12-2-2013

 

ANTÓNIO SERRÃO DE CASTRO (1610-1684)

 

António Baião trabalhou 40 anos na Torre do Tombo e escreveu principalmente sobre a Inquisição. O artigo que abaixo transcrevo foi publicado numa revista de sociedade de Lisboa chamada “Serões” e depois republicado integralmente nos “Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa”.

Gosto do estilo dele, muito diferente do que depois dele se utilizou no estudo da Inquisição. No séc. XX, passou-se a procurar demonstrar os méritos da Inquisição e parecia que atacar a Inquisição era atacar a Igreja Católica. Esta atitude explica-se em parte com a ditadura salazarista do Estado Novo de que derivava um certo estilo autoritário das autoridades religiosas. Não me quero pronunciar sobre a questão de saber se a Igreja Católica ajudava o regime ou vice-versa: não é isso que está em causa. Era o modo de estar que suscitava certos paralelismos: quem era da Oposição ao Governo era comunista, quem não ia à Missa era comunista, assim se dizia nas aldeias. O rol da desobriga perdurou nas nossas aldeias até ao início dos anos cinquenta do séc. XX. Acho que é daí que vem uma certa complacência para com a Inquisição por parte de certa gente que escreve sobre a instituição. Apontam as maldades da Inquisição, mas tratam os Inquisidores como meninos de coro.

Está hoje mais que provado que a Inquisição era sobretudo uma estância de poder. Ora, o poder corrompe, como é já hoje reconhecido universalmente. Os Inquisidores não eram nem poderiam ser pessoas de bem.

Apesar da atitude extremamente crítica de António Baião em relação aos Inquisidores, não posso concordar com tudo o que ele diz. Embora eu aceite perfeitamente que alguns dos membros da família Serrão de Castro tinham convicções religiosas judaicas, não acredito de modo nenhum que fizessem cerimónias judaicas em comum com a família Pestana, como ele diz. Lisboa estava enxameada de familiares da Inquisição e qualquer desconfiança levava-os a denunciar prontamente à Inquisição. Para além disso, as famílias de uma certa condição, como eram os Pestanas e, em parte, também os Serrão de Castro, tinham empregados e criadas, cristãos velhos e também escravos que com eles viviam. Não podiam arriscar. Mais: se fossem judeus convictos, teriam feito jejuns judaicos nos cárceres como às vezes acontecia e teriam sido condenados por isso.

Ou seja: embora António Baião diga mal dos Inquisidores, não diz tanto que baste. Eram piores que isso. Os Inquisidores tinham meios para prenderem quem quisessem. António Serrão de Castro e o grupo que o rodeava expuseram-se bastante com a Academia dos Singulares, publicaram o primeiro volume de textos em 1665, que lhes deu muita visibilidade. De repente, foram presas muitas pessoas pertencentes a famílias cristãs novas abastadas; transcrevendo de João Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses: “Subitamente, em Julho (de 1672), foram presos uns poucos de opulentos contratadores: os Mogadouros, pais, filho e a restante família; três irmãos Chaves; os Pestanas, que eram onze pessoas; ao todo nove famílias da gente abastada. Atingida naqueles que até certo ponto se julgavam imunes, a grei perseguida agitou-se, concentrou forças.”

No artigo de António Baião, falta inserir a questão da suspensão da Inquisição por parte do Papa; a condenação de Serrão de Castro não avançou porque o Breve Cum Dilecti, de 3 de Outubro de 1674, suspendeu toda a acção dos Inquisidores e a Inquisição ficou parada (mas continuaram lá dentro os presos). Daí o enorme tempo de prisão de Serrão de Castro, da sua família e de tantos outros; muitos morreram ou ficaram doidos nos cárceres.

Resta a verdade pura e dura: Pedro Serrão de Castro foi condenado à morte pela Inquisição sendo católico fervoroso. Apesar de tudo, seria mais lógico se ele tivesse sido judeu profitente. Assim, foi um mártir da fé católica que morreu à mão dos Inquisidores.

 

Da revista “SERÕES: Revista mensal ilustrada” n.º 35, de Maio de 1908

 

 

A Inquisição, por António Baião

 

O poeta Serrão de Castro – A perseguição feroz a uma família

 

 

A BOTICA DA RUA DOS ESCUDEIROS—A CULTURA DAS MUSAS NO ÓCIO DAS RETORTAS E ALMOFARIZES.

 

Nos meados do seculo XVII, quem penetrasse no emaranhado de ruas da parte baixa de Lisboa e entrasse na rua dos Escudeiros, cujo nome e local o terramoto de 1755 fez desaparecer, se tivesse necessidade de alguma xaropada ou cordial poderia ir aviá-lo a botica de António Serrão de Castro. Botica pobre, como pobre era o seu dono.

Penetremos-lhe indiscretamente em casa. Aí veremos: um contador de pau preto de Moçambique com oito gavetas e alguns escudetes de prata; um bufete grande com duas gavetas de pau ordinário; quatro caixões da India, um grande e os três pequenos; uma cama de damasco azul; uma banca de estrado de matizes e uma tripeça também de estrado de damasco verde; seis cadeiras atamaradas com pregaria miúda, já usadas; alguns livros de humanidades e medicina; dois escritórios pequenos de estrado; cinco painéis de paisagens ordinárias. Nisto se resumia a sua mobília.

No entanto a esperança sorria ao proprietário. O avô fora cirurgião, boticário fora o pai e para médico andava estudando em Coimbra o filho Luis. A irmã, Francisca Serrão, casara também com um medico, o que tudo fazia que a farmácia Serrão de Castro — como hoje lhe chamaríamos—gozasse no sítio de crédito e clientela especiais.

Era, verdade seja, o dono meio cristão-novo, facto não destituído de importância em tempos tão santos e devotos. Mas não era também tesoureiro da irmandade do Santíssimo da freguesia de S. Nicolau e até procurador da mesma? Não tinha um filho, Pedro Serrão, estudante de teologia Moral e muito querido na Congregação do Oratório? Não era pontualíssimo sempre em acompanhar o Santíssimo? Depois, se alguém curiosamente penetrasse na sua casa havia de ver oratório de bordo pintado recheado com um crucifixo tendo aos lados as imagens de Nossa Senhora e S. José; uma Senhora do Rosário e S. Francisco, de barro; um menino Bom Pastor, de marfim; um Santo Onofre e um Santo Antonio, de madeira e um menino Jesus ensinando a ler S. João, também de barro. Na parte de baixo do oratório poderia ver um Senhor atado à coluna, um Ecce Homo, de barro, um túmulo de madeira pintado de ouro e branco onde Cristo repousava do último sono e uma dúzia de jarras de pau dourado, com os respectivos ramalhetes. E. se levantasse os olhos para as paredes, veria os painéis de Nossa Senhora da Graça, S. José, Nossa Senhora da Conceição e Santo António.

Ali estava tudo, como resposta muda a quem se lembrasse de duvidar da crença do nosso boticário. Era evidentemente o seu arsenal defensivo.

Não se pense porém que na botica de Serrão de Castro somente se manipulavam tisanas. Não. De vez em quando havia animadas sessões de conversa a que o boticário dava especial realce com a sua língua essencialmente caustica e mordaz. Entre os frequentadores podemos apontar os ourives Jorge Ribeiro e Luiz Alvares. o corrector de câmbios João da Costa Cáceres e Pedro Ribeiro. Este último foi durante certo tempo empresário das Comédias, de cujos camarotes o segundo recebia o dinheiro. Não foi todavia sempre feliz na escolha de actores, comediantes, como então lhe chamavam e por isso, duma vez que trouxe de Espanha uma companhia inferior, foi vítima das ironias de Serrão de Castro, que contra ele chegou a publicar uns versos de troça e de zombaria. Tal era o feitio especial da veia poética do Presidente da Academia dos Singulares.

 

A DENUNCIA À INQUISIÇÃO

Felizes lhe foram correndo os anos até que, no dia 18 de Junho de 1671, quando contava já 61 anos de idade, o coronel Fernão Peres o veio expressamente denunciar como judaizante. Antonio Serrão de Castro era um grande celerado: vestia camisa lavada aos sábados! A ordem de prisão demorou-se perto de um ano, mas ela abrangeu grande parte dos frequentadores da botica da Rua dos Escudeiros, considerada pelo visto um perigoso foco de cristãos novos, e alguns dos vizinhos do boticário pertencentes a família Pestana. E por isso que sucessivamente vemos deslizar perante os inquisidores: Jorge Ribeiro, Luiz Alvares, Manuel da Costa Martins. Antónia Pestana, Filipa Pestana, João da Costa Cáceres e Pedro Ribeiro.

A estes acresceram as suas irmãs, Paula de Castro e Francisca Serrão, presas depois do Poeta, a 15 de Julho de 1673.

É bastante curiosa a forma como a Inquisição procedeu com esta última. A princípio negou as suas culpas, mas depois d’um a no de clausura, decidiu-se a fazer as suas confissões e denúncias. Francisca Serrão acusou primeiramente pessoas indiferentes, e, como Antonio Serrão tinha sido já preso, logo na segunda audiência o denunciou, nada dizendo porém acerca dos sobrinhos, então ainda em liberdade, nem sobre o seu filho Luis de Bulhão. Este silêncio porém não agradava aos inquisidores e por isso sujeitaram-na a tormento, fazendo-a sentar no escabelo. Não nos dizem os documentos os gritos lancinantes que ela soltou e sabemos apenas que não pôde a pobre velhinha resistir, e forçada pelas dores denunciou as pessoas, cujas culpas até aí ocultara. Nem por isso deixou de ser condenada a cárcere perpétuo e hábito penitencial também perpétuo e ouviu ler a sentença no auto celebrado no Terreiro do Paço a 10 de Maio de 1682. No mesmo auto saiu a outra irmã do Poeta, Paula de Castro. Esta foi mais incontinente de língua que a outra e por isso não foi preciso sujeitá-la a tormento. Como porém no carcere tivesse a imprudência de judaizar, carregaram-lhe, além da pena que coube à irmã, com três anos de degredo para o Brasil. Mais tarde veremos como ela a cumpriu.

 

OS INTERROGATÓRIOS —NETO DUM PERSEGUIDO PELA INQUISIÇÃO

 

Foi a 28 de Junho de 1672  o primeiro interrogatório em que Antonio Serrão de Castro declarou não ter culpas para confessar. Descendente duma família de cristãos novos, só sabia que o seu avô materno, Estêvão Rodrigues, fora justiçado pelo Santo Ofício. Com efeito este deu entrada nos cárceres da Inquisição um século antes: em 16 de Junho de 1570. Tinha vinte e cinco anos de idade, era ainda solteiro. Acusado de judaísmo, confessou as suas culpas e por isso foi condenado à confiscação de bens e a carcere e habito penitencial ad arbitrium, indo ao auto da fé de 11 de Março de 1571.

Não sabemos se Serrão de Castro conheceria estes pormenores, mas certamente ficaria bem surpreendido ao saber que nesse mesmo dia 16 de Junho deram também entrada nos carceres inquisitoriais a sua bisavó Inês Fernandes e as filhas desta, Antónia Fernandes e Branca Fernandes. Ainda mais surpreendido haveria de ficar quando soubesse que o culpado destas prisões fora o seu tio-avô Manuel Fernandes, tosador, que em Beja se deixou cair nas garras da Inquisição e se não soube calar, talvez mesmo para se vingar da oposição que tinham feito ao seu casamento.

De sorte que podemos fundadamente concluir a pouca limpeza de sangue da família do nosso Poeta e que a fatalidade que representava para ele esse mês de Junho em que a canícula aperta em 1570 se repetiu um século após em 1672.

Enquanto os inquisidores iam por seu lado acumulando provas sobre provas contra o preso, este mantinha-se na negativa mais formal.

Vestira porventura camisa lavada aos sábados, cumprindo assim uma cerimónia de rito moisaico? Nunca fizera tal.

Praticara o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro, comendo só ao romper da estrela de alva? Nunca fizera tal.

Então nunca se apartara da fé cristã? Certamente que não, e para prova disso aí estava o elegerem-no por duas vezes tesoureiro da irmandade do Santíssimo da freguesia de S. Nicolau e por duas outras procurador da mesma; aí estava a sua pontualidade em acompanhar o Santíssimo, em ir à missa e em se confessar.

 

UMA CONDENAÇÃO A FINGIR—A TORTURA DO ESPÍRITO E A TORTURA DO CORPO—CONFISSÕES.

 

Como não era possível arrancar a confissão de Serrão de Castro, os inquisidores, em 17 de Abril de 1676, condenaram-no como pertinaz e negativo a ser entregue à justiça secular, o que na linguagem inquisitorial equivalia a ser condenado a fogueira.

Em 15 de Maio o Conselho Geral confirmou sentença tao radical; apesar de ficar assim com todos os sacramentos, não se cumpriu. Evidentemente não foi mais que um ardil destinado a amedrontar o pobre sexagenário.

E que o leitor imagine o desalentado estado de alma de quem se via preso havia quatro anos na triste espectativa sempre de que o alvorecer daquele dia fosse o último; de quem esperava a todo o instante o carcereiro a anunciar-lhe que eram chegados os seus derradeiros instantes. Que sentidas e amaríssimas confidências não faria ele a uma ameixieira sua vizinha que melancolicamente baloiçava os seus ramos e de vez em quando os metia pelas grades da sua prisão!

 

Onze vezes de folhas revestida,
Onze vezes de flores adornada,
Onze vezes de fruto carregada
Te vi, ameixieira, aqui nascida.

Outras tantas também te vi despida,
De folhas, flores, frutos despojada,
Pelo rigor do Inverno saqueada,
E a seco tronco toda reduzida.

Também a mim me vi já revestido
De folhas, flores, frutos adornado,
De amigos e parentes assistido


De tudo já estou tão despojado.

mas tu virás a ter o que hás perdido

e eu não terei jamais o antigo estado.

 

Desgraçado Poeta! Os seis anos posteriores à sua fingida condenação deviam-lhe correr bem penosos e longos.

Afinal, em 2 de Abril de 1682, cedendo a depressão moral da idade e da carceragem e quiçá a vagas esperanças de misericórdia, Antonio Serrão de Castro decidiu-se a fazer as suas confissões. Sim, era verdade tudo o de que o acusavam; sim, crera durante cinquenta e dois anos que a salvação estava somente na lei de Moisés e por esse motivo se apartara da fé cristã, mas ali estava contrito e arrependido, pedindo perdão e misericórdia e acreditando firmemente nesse Cristo de quem os inquisidores se diziam apenas delegados e representantes. Porém estas declarações não satisfizeram por completo. Na mesa do Santo Ofício sabia-se com efeito, em virtude de outras declarações, que os filhos do Serrão tinham igualmente judaizado, e a todo o custo era preciso arrancar tão preciosa denunciação. Por isso, em 7 de Abril se determina que ele seja posto a tormento e o Conselho Geral três dias depois confirmava aconselhando expressamente para o pobre velhinho  um trato esperto.

Efectivamente no dia 11 foi o réu admoestado para acabar de confessar as suas culpas e, como nada mais dissesse, foi mandado à casa do tormento.

Seriam oito horas e meia da manhã, chilreariam talvez os passarinhos na ameixieira, quando Serrão de Castro dava entrada na fúnebre casa dos tormentos. Despojado do fato, ficaram-lhe à mostra os descarnados e esqueléticos membros, tão descarnados e tão esqueléticos que o médico e cirurgião não consentiram que ele sofresse o tormento de polé. Foi por isso estendido no potro e atado de pés e mãos, foi-lhe protestado pelo notário que se ele réu morresse no tormento, quebrasse algum membro, perdesse algum sentido, a culpa seria sua e não dos Senhores Inquisidores que o julgaram ao dito tormento, segundo o merecimento do seu processo.

Santos inquisidores! A sua maldade igualava a sua hipocrisia! Se o pobre velhinho tivesse ido parar a uma fogueira, não era a Inquisição que o matava, eram as justiças seculares; se morresse na tortura ou se deformasse, também nenhuma culpa tinha a Inquisição e somente ele que não queria acusar os próprios filhos.

Durante um quarto de hora os seus gritos cortaram lancinantemente as abóbadas da sinistra casa de torturas. Baldadamente chamou por S. Domingos e Nossa Senhora do Rosário, mas as apetecidas denunciações não vieram.

Alguns dias depois, a 23 de Abril, novamente o admoestaram a que confessasse a verdade toda, mas nada mais lhe conseguiram arrancar. O mesmo aconteceu no dia seguinte.

Todavia, passados dois dias, não se sabe por que misteriosa sugestão, mas talvez por lhe darem conhecimento das confissões do seu filho Luis, Antonio Serrão de Castro quis fazer mais confissões. O dia 26 de Abril não deveria ter existido para ele. Denunciou tudo, denunciou todos! À pertinácia e coragem com que, durante dez anos soube resistir às investidas inquisitoriais e até ao próprio tormento seguiu-se um quebramento de forças de tal ordem que logo na cabeça do rol denunciou os próprios filhos!!

 

A PERSEGUIÇÃO AOS FILHOS DO POETA — A MORTE DE UM E A CONDENAÇÃO DOS OUTROS — O PADRE BARTOLOMEU DO QUENTAL DADO COMO TESTEMUNHA.

 

Quatro foram os filhos de António de Serrão de Castro: Luis, nascido em 1649, seguiu a carreira de medicina; Pedro nascido em 1650 seguiu a carreira de teologia; Duarte, nascido em 1654, não chegou a passar dos primeiros estudos e finalmente Teresa Maria de Jesus, nascida ou na mesma ocasião de Duarte, ou apenas com diferença de meses.

Quando o pai os denunciou há muito já que estavam presos, pois que tinham dado entrada nos carceres do Santo Ofício no dia 20 de Setembro de 1673.

Luis Serrão era a esse tempo já formado em medicina pela Universidade de Salamanca. Tinha abandonado a Universidade de Coimbra, onde frequentava aquela faculdade, logo que lhe chegou a infausta notícia da prisão do pai, e retirou para Salamanca, onde seu primo Bento Bravo da Silva lhe ia fornecendo mesadas, ate que, em certa altura, lhas retirou. Quando o prenderam encontraram-lhe umas Horas de Nossa Senhora e um livrinho de S. Francisco Xavier, frágeis armas com que provavelmente pretendia demonstrar a sua íntima devoção! Durante nove anos persistiu, como o pai, na negativa mais formal, no mutismo mais absoluto, mas não soube como ele resistir ao tormento. No dia 21 de Abril de 1682, dez dias depois do pai, era também o seu corpo atado ao potro, e tão fortes eram as dores, que a coragem de que ate aí dera provas faltou-lhe e denunciou então pai, irmãos, tias e primos. Saiu no auto da fé de 10 de Maio, abjurando então dos seus erros e ouvindo ler a sentença que o condenava a cárcere e habito penitencial perpétuos.

Muito outro foi o proceder de Pedro Serrão e por conseguinte muito outro foi o resultado de sua prisão.

Se ao irmão tinham encontrado dois livros místicos, a ele não só encontraram, quando foi preso, umas Horas de Nossa Senhora e um livro de Meditações da Paixão de Cristo, como também uns bentinhos da Trindade e S. Francisco, um cilício e disciplinas de aço. Com tais armas não conseguiu ainda assim escapar o estudante de teologia, que nesse tempo não tinha ainda ordens algumas.

No entanto cristianíssima tinha sido a forma do seu proceder. Aos nossos olhos de hoje chamar-lhe-íamos mesmo excessivamente fanático. Vejamo-la.

Com outros condiscípulos da congregação do padre Bartolomeu do Quental todas as sextas-feiras ia ao Hospital dos Entrevados de Nossa Senhora do Amparo, fazendo-lhes as camas, varrendo-lhes o hospital, dando-lhes esmolas e rezando com eles as ladainhas de Nossa Senhora e perguntando-lhes a doutrina cristã. Quantas vezes não iam ao Hospital Real dar doces aos enfermos, ensinando-lhes o acto de contrição e aos que sabiam ler deixando-lho por escrito. Quantas outras não iam levar de jantar aos presos do Tronco, jantar comprado com as esmolas que pediam! Desta forma dava ele cumprimento às obras de misericórdia e, se não acreditava em ganhar com elas a mansão celestial, supunha pelo menos livrar-se das suspeitas inquisitoriais e da correlativa chama das fogueiras.

Pura ilusão!

Debalde Pedro Serrão persistiu na mais formal e terminante negativa. Debalde apresentou os testemunhos dos pintores Félix da Costa e Brás de Almeida seu irmão, o primeiro dos quais disse que ele muito se entregava à leitura da vida de Cristo, e o segundo declarou que tão bom cristão era que ate para Espanha lhe escrevera a recomendar-lhe viver limpa e castamente (1). Debalde o bom do padre Bartolomeu do Quental o declarou ter na melhor conta.

Para os inquisidores, senhores como estavam, de segredos que eles não possuíam, isto tudo não passava de disfarces.

Debalde alegou o ódio que lhe votavam os Pestanas, sendo ate Antónia Pestana sua inimiga capital porque pretendeu casar com ele.

Para os inquisidores isto tudo não passava de embustes, e por isso, a 17 de Marco de 1682, foi mandado pôr a tormento, que se efectuou no dia 1 de Abril. Pelas nove horas da manhã sentaram-no no escabelo, mas apesar das dores horrorosas que sentia, apesar de gritar desesperadamente pelo nome de Jesus, nada lhe conseguiram arrancar.

Mais firme e pertinaz que o irmão, foi queimado no Terreiro do Paço, no dia 10 de Maio de 1682, por causa dos testemunhos de seu pai, irmão e tios.

Simplesmente horroroso!

Denotou também grande coragem a única filha de Antonio Serrão de Castro, Teresa Maria de Jesus. Mas coragem somente até ao ponto em que a enganaram dizendo-a condenada morte. Então, a pobre rapariga sucumbiu e acusou a família toda. Fez até acusações de que, como adiante veremos, bem depressa se arrependeu.

No decurso do processo lançou suspeitas sobre toda a família Pestana, que considerava como inimiga da sua e sobre as suas três tias que queriam dar ordens na casa do pai.

Teresa de Jesus tinha dezoito anos quando seu pai caiu sob as garras do Santo Ofício. Indigente como ficara, foi viver para casa de seu primo Luis de Bulhão; dois meses foi comer a casa da sua prima Isabel de Balboa, mas ficou escandalizada com ela desde que o marido faltou com mesadas ao seu irmão Luis, estudante então em Salamanca, como dissemos.

Bonita talvez, pois que, a darmos-lhe crédito, o banqueiro Gaspar da Costa de Mesquita (2) tentou violentá-la, e Martim Pestana bastantes diligências fez para a namorar, bem cedo se fanariam as rosas daquele rosto, encerrada durante nove longos anos num carcere, tendo como companheiras duas mulheres culpadas como ela, Maria Francisca e Paula de Moura. Para mais, pouca saúde logrou lá dentro; sangrias levou mais de duzentas e de sanguessugas nem se fala!

Condenada, em 1 de Maio de 1682, a ser relaxada à justiça secular, não se executou, como já vimos, a sentença por ela ter feito as suas confissões. E assim foi ao auto da fé de 10 de Maio de 1682, ouvindo então ler a sentença pela qual era condenada a cárcere e hábito penitencial perpétuos com insígnias de fogo e degredo para o Brasil.

No entretanto tinha-se arrependido de algumas confissões que fizera. Como é natural, pesavam-lhe na consciência as acusações a pessoas ainda não presas e que em virtude delas o poderiam ser. Teresa de Jesus resolveu por isso retractar-se, mas o caso ia-lhe saindo mais caro do que supunha porque os inquisidores perceberam que ela pretendia apenas salvar essas pessoas, e, por muito favor foi apenas repreendida asperamente na mesa inquisitorial.

O seu estado físico não podia ser pior; tão mau era que nem força lhe encontravam para ser transferida do cárcere da penitência para o Limoeiro e por isso lhe foi dispensada a pena de degredo.

De Duarte de Castro nada mais sabemos, além do pouco que já dissemos.

 

SENTENÇA FINAL CONTRA  O POETA—-COMO UM ACADÉMICO IRONISTA DEGENERA NUM MENDIGO—DESENLACE TRÁGICO DA SUA FAMÍLIA.

 

No dia 17 de Abril de 1682, foi pelos inquisidores de Lisboa proferida uma sentença em que, por lhes parecer que Serrão de Castro tinha dito bastante de si, de suas irmãs e filhos e até de pessoas ainda não indicadas, por satisfazer a major parte da informação da justiça e assentar na crença dos seus erros, são de opinião que seja recebido ao grémio e união da Santa Madre Igreja com cárcere e hábito penitencial perpétuos e vá ao auto público da fé na forma costumada, ali oiça a sentença e abjure publicamente dos seus erros, sendo-lhe confiscados os bens. Em 2 de Maio confirmou o Conselho Geral esta sentença e em 10 ia ele ao auto da fé.

Conta-se que nesse dia, ao recolher-se a procissão já de noite, um rapaz o reconheceu entre os penitenciados que iam com as velas acesas. “Ali vai o Serrão” disse ele e o Poeta olhando para o familiar respondeu: “Pescaram-me ao candeio.”

Nem em ocasião tão trágica perdeu a sua tão proverbial agudeza!

Pouco tempo demorou a sua instrução nos mistérios da nossa religião.

No dia 21 deste mesmo mês foi chamado para lhe dizerem que neste primeiro ano se devia confessar nas quatro festas principais, isto é, na Assunção de Nossa Senhora, Natal, Páscoa e Espirito Santo; cada semana devia rezar um rosário à Virgem e cada sexta-feira cinco Padre Nossos e cinco Ave Marias às cinco chagas de Cristo. Assinaram-lhe então por cárcere a cidade de Lisboa donde não podia sair sem licença do Santo Ofício, devendo assistir na igreja de S. Lourenço todos os domingos e dias santos à missa e pregações com o hábito penitencial que de resto devia trazer sempre sobre o fato. Este hábito amaldiçoado atraía-lhe as atenções da turba que o rodeava, cobrindo-o de doestos e injurias. Nem ao menos podia em paz e sossego estender a mão à caridade pública.

A Inquisição compadeceu-se desta vez. E generosa com quem estava à beira da sepultura, consentiu em 25 de Maio de 1682 que a sua filha e irmã Paula fossem viver com ele e em 2 de Novembro de 1683 foi-lhe finalmente tirado o hábito penitencial. O mísero velho tinha 73 anos e estava cego e os seus dois filhos, que escaparam à fogueira, tinham perdido o juízo e estavam dementes!

Assim se extinguia uma família.

 

ANTÓNIO SERRÃO DE CASTRO E CAMILO CASTELLO BRANCO — RECTIFICAÇÃO ÀS INEXACTIDÕES DESTE.

 

Foi Camilo Castelo Branco quem em 1883, publicou o poema Os Ratos da Inquisição de António Serrão de Castro, que ate ai se achava inédito. Precedeu-o dum extenso Prefácio biográfico. O poeta era pouco conhecido. Barbosa Machado, Costa e Silva e o próprio Inocêncio poucas palavras lhe dedicaram, dizendo-se ignorantes do seu modo de vida e doutras circunstâncias da sua biografia.

Camilo invectiva-os por tal motivo. E ajudado dos seus discursos publicados na Academia dos Singulares, das suas poesias e da sentença do filho Pedro publicada por Aires de Campos no Instituto de Coimbra, volume 9, adiantou bastante na biografia do Poeta, mas fantasiou muito, por não conhecer os processos da Inquisição contra eles.

Assim diz que Antonio Serrão foi preso no dia 8 de maio de 1672, quando a ordem de prisão, cujo original está no processo, é datada de 24 e nesse mesmo dia deu entrada nos carceres do Santo Ofício.

Depois apresenta-nos como origem da prisão da família Serrão o facto do seu filho Pedro ter tido a desgraçada lembrança de escrever uma sátira, fantasiando torneios que celebravam uma festividade universitária no recebimento de um reitor também imaginado. Desta forma envolveu na sua chacota a fradaria toda de Coimbra e todos os colégios monacais, sem exceptuar, ao menos, os dominicanos. Ora dos processos não consta que Pedro Serrão frequentasse alguma vez a Universidade de Coimbra e nem a mínima alusão se faz a sua musa irónica e maldizente. A origem da prisão foi, a nosso ver, muito outra. A família Serrão era, é isso evidente, cumpridora dos preceitos moisaicos; também o era a família Pestana com quem viviam de paredes meias e com quem faziam cerimónias em comum. Um belo dia desavieram-se, e como um dos Pestanas caísse na rede do Santo Ofício apressou-se a denunciar os seus então inimigos Serrões. Destes as velhotas, irmãs do Poeta, foram as primeiras a fazer confissões; depois, vendo-se perdidos, denunciaram-se uns aos outros, e só Pedro Serrão soube pertinazmente resistir e por isso foi vitimado no Terreiro do Paço.

No já citado Prefácio biográfico diz Camilo não saber o nome do irmão. Pois, agora se fica sabendo, como também as trágicas consequências do malfadado auto da fé de 10 de Maio de 1682.

Camilo diz-nos ainda que “o filho, cujo nome ignoro, de António Serrão, morreu na tortura ou pereceu pelo suicídio no carcere; Pedro Serrão, o da Sátira, e seu pai estiveram à espera da sua sentença dez anos menos dois dias a contar de 8 de maio de 1682, dia em que saíram no auto da fé”. É tudo inexacto, como vimos. Luis Serrão endoideceu depois de sair do carcere do Santo Ofício, e Pedro Serrão só foi preso em 20 de Setembro de 1673.

 

ANTÓNIO BAIÃO

 

NOTAS:

1-Não devemos passar adiante sem fazer notar que os dois pintores Félix da Costa e Brás de Almeida têm tido a sua biografia muito envolta em mistérios. Do último escreveu Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, tomo 4.º, página 82, que era professor de pintura e escultura, e que tinha escrito em 1695; estas indicações foram transcritas por Raczinski, Dictionnaire Historico-Artistique du Portugal pagina 4. Do primeiro escreveu Raczinski, a pagina 57, dizendo-nos apenas, quanto à sua biografia, que fazia parte da irmandade de S. Lucas em 1705 e morreu em 1712. Podemos acrescentar os seguintes dados extraídos dos seus depoimentos, dados que supomos totalmente desconhecidos: Eram irmãos e moravam, em 1677, na rua dos Calafates; eram irmãos e Félix da Costa nasceu em 1642 e Brás de Almeida em 1649.

Também do depoimento do Padre Bartolomeu do Quental se deduz que ele nasceu em 1628 e não em 1626, como diz Inocêncio.

2-Este banqueiro não escapou à sanha inquisitorial. Razão tinha para proferir a frase que lhe atribuíram de que só em Roma se podia viver, porque só aí estavam sem o susto de lhe baterem à porta e eram senhores do que era seu. Preso em 25 de Abril de 1682, foi condenado a cárcere e hábito penitencial perpétuo. Foi ao auto da fé de 8 de Agosto de 1683.

 

 

Processos da Inquisição

359 da Inq. de Lisboa – Estêvão Rodrigues – avô materno de António Serrão de Castro

8736 da Inq. de Évora – Inês Fernandes – bisavó, mãe do anterior e das duas seguintes

4582 da Inq. de Lisboa – Antónia Fernandes

6572, da Inq. de Lisboa – Branca Fernandes