12-4-2001
AMÁLIA RODRIGUES
(1920 - 1999)
CANÇÕES:
Medo: Quem dorme à noite comigo
Pode ver um dossier sobre a cantora aqui.
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
||
|
|
|
|
|
PÚBLICO, 30 de Julho de 2004-07-30
Suplemento Y
AMÁLIA – Uma volta ao mundo em 90 minutos.
Estreado nos Estados Unidos há quatro anos, The Art of Amalia chega agora a Portugal em DVD duplo, com uma hora de extras. São 90 minutos em que Amália deu, de novo, a volta ao mundo, como se renascesse.
NUNO PACHECO
“Olá, o meu nome é David Byrne.” Vê-se que é, mas não é isso que importa. O que é importa é o que ele diz, virado para a câmara, quando confessa que ficou fascinado por Amália na primeira vez que a ouviu cantar. Foi em 1989, dez anos antes de o porem diante da câmara a falar dela. “Era como se uma espécie de explosão emocional saísse daquelas pequenas colunas que eu estava a utilizar na altura.”Uma explosão que trazia “toda a tristeza do Universo.” Amália. A Arte de Amália. “The Art of Amália”, assim ficou o filme, estreado em Nova Iorque no ano 2000 e agora, quatro anos depois, chegado a nossas casas num DVD duplo com a chancela da EMI-Valentim de Carvalho.
Byrne, que ajudou a caucionar muitos nomes da chamada “música do mundo” (na maioria dos casos, tudo o que não é estritamente norte-americano ou inglês) era, para a América, o “cartão de visita” ideal e talvez por isso ele surja antes do genérico, na sua singela declaração de fascínio. Mas quando surge Amália, numa interpretação deslumbrante de “Estranha forma de vida”, Byrne apaga-se e fica apenas uma voz, belíssima, por cima de uma sucessão de imagens mudas, Amálias de todos os tempos, uma sorridente, outra enigmática, outra da cor do mistério que ela própria foi e criou.
O filme, esse, nasceu em Nova Iorque, no início dos anos 90, de um encontro entre Amália Rodrigues, então com 70 anos, e o cineasta Bruno de Almeida. Não apenas o filme, mas uma ligação apaixonada de Bruno (português, nascido em Paris em 1965 e a residir em Nova Iorque desde 1985) ao universo de Amália. Começou por filmar um concerto dela no Town Hall, em Novembro de 1990, que veio a ser editado em VHS em 1991 sob o título “Amália Rodrigues Live o New York City”. Depois, embrenhou-se em arquivos e bobinas para realizar algo ainda mais ambicioso: um documentário de cinco horas chamado “Amália, Uma Estranha Forma de Vida”. Concluído em 1994, foi exibido na RTP em 1995, em episódios de uma hora cada, sendo posteriormente editado também em VHS, numa caixa com cinco cassetes. Um e outro não conheceram, ainda, transposição para DVD (do primeiro há um DVD pirata, de qualidade medíocre).
Mas a extensão do documentário vedava-lhe a entrada nas salas de cinema. Por isso surgiu a ideia de adaptá-lo a esse formato, juntando-lhe novos materiais mas usando a mesma (longa) entrevista feita a Amália, em sua casa. Bruno voltou, então, aos materiais e ainda estava às voltas com eles quando Amália morreu. O filme foi então concluído e estreado nos EUA, nos cinemas, com assinalável êxito. O “New York Times” de 3 de Dezembro de 2000 anunciava: “A rainha do fado, a alma de Portugal, está viva outra vez.” No texto, assinado por Jon Pareles, citava-se Bruno de Almeida: “Ela era como Miles Davis, quebrando as regras enquanto os puristas diziam: ‘não faças isso’. Cinco anos depois, o que ela fazia é que se tornava a regra.”
vertigem de sons e imagens. Mas Nova Iorque está longe e o filme agora está aqui. Para quem viu “Amália, Uma Estranha Forma de Vida”, o documentário matricial, “The Art of Amália” parece uma curta-metragem. É uma sensação ilusória, porque tem 90 minutos, mas percorre a longa carreira de Amália de forma tão rápida que quase parece voar por sobre datas e imagens. É mais acessível? Sem dúvida. Mas perde grande parte da sensação de nos afundarmos lentamente numa vida para dela percebermos o sentido.
Amália, nas suas declarações videogravadas, tem o condão de simplificar tudo (como fez, aliás, nesse livro obrigatório que é a “Amália: Uma Biografia”, de Pavão dos Santos, que lhe dá a palavra na primeira pessoa como se ela, em lugar de o gravar em longas conversas, o escrevesse). “Os portugueses inventaram o fado”, diz. Porquê? Porque estavam tristes, porque tinham “muita razão de queixa do mundo.” Ela não teve, antes pelo contrário. O filme, menos centrado na vida da cantora do que na sua carreira, segue-a em múltiplas deambulações pelos quatro cantos do globo. Madrid em 1943, Rio de Janeiro em 1944, Paris em 1949, Nova lorque em 1952. Lugares onde voltará, uma e outra vez. Canta fados mas também tudo o que absorve e logo trauteia, como se por debaixo da pele uma imensa esponja lhe ocupasse o lugar dos sentidos. Já em pequena, vinha do cinema a cantar canções de Gardel sem saber uma palavra de castelhano. Mas decorava-lhes o som e assim contrariava os cânones. “Isto era à espanhola, não se fazia”, diz ela ao comentar a forma como cantava “Lá porque tens cinco pedras”. Não se fazia, no fado, mas ela cantará coplas espanholas como “Lerele” (grafada erradamente no DVD como “Lerere”), como cantará mais tarde rancheras, dias depois de pisar solo mexicano (“Fallaste corazón” é uma, entre várias) ou a “Tarantella”, gravada em Itália em duas tardes, a ler directamente do napolitano. Não se fazia, mas pouco lhe importava.
Há, nesta vertigem de sons e imagens, momentos em que a história parece pairar sem ligar ao relógio. É o caso de “Aí Mouraria” (aos 12m08s do filme, na integra no DVD2), onde uma Amália extraordinariamente jovial empenha todos os seus sentidos na primeira canção que Frederico Valério lhe ofereceu; ou o excerto do filme “Les Amants du Tage” onde ela canta “Barco Negro” perante uma plateia extasiada (28m29s, também na integra no DVD2). Deste último, Amália recorda que os figurantes se esqueceram que estavam num filme e irromperam em aplausos quando ela cantou “Estão loucas”. Henri Verneuil, o realizador, terá dito: “Tenho a cena estragada, mas é um grande sinal.”
Mas há mais: depois do belíssimo “Abandono” (36m34s), com poema de David Mourão-Ferreira, e do “Fado português” de José Régio (38m49s), pode ver-se um ensaio com Alain Oulman, ao piano, e ela a trautear uma canção nos estúdios da Valentim de Carvalho (41 m34s). Ou Charles Trenet a apresentá-la em Cannes, em 1963, anunciando um fado para depois ouvi-la cantar “Mi florero”, do reportório de Lola Flores. Ou ainda (aos 24m26s) Dom Ameche a apresentá-la como convidada especial de Eddie Fisher no “Coke Time” (patrocinado pela Coca Cola), para cantar “April in Portugal”: “Coimbra”.
A morte e as falhas. O filme salta depois, em traços largos, pelos pontos obrigatórios da sua carreira e pelas personagens que a povoaram, de Anthony Quinn (planeou para ela “As Bodas de Sangue”, de Lorca, que nunca se concretizou) até Caetano Veloso, que num concerto seu, no Coliseu de Lisboa, a descobre na plateia e a abraça ternamente no palco: “Uma das coisas mais fortes na minha formação”, diz, “é o som ‘que sai e sempre sairá da garganta de Amália Rodrigues.”
Depois vêm mais lugares: a URSS e o Leste europeu, a Itália, o Japão. E medalhas. E homenagens: “Eu estou viva mas onde o sinto é quase sempre no palco.” Fora dele, doía-lhe a negação da eternidade, como Pavão dos Santos registou no seu livro: “Desde que existe morte, imediatamente a vida é absurda (...) A ideia da morte acompanhou-me dos treze aos dezoito anos (...) Andava sempre a querer matar-me.” Quando a irmã, Aninhas, morreu de tuberculose, aos 16 anos, Amália (que tinha 20) perdeu os instintos suicidas. Até lhe ser diagnosticado um tumor, em 1984. Aí, viajou para Nova Iorque com intenção de pôr termo à vida. Mas foi salva pela arte. Ofereceram-lhe um filme de Fred Astaire, em vídeo, e ela deixou-se encantar pelas imagens. Durante dias, comprou todos os filmes dele que encontrou. Esqueceu-se da morte, inebriou-se de vida e uma operação salvou-a. Até que, a 6 de Outubro de 1999, a sua “estranha forma de vida” teve o fim que há muito adivinhava. Tinha 79 anos e não “traiu”, entrando noutro, o século que verdadeiramente a amou.
O filme dá-nos a ver tudo isso, excepto o último adeus, pontuado num subtil registo. A acompanhá-lo, um segundo DVD permite ver e ouvir, na íntegra, 18 das 40 canções que integram o filme, do “Fado Malhoa” até “Povo que lavas no rio” já muito sofrido, numa voz que apenas no timbre recordava o intenso brilho de outrora. São estes os extras, além de um trailer, um videoclip de “Estranha forma de vida”, discografia e filmografia seleccionadas (nos filmes falta, incompreensivelmente, qualquer referência a “Vendaval Maravilhoso”, de 1949, de Leitão de Barros) e, por fim, alguns livros e endereços na net.
Na narração original, em inglês, Bruno de Almeida colocou um dos seus actores-fétiche, John Ventimiglia, o Artie Bucco da série “Os Sopranos” e o inefável “Louie” de “On The Run” (“Em Fuga”, 1999). Mas, para a edição em DVD, escolheu outros actores: Joaquim de Almeida (na narração portuguesa, que soa demasiado ríspida) e Maria de Medeiros (mais envolvente na narração em francês). Há um narrador espanhol, mas não é identificado. Claramente virado para o mercado internacional e sem folheto que o acompanhe, o DVD, embora seja desde já uma referência obrigatória nos registos videográficos de Amália, tem falhas incompreensíveis. Como o irritante salto entre camadas no DVD1, que mutila uma frase de Amália quando esta fala do seu melhor papel no cinema e logo num filme onde não canta). E a ausência de referências escritas, temporais ou outras, das “músicas completas” que integram o DVD2. Seria muito pedir que, para cada canção ou excerto de filme, se indicasse, mesmo em letra pequena, a proveniência ou data? E por que motivo não há, no segundo DVD, uma breve conversa com Bruno de Almeida onde o realizador explicasse os passos seguidos na concretização do filme? Talvez seja preciso esperar pela edição revista (naturalmente bem vinda) do documentário de cinco horas para que a informação cuidada rompa os limites da superficialidade. Até lá, “The Art of Amália” merece ser visto, revisto e dado a ver, de preferência aos que dizem, como ela no célebre fado homónimo que tão bem cantava: “Amália? Não sei quem é”.