12-6-2001

 

 

CESÁRIO VERDE

(1855 - 1886)

 

 

POEMAS:

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

DE TARDE

LÚBRICA

VAIDOSA

CONTRARIEDADES

 

   

 

José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa. Matriculou-se no curso de Letras da Universidade de Lisboa, mas desistiu, indo trabalhar para a loja de ferragens que seu pai tinha na Rua dos Bacalhoeiros. Começou a publicar poesias no Diário de Notícias, no Diário da Tarde, no Ocidente, entre outros. Adoecendo gravemente, fixa-se na quinta da família em Linda-a-Pastora. Morreu tuberculoso aos 31 anos. Foi graças aos esforços do seu amigo Silva Pinto que as suas poesias são postumamente publicadas em volume com o título O Livro de Cesário Verde (1887).

 

 

 

LINKS:

Impressões da cidade em palavras-pinceladas de uma poesia-pintura de Cesário Verde

Poesias

Outra página sobre o poeta

"O Livro de Cesário Verde" online:

Biblioteca Nacional - Lisboa

Projecto Gutenberg

dominiopublico.gov.br

Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro

 

   

 

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

I

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

II

NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e criancas,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III

AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

IV

HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!


(Em Portugal a Camões, publicação extraordinária
do Jornal de Viagens do Porto, no dia 10 de Junho de 1880)

  

 

 

   

 

DE TARDE

Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

 

 

   

 

 
Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás-de por mim morrer,
Morrer muito contente.
 
Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!
 
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu, neles, sempre espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais,
Que muitas bibliotecas!

 

 

   

 

VAIDOSA


Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loira e doirada como as messes,
E possuis muito amor... muito amor próprio.

 

 

   
 
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
    Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
    E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
    E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
    Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
    Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
    Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
    Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
    Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
    Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
    Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
Ea mim, não há questão que mais me contrarie
    Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimento finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
    Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
    E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
    Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
    Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
    Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
    Que mundo! Coitadinha!

 

 

 

O CESÁRIO 

Clara Ferreira Alves     

no EXPRESSO, de 19-5-2001

 
 

 

Vida breve teve Cesário Verde. Nasceu em Lisboa em 25 de Fevereiro de 1855, morreu em Lisboa a 19 de Julho de 1886. Tinha 31 anos, idade absurda para morrer com uma tuberculose. Eu, que não aprecio poetas com obra extensa com a provável excepção de Shakespeare e poucos mais, tudo génios, aprecio em Cesário a modernidade urgente da sua poesia, que cabe toda em 166 páginas (reedição da Dom Quixote, com fixação de texto e nota introdutória de Joel Serrão e revisão e notas de Jorge Serrão). Cesário Verde pode ter morrido cedo, pode ter sido esquecido, pode ter sido uma das vítimas da sombra pessoana projectada sobre quase toda a poesia portuguesa posterior. Continua a ser um dos maiores poetas da língua portuguesa e, passe a hipérbole, da literatura europeia, mundial, o que quiserem. Cesário Verde é mais conhecido por causa do seu «Sentimento de um Ocidental», que a vulgata adoptou como tema e transfiguração de uma Lisboa de fim de século. Hoje, este poema é mais o seu nome, citado a propósito de tudo e de nada, do que os seus versos, que quase ninguém leu. Deve-se a Joel Serrão a publicação em 1963 (por que é que em Portugal tudo demora tanto tempo?) da «Obra Completa» de Cesário Verde. Antes, «em 1919, um incêndio destrói quase por completo a casa de Linda-a-Pastora (onde o poeta vivera isolado nos últimos anos), fazendo desaparecer irremediavelmente todo o seu espólio literário». Em 1887, com uma tiragem de 200 exemplares, foi publicado pela primeira vez «O Livro de Cesário Verde», numa edição do seu amigo Silva Pinto, tendo uma nova edição, já com distribuição nas livrarias, sido feita em 1901. Escreve Joel Serrão que o amigo do poeta, e admirador, Henrique Lopes de Mendonça, lhe vaticinou sombrio futuro na história da literatura: «A tua obra pequena e dispersa não é daquelas que se impõe à admiração condicional da posteridade». A posteridade é o que é, sendo às vezes cega, surda e muda mas, no caso de Cesário Verde, alguma justiça viria a ser prestada pelos que entendem de poesia. Existe quem jure, Vasco Graça Moura entre eles, que a poesia de Cesário é superior à de Pessoa. Eu, que detesto campeonatos de poetas, tenho por Cesário uma paixão, que agrafei à perfeição dos seus versos. Cesário é mais um poeta do século XX do que do século onde nasceu, e a sua linguagem, estilo, métrica, vocabulário, a concisão dos seus «alexandrinos originais e exactos», como ele diz, sagram-no como um dos inventores do português que usamos. Maria Filomena Mónica, na notável biografia que escreveu de Eça de Queiroz, chega a uma conclusão semelhante. Se Eça libertou a prosa portuguesa da «retórica fradesca» que a dominava, Cesário libertou a língua das amarras do lirismo piegas e do sentimento exaltado, das teias de aranha do ideal parnasiano e do romantismo rendilhado. Maria Filomena Mónica diz que nenhum autor inovou como Eça, «com a possível excepção de Cesário Verde». Eu tiraria o adjectivo «possível».Sem precisar de ir à obra-prima, a «O Sentimento de um Ocidental», leiam-se duas estrofes de um outro poema chamado «Contrariedades»: «Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;/ Nem posso tolerar os livros mais bizarros./ Incrível! Já fumei três maços de cigarros/ Consecutivamente. // Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:/ Tanta depravação nos usos, nos costumes!/ amo, insensatamente, os ácidos, os gumes/ E os ângulos agudos.// Sentei-me à secretária. Ali defronte mora/ Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;/ Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes/ E engoma para fora.// E mais adiante: «O obstáculo estimula, torna-nos perversos;/ Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,/ por causa de um jornal me rejeitar, há dias,/ Um folhetim de versos./». É uma poesia que se alimenta do prosaico, do concreto, do quotidiano, que vai esgaravatar versos e palavras de quilate a todos os lugares da aridez sentimental onde a poesia nunca tinha ido garimpar. Que muda os dias finados do famoso spleen, essa vaga inquietação existencial, esse mal-estar, essa indisposição, numa atitude estética que precede as interrogações e angústias ontológicas da modernidade. Cesário, como diriam hoje os adolescentes, é cool (será que o autoritário Novo Dicionário da Língua ainda nos deixa escrever cool ou já o transformou em cul? Quel horreur!). Cesário usa o português sem rodriguinhos nem enfeites, usa a seriedade de uma língua sem lhe roubar a riqueza. O poeta faz parte, ou inaugura, uma linhagem de ilustres que terá como último e versátil representante, no século XX, Alexandre O'Neill (as «Poesias Completas» foram agora reeditadas pela Assírio e Alvim). São os homens que olham para a realidade e a transfiguram num exercício de aparente facilidade verbal que esconde a cautelosa manipulação da realidade, da oralidade e do peso fonético e semântico do vocábulo. Onde O'Neill pergunta com falsa vivacidade «Que se passa em Lisboa?/ Que se passa em Madrid?/ que se passa em mim e em ti?» Cesário remata, em «Contrariedades»: «(...) E a vizinha?/ A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?/ vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia.../ Que vida! Coitadinha!/». Os dois, O'Neill e Cesário, foram à vida, «coitadinha», e dela retiraram o amor, o torpor, a nostalgia, a melancolia, o riso e o siso. Em «O Sentimento de um Ocidental», os primeiros versos «Nas nossas ruas ao entardecer,/ Há tal soturnidade, há tal melancolia,/ Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam um desejo absurdo de sofrer/» nunca mais se esquecem e fazem parte, não apenas do património afectivo da poesia portuguesa (como faz «Um Adeus Português») mas, da totalidade do seu génio. Isto ainda é uma daquelas coisas que nós fazemos melhor que ninguém. A Lisboa enevoada e opressiva de Cesário, a cidade descarnada e triste que ele atravessa com os olhos abertos, é a precursora universal da Londres enfumarada e crepuscular de T. S. Eliot, a Londres do nevoeiro castanho e da madrugada de Inverno.«Unreal City» («The Waste Land»).Eis uma Cidade tornada Irreal pelo excesso de realidade que a poesia soube cantar e decantar. 

 

 

 

EXPRESSO Actual n.º 1760    22 de Julho de 2006

 

Algumas Palavras

 

Joaquim Manuel Magalhães

 

CESÁRIO, MAS SEM CÂNTICOS

 

Os entendimentos acerca das publicações da obra de Cesário Verde apresentados aqui não pretendem ser uma qualquer formulação de juizo crítico sobre a obra do poeta. Tentam somente uma avaliação das principais edições hoje em dia disponíveis no mercado português. O que provocou este intuito foi a edição de Teresa Sobral Cunha, Relógio D’Água, Lisboa, 2006, intitulado Cânticos do Realismo e Outros Poemas/32 Cartas.

A obra histórica que durante décadas permitiu conhecer a poesia de Cesário, sobretudo a todos os poetas que por ela se deixaram tocar, foi O Livro de Cesário Verde, publicado a expensas suas por Silva Pinto (1587), em acto de amizade e admiração. Nada há de linear na amizade e na admiração e é, portanto, provável que possam ter ficado manchados alguns intuitos editoriais de Silva Pinto, mas nada se pode contrapor à evidência de ser esta a referência original enquanto edição em volume Hoje encontra-se uma sua reimpressão, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004. O posfácio e a cronologia, em anexo, da autoria de António Barahona, são um conjunto de considerações e uma enumeração de jeitos que é preferível ignorar.

Mais algum interesse se poderá encontrar nas “Notas à Fixação do Texto”, mas somente enquanto exposição de alguns factos verbais, pois o diálogo com os intuitos de outras edições filologicamente mais seguras, como a de Joel Serrão, é muitas vezes penoso de ser seguido: se há razão no que por vezes afirma, não há razão para razão para tanta verrina tendenciosa e menor face a um autor que sempre se mostrou disposto a acolher correcções que lhe parecessem acertadas e que seguiu critérios até hoje os mais seguros para editar todo o conjunto da obra de Cesário, tanto o incluído na edição de Silva Pinto quanto o ai não incluído mas existente em outros locais onde se publicaram em vida de Cesário. A fixação da obra do poeta feita por Joel Sertão, Obra Completa de Cesário Verde, Portugália Editora, Lisboa 1964, representou o primeiro esforço filologicamente aceitável (ainda que talvez não inteiramente sem falhas) de se poder chegar a um Cesário total. Aí, Joel Serrão recorda o auxílio que lhe prestam dois grandes poetas, Eugénio de Andrade e Carlos de Oliveira, não rejeita O Livro de Cesário Verde - compara-o com outras edições textuais conhecidas - e acrescenta os poemas de Cesário não incluídos nesse volume e por este publicados em vida. Faz também comparecer várias cartas então conhecidas.

A sua ampla informação neste domínio pressente, sem dúvida, alguma indecisão quanto à correcção absoluta dos seus propósitos e das suas descobertas. Tem, assim, uma atitude particularmente notável: «muito desejaria, e muito agradeceria, que [erros] fossem apontados, discutidos, escalpelizados sem dó nem piedade. Esse será, como é evidente, o único caminho para, em futuras edições, se aperfeiçoar, até aos limites das possibilidades». Este espírito de tolerância e de diálogo é próprio de um homem sábio e não fanático, o que não acontece em quem vem hoje atacá-lo na edição da Assírio. Todas as conclusões das suas tarefas dadas a conhecer em 1964, encontram-se no que lhe diz respeito, rematadas na publicação corrente Obra Completa de Cesário Verde, Livros Horizonte, Lisboa, 2003. (Um outro volume, Cesário Verde - Poesia Completa, 1855-1886, Dom Quixote, Lisboa, 2001, está muito longe da importância que assume o volume da Livros Horizonte.) Neste, embora admita não acreditar (e dá boa justificação) na possibilidade de uma edição critica da obra de Cesário, apresenta aquela que para mim é, até ao momento, a usais fidedigna e mais limpidamente organizada das edições possíveis da obra do poeta, incluindo o maior número conhecido de cartas suas. Tudo está explicado com grande rigor e com a máxima clareza e simplicidade; ocorrem por vezes desvios face aos critérios definidos para a edição, pequenas contradições quanto aos momentos últimos do texto ainda em vida de Cesário, uma ou outra precipitada correcção de palavras nas publicações originais (supondo-as gralhas), alguma incompreensão do que pode ter ocorrido com informações de Silva Pinto as quais, se não deveriam ter sido aceites de modo a pôr em causa os bons critérios editoriais por si defendidos, poderiam ser apreciadas com mais razoabilidade, uma vez que temos de admitir que muitas diversidades existentes na edição deste se podem ter devido a diálogos que só ele teve com Cesário, (Se Cesário tivesse dado qualquer sinal de querer afastar de si esse amigo com quem, nos últimos tempos, já não viveria na harmonia dos tempos iniciais, por certo que seu irmão não teria fornecido todos os elementos de que dispunha para que «O Livro» fosse levado a cabo.) Este ponto é muito importante, mas não quero despedir-me de Joel Serrão sem afirmar que não surgiu ainda uma edição filologicamenre inatacável capaz de destruir a deste sábio historiador e também conhecedor da poesia.

Chegamos por fim à edição de Teresa Sobral Cunha. Embora qualitativamente distante da de Joel Serrão, é a outra obra de Cesário de que dispomos em relativa boa qualidade. Há muita informação interessante nas notas, embora várias vezes a articulação do conjunto seja feita de um modo um tanto confuso. Há uma fixação textual coerente, embora sem explicitação rigorosa dos critérios críticos (sente-se ser uma pessoa que gosta muito dos “seus” poetas, acumula tudo o que pode saber sobre eles, conta tudo com alegria e entusiasmo aos leitores, mas descura no meio desse novelo os princípios da clareza e as pressões filológicas fundamentais para que uma edição não seja meramente uma curiosidade, mas um resultado crítico ou fidedigno).

Comecemos pelas cartas. Exclui um conjunto que Cesário trocou com um noivo de sua irmã: pretende somente publicar as cartas que lhe permitam - e isto é mesmo rebuscado – “obter o melhor proveito da dinâmica recíproca dos corpos poético e prosaico colocados em sucessão” (pág. 29). Talvez queira com isto dizer, só as cartas que ajudem para os poemas. Pois bem, sobre o autor dos poemas refere na página anterior a imagem de Cesário (se bem entendo o que pretende declarar) como “meticuloso correspondente”: ora, estas cartas do seu tempo de rapaz elucidam algo sobre este ponto, pelo menos. Conclusão: temos umas cartas escolhidas, bem menos completas, pois, que as publicadas por Joel Serrão.

Organiza o livro segundo critérios seus (mas, talvez infelizmente, esta senhora não tenha tido acesso a tudo o que Silva Pinto teve). Assim, decide prefaciar o volume com algo que seria um possível prefácio de Fialho de Almeida que nunca chegou bem a acontecer: uma edição fidedigna tem anexos, para não permitir interferências com a organização nuclear do livro e para aí deveria seguir esse texto de Fialho. Anexo bem definido, onde deveria figurar tudo o mais que a organizadora achasse fundamental pala o seu trabalho, como o texto de Pessoa que publica (a ênfase em Pessoa e em Sá Carneiro talvez não fosse necessária, pois a fama póstuma de Cesário não dependeu da apreciação destes dois poetas e – e não nos está a ser proposta uma compilação da história da crítica existente sobre o autor, muitos melhores juízos faltariam -, uma vez que só depois de ser reconhecido e ter influído na poesia portuguesa vieram a surgir com suficiente difusão os textos dos dois amigos da “Orfeu”, além de que Pessoa parece dever muito mais a Pessoa do que este ao que Pessoa sobre ele escreveu). É bom perder a inocência de que os juízos de Pessoa servem para salvar ou condenar seja o que for na tradição literária, pois estas tradições podem muitas vezes variar independentemente da opinião dos poetas que nós julgamos absolutamente significativos num determinado instante.

Também em anexo deveria surgir o texto anónimo “Per Amica Silentia...” que a autora não sabe de facto se é de Cesário; mais vale aguardar, talvez em vão, certezas e entretanto pôr as coisas onde criticamente se devem pôr.

Toda a história estritamente textual de cada poema é apenas suficientemente proposta; não há erros, mas também não há completude.

Para assombro cimeiro, porém, surge-nos o título que é decidido dar agora à obra de Cesário. Obra completa não é, pois lhe faltam pelo menos cartas conhecidas; obra fidedigna não é porque khe faltam miríades de variantes que deveriam ter sido anotadas; obra reunida poderia ser que fosse, mas deveria ser muito melhor organizada e com menos intervenção de opiniões judicativas sobre os poemas, quer da autoria da autora quer da de outros, por entre as notas. Então, sem grandes fundamentos críticos justificativos, de um modo meio escondido, temos na pág. 250, linha 3, que um jornal anunciara em 1873 - Cesário morreria treze anos depois - a próxima publicação de um livro deste chamado Cânticos do Realismo. E aí que temos de adivinhar a razão do surpreendente título. Os “outros poemas» são os principais poemas que Cesário viria a escrever, nada mais nada menos. Cesário nunca deixou registo desse título, pode-o ter referido como hipótese a um jornal, mas sabemos que nunca organizou em toda a sua vida, por o não querer fazer, livro algum. A “beleza” e a “pertinência” da expressão não parecem ter nada a ver com o gosto de Cesário que podemos ver evoluir para os tais “outros poemas”; aqueles “cânticos” (que não são o português de “Chants” em poetas que o jovem poeta admira, ele mesmo usará “Cantos” num poema de 1874) mais depressa evocariam a “nódoa negra e fúnebre do clero” e das suas missas ou das suas ilusões enganadoras (isto tanto é válido para opiniões do poeta como para opiniões minhas).

Não. Este volume de Teresa Sobral Cunha não me convence nada. É uma contribuição interessante, sem dúvida. Mas está longe de seraquela em que eu mais vejo proximidade com exemplares trabalhos editoriais da nossa poesia moderna: por exemplo, a edição de Jorge de Sena levada a cabo entre inúmeras resistências e incompreensões por Mécia de Sena,  os vários volumes da obra de Pessoa (excepto o de Álvaro de Campos) e os três volumes da obra poética de Nemésio publicados na Imprensa Nacional.