12-4-2001

 

AMÁLIA RODRIGUES

(1920 - 1999)

CANÇÕES:

Medo: Quem dorme à noite comigo

Estranha forma de vida

Libertação

Há festa na mouraria

Não é desgraça ser pobre

Gaivota

Com que voz

Madrugada de Alfama

Ai mouraria

Fado português

Maria : Lisboa

Barco negro

Povo que lavas no rio

Meu amor, meu amor

Não peças demais à vida

 

Pode ver um dossier sobre a cantora aqui.

 

 

 

Medo: Quem dorme à noite comigo

 

Letra: Reinaldo Ferreira

Música: Alain Oulman

 

Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo!
Mas se insistirem, desdigo.
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo!

E cedo, porque me embala
Num vaivém de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.

Que farei quando, deitado,
Fitando o espaço vazio,
Grita no espaço fitado
Que está dormindo a meu lado,
Lázaro e frio?

Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me.
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.

 

 

 

 

 

 

Estranha forma de vida

 

Letra e música: Alfredo Duarte e Amalia Rodrigues

 

Foi por vontade de Deus
que eu vivo nesta ansiedade.
Que todos os ais são meus,
Que é toda a minha saudade.
Foi por vontade de Deus.

Que estranha forma de vida
tem este meu coração:
vive de forma perdida;
Quem lhe daria o condão?
Que estranha forma de vida.

Coração independente,
coração que não comando:
vive perdido entre a gente,
teimosamente sangrando,
coração independente.

Eu não te acompanho mais:
para, deixa de bater.
Se não sabes aonde vais,
porque teimas em correr,
eu não te acompanho mais.

 

Libertação

 

Letra: David Mourão Ferreira

Música:Santos Moreira

 

Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.

Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.

Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daquí, onde queiras,
a vida será maior.

Nem as esp'ranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.

 

 

 

 

 

 

Há festa na mouraria

 

Letra e música: A. Amargo; A Duarte

 

Há festa na Mouraria,
é dia da procissão
da senhora da saúde.
Até a Rosa Maria
da rua do Capelão
parece que tem virtude.

Naquele bairro fadista
calaram-se as guitarradas:
não se canta nesse dia,
velha tradição bairrista,
vibram no ar badaladas,
há festa na Mouraria.

Colchas ricas nas janelas,
pétalas soltas no chão.
Almas crentes, povo rude
anda a fé pelas vielas:
é dia da procissão
da senhora da saúde.

Após um curto rumor
profundo siléncio pesa:
por sobre o largo da guia
passa a Virgem no andor.
Tudo se ajoelha e reza,
até a Rosa Maria.

Como que petrificada,
em fervorosa oração,
é tal a sua atitude,
que a rosa já desfolhada
da rua do Capelão
parece que tem virtude.

 

 

Não é desgraça ser pobre

 

Letra e música: Norberto Araújo

 

Não é desgraça ser pobre,
não é desgraça ser louca:
desgraça é trazer o fado
no coração e na boca.

Nesta vida desvairada,
ser feliz é coisa pouca.
Se as loucas não sentem nada,
não é desgraça ser louca.

Ao nascer trouxe uma estrela;
nela o destino traçado.
Não foi desgraça trazé-la:
desgraça é trazer o fado.

Desgraça é andar a gente
de tanto cantar, já rouca,
e o fado, teimosamente,
no coração e na boca.

 

 

 

 

 

Gaivota

 

Letra: Alexandre O’Neill

Música Alain Oulman

 

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.

 

Com que voz

 

Música: Alain Oulman

Letra: Camões

 

Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou.
Que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado.

Mas chorar não estima neste estado
aonde suspirar nunca aproveitou.
Triste quero viver, poi se mudou
em tisteza a alegria do passado.

Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que a sofre e sente.

De tanto mal, a causa é amor puro,
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dele aventuro.

 

 

 

 

 

Madrugada de Alfama

 

Letra: David Mourão-Ferreira

Música: Alain Oulman

 

Mora num beco de Alfama
e chamam-lhe a madrugada,
mas ela, de tão estouvada
nem sabe como se chama.

Mora numa água-furtada
que é a mais alta de Alfama
e que o sol primeiro inflama
quando acorda à madrugada.
Mora numa água-furtada
que é a mais alta de Alfama.

Nem mesmo na Madragoa
ninguém compete com ela,
que do alto da janela
tão cedo beija Lisboa.

E a sua colcha amarela
faz inveja à Madragoa:
Madragoa não perdoa
que madruguem mais do que ela.
E a sua colcha amarela
faz inveja à Madragoa.

Mora num beco de Alfama
e chamam-lhe a madrugada;
são mastros de luz doirada
os ferros da sua cama.

E a sua colcha amarela
a brilhar sobre Lisboa,
é como a estatua de proa
que anuncia a caravela,
a sua colcha amarela
a brilhar sobre Lisboa.

 

Ai mouraria

 

Letra e música: Amadeu do Vale, Frederico Valério

 

Ai, Mouraria
da velha Rua da Palma,
onde eu um dia
deixei presa a minha alma,
por ter passado
mesmo ao meu lado
certo fadista
de cor morena,
boca pequena
e olhar troçista.

Ai, Mouraria
do homem do meu encanto
que me mentia,
mas que eu adorava tanto.
Amor que o vento,
como um lamento,
levou consigo,
mais que ainda agora
a toda a hora
trago comigo.

Ai, Mouraria
dos rouxinóis nos beirais,
dos vestidos cor-de rosa,
dos pregões tradicionais.
Ai, Mouraria
das procissões a passar,
da Severa em voz saudosa,
da guitarra a soluçar.

 

 

 

 

 

Fado português

 

Música Alain Oulman

Letra: José Régio

 

O Fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro,
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada,
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro velero
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

 

Maria : Lisboa

 

Música: Alain Oulman

Letra: David Mourão Ferreira

É varina, usa chinela,
tem movimentos de gata;
na canastra, a caravela,
no coração, a fragata.

Em vez de corvos no chaile,
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao baile,
baila no baile com o mar.

É de conchas o vestido,
tem algas na cabeleira,
e nas velas o latido
do motor duma traineira.

Vende sonho e maresia,
tempestades apregoa.
Seu nome próprio: Maria;
seu apelido: Lisboa.

 

 

 

 

 

 

Barco negro

 

Música: Caco Velho: Piratini

Letra: David Mourão Ferreira

 

De manhã, que medo, que me achasses feia! 
Acordei, tremendo, deitada n'areia
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.[Bis]

Vi depois, numa rocha, uma cruz, 
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas 
Dizem as velhas da praia, que não voltas:

São loucas! São loucas! 

Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor, 
Me diz qu'estás sempre comigo.[Bis] 

No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.

 

 

Povo que lavas no rio

 

Fado Victória

Pedro Homem de Melo

 

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão.
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda
Bebi em malga que me esconde
O beijo de mão em mão.
Era o vinho que me deste
A água pura, puro agreste
Mas a tua vida não.

Aromas de luz e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição.
Povo, povo, eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida não.

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão.
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

 

 

 

 

 

 

 

 

Meu amor, meu amor

 

Música: Alain Oulman

Letra: Ary dos Santos

 

Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.

 

 

Não peças demais à vida

 

(Álvaro Duarte Simões – 1968)

 

Não peças demais à vida,

Aceita o ela te deu

Uma janela florida

Mostra a cor de todo o céu.

 

Afinal a felicidade

Cabe num rosto a sorrir

Ai de quem sente a ansiedade

De viver sempre a pedir.

 

Lá, lá, lá, rá, rá, lá, lá, lá

…………………………

 

Não peças demais à vida,

Aceita o que ela te dá,

Porque a ambição desmedida

Faz-nos crer o que não há.

 

E não há sinceramente

Maneira de ser feliz

Para quem quer constantemente

Ser mais feliz do que quis.

 

Lá, lá, lá, rá, rá, lá, lá, lá

…………………………

 

Não peças demais à vida,

E aceita o que ela te der,

Às vezes, basta a guarida

Dum abraço de mulher.

 

Num sorriso de criança

Ou no sol quente a brilhar

Existe um tesouro de esperança

Que ninguém pode comprar.

 

Lá, lá, lá, rá, rá, lá, lá, lá

…………………………

 

Se afinal basta a guarida

Dum abraço de mulher,

Não peças demais à vida,

E aceita o que ela te der.

 

Lá, lá, lá, rá, rá, lá, lá, lá

…………………………

 

 

 

   

LINKS (letras):        O        O       O        O

 

                                                  

PÚBLICO, 30 de Julho de 2004-07-30

Suplemento Y

AMÁLIA – Uma volta ao mundo em 90 minutos.

Estreado nos Estados Unidos há quatro anos, The Art of Amalia chega agora a Portugal em DVD duplo, com uma hora de extras. São 90 minutos em que Amália deu, de novo, a volta ao mundo, como se renascesse.

NUNO PACHECO

“Olá, o meu nome é David Byrne.” Vê-se que é, mas não é isso que importa. O que é importa é o que ele diz, virado para a câmara, quando confessa que ficou fascinado por Amália na primeira vez que a ouviu cantar. Foi em 1989, dez anos antes de o porem diante da câmara a falar dela. “Era como se uma espécie de explosão emocional saísse daquelas pequenas colunas que eu estava a utilizar na altura.”Uma explosão que trazia “toda a tristeza do Universo.” Amália. A Arte de Amália. “The Art of Amália”, assim ficou o filme, estreado em Nova Iorque no ano 2000 e agora, quatro anos depois, chegado a nossas casas num DVD duplo com a chancela da EMI-Valentim de Carvalho.

Byrne, que ajudou a caucionar muitos nomes da chamada “música do mundo” (na maioria dos casos, tudo o que não é estritamente norte-americano ou inglês) era, para a América, o “cartão de visita” ideal e talvez por isso ele surja antes do genérico, na sua singela de­claração de fascínio. Mas quando surge Amália, numa interpretação deslumbrante de “Estranha forma de vida”, Byrne apaga-se e fica apenas uma voz, belíssima, por cima de uma sucessão de imagens mudas, Amálias de todos os tempos, uma sorridente, outra enigmá­tica, outra da cor do mistério que ela própria foi e criou.

O filme, esse, nasceu em Nova Iorque, no início dos anos 90, de um encontro entre Amália Rodrigues, então com 70 anos, e o cineasta Bruno de Almeida. Não apenas o filme, mas uma ligação apaixonada de Bruno (português, nascido em Paris em 1965 e a residir em Nova Iorque desde 1985) ao universo de Amália. Começou por filmar um concerto dela no Town Hall, em Novembro de 1990, que veio a ser editado em VHS em 1991 sob o título “Amália Rodrigues Live o New York City”. Depois, embrenhou-se em arquivos e bobinas para realizar algo ainda mais ambicioso: um documentário de cinco horas cha­mado “Amália, Uma Estranha Forma de Vida”. Concluído em 1994, foi exibido na RTP em 1995, em episódios de uma hora cada, sendo posteriormente editado também em VHS, numa caixa com cinco cassetes. Um e outro não conheceram, ainda, transposição para DVD (do primeiro há um DVD pirata, de qualidade medíocre).

Mas a extensão do documentário vedava-lhe a entrada nas salas de cinema. Por isso surgiu a ideia de adaptá-lo a esse formato, juntan­do-lhe novos materiais mas usando a mesma (longa) entrevista feita a Amália, em sua casa. Bruno voltou, então, aos materiais e ainda estava às voltas com eles quando Amália morreu. O filme foi então concluído e estreado nos EUA, nos cinemas, com assinalável êxito. O “New York Times” de 3 de Dezembro de 2000 anunciava: “A rainha do fado, a alma de Portugal, está viva outra vez.” No texto, assinado por Jon Pareles, citava-se Bruno de Almeida: “Ela era como Miles Davis, quebrando as regras enquanto os puristas diziam: ‘não faças isso’. Cinco anos depois, o que ela fazia é que se tornava a regra.”

 vertigem de sons e imagens. Mas Nova Iorque está longe e o filme agora está aqui. Para quem viu “Amália, Uma Estranha Forma de Vida”, o documentário matricial, “The Art of Amália” parece uma curta-metragem. É uma sensação ilusória, porque tem 90 minutos, mas percorre a longa carreira de Amália de forma tão rápida que quase parece voar por sobre datas e imagens. É mais acessível? Sem dúvida. Mas perde grande parte da sensação de nos afundarmos lentamente numa vida para dela percebermos o sentido.

Amália, nas suas declarações videogravadas, tem o condão de sim­plificar tudo (como fez, aliás, nesse livro obrigatório que é a “Amália: Uma Biografia”, de Pavão dos Santos, que lhe dá a palavra na primeira pessoa como se ela, em lugar de o gravar em longas conversas, o escrevesse). “Os portugueses inventaram o fado”, diz. Porquê? Porque estavam tristes, porque tinham “muita razão de queixa do mundo.” Ela não teve, antes pelo contrário. O filme, menos centrado na vida da cantora do que na sua carreira, segue-a em múltiplas deambulações pelos quatro cantos do globo. Madrid em 1943, Rio de Janeiro em 1944, Paris em 1949, Nova lorque em 1952. Lugares onde voltará, uma e outra vez. Canta fados mas também tudo o que absorve e logo trauteia, como se por debaixo da pele uma imensa esponja lhe ocupasse o lugar dos sentidos. Já em pequena, vinha do cinema a cantar canções de Gardel sem saber uma palavra de castelhano. Mas decorava-lhes o som e assim contrariava os cânones. “Isto era à espanhola, não se fazia”, diz ela ao comentar a forma como can­tava “Lá porque tens cinco pedras”. Não se fazia, no fado, mas ela cantará coplas espanholas como “Lerele” (grafada erradamente no DVD como “Lerere”), como cantará mais tarde rancheras, dias depois de pisar solo mexicano (“Fallaste corazón” é uma, entre várias) ou a “Tarantella”, gravada em Itália em duas tardes, a ler directamente do napolitano. Não se fazia, mas pouco lhe importava.

Há, nesta vertigem de sons e imagens, momentos em que a história parece pairar sem ligar ao relógio. É o caso de “Aí Mouraria” (aos 12m08s do filme, na integra no DVD2), onde uma Amália extraordi­nariamente jovial empenha todos os seus sentidos na primeira canção que Frederico Valério lhe ofereceu; ou o excerto do filme “Les Amants du Tage” onde ela canta “Barco Negro” perante uma plateia extasiada (28m29s, também na integra no DVD2). Deste último, Amália recorda que os figurantes se esqueceram que estavam num filme e irromperam em aplausos quando ela cantou “Estão loucas”. Henri Verneuil, o rea­lizador, terá dito: “Tenho a cena estragada, mas é um grande sinal.”

Mas há mais: depois do belíssimo “Abandono” (36m34s), com poema de David Mourão-Ferreira, e do “Fado português” de José Régio (38m49s), pode ver-se um ensaio com Alain Oulman, ao pia­no, e ela a trautear uma canção nos estúdios da Valentim de Carvalho (41 m34s). Ou Charles Trenet a apresentá-la em Cannes, em 1963, anunciando um fado para depois ouvi-la cantar “Mi florero”, do reportório de Lola Flores. Ou ainda (aos 24m26s) Dom Ameche a apresentá­-la como convidada especial de Eddie Fisher no “Coke Time” (patrocinado pela Coca Cola), para cantar “April in Portugal”: “Coimbra”.

A morte e as falhas. O filme salta depois, em traços largos, pelos pontos obrigatórios da sua carreira e pelas personagens que a povoaram, de Anthony Quinn (planeou para ela “As Bodas de Sangue”, de Lorca, que nunca se concretizou) até Caetano Veloso, que num concerto seu, no Coliseu de Lisboa, a descobre na plateia e a abraça ternamente no palco: “Uma das coisas mais fortes na minha formação”, diz, “é o som ‘que sai e sempre sairá da garganta de Amália Rodrigues.”

Depois vêm mais lugares: a URSS e o Leste europeu, a Itália, o Japão. E medalhas. E homenagens: “Eu estou viva mas onde o sinto é quase sempre no palco.” Fora dele, doía-lhe a negação da eternidade, como Pavão dos Santos registou no seu livro: “Desde que existe morte, ime­diatamente a vida é absurda (...) A ideia da morte acompanhou-me dos treze aos dezoito anos (...) Andava sempre a querer matar-me.” Quando a irmã, Aninhas, morreu de tuberculose, aos 16 anos, Amália (que tinha 20) perdeu os instintos suicidas. Até lhe ser diagnosticado um tumor, em 1984. Aí, viajou para Nova Iorque com intenção de pôr termo à vida. Mas foi salva pela arte. Ofereceram-lhe um filme de Fred Astaire, em vídeo, e ela deixou-se encantar pelas imagens. Durante dias, comprou todos os filmes dele que encontrou. Esqueceu-se da morte, inebriou-se de vida e uma operação salvou-a. Até que, a 6 de Outubro de 1999, a sua “estranha forma de vida” teve o fim que há muito adivinhava. Tinha 79 anos e não “traiu”, entrando noutro, o século que verdadeiramente a amou.

O filme dá-nos a ver tudo isso, excepto o último adeus, pontuado num subtil registo. A acompanhá-lo, um segundo DVD permite ver e ouvir, na íntegra, 18 das 40 canções que integram o filme, do “Fado Malhoa” até “Povo que lavas no rio” já muito sofrido, numa voz que apenas no timbre recordava o intenso brilho de outrora. São estes os extras, além de um trailer, um videoclip de “Estranha forma de vida”, discografia e filmografia seleccionadas (nos filmes falta, incompreensivelmente, qualquer referência a “Vendaval Maravilhoso”, de 1949, de Leitão de Barros) e, por fim, alguns livros e endereços na net.

Na narração original, em inglês, Bruno de Almeida colocou um dos seus actores-fétiche, John Ventimiglia, o Artie Bucco da série “Os Sopranos” e o inefável “Louie” de “On The Run” (“Em Fuga”, 1999). Mas, para a edição em DVD, escolheu outros actores: Joaquim de Almeida (na narração portuguesa, que soa demasiado ríspida) e Maria de Medeiros (mais envolvente na narração em francês). Há um narrador espanhol, mas não é identificado. Claramente virado para o mercado internacional e sem folheto que o acompanhe, o DVD, embora seja desde já uma referência obrigatória nos registos videográficos de Amália, tem falhas incompreensíveis. Como o irritante salto entre camadas no DVD1, que mutila uma frase de Amália quando esta fala do seu melhor papel no cinema e logo num filme onde não canta). E a ausência de referências escritas, temporais ou outras, das “músicas completas” que integram o DVD2. Seria muito pedir que, para cada canção ou excerto de filme, se indicasse, mesmo em letra pequena, a proveniência ou data? E por que motivo não há, no segundo DVD, uma breve conversa com Bruno de Almeida onde o realizador expli­casse os passos seguidos na concretização do filme? Talvez seja preciso esperar pela edição revista (naturalmente bem vinda) do documentá­rio de cinco horas para que a informação cuidada rompa os limites da superficialidade. Até lá, “The Art of Amália” merece ser visto, revisto e dado a ver, de preferência aos que dizem, como ela no célebre fado homónimo que tão bem cantava: “Amália? Não sei quem é”.