriu o Bispo do Brasil um inquérito em que ouviu várias testemunhas a 16 e 18 de Dezembro de 1644. Depois, com este relatório, fez embarcar Isaac de Castro em 4 de Janeiro de 1645, para a Metrópole.

img. 9 – 22-2-1645 – Relato adicional enviado pelo Bispo depois da partida do barco. Fala de diversos assuntos, mas diz que “chegara aqui uma carta de Pernambuco a um oficial de guerra, em que dizem se continha que aquele judeu vinha chamado a ensinar Judaísmo – fiz diligências pela carta, disse Pedro Correia da Gama a quem se ofereceu, que a dera ao Governador António Teles, e ele disse que se buscaria.” Acrescenta: “o Judeu sabe línguas, como lá se verá” e “ E logo me acho com grande dor de cabeça, não digo nesta mais, se não que também enviei a diligência que aqui fiz sobre uma denunciação que remeteu o Abade de S. Bento.”

img. 11 – 16-12-1644 – Inquérito determinado pelo Bispo.

Disse chamar-se Joseph de Liz, que tem 19 anos, natural de Avignon, em França, filho de Abraham Meatoga e que não foi baptizado , porque naquela região, os judeus são livres e não baptizam os filhos. Disse que aos dez anos fugiu a seus pais e foi para Tartas, onde o acolheu Pedro de Campos e o mandou estudar. Disse que era cristão e não baptizado. Claro que eram falsas estas declarações. Disse também que, no Recife, foram duas ou três vezes à sinagoga, mas para ver a casa e não para participar nas cerimónias.

Foram ouvidas a seguir as testemunhas, João Álvares Baltazar Rodrigues, Pedro de Fontes e Pedro Irlandês, e todos disseram que o mancebo que lhes foi descrito vivia e se declarava em Pernambuco como judeu e ia duas vezes por dia à sinagoga.

img. 17 – 19-12-1644 – Uma quinta testemunha foi João Moleque, francês, residente em Pernambuco há seis anos. Disse que, na Paraíba, o mancebo era “tendeiro de pouca sustância”, e na Baía lhe disse “que se lhe alguém perguntasse por ele, dissesse que era filho de um mercador de França, rico, e que vinha por cá por ver terras.”

img. 19 – 18-12-1644 – Isaac de Castro declarou ao Bispo que fora judeu de nação, circuncidado, até vir para a Baía, mas cristão de coração. Não quis acrescentar mais nada. Diz o texto: “Foi-lhe dito que a sua confissão é cavilosa (…)”. Perguntado com que intenção viera à Baía, disse que “vinha a ver terras diferentes e para baptizar-se secretamente”.

img. 21 – 1-1-1645, pela manhã – O Licenciado João Pinto de Azevedo  elenca diversos objectos pertencentes ao réu, que “parece soldado e disse que o Judeu que se diz Joseph e que está na cadeia detido para ir para o reino (…)” .

img. 23 – 2-8-1645 – Depoimento do Padre António Nabo de Mendonça, de 44 anos, acusado de solicitação (Pr. n.º 4805 e 4805-1)

Pediu mesa para dizer coisas do réu que é seu companheiro de cárcere, junto com o Padre António Lourenço Veloso (Pr. n.º 4810).  Disse que o réu se confessa como Judeu, faz jejuns e diz orações judaicas, anda sempre descalço e com a cabeça coberta. Disse que o réu lhe declarara que fora baptizado assim como todos os seus irmãos; que, enquanto viveram em França se comportaram sempre como católicos e só quando com seus pais foram viver para Amsterdam é que se circuncidaram e passaram a viver como judeus. Negava o baptismo porque lhe tinham dito que a Inquisição não podia punir os não baptizados.

img. 30 – 18-8-1645 – Depoimento do mesmo Padre António Nabo de Mendonça.

Ratificou o testemunho anterior.

img. 33 – 17-8-1645 – Depoimento do Padre António Lourenço Veloso, de 43 anos, acusado de sodomia.

Foi companheiro do réu na cela, e disse que este sempre se mostrou como judeu profitente da Lei de Moisés, fazendo jejuns e cerimónias judaicas, e cobrindo a cabeça para rezar. No entanto, mostrava conhecimentos da Fé católica, e dizia que ele e os irmãos haviam dico baptizados. Dizia que teve de fugir de Pernambuco por causa de um homizio. Está persuadido “que o dito Joseph de Liz é baptizado e o nega persuadido que assim poderá escapar da justiça deste Santo Ofício”. Dizia o réu que tinham sido os Judeus de Pernambuco  a aconselhá-lo a negar o baptismo como com efeito fazia.

Perguntado pelo Inquisidor, disse que o réu “tinha juízo e capacidade e mostrava muita agudeza, e bastante notícia de letras e quando disse e fez as sobreditas coisas, estava em seu perfeito juízo.

img. 41 – 18-8-1645 – Depoimento do Padre António Lourenço Veloso

Referiu mais cerimónias judaucas do réu e ratificou o testemunho anterior.

img. 44 – 18-8-1645 – Auto da nómina que foi tomada ao réu

Nómina é a palavra portuguesa para “Tefillin”, pequenos textos com citações do Antigo Testamento que os Judeus mais devotos devem trazer consigo; o réu trazia uma que lhe foi apreendida no Brasil.

img. 45 – 17-8-1646 – Depoimento de Guilherme Rosen, familiar do Santo Ofício, que, em companhia do P.e João Carreira, Secretário da Inquisição, foi ouvir o depoimento de Diogo Henriques ou Abraham Bueno (Pr. n.º 1770), o qual lhe disse que em todo o Reino de França, com excepção de Avignon, era obrigatório que todas as crianças fossem baptizadas.

img. 50 – 14-11-1646 – Depoimento de Jean de Semprée, Cônsul dos Franceses em Lisboa. Disse que em toda a França, com excepção da região de Metz, é obrigatório que se baptizem todos os recém-nascidos.

img. 54 – 19-11-1646 – Depoimento do P.e Jean Ponthelier. Disse que, em França, não é permitido aos Judeus ter sinagogas nem fazer cerimónias judaicas, com excepção da cidade de Metz.

img. 59 – 20-11-1646 – Depoimento de Jean Galore, francês, cirurgião. Disse que em França, é obrigatório baptizar todas as crianças, com excepção da cidade de Avignon, que é do Papa, e da de Metz, por privilégio especial.  Perguntado em especial sobre a cidade de Bastide Clairence é obrigatório baptizar os filhos.

img. 63 – 1-5-1646 – Depoimento de Manuel Lopes Marinho, de 50 anos, cirurgião na cidade da Baía, que anda no Caderno do Promotor n.º 29, a fls. 26 v.

Disse que aparecera na cidade um judeu que se fingia francês ou estrangeiro e que o encontrou em casa de Diogo de Leão. E que esse judeu dizia que vinha ensinar o judaísmo e aprender a língua da terra. E que depois o mandaram embarcar para o Reino.

img. 65 – 10-5-1645 – Depoimento de António Teles da Silva, de 40 anos,  Capitão Geral do Estado do Brasil, que anda no Caderno do Promotor n.º 29, a fls. 28 v.

Disse que aparecera na cidade um judeu que se dizia francês, que falava bem espanhol e também hebraico e latim. Pareceu-lhe que podia ser um espião e por isso fez-lhe um interrogatório apertado. A seguir, libertou-o, mandando-o seguir. Não achando coisa de consideração, tornou a prendê-lo. Disse que o Bispo o interrogara e o dera por livre. Fez-lhe então o Governador mais um interrogatório apertado e ele confessou que era judeu circuncidado e que desejava ser católico, pelo que o remeteu ao Bispo, que o fez embarcar para Lisboa.

img. 67 – 20-5-1645 – Depoimento de Manuel da Silva, de 52 para 53 anos, familiar do Santo Ofício.

Disse que aparecera na cidade um judeu chamado Joseph de Liz, de que se dizia que vinha ensinar o judaísmo no Brasil e que fora chamado por alguns homens da nação hebraica para isso. Foi preso pelo Bispo e mandado embarcar para a Inquisição para Lisboa.

img. 69 – 4-1-1647 – Depoimento de Abraham Bueno ou Diogo Henriques, de 25 anos, residente em Pernambuco (Pr. n.º 1770).

Disse que, cinco anos atrás, conhecera em Recife de  Pernambuco Isaac de Castro, que professava publicamente a lei de Moisés, e era conhecido por “Tartas”, nome da terra onde tinha nascido em França. E que aí fora certamente baptizado, porque o baptismo das crianças era obrigatório em França. E que o dito Isaac  dizia que era católico e fugira do Recife, por causa de um crime que lá cometera, mas na realidade ele testemunha acha que ele fugira para não ser executado por dívidas que tinha.

img. 77 – Apenso 1-  Depoimento do réu Isaac de Castro, em Latim, por ele entregue na Mesa da Inquisição de Lisboa

Et si vereor (Judici Illustrissimi) ne qua forte veritas ex multis quae ex imo cordis mei puteo haustas sum hic publicem expromptur damnum mihi aliquod ferre posuit: has tamen contra vulgare axioma (No se deben decir todas las verdades) et adversus me metipsum tribus maxime “de causis” plane sine circulis et omnes circumlocuos nuda exprimere animus est. Quod vero primum, meque praecipue movet est authoritas vestrarum dominationum, coram quibus mendacium nonmodo turpe sed perniciosissimum esset: quippecum hot sanctum tribunal a deo immediate fundatum esse existimem. Quod autem secundo ultro me verum dicere cogit si quod absque retractatione id apud me in posterum semper agere decreverim. Quod ullo denique bono propter mendacio (esset enim causa similis effectus, cum melior esse nequit) frui nolim, ultimum consilii mei motivum esse videtur.

Sum igitur natus anno 1626.º mense Julio, Tartasii urbis Galliae, ex patre Cristophoro de Luis et matre Elisabeth De pas, a qua postquam proprio lacte nutritus, fui pariter instructus et educatus, meque in ipsius gremio retinuit donec aetatis meae anno (circiter) undecimo missus sum Aquas urbem quatuor tantum leucis distantem apud quemdam parentis, et eiusdem cultus amicum ut ibi Latinitatis studium pergerem , cum iam et carmine, et oratione soluta satis immature Peritus mediocriter essem. Absoluto autem hac in urbe intra unius anni spatium humanitatis Ordine, paternam domum redii, unde iterum sequenti proficiscens Burdigalem Aquitaniae Metropolim veni, ubi apud patres Societatis Jesu per alterum annum Rethoricae operam de aliis autem duobus proxime sequentibus scientiarum omnium reginae philosophiae in eodem Collegio studui; et postquam solus, absque magistro (ut eius et mea esset major laus) theses ex universa Philosophia publicem quindecimum aetatis annum agens propugnavi me patris mandatum in Patriam venire coegit: unde eodem mense cum parentibus et ipsorum universa familia Burdigalam sum reversus, ubi tunc pro tempore angustiis, extremis tantum labiis Medicinam delibavi per quatuor aut quinque menses, quibus transactis una cum patre, et fratribus Britannicum mare transmittens in Hollandiam veni, ubi cum iisdem quod illuc usque secreto publicem professus sum. Cum vero Ludguni Batavorum caeteras scientias post breve tempus percurrere decernerem, hic mea mihi immaturitas, et omnium (ut puto) Juvenum Scholasticorum intolerantia negavit. Res autem fuit quod cum quem in me a quodam Belga ex nobilioribus et ditioribus liberius prolata verbis factis ultus essem secundo tantum mense in Hollandia absoluto, amplam Oceani Atlantici regionem, ut Brasilienses calcarem oras, metus tolerandae forsan publicae iniuriae transmeare coegit.

Ast (me miserum!) nec trans Aequatorem nec iuxta Tropicum Capricornii, nec sub torrida zona,  nec in alio climate, nec in opposito Hemisphaerio, nec in Australi regno, nec ipsis in Antypodis, ne mea inimica solum esse sivit? O fortuna, nequam! quid ego tecum aut quid tu mecum habes, ratione cuius me ita sub ipso terrae centro persequaris? Sed cur ego tandiu in admirationem raptus coram Illustrissimo caetu mocorum Parcar (amabo Judice).  Nam rapiunt mentem nunc mea damna mihi. Non igitur solum in Europa infortunatus fui, sed alio pariter in Orizonte, in America, Rescifi scilicet, ubi postquam bis viginti menses peregi, illinc me Lathale crimen fugavit, unde cum iustitiae Belgicae rigores alio modo aegrem vir (?) omnino vitari requirent, in Lusitanorum dominium me transferre penitus necesse fuit. Sed cum quot et quantis periculis iter illum pedibus peragraverim, Summum Deum qui me ab illis liberavit testem appellito. Et enim, si me hinc crimini patrati metus vexabat, illius proditoris aliud quod me in Lusitanam partem transferrem meum ita cor premebat, ut in augustum breveque punctum illud redigere conari videretur. Verum nec timores isti in mentem veniebant (ubi enim maior adest , cessat minoris imperium). Verebar igitur maxime,  ne in illis nemoribus noctu dormiens pecuniae auferrenda ab iter indicante necarer: ut eo in itinere multoties evenire visum est ; non secus ac in illis trementis mentibus humana feris corpora pastus esse solent. Sitim hic famemque refferre nolo: nihil enim sunt absque omni penitus cibo quinque naturales dies incedendo transacti, ubi meam adhus agitat mentem memoria mei a comitibus in densissimae silvae medio ad rivuli Ripam emorientis derelicti; varios pariter huius juvenilis corporis labores commemorare taediorum est. Forte laboraret mens tanto agitata labore. Superatis igitur excelsis difficultatum montibus a Bahiam veni ubi altero die Episcopi domum inquirens, in ipsam me contuli, cui haec ego sum formalia verba locutus: Ego sum Judaeus circumcisus ex parentibus judaeis natus; ne autem propterea aliquid mali mihi venire possit ista prius, vestrae dominationi declarare volui; cum vero ipse exclamans, et multities signum crucis agens, responderet: hoc ne possibilie esse potest, eo tunc me terrore affuit ut statem subjungerem; imo sum Judaeus, sed iam huc Baptizandus venio. Ipsique postea quaerenti adventos mei causas, respondi quae de crimine dicta sunt: ex quo certe colligere poterat Baptismum, no fuisse accessus mei motivum. Sicque me demum misit dummodo multoties illum inviserem; delectabatur enim me cum eius Secretario de rebus philosophicis agentem audire; quod ipse bis autem coram se fieri iussit. Illud ego praestiti donec Gubernator suum Mihi palatium pro carcere dedit, idque a quibus ex plebe praecipuis coactus fecit: me enim proditorem et serutatorem esse dicebant.  Tertio autem huiusce carceris die, postquam domi meae iam liber essem, eodem ipse Episcopus me in publicum carcerem venire coegit; donec post duodecim et reitere navem ipso sic intente ascendi, quaequidem dardo vela notis huc me demum coram vestris dominationibus tulit. Quae abhinc transacta sunt, repetere non nunc opus esse arbitrare. Restat igitur solum ut hic tot laboribus, seatenti historiae extremam pietatis manum, addant vestras dominationes. Quippecum duo tantum mihi obiici posse existimi, quae ego facili et evidenti modo solvere est animus. Si mihi ergo primum Baptismus a me receptus obliciatur, hoc ego dilemmate respondeo: vel sum Baptizatus, vel non! Si secundum, habeo intentum: si primum, quaram ex eo culpa convinci possum? Certe nulla, duas propter rationes: primo quod etsi hoc verum esset, profecto dum adhuc infans essem, esse debuit; quod autem tunc egi, non liber egi; sicque illa actio in proemium aut poenam indicari nequit. Praeterea quemmodo poteram ego debite baptizari, si ad id baptizandi voluntatem omnino requiri existimo, cum “Volo!” respondere debeat. Si instent, sufficere hoc si dicat pro infante pater. Hoc equidem pro me facit; cum enim omni legitimae propositioni vocali debeat intrinsecus respondere mentalis, maxime iis in rebus, in quibus intentia praecise requisitus quomodo Patri Judaeo pro me “Volo” dicenti poterat ad intra respondere voluntas; cum si id egit, potius coactus, quam liber egit. Secundo, et si ea omnia debito ordine, transacta forent, ea certe dum jam grandior essem, a me confirmari deberent, ut vim suam sortiri possent. Et enim dum de propria animi salute ageretur. Id pro me postea, prastare nemo potuit.

Si autem secundo meum Abahiensi Episcopo dictum obiiciatur, qua nempe illuc baptizandus venire  resp.eo  quid interest ea me dixisse, cum nec suum effectum sortita sint, ne ullo modo, illum sortiri poterant. Nam ipsi Gubernatori  (cui ego id ipsum declaraveram ) sese pro patrono offerenti , hoc in Portugallia a me factum iri. Respondi nempe quia si hoc ego in regnum liber adventarem, altero die in Hollandiam me transferre animus erat: cum (ut verum dicat), neque Abahiam, neque Lusitaniae regnum, pedibus ego meis calcassem, nisi proxime mortis periculum mihi in Pernambucano littore cum Batavis immineret. Ex quo sola mendacii culpa hac in re me convinci posse videtur: ad quod tribus modis respondeo.  Primum, ea omnia media, quae ad honestum finem perducent sunt licita, quamvis aliunde illicita sint: sed mendacium ad finem mihi honestum, tunc me ducebat: ergo licite illo uti poteram. Maior cum sit axioma probavi per aliud nugatorium esset. Minor vero probatur ex eo quod finis meus erat vitam conservare quam certe honestum esse nemo rogare potest secundo si coram hoc vestrarum Dominationum  Sancto tribunali verum dicere sufficere arbitrabar.  Tertio denique si universim mendacio omne publicam torqueretur poenam, totum Lusitaniae regnum in carceres distributum mendacibus locandis minime sufficere existimo. Praeterea ad omnimodam iustitae meae confirmationem hoc demonstrate argumentum addere volo; probans scilicet me quod Judaeus fuerim et futurus sim nullam penitus poenam debeam. Nempe actio quae est iuxta dictamen conscientiae, secundum omnes omnium nationum theologos  in poenam indicari nequit: sed actio quam ego Judaismum professus vel professurus sum, est iuxta dictamen conscientiae meae: ergo in poenam indicari nequit. Maior, ut axioma theologicum est, est pariter evidens. Minor patet ex eo quod nec  propter innumeros a me iam hic et alibi toleratos labores, ab intentione mea destiti, ut et haec omnia hic expressa vera sunt; haec quoque profecto veritas est. Quid igitur superest? Nihil equidem praeter vestrarum dominationum (Judices) solitam pietatem et misericordiam: non enim ea minus meum esse Judaeo quam cum ipsis Christianis exerceri debit: quin immo verus pietatis actus mecum solum modo haberi potest: non enim quod mater erga gnatum suum misericordia sit pia vocari solet, cum ad id ipso naturae instinctu moviamur: estque haec misericordia nobis cum ipsis irrationalibus communis; leaena namque pariter amat catulos suos erga quos certe omniam misericordiam exercere videtur. Verum nobilissimam omnium pietatem erga illos a quibus naturaliter, vel ut regione aut religione extraneis, removemur esse vere arbitror. Debeatur vestrae bonitatis non meo iuri; debeatur demum vestrae clementiae, vestraeque sanctitati, non autem viridante annorum meorum aetati, aut aeterno mei erga vestras dominationes (quamvis inaequali) amori. Parcar amabo (Judices) mittar quaeso in patriam, estis enim Lusitani, et omnium nationum religiosissimi, ne ex ipsis ego quaestus ullos formare possim. Nam si a Pernambucana regione in Abahiensem apud Lusos auxilium quaerens, me transtuli; illuc ideo certe iuxta nobilissimas honoris regulas mihi deberi videtur. Sufficiant quaeso meo tenello corpori tot, tantaeque mari et terra laborum vexationes; sufficiat animae quaeso meae sui corporis infortunati carcer. In poenam denique mendacii cor meum prae toedio et angustia in unicum indivisibile punctum redactum esse sufficiat. Ne propter immortalium deorum amorem de me  (Incidit in Scillam cupiens vitare Carybdim) dicit in posterum possit. Sic ego vestrarum dominationum Illustrissimarum digna encomia laudesque dignas in aeternum sive metro, sive oratione soluta, variis idiomatibus, variisque musicae instrumentis, publicem et per orbem universam, etsi hic scribere, non merito cantare desinam:

Sic ego, sed vobis semper habebo grates

Sic ego, sed vobis semper amicus ero

Sic ego, sed vobis semper orabo deum

Sic ego, sed vobis aedificabo sacrum

Sic ego, sed vobis sacrificabo boves

Sic ego, sed vobis solvere vota volo

Sic ego, sed vobis cuncta dicare volo

Sic ego, sed vobis carmina conficiam

Sic ego, sed vobis vivere recte volo

Sic ego, sed vobis iura debebo piis

Sic ego, sed vobis omne debebo bonum

Sic ego, sed vobis servus et almus ero.

  

img. 85 – Apenso 2 – Papéis entregues pelos religiosos que foram mandados estar com o réu para o persuadirem a reduzir-se à fé católica.

img. 87 – Passos das Escrituras – Apontamentos do Padre Mestre Fr. Manuel Rebelo, Prior do Convento de S. Domingos, em Lisboa.

img. 95 – Relatório do mesmo Fr. Manuel Rebelo das suas conversas com o réu.

Diz ele que “o Réu é Judeu verdadeiro e não fingido e que com grande pertinácia e rebeldia e dureza de coração nega as coisas da nossa Santa Fé, não crendo na Lei evangélica, nem em Cristo Senhor nosso, e afirma mais ele testemunha que lhe parece que o dito Réu não teve nunca ânimo de se converter e que as disputas as requereu por ostentação, soberba, e presunção (…)”

img. 101 – 2-5-1646 - Relatório do Padre Manuel Cordeiro, de 62 anos,  da Companhia de Jesus e qualificador do Santo Ofício.

img. 107 – 23-7-1646 - Texto de Fr. Pedro de Magalhães, Religioso de S. Domingos e qualificador do Santo Ofício. Intitulou-o “Confutação do judaísmo, em confirmação da fé de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e homem redentor, e Messias prometido

img. 139 – 23-7-1646 - Relatório das conversas que o mesmo Frade teve com o réu. Termina dizendo “pelo que me parece esta pessoa pertinaz na sua crença na Lei de Moisés, e que se não apartará dela senão por milagre de orações (…)” No final, uma nota muito reveladora: “Algumas vezes, quando esteve mais abalado, me disse que, se o soltassem, então deliberaria converter-se, porque parecia a sua conversão no cárcere violenta, e não de coração, como também que, não sendo baptizado, mal procediam com rigor com ele, ao que lhe disse que havia fundada presunção de ser baptizado, e que portanto, não podia haver outro termo com ele.”

img. 151 – 26-7-1646 – Outro relatório do mesmo Frade sobre a pertinácia do réu em manter a sua crença na Lei de Moisés.

img. 155 – 22-6-1645 – Termo de curador – Nos termos do Regimento é nomeado curador do réu, o Alcaide dos cárceres, Estêvão da Costa, por ser menor de 25 anos.

img. 157 – 22-6-1645- 1.ª sessão com o réu.

Afirma que não foi baptizado, por lhe dizer “sua mãe que o não fora, e na ocasião em que o devia ser conforme ao costume da terra, em que nasceu e com que sua mãe costumava baptizar os mais filhos irmãos dele declarante, tomara um filho de uma lavradora que na mesma ocasião nascera, e o fizera baptizar fingindo ser ele declarante, que com esta notícia ficou persuadido que não estava obrigado à Igreja e que podia livremente viver na Lei de Moisés, por lhe parecer melhor.”

Disse que seus irmãos sempre foram Judeus e de presente professam publicamente a Lei de Moisés.  Disse que, quando era pequeno, até aos 11 anos, frequentava as Igrejas e os ofícios divinos, porque habitava em terras pequenas. Quando foi estudar para a cidade de Bordéus, deixou de o fazer, sem problemas,  pela pouca vigilância que havia sobre estes assuntos. Perguntado pelos estudos, disse que tivera alguns anos de retórica, depois estudou filosofia e alguns princípios de medicina.

Foi-lhe dito que o Santo Ofício o considera como baptizado e portanto obrigado à crença católica.

img. 165 – O Promotor requer a prisão do réu nos cárceres secretos, dizendo que ele, “por se livrar da justiça do Santo Ofício, nega o baptismo , como muito ladino e entendido que é, e pelo conselho de outros professores da mesma Lei.”

img. 166 – 5-9-1645 – Decreto de prisão pela Mesa da Inquisição. O réu passa do cárcere de custódia para o cárcere secreto.

img. 169 – 19-11-1645 – 2.ª sessão,

Disse no início: “(…) que cuidara com toda a consideração na matéria das admoestações que lhe foram feitas nesta mesa, em ordem a se reduzir à crença da lei evangélica, procurando alcançar se era esta bastante para conseguir salvação para a alma, ou se podia para este efeito haver outro caminho mais que o da crença da Lei de Moisés, e que por entender depois se cuidar largamente no sobredito e repararem tudo o que se lhe havia dito em contrário de sua crença, que só ela era boa para a salvação e que em nenhuma outra, nem na lei evangélica, se podia alcançar (…)”

Na mesma sessão, o réu expôs as suas ideias, arguindo a bondade da Lei de Moisés, para a salvação da alma.  Disse que “em razão do firme propósito com que ele Réu está, de fazer quanto mais lhe for possível pela observância da dita Lei, e por se não apartar dela enquanto viver, crê muito firmemente nos treze artigos da lei mosaica, a saber:

        1 - que há um Deus existente, cuja existência é independente do tempo;

        2 -  que este Deus é um, indivisível na essência e no nome;

        3 – que este mesmo Deus é princípio sem princípio de todas as coisas e mais antigo que todas elas.

        4 - que o mesmo Deus é senhor do Universo, e que todas as coisas criadas reconhecem a sua grandeza.

        5 - que o mesmo Deus comunicou a influência de sua profecia aos varões de seu Tesouro, que foram os profetas.

        6 – que em Israel não nasceu outro, como Moisés, nem maior profeta, nem seu igual;

        7 -  que o mesmo Deus deu a verdadeira Lei ao povo israelítico pela mão do profeta Moisés, fiel de sua casa;

        8 – que ninguém mudará nem alterará a dita Lei, se não o mesmo Deus;

        9 – que o mesmo Deus estipula e sabe todos os ocultos e conhece todas as coisas em seu princípio;

        10 – que o mesmo Deus paga a cada um conforme o seu merecimento, e pune-o conforme a sua malícia;

        11 – que o mesmo Deus mandará no fim dos dias que tem decretado, o seu Messias, para remir os que esperam de sua salvação, dele Messias.

        12 – que o mesmo Deus ressuscitará os mortos para que seja bem dito de seu louvor;

        13 – e estes são os artigos da Lei de Moisés e sua profecia.

Nota: A memória deve ter atraiçoado um pouco o réu, porque os treze artigos são um pouco diferentes, conforme se vê na Wikipedia em “Maimonides:”

 1  The existence of God.

 2  God's unity and indivisibility into elements.

 3  God's spirituality and incorporeality.

 4  God's eternity.

 5  God alone should be the object of worship.

 6  Revelation through God's prophets.

 7  The preeminence of Moses among the prophets.

 8  The Torah that we have today is the one dictated to Moses by God.

 9  The Torah given by Moses will not be replaced and that nothing may be added or removed from it.

10  God's awareness of human actions.

11  Reward of good and punishment of evil.

12  The coming of the Jewish Messiah.

13  The resurrection of the dead.

 

Descreveu em seguida todos os jejuns e cerimónias que, segundo a sua religião, se sentia obrigado a fazer.

Narrou depois a sua vida e disse: “E que passando depois da dita cidade de Amsterdam à capitania de Pernambuco, do Estado do Brasil, e daí com ocasião de certo homicídio à cidade da Baía, aí pensando que lhe seria mais fácil poder-se passar deste Reino para fazer uma viagem a Amsterdam, não dizendo a pessoa alguma a crença que tinha, mais que ao Bispo desta cidade, imaginando que a mais gente não trataria de entender que Religião ele Réu tinha, e que nesta conformidade, sem dar escândalo, sendo conhecido por Judeu, pudesse fazer sua viagem a Amsterdam na forma sobredita; e para contudo se segurar de que, tendo-se notícia que ele era Judeu, não o pretendessem deter, por parte do Santo Ofício, acudiu, logo que chegou à cidade da Baía, ao Bispo, e lhe manifestou como verdadeiramente era Judeu nascido de Pais que tinham a mesma crença, e continuaram na Sinagoga de Amsterdam. E que enquanto se deteve na dita cidade e nos mais lugares do Brasil, que não estão com presídio de Holandeses, em ordem a este intento com que ele Réu pretendia dissimular-se para passar a Amsterdam, não fazia cerimónia alguma da dita Lei de Moisés, antes, por vir em companhia de católicos, se fingia e dissimulava tal, e por lhe parecer que esta dissimulação bastaria para o livrar de qualquer prisão em terras onde não havia tribunal de Inquisição formado.

E que, sendo mandado pelo Bispo da cidade da Baía a esta Inquisição, continuou o mesmo fingimento na embarcação em que veio, não fazendo em todo o tempo da viagem cerimónia alguma da Lei de Moisés (…) e que, passando nesta forma até que veio para a prisão deste Santo Ofício, depois que foi nela, e se desenganou que o fingimento não era bastante para conseguir o intento de se ir para Amsterdam, antes era cá inútil, porquanto seria preso por Judeu, se resolveu a observar na melhor forma que lhe fosse possível, todas as cerimónias da Lei de Moisés, como com efeito fez (…)”

No final desta sessão, o Inquisidor perguntou-lhe se queria falar com religiosos doutos para expor os pontos de vista sobre religião. Respondeu que sim, queria, para ouvir as razões deles.

img. 181 –21-11-1645 -  Sessão com os Inquisidores Pedro de Castilho e Belchior Dias Preto

img. 191 – 24-11-1645 – Sessão com os mesmos  Inquisidores

img. 200 – 27-11-1645 – Sessão com os mesmos Inquisidores.

img. 211 – 1-12-1645 – Num relatório de duas páginas, os Inquisidores Pedro de Castilho e Belchior Dias Preto, fazem ao Conselho o ponto de situação do processo e pedem a indicação de religiosos doutos para falarem com o Réu. O Conselho despacha no mesmo dia que em Assento da Mesa a sujeitar à aprovação do Conselho se definam os fundamentos do procedimento contra o réu; e no dia 15, o mesmo Conselho indica os três religiosos que deverão falar com ele.

img. 215 – 4-12-1645 – Assento da Mesa

Entendem por unanimidade que o réu deve ser considerado como baptizado na infância, em França e que assim se deve correr com a sua causa. E que deverá o réu ser visitado por religiosos doutos.

img. 219 – 15-12-1645 – Assento da Mesa do Conselho Geral

Confirma o Assento da Mesa da Inquisição.

img. 221 – 3-1-1646 – Chamado o primeiro Religioso Padre Mestre Frei Manuel Rebelo, é-lhe entregue um texto de 34 páginas em que o réu ditou os fundamentos do seu credo, com o título “Cópia de razões que dá certa pessoa para ter crença na Lei de Moisés”.

O processo contém 5 cópias deste texto, uma por cada Religioso com quem o réu falou.

img. 259 – 16-4-1646 – Fr. Manuel Rebelo faz na Inquisição um relato das suas conversas com o réu.

img. 277 – 15-5-1646 – Chamado o Padre Manuel Cordeiro, da Companhia de Jesus, com idêntico procedimento.

img. 303 – 15-7-1646 – O Padre Manuel Cordeiro faz na Inquisição um relato das suas conversas com o réu.

img. 311 – 15-4-1646 – Chamado Fr. Pedro de Magalhães com idêntico procedimento

img. 313 – 30-7-1646 – O Padre Mestre Fr. Pedro de Magalhães faz na Inquisição um relato das suas conversas com o réu.  Transcrevo um trecho para exemplificar a conversa de surdos que eram estas visitas: “Porém a dita pessoa (o réu), como se não tivesse ouvido nada, tornou que faltava o ponto principal, que era mostrar-lhe como o Messias havia de ser Deus, porque era coisa averiguada entre os Rabinos que não havia de ser mais que homem. Ao que disse ele testemunha, faltando-lhe a paciência, que não queria mais disputar com ela dita pessoa, porque havendo-se gastado tanto tempo e trabalho em mostrar-lhe a verdade deste ponto, soltando-lhe ele testemunha todas as dúvidas que contra a divindade de Cristo inventara a perfídia judaica, acudia agora ela dita pessoa com este despropósito, era conhecida protérvia; porque para isso admitíamos o disputar da vinda do Messias, da substância dos mistérios da Trindade, incarnação, morte e eucaristia, para que, soltando-se estas dificuldades, se conhecesse a verdade da divindade de Cristo, da qual manavam todas estoutras verdades.”

img. 379 – 7-6-1646 – Termo de novo curador – Passou a ser Agostinho Nunes, novo Alcaide dos cárceres

img. 381 – 8-6-1646 - Genealogia

Fez o elenco dos seus nomes: Tomás Luis, quando era pequeno, Isaac de Castro, quando foi para Amsterdam e Joseph de Liz, quando veio do Recife para a Baía. Seus pais chamavam-se Cristóvão Luis e Isabel da Paz e eram naturais de Bragança; depois de irem para Amsterdam, tomaram os nomes de Abraham de Castro e Benvenida de Castro.  Não conheceu nem sabe os nomes dos avós, só ouviu dizer que sua avó se chamara Esperança Rodrigues.

Na linha colateral: por parte de seu pai teve um tio chamado António Luis, que não conheceu e de que nada sabe, apenas que deixou uma filha chamada Esther, casada com Luis da Paz, que tem o nome judeu de Moisés de Castro. que é irmão dele réu, vivem em Amsterdam e não sabe que tenham filhos; teve também duas tias paternas, de que nada sabe, a não ser que uma delas teve um filho Manuel Álvares, que viveu em Sevilha, em Málaga e em outro lugar.

Do lado de sua mãe teve um tio e uma tia. O tio é André Rodrigues Oróbio, que, antes de ir para Madrid, foi casado em França com Maria Rodrigues, cristã nova, de que teve um filho (Isaac) e uma filha (não sabe o nome). A tia chamava-se Violante da Paz (nome de judia, Sara ou Esther Aguilar), casada com Abraham de Aguiar, vivendo ambos em Amsterdam e tendo um filho chamado Jacob de Aguilar e uma filha de que não sabe o nome, nascidos na Flandres ou no reino da Dinamarca.

Teve dois meios irmãos e oito irmãos inteiros.  Os primeiros chamavam-se Manuel Luis e não se sabe dele e Ana Luis, que foi casada com Joseph de Castro e faleceu em França. Dos oito irmãos inteiros, não sabe o nome do primeiro que faleceu criança, Luis da Paz-Moisés de Castro, já referido, Pedro, de 15 anos, João, de 12 anos, Joana Luis, que faleceu em França, Luisa Luis, que não sabe se é casada, Joanica Luis e Maria Luis, solteiras, como o são todos os irmãos, excepto o primeiro.

Disse que não é baptizado nem confirmado. Mandado rezar as orações do catecismo, disse que as sabia, mas só diria o Padre Nosso, por as outras serem contrárias à sua crença.

img. 391 – 20-10-1646 -  Sumário da capacidade do réu Joseph de Liz.

Perguntado o alcaide Agostinho Nunes, de 32 anos (que também é curador do réu!) se Joseph de Liz é homem de juízo e boa capacidade disse “que o dito preso é homem de bom juízo e entendimento e como tal procedeu sempre neste cárcere, desde que está à ordem dele testemunha, sem nunca fazer acção de homem desassisado, ou sandeu, e que nunca esteve doente, nem teve achaque de que lhe pudesse restar falta, ou aleijão no entendimento, antes ele testemunha o tem por homem sabido e de habilidade, porquanto lhe disse que fazia versos em quatro línguas.”

Os guardas dos cárceres, Francisco de Resende, de 40 anos e Diogo Fernandes, de 46 anos, prestaram a seguir depoimentos idênticos ao do Alcaide.

img. 399 – 22-10-1646 – Exame

img. 405 – 24-10-1646 – Admoestação antes do libelo

img. 407 – Libelo. Principia: “Porque, sendo o R. cristão baptizado e como tal obrigado a ter, crer, tudo o que tem, crê e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, ele o fez pelo contrário (…)”

Ouvida a leitura do libelo, disse que correspondia às suas declarações, mas que tinha defesa com que vir e queria estar com Procurador. Foi-lhe atribuído como Procurador o Licenciado Manuel da Cunha.

img. 411 – 6-11-1646 – Juramento do Procurador

img. 412 – 6-11-1646 – Estância com o Procurador.

img. 417 – 6-11-1646 – O Procurador redige um pequeno texto que começa: “O Réu Joseph de Liz nega ser cristão baptizado e por ora não trata de sua defesa e direito de que pretende usar e tratará dele, fazendo-se-lhe publicação na forma do estilo do Santo Ofício quodem celat”

img. 417 – 8-11-1646 – O processo vai concluso e três Inquisidores despacham: “Visto como estando o Réu Joseph de Liz com seu Procurador, não veio com defesa, o havemos por lançado dela. Corra este processo em seus termos.”

Cf. Dicionário de Bluteau, reformado e acrescentado por António de Morais Silva, 1789:

Lançar alguém de mais prova, no foro – não admitir a dar mais prova; e assim lançá-lo da acção – não admitir, ou fazer perder o direito de a propor, absolvendo o réu da demanda.

img. 418 – 28-11-1646 – O réu pede para estar com o seu Procurador. Na mesma data esteve com o Procurador

img. 419 – 28-11-1646 – O Procurador escreve um texto certamente ditado pelo réu dizendo: “O Réu Joseph de Liz protesta dar-se-lhe vista e notícia (…) de toda a prova que a Justiça A. tiver contra ele ou seja de facto ou de presunção de direito (…)”

Na mesma data, os três Inquisidores despacham “Não há por ora que deferir ao requerimento do Réu Joseph de Liz, a seu tempo se deferirá.”

img. 423 – Alegações de defesa. Nega que seja baptizado. Diz “No Reino de França, não se tem sentido nem tento nas crianças que nascem, se as baptizam seus pais ou não (…)” e “Para o Pai e mãe dele R. conseguirem o intento de baptizarem ao R. sem haver quem o notasse, mandaram buscar da vila de Tartas, aonde vivia ao lugar de Odon (é Audon) uma criança que no mesmo tempo havia parido a mãe de uma sua criada e pondo a dita criança em lugar dele R., a baptizaram em seu nome (…)”

img. 425 – 4-12-1645 – Pede para estar com o Procurador-

img. 426 – 4-12-1645 – Estância com o Procurador

img 427 – Escreve o Procurador: “O réu Joseph de Liz me declarou muitas e largas razões que entendia que eram para bem de sua defesa, e por me não me parecerem que lhe convinham as não escrevi. E em tudo me houve conforme ao juramento que tenho recebido.”

Os três Inquisidores despacham: “Recebemos as razões retro-próximas, oferecidas por parte do Réu Joseph de Liz por informação, para se verem a final” . Por lapso evidente, o despacho vem com a data de 4 de Outubro em vez de 4 de Dezembro, talvez porque este último mês também se escrevia  “X.bro”.

Há aqui um mal entendido que não notaram (não o podiam fazer porque não viam o processo) nem o Procurador nem o réu e passou despercebido a Lipiner. A defesa fora encerrada  com o despacho de 8 de Novembro (Regimento III, VIII, XI). O que escreveram depois já não serviu para nada.

img. 429 – 5-12-1646 - Pede para estar com o Procurador e diz que “estando com seu procurador para formar com ele algumas razões de defesa, ele o não quisera fazer, dizendo serem impertinentes.

img. 430 – 6-12-1646 – Estância com o Procurador

img. 431 – Defesa

Esta defesa está melhor elaborada (Elias Lipiner faz um bom resumo a pags. 180-182). Alega ele que é francês e assim não está sujeito à jurisdição do Tribunal. Mas os Inquisidores nem despacho proferiram sobre ela, por ele já ter sido “lançado da defesa”, como disse acima.

img. 434 – 29-1-1647 – Pede para estar com Procurador, mas dão-lhe agora o Licenciado Luis Ferrão, que ele “tem de“ aceitar.

img. 435 – 29-1-1647 – Aceitação do Procurador

img. 437 – 29-1-1647 O Procurador escreve um arrazoado bastante inofensivo e os Inquisidores despacham na mesma data: “Recebemos por informação as razões ultimamente oferecidas por parte do Réu Joseph de Liz, para se lerem a final.”

img. 443 – 28-1-1647 – “Diz de algumas pessoas que (são) profitentes da Lei de Moisés

Isaac de Castro decide fazer denúncias, certamente na vã esperança de sair da Inquisição com vida. Elenca, pois, todos os judaizantes que conheceu no Brasil. Lipiner transcreve todos os nomes e detalhes; são

- 10 de Paraíba

- 1 de Iguaraçu

- 2 de Olinda

- 41 de Recife

- 8 de Maurícia

- 2 de Porto Calvo

- 3 de Alagoas

- 5 de Rio de S. Francisco

isto é, 72 ao todo.

img. 462 – 4-4-1647 – Requerimento do Procurador para publicação da prova da justiça

img. 463 – Admoestação antes da publicação

Ouvida a leitura da prova da justiça, que tinha 7 testemunhas, foi-lhe perguntado se queria alegar contraditas e estar com Procurador e o réu disse que sim.

img. 471 – Traslado da prova da justiça devolvido pelo Procurador

img. 478 – 25-4-1647 - Alegação de contraditas, com 20 artigos

img. 483 – Indicação de testemunhas às contraditas

img. 487 – 7-5-1647 – Despacho de recebimento das contraditas. Apenas foram recebidas as respeitantes aos dois Padres companheiros da cela, António Nabo de Mendonça e António Lourenço Veloso e destes mesmo 8 artigos para inquirição e 7 apenas para informação.

img. 489 – 23-7-1647 – Diligências de contraditas. Interrogatório do Padre António Nabo de Mendonça.

Disse que foi sempre amigo do réu e não tiveram nenhum atrito ou discussão.

img. 493 – 5-4-1647 – Nota do escrivão juntando os documentos relativos a terem estado com o réu mais dois religiosos.

img. 495 – 5-4-1647 – Os três Inquisidores, Pedro de Castilho, Belchior Dias Preto e Luis Álvares da Rocha, pedem ao Conselho que, nos termos do Regimento, sejam indicados mais padres para estarem com o réu. Em despacho à margem, o Conselho indica os qualificadores os  Padres Mestres Fr. Gaspar dos Reis e Fr. Gonçalo da Gama.,

img. 499 – 17-6-1647 – Testemunho do Padre Mestre Fr. Gaspar dos Reis, de mais de 60 anos.

img. 533 – 18-7-1647 – Testemunho do Padre Mestre Fr. Gonçalo da Gama, de 54 para 55 anos. Este disse “que a pessoa presa não era menos pertinaz e teimosa, que ignorante na língua Hebraica, que, se sabia alguma coisa dela, mais lhe servia de o confundir e endurecer, do que de o alumiar e persuadir (…)”

img. 565 – 29-7-1647 – Primeira sessão apertada

Estão previstas as sessões apertadas (isto é em que se aperta com o réu) no ponto II,XI,I do Regimento. Aqui os Inquisidores não vêm já com bons modos: “”Foi-lhe dito que ele Réu não tem letras nem idade para as haver estudado, nem a sua profissão era gastar o tempo na lição das Escrituras, quando muito aprenderia Latim, e que por assim ser, faz mal de se fiar do seu juízo, devendo sujeitar-se ao que lhe têm dito nesta Mesa por muitas vezes (…)”

img. 569 – 31-7-1647 – Segunda sessão apertada

Perguntado se cuidou em suas coisas, se quer reduzir-se e apartar-se dos erros e crença da Lei de Moisés em que está profitente e converter-se à fé de Cristo Nosso Senhor, na qual somente há salvação para a alma, como por muitas vezes se lhe tem dito nesta Mesa (…)”

img. 577 – 1-8-1647 – Assento da Mesa da Inquisição

As opiniões dividiram-se.  Pareceu ao Inquisidor Pedro de Castilho e aos Deputados, o Bispo de Targa (D. Francisco de Sottomaior), João Delgado Figueira, António de Mendonça e Manuel Corte Real de Abranches que o réu devia ficar reservado por ter apenas 21 anos e ser estilo do Santo Ofício não relaxar antes de 22 anos. E ao Inquisidor Luis Álvares da Rocha e aos Deputados Francisco de Miranda Henriques, D. Leão de Noronha e Martim Afonso de Melo que devia ser logo relaxado, como profitente, pertinaz e impenitente.

img. 581 – 13-8-1647 – Assento da Mesa do Conselho Geral

“(…) e assentou-se que antes de outra coisa se dê notícia ao Réu do Assento do Conselho de 15 de Dezembro de 1645, por que se assentou que deve ser havido por cristão baptizado e se lhe faça uma ou mais sessões que forem necessárias em que se lhe desfaçam as razões com que no papel Latino da sua letra apenso pretende mostrar  que ainda que de facto fosse baptizado, se não pode proceder contra ele pelas razões que aponta, e com o que resultar se torne a ver este processo em Mesa (…)”

img. 585 – 13-8-1647 – “Dá-se-lhe notícia do Assento do Baptismo” de 15-12-1645

Foi-lhe dito que nesta Mesa está tomado final assento de que ele é cristão baptizado e como em causa de tal se há-de proceder, sem embargo das razões e subterfúgios de que tem usado nesta Mesa para ofuscar a verdade de seu baptismo (…”

img. 589 – 20-9-1647 – Satisfação às razões do papel do Réu – apenso 1.

Pretensa resposta ao papel em Latim apresentado pelo réu.

img. 595 – 23-9-1647 - Assento da Mesa da Inquisição

Houve unanimidade em decidir que o réu deveria ser relaxado à justiça secular.

img. 597 – 1-10-1647 – Assento da Mesa do Conselho Geral

“(…) assentou-se que, não reconhecendo o Réu  seus erros antes do primeiro Auto, fique reservado no cárcere (…)

img. 601 – 15-11-1601 – Denunciação contra o Réu

O Alcaide Agostinho Nunes (o Curador!) denuncia que o réu costumava pedir mais pão porque se recusava a comer a carne que lhe davam, por as rezes não terem sido abatidas ao modo judaico, “com faca muito aguçada e tirado o sangue, de sorte que a carne ficasse sem nenhum”. Disse que o preso guarda os sábados com grande pontualidade, e ainda: “E que ele denunciante, não tem dado disto conta na Mesa, porque nela, como curador que é do dito preso, lhe ouvia dizer que era judeu e que guardava a Lei de Moisés e que do sobredito, poderão  saber os guardas que todos se escandalizam do pouco pejo com que o dito Joseph de Liz está judaizando no cárcere e a cada passo diz que ali está o corpo que bem sabe que há-de ser queimado”.

Os guardas Bernardo João e Diogo Fernandes disseram também que o réu guardava muito bem os sábados, e neles não queria tomar o lume para a candeia, ficando às escuras; não consentia que lhe fizessem a barba; e não queria rezar as Avé Marias, ainda que o Alcaide lho mandasse.

img. 609 – 15-11-1647 – “De como não quis adorar ao SS.mo Sacramento, sendo-lhe mandado em Mesa

O Notário Domingos Esteves certifica que, uns dias atrás, passou o Santíssimo Sacramento por junto da Mesa da Inquisição, onde estavam os Inquisidores e o Réu; ajoelhados os Inquisidores, mandaram que o réu fizesse o mesmo e adorasse o Santíssimo, ao que ele se negou, com grande escândalo deles e por isso mandaram registrar o facto.

Lipiner põe alguma dúvida na veracidade do episódio, mas eu não tenho nenhuma. Trata-se de episódio encenado pelos Inquisidores para provocar o réu. E, se não foi logo punido corporalmente, teve muita sorte com os Inquisidores que tinha.  No processo n.º 9485, do Advogado da Casa da Suplicação, Miguel Henriques da Fonseca (fls. 373), em 25-5-1678, o Inquisidor Bento de Beja de Noronha mandou o réu venerar uma imagem de Cristo, ajoelhando-se, o que ele recusou e, por isso, o Inquisidor mandou-o açoitar!

img. 611 – 15-11-1647 - Assento da Mesa da Inquisição

Por unanimidade foi votado que fosse relaxado à justiça secular, embora o Inquisidor Pedro de Castilho fosse de opinião que não havia necessidade de votar.

img. 615 – 17-11-1647 – Assento da Mesa do Conselho Geral

Foi decidido relaxá-lo à justiça secular, como herege e apóstata.

img. 619 – 2-12-1647 – Auto de notificação, prevista no ponto II, XV, I do Regimento

Foi notificado de que estava condenado a ser relaxado à justiça secular. Termina: “(…) e por dizer que Deus tivesse piedade com a sua alma, e que muito havia que esperava esta sentença, foi admoestado em forma e mandado a seu cárcere(…).

img. 620 – 10-12-1647 – O Bispo Inquisidor Geral mandou que se chamasse de novo Fr. Pedro de Magalhães para estar com o réu  “para ver se podia reduzir-se”.

img. 621 – 13-12-1647 – Auto de notificação de mãos atadas, prevista em II, XV,V do Regimento.

Notificação feita na sexta-feira antes do auto de fé (no domingo seguinte). Ficou com o réu o Padre Mateus de Figueiredo, da Companhia de Jesus.

img. 623 – Sentença –

Lipiner (pag. 194) chama-lhe “sentença condenatória”. Não é. A condenação figura no último Assento da Mesa do Conselho Geral. O nome está errado. A sentença era para ser lida no auto de fé, e era mesmo a única peça do processo que às vezes era difundida. Tinha intuitos de propaganda e não raro incluía falsidades.

img.639 – 3-1-1648 –“João de Moraes Homem, escrivão do Crime da Corte na Casa da Suplicação, etc. Aos que esta minha certidão virem, certifico e dou minha fé, que eu vi queimar vivo, no sítio do chafariz em que se faz a queima dos judeus, a José de Liz, por outro nome Isac de Castro, e vi fazer seu corpo em pó e cinzas, por herege Apóstata pertinaz contra nossa Santa Fé Católica; e por passar na verdade e esta me ser pedida de parte do Santo Ofício, a passei por mim escrita e assinada, e aos autos me reporto. Em Lisboa, a três de Janeiro de mil seiscentos quarenta e oito. E eu, João de Moraes o fiz escrever e assinei. João de Moraes Homem.

Lipiner (pag. 217) tem aqui dois pequenos erros de leitura sem importância que emendei.

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Elias Lipiner, Izaque de Castro: O mancebo que veio preso do Brasil, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 1992,  Recife-Brasil, ISBN 85-7019-226-6

 

Ronaldo Vainfas, Jerusalém Colonial – Judeus Portugueses no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010 – ISBN 978-85-200-1013-6

 

Cardozo de Bethencourt, L’Auto Da Fé de Lisbonne – 15 Décembre 1647, in Revue des Etudes Juives n.º 49, Paris, 1904

 

Isaac de Castro, a Martyr to His Faith, in Blessings of Freedom: Chapters in American Jewish History, edited by Michael Feldberg , Ktav Pub Inc, 2002, ISBN 978-0881257564

 

Yshac Cardoso, Excelencias de los Hebreos, Impresso en Amsterdam en casa de David de Castro Tartas, el Año de 1679.

 

 

ANEXO:

 

Processo n.º 4810, do P.e António Lourenço Veloso

 

img. 49 – 17-8-1645 – Depoimento do P.e António Nabo de Mendonça, de 45 anos

 

“E denunciando disse que no cárcere em que esteve preso lhe foi dado por companheiro um Padre que diz chamar-se António Lourenço Veloso, e estar preso por culpas de sodomia, e estando no dito cárcere juntamente com outro companheiro, de que já denunciou nesta mesa (…). E assim viu ele denunciante que o dito clérigo mostrou o seu membro viril ao outro companheiro Joseph de Liz, com ocasião de lhe dizer que lhe queria mostrar um cavalo, até de que lhe dizia também algumas palavras brandas pegando dele e ultimamente desviando o dito Joseph de Liz a sua cama da vizinhança do dito António Lourenço, onde tinha estado alguns dias, e suspeitando ele denunciante que poderia ser em razão do dito clérigo tentar cometer com ele algum pecado, lhe perguntou porque mudara a cama, donde a tinha, e se porventura o fizera por o dito clérigo cometer com ele algum pecado e então disse o dito clérigo António Lourenço que aquela noite tivera cópula sodomítica três vezes com o dito Joseph de Liz, e perguntando ele denunciante a este se era verdade, lhe respondeu que assim passava; posto que ele denunciante não viu o sobredito, antes cuida que lho poderiam dizer por zombaria”.

 

img. 59 – 18-8-1645 – Depoimento de Joseph de Liz, de 19 anos

 

Disse que no cárcere em que esteve preso no mês de Julho próximo passado, teve por companheiros dois Padres que diziam chamar-se António Nabo de Mendonça e António Lourenço Veloso,  e em razão de este dizer que estava preso por culpas do pecado nefando, tomou ele testemunha ocasião para reparar em algumas acções do dito António Lourenço, por lhe parecerem ordenadas ao mesmo pecado, e que agora entende as deve declarar nesta mesa e são que o dito António Lourenço de ordinário praticava em histórias do mesmo pecado, falando em alguns moços gabando-os de gentis homens, dando a entender que eram acomodados para o cometerem com ele. E outrossim na ocasião em que no cárcere da penitência assistiram os réus que no auto próximo passado foram condenados pelo mesmo pecado, iam à porta da casa em que ele testemunha estava com o dito P.e António Lourenço, um João de Freitas (Pr. n.º 4350) e um João Lopes (Pr. n.º 4415), os quais falavam com o dito António Lourenço e tinham entre si conversações lascivas dizendo ao dito Padre, e este a eles, palavras em aprovação do dito crime, e de que se colhia que se não pejavam, nem arrependiam, porque o dito Padre chamava a João de Freitas puta, e este a ele Provincial da Sodomia, e escrevendo-lhe um escrito que também lho chamava, sem embargo disso o dito Padre se não escandalizou, antes ficou continuando com a mesma amizade, mostrando que não se ofendia, nem tinha por injúria, entanto que depois tornou por outras vezes a falar com os sobreditos, e por algumas vezes metia o dito João Lopes os dedos por baixo da porta e o dito António Lourenço metia também os seus para se tocarem, e por algumas vezes pediu o dito António Lourenço a ele testemunha quando estava falando com os sobreditos e se quisesse pôr em parte onde eles pelo buraco da porta pudessem ver se era gentil homem, do que ele testemunha concebia sinistra presunção.

E outrossim por muitas vezes tentava o dito Padre António Lourenço facilitar-se com ele testemunha, e sem embargo de ele testemunha o evitar quanto era possível; todavia, o dito Padre buscava ocasião de lhe pôr a mão no rosto dizendo umas vezes que tinha nele notas de melancolia, e outras que tinha espinhas, e uma vez mostrou a ele testemunha o seu membro viril, tomando por pretexto dizer que tinha nele certo achaque, e vendo-o ele testemunha achou que a ocasião fora fingida, de que ficou entendendo que o dito Padre devia de ter no sobredito algum intento lascivo, principalmente porquanto, estranhando ele testemunha como havia homem que se atrevesse a tentar outro para o pecado nefando, o dito Padre lhe respondia que este se não cometia da primeira vez senão introduzindo pouco a pouco, as facilidades até se ganhar a confiança necessária para se tentar o dito pecado. E assim mais disse o dito Padre António Lourenço em presença do outro companheiro que cometera com ele testemunha o dito pecado três vezes, com ocasião de o dito companheiro António Nabo perguntar a ele testemunha que o obrigara a desviar a sua cama da do dito António Lourenço de que até então estava mais vizinho, dizendo o dito António Nabo que a coisa devia ser recear-se ele testemunha que o dito P.e Veloso quisesse entender com ele, ao que este saiu dizendo que naquela noite dormira com ele testemunha três vezes, e, posto que o sobredito foi falso, e que o dito António Lourenço não teve com ele testemunha coisa alguma, todavia ele testemunha ficou concebendo má opinião de lhe ouvir tal coisa, principalmente sendo falsa; e outrossim dizia muitas vezes o dito António Lourenço que no Santo Ofício se não executava inteiramente justiça no particular do castigo da sodomia, porque só prendiam a castigavam pobretes, e não entendiam com fidalgos, nem poderosos como se fizeram com um genro de certo título que nomeava, e que a razão era que, se se entendesse com estes, abrasariam os ministros da Inquisição. E mais não disse.

Perguntado que coisa teve ele testemunha para mudar a cama do lugar, em que a tinha, e se porventura foi a que o dito António Nabo lhe disse, a saber, recear-se que o dito António Lourenço quisesse cometer com ele o dito pecado de sodomia, e que fundamento teve para este receio.

Disse que até de outras coisas de comodidade se moveu também à dita mudança por evitar toda a ocasião de se decompor com o dito António Lourenço, posto que este lhe não deu outro fundamento mais particular que o das coisas que tem referido.

Perguntado que opinião formou ele testemunha do que viu e ouviu ao dito António Lourenço, e a que fim ficou entendendo que ele dirigia as acções que tem declarado, que passaram com ele testemunha.

Disse que ficara persuadido que o intento do dito P.e António Lourenço era familiarizar-se com ele testemunha a efeito de cometer algum pecado, achando nele testemunha disposição para isso.

Perguntado se é o dito António Lourenço de juízo e capacidade, e se tinha alguma perturbação no tempo em que disse e fez as coisas contidas neste seu testemunho.

Disse que era homem de capacidade e juízo bastante e que nele não mostrava ter perturbação alguma quando disse as coisas sobreditas.

E al não disse e ao costume nada (…)”