10-2-2015

 

Na Inquisição de Lisboa, até 1570

 

Na Lista dos Autos da Fé da Inquisição de Lisboa (pag. 31 do software), António Joaquim Moreira anotou: “As notícias de todas as inquisições são mui escaças (sic) até ao anno de 1600 – em que começarão a publicar listas manuscriptas dos Autos da Fé”. Nada mais certo e, por isso, não faz sentido andar a coligir estatísticas de relaxados e reconciliados com base nas listas daquele erudito, tantas são as faltas que têm.

Há, porém, uma maneira de reconstituir, pelo menos parcialmente, as listas dos Autos da Fé: é agrupar as fichas dos processos existentes por datas dos autos da fé. A data do auto da fé era geralmente anotada a seguir à sentença, pois esta era tornada pública no auto. Foi o que fiz para os Autos da Fé até 1570, em relação aos relaxados, procurando os respectivos processos.

Entendo, porém, que este trabalho deveria ser feito pelos Arquivos da Torre do Tombo, mais ou menos assim:

1 – Deveriam, primeiro, actualizar-se as fichas dos processos, verificando a data do auto da fé ou adicionando-a à ficha se lá não está. Deveria ver-se se a data indicada é de um domingo, caso contrário, pode estar errada. Pode utilizar-se um calendário perpétuo, por exemplo, este.  Seria muito conveniente assegurar-se que, se fosse o caso, as fichas dos processos tivessem a anotação “Relaxado” e “Faleceu no cárcere”.

2-Concluído este trabalho, um pequeno programa poria os Réus por ordem de datas de autos da fé.

3-Ainda antes disso, seria muito conveniente colocar em formato digital as listas existentes de autos da fé, reservando um campo para o n.º do processo.

4-As listas existentes seriam completadas com os nomes omissos que viriam da lista dos processos, e aditadas com os números dos processos.

5-Estas listas permitiriam ter uma ideia muito mais completa do n.º dos  penitenciados e relaxados pela Inquisição e também elaborar uma lista dos processos desaparecidos.  

 

 

Relaxados em Autos da Fé em Lisboa que não constam dos manuscritos de A. J. Moreira, até 1570

 

O primeiro auto da fé não teve relaxados e foi a 26 de Setembro de 1540 e não a 20, como refere Moreira

 

Domingo, 23 de Outubro de 1541

Pr. n.º 17982 – Mestre Gabriel (em estátua por estar ausente e revel)

 

Domingo, 22 de Outubro de 1542

Pr n.º 16957 – João Gomes

 

Domingo, 11 de Fevereiro de 1543

Pr. n.º 584 – Henrique Nunes e mulher Beatriz Nunes – Os réus estavam ausentes

 

Terça-feira, 14 de Outubro de 1544

Pr. n.º 1924 – Álvaro Fernandes

Pr. n.º 12903 – André Vaz

Pr. n.º 17000 – Nicolau Vaz

Pr. n.º 4532 – Diogo de Leão (segundo a ficha, o auto da fé deste Réu teria sido em 19-12-1544)

Pr. n.º 8435 – Lucrécia Leoa

Pr. n.º 12507 – Manuel de Oliveira

 

Nota: Em documento transcrito por João Lúcio de Azevedo a pgs. 450, o Inquisidor João de Melo diz que no Auto foram 19 os relaxados, mas só encontrei estes processos.

 

Domingo, 27-8-1553 (a ficha do processo está errada: o dia não é 26)

Pr. n.º 865 – Henrique de Queirós

 

Domingo, 3-3-1555

Pr. n.º 6405 – Duarte Fernandes

Pr. n.º 600 – Padre Guilherme Bro (o processo tem Boroa)

Pr. n.º 2466 – Fernão Vaz ou Fernão Vasques

Pr. n.º 9557 – António Fernandes

Pr. n.º 10712-1 – Lourenço

Pr. n.º 10811 – Miguel Ferreira

Pr. n.º 12445 – Bartolomeu Álvares

 

Terça-feira,  26-5-1556, segunda oitava do Espírito Santo

Pr. n.º 3590-1 – Cristóvão Fernandes

Pr. n.º 4183 – Alonso Nunes

 

Domingo, 28-2-1557

Pr. n.º 8345 – Pero ou Pedro Flamengo

 

Domingo, 15-5-1558

 

Pr. n.º   8343 – Pedro Álvares

Pr. n.º  11665-1 – Robert

Pr. n.º  1270 – Grácia Pires

Pr. n.º  1330 -  Isabel Dias

Pr. n.º 5114- Isabel Mendes

Pr. n.º  12147 – Ana Fernandes

 

 

Pr. n.º 10752 – Manuel Henriques – não se consegue saber a data do auto da fé (mas deve ser também 15-5-1558)

 

 

Domingo, 24-9-1559  (Em algumas fichas dos processos está  Outubro em vez de Setembro, mas é erro de leitura que também eu fiz inicialmente)

 

Pr. n.º  4391 – Álvaro de Leão

Pr. n.º 6105 – Duarte de Chaves

Pr. n.º  4199 - Doutor António Borges

Pr. n.º 8342 – Pedro Fernandes

Pr. n.º 5957 – Isabel Fernandes

 

 

Domingo,  16-3-1561

 

Pr. n.º 4388 - Álvaro Gomes

Pr. n.º 8344 - Mestre Pedro

Pr. n.º 5114 – Isabel Mendes – já fora condenada em 1558, mas não havia sido executada por estar doente

Pr. n.º 7324 – Maria Rodrigues

Pr. n.º 7296 – Leonor Caldeira

Pr. n.º 12148 – Leonor de Castro

 

  

Domingo,  10-5-1562

 

Pr. n.º 61 - Diogo Fernandes

Pr. n.º 4188 - Henrique Rodrigues

Pr. n.º 12932 - Salvador Soares

Pr. n.º 8352 – P.e Mestre Fr. Valentim da Luz

Pr. n.º 1266 – Filipa Carvalho

Pr. n.º 10886 – Mor Ribeira

Pr. n.º 12778 – Branca Ribeira

Pr. n.º 13280 – Mor Mendes

Pr. n.º 1284 – Catarina Rodrigues

Pr. n.º 5248-1 - Guiomar do Campo

 

 

Domingo, 16-5-1563

 

A lista de António Joaquim Moreira está certa, mas indica o dia 26 de Maio de 1563, quando o correcto é 16, que foi Domingo:

 

António Rodrigues, natural de Tomar – Pr. n.º 606

Jorge Lopes, confeiteiro, natural de Lisboa – Pr. n.º 713

Manuel Álvares, tendeiro, natural de Lisboa – Pr. n.º 10807

Francisco Gonçalves, azeiteiro, natural de Lisboa – Pr. n.º 1155

Manuel da Fonseca– Pr. n.º 10812

Francisco Fernandes, ourives, natural de Lagos – Pr. n.º 9 218

Manuel Álvares, natural de Santarém– Pr. n.º 10808

 

Catarina Rodrigues, por alcunha a “do Penedo”, de Santarém – Pr. n.º 1284

Catarina Álvares – Pr. n.º 4460

Francisco Luis, barreteira, natural de Lisboa – Pr. n.º 1239

  

 

Domingo, 11-6-1564

 

Pr. n.º 1156 - João Lopes

Pr. n.º 2485 - Gabriel Rodrigues

Pr. n.º 2486 - Gaspar Fernandes

Pr. n.º 8349 - Bastião Fernandes

Pr. n.º 10719 - Lázaro Moniz

Pr. n.º 12149 – Ana de Torres

Pr. n.º 2273 – Leonor Gonçalves

Pr. n.º 12151 – Ana Rodrigues

Pr. n.º 6481 – Francisco Dias

 

 

Domingo, 1-7-1565

 

Pr. 1519 - Duarte Álvares

Pr. n.º 2269 - Manuel Dias

Pr. n.º 10742 - Marcos Gomes

Pr. n.º 12141 – Ana Gonçalves

 

 

Domingo, 9-3-1567

 

Simão Dias, de Faro – Pr. n.º 8351

Afonso Mendes - – Pr. n.º 4200

Diogo Quiban - – Pr. n.º 63

 

Catarina Álvares, de Tavira – Pr. n.º 3545 (não foi relaxada)

Branca Nunes, de Lamego – Pr. n.º 6415 (não foi relaxada)

 

 

Na lista acima de A.J. Moreira para este Auto, as duas mulheres indicadas não foram relaxadas, mas sim reconciliadas, mas faltam na Lista estas relaxadas

 

Pr. n.º 1286 – Catarina Afonso, natural de Torrão – Beja, moradora em Lisboa

Pr. n.º 7316 – Violante Rodrigues, de S. João da Pesqueira

 

 

Domingo,  11-3-1571:

 

Manuel Travassos - Pr. n.º 10259

Leonardo Salvador Fernandes - Pr. n.º 8347 (ausente e falecido)

Luis Fernandes - Pr. n.º 10718 (em estátua-ausente do Reino)

 

Nota: António de Melo, indicado por A.J. Moreira, saiu neste auto, mas não foi relaxado – não aparece o processo. 

Teve depois um 2.º processo em Coimbra com o n.º 8388, e saiu no AdF de 12-9-1574, por impedir o recto ministério do Santo Ofício

 

 

 

Os primeiros tempos da Inquisição

 

É minha convicção que D. João III e o Cardeal D. Henrique seu irmão, quando pediram ao Papa a introdução da Inquisição em Portugal, não tinham más intenções, queriam de facto o bem do País. Sentiam de facto a necessidade de integrar os cristãos novos recém-convertidos na população do Reino e achavam que uma defesa exigente da religião católica poderia contribuir para isso.

Embora nesse tempo já não fossem fechados os judeus nos seus guetos, a verdade é que a maior parte dos cristãos novos vivia ainda em zonas separadas das dos cristãos velhos, ainda não se haviam misturado.

Os primeiros tempos da Inquisição estão mal estudados. Quando comecei a ver alguns processos desse tempo, por sorte descobri a tese de doutoramento na UTAD (Vila Real) em 2012, da Doutora Maria Manuela de Sousa Vaquero Freitas Ferreira (ver Bibliografia), que estuda o breve período da existência da Inquisição de Lamego de 1543 a 1547, e que dá boas pistas para o início da repressão dos cristãos novos. O estudo de alguns processos de anos depois, com Réus da área de Lamego, permitirá fazer algumas comparações interessantes.

Os cristãos novos tinham a má sorte de ser odiados por toda a gente. Procuravam sempre os ofícios e as pequenas indústrias mais rentáveis, dedicavam-se ao comércio sempre com êxito; depois, punham os filhos na Universidade e de lá saíam médicos e advogados que naturalmente sobressaíam na sociedade. Pouco a pouco, foram entrando no comércio internacional e tinham redes que se estendiam, quer à Índia, quer também ao Brasil. Não admirava assim que fossem mal vistos.

A carta escrita pelo Infante D. Henrique a Pedro Domenico em 10-2-1542 (Corpo Diplomático Português, vol V, pag. 34) revela de facto um grande ódio aos judeus por parte do Cardeal. Mas, apesar disso, não era fanático. O Cardeal nunca incomodou nem Pedro Nunes nem Tomás Rodrigues da Veiga, ambos com pública fama de serem cristãos novos. Na verdade, os dois tinham acesso frequente à Corte de Lisboa.

Juntamente com o combate ao judaísmo, a Inquisição visava ainda outra heresia de que no País se tinha mais medo: o luteranismo. As ideias luteranas, se entrassem em Portugal, destruiriam totalmente toda a estrutura ligada à religião católica: bispos, padres, frades e freiras. Desde o início da Inquisição, sempre esteve na mente de todos os grandes dela perseguir com afinco tudo o que cheirasse a luterano.  Chegaram ao extremo de acusar de luteranos os mestres ilustres que o Rei tinha mandado ir buscar a França e ensinavam em Coimbra:

 

Pr. n.º 6469 - Jorge Buchanan, escocês – Preso a 15-8-1550 – Com ordem do Cardeal para ser libertado do mosteiro de Xabregas; saiu em 29-2-1552. Foi para Inglaterra, à socapa.

Pr. n.º 9510 – João da Costa – Preso em 13-8-1550 – sentença de 29-7-1551 – Faleceu Prior da Igreja Matriz de S. Miguel da Vila de Aveiro

Pr. n.º 3209 – Diogo de Teive – Preso em 18-12-1550 – sentença de 27-6-1551 – Reitor do Colégio das Artes até que D. João III, por carta de 10-9-1555, mandou entregar o Colégio aos Jesuítas. Recebeu depois um canonicato em Miranda.

 

Entendo que o Cardeal D. Henrique se deixava influenciar com facilidade pelos que o rodeavam. Entre estes, um frade, Fr. Duarte da Apresentação, que primeiro assinava (em Latim) Eduardus Presentatus e mais tarde Fr. Duarte, Doctor Parisiensis. Em Novembro de 1549, o Cardeal pedira ao embaixador português em Paris, Brás d’Alvide, que coligisse culpas contra aqueles professores e este chamou para o interrogatório esse Fr. Duarte, que mais tarde será também figura central no processo de Fr. Valentim da Luz. Alguns depoentes eram antigos alunos daqueles em Bordéus e queriam vingar-se da severidade com que ali haviam sido tratados.  Nessa mesma averiguação foi também apanhado

Pr. n.º 2183 – Lopo de Almeida – Preso em 10-9-1550 – sentença de 6-12-1550- libertado em 22-8-1551. Recompôs-se rapidamente.

 

Pouco mais tarde, o Bispo de Coimbra mandou para a Inquisição a

Pr. n.º 2882 – Marçal de Gouveia – Preso em 5-7-1551 – Libertado em Janeiro de 1552. Nunca se recompôs da afronta da prisão.

 

Um irmão deste último, António de Gouveia, que ensinava com sucesso em França, desistiu da ideia de regressar a Portugal, quando soube da prisão dos seus colegas e de seu irmão. Certamente o Cardeal deu conta que estas prisões tinham sido um erro e procedeu rapidamente à libertação dos presos.

Tudo isto significa que rapidamente a Inquisição se tornou um meio eficaz de satisfazer invejas e vinganças. Ou seja, veio rapidamente ao de cima o carácter perverso da Inquisição.

Também no processo n.º 8352 contra Fr. Valentim da Luz, não tem o mínimo sentido falar de luteranismo. É verdade que os peritos e teólogos afiançam que as proposições sobre que foram consultados são luteranas. Mas as proposições que lhes foram transmitidas vão muito além do que o Réu fez ou disse. É um truque fácil que consiste em arredondar para cima tudo o que o Réu disse. Além disso, o Réu estava mais que arrependido do que tinha dito e chorou baba e ranho de arrependimento, o que deveria ter impedido o relaxe nos termos do Regimento. Por isso é que eu entendo que o processo tinha finalidades ocultas que não foram conseguidas e daí a necessidade de eliminar o Réu. Essa finalidade seria conseguir que o Réu testemunhasse contra Fr. Luis de Montoya.

 

OS REGIMENTOS

Em 5 de Setembro de 1541, o Cardeal D. Henrique emitiu instruções para o regular funcionamento das Inquisições de Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Lamego e Tomar. Foi Israel Salvator Révah (1917–1973) quem descobriu por volta de 1966 este documento e o chamou Regimento da Inquisição de 1541. Todos os autores o citam a partir das publicações de Révah, sem dizerem qual a cota do documento nos Arquivos. Não é propriamente um Regimento porque não trata de todos os assuntos, mas indica já qual o espírito da época. Quando a Inquisição foi introduzida, o Papa exigiu na Bula Cum ad nihil magis que durante os primeiros três anos se revelasse a identificação das testemunhas, “abertas e publicadas”. Isto é, seguia-se a prática judicial normal. O sistema durou mais de três anos, mas a seguir, pouco a pouco, passaram a ocultar-se os nomes e toda a identificação das testemunhas, dizendo-se o tempo e os lugares das culpas apenas por aproximação; assim ficou depois no Capítulo 42.º do Regimento de 1552. Sendo as instruções extremamente sumárias, os Inquisidores decidiam segundo o seu modo de ver, eventualmente recorrendo a práticas da Inquisição espanhola, e também ao Manual dos Inquisidores de Nicholas Eymerich. Encontrei uma nítida aplicação deste Manual quando diz que os relapsos devem ser condenados na pena ordinária (relaxe) ainda que arrependidos: foi por exemplo o caso de Grácia Pires no processo n.º 1270, relaxada, que tinha abjurado no processo n.º 5799 (auto da fé de 28-2-1557) e de outros na mesma situação. Este julgamento sumário e sem apelo dos relapsos desapareceu no século seguinte.  

Em 16 de Agosto de 1552, o Cardeal D. Henrique assinou o primeiro Regimento da Santa Inquisição, com 141 Capítulos. Os assuntos eram agora mais detalhados e era já dada uma certa forma ao processo inquisitorial. Referiam-se já as sessões in genere e in specie, mas não era ainda prevista a sessão da Genealogia. Era já prevista a defesa do Réu que tinha liberdade para nomear procuradores. O sistema foi depois completado com a constituição do Conselho Geral no final de 1569 (Regimento do Conselho Geral de 1-3-1570).  Foram também emanados o Regimento dos Juízes das Confiscações (1572)   e o Regimento dos Solicitadores do Fisco (1572) que António Baião publicou no vol. XIII (1918-1919) no Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências, pags. 795 e ss.

 

O QUE SE PODE CONCLUIR DOS PRIMEIROS PROCESSOS

Os primeiros processos têm aspecto de sumários, raramente ultrapassam  poucas dezenas de fólios. Muitas vezes falta lógica jurídica na ligação entre as culpas e a condenação. Os julgadores condenam mais pela convicção do que propriamente pelas provas aportadas ao processo. Diz-se que o Réu é judaizante, expressão que desaparece dos processos no final do séc. XVI. Curiosamente, será retomada pelos historiadores do séc. XX!

Geralmente, não há genealogia (não está no Regulamento) , mas esta já aparece nalguns processos. Existe no entanto a preocupação de prender vários elementos da mesma família para que, segundo os princípios inquisitoriais, se acusem uns aos outros. O processo n.º 10742, de Marcos Gomes, tem um mandado de prisão para 20 pessoas!

Muitos processos não têm libelo, nem publicação da prova da justiça. Não são oferecidos aos Réus procuradores para a sua defesa. Mas existia já a possibilidade de o Réu contratar um procurador.

As acusações não são ainda de declaração de judaísmo em forma como seriam quase sempre nos séculos seguintes, mas heresias mais concretas: não crer na SS.ma Trindade, na divindade de Cristo, fazer jejuns, pequenos ou grandes, guardar os sábados de trabalho, etc. A Inquisição considerava indícios de judaísmo todo e qualquer costume de judeus, mesmo que não ligado à religião, por exemplo, vestir camisa lavada aos sábados, ou rezar olhando as estrelas do céu…

Nos primeiros processos, os tempos de prisão são curtos e praticamente nunca excedem os dois anos. Alguns processos sobem ao Inquisidor-Geral, mas a maior parte são decididos em parecer da Mesa. As sentenças repetem de certo modo a condenação. Mas, como são lidas publicamente nos autos da fé, começam a conter elementos provindos da fantasia dos inquisidores, que não têm que ver com a realidade.

Vigora já o básico princípio inquisitorial de que o Réu para se livrar tem não apenas de confessar, mas também de denunciar. Começam então os Réus a denunciar os que já estão presos nos cárceres.

Para a condenação, usa-se por vezes a mera suspeita de que os Réus são “judeus” no coração.

Surge já a acusação de perturbar o recto funcionamento do Santo Ofício – Provocar avarias no funcionamento da máquina de poder que era a Inquisição.

Certas fórmulas dos assentos são repetidas sem correspondência com cada processo, ex.  confissões diminutas, variações, repugnâncias e contradições

São já muito utilizadas as denúncias dos presos uns contra os outros, de conversas que se faziam nos cárceres.

Tenho  a sensação de que o combate ao judaísmo pela Inquisição tinha também por base um pavor ao luteranismo, ainda mais odiado que os judeus. A doutrina religiosa dos judeus, tirada a imortalidade da alma e a crença na ressurreição dos mortos é simplesmente um teísmo, praticamente o mesmo que os luteranos, abstraindo da prática religiosa. Desaparecia a eucaristia, os santos, os frades, as indulgências, a venda das Bulas, os jejuns e abstinência.

  

Processos antigos

 

Pr. n.º 8345 – Pero ou Pedro flamengo –, calceteiro, natural de Anvers e morador em Lisboa, casado com Maria Dias, portuguesa

Preso em 24 de Março de 1556

A vizinha Isabel Lopes disse ter-lhe dito a mulher do réu que seu marido dizia que um flamengo ou francês que tinham queimado no auto passado era muito bom cristão. Dizia também que não se devia rogar aos santos.

A mulher Maria Dias disse que o marido lia muito por um livro na língua dele e dizia que lhe pusessem esse livro à sua cabeceira, se estivesse doente. Que ele seu marido queria comer carne nos dias de abstinência, dizendo que não era pecado e que, se fosse pecado, que caísse sobre ele. Dizia que não havia de rezar nem jejuar, nem havia de comprar bulas ou indulgências. E que não acreditava nos poderes das relíquias. Que as estátuas dos santos eram feitas de pau e tinta e que não rogava aos santos. Que nenhum pobre havia de ir para o inferno.

Disse mais ela que o seu marido fora preso em Granada e ali cuidou que o queimassem e que foi açoitado; foi sambenitado, mas depois tiraram-lhe o sambenito. 

Interrogado, exprimiu as mesmas convicções que dissera a sua mulher.

Nas imagens  50 a 65 está o processo dele em Granada, onde, confessou e abjurou em Setembro de 1552.

Por sentença foi considerado relapso no crime de heresia por luteranismo e condenado no relaxe à justiça secular. Foi publicada a sentença e garroteado no auto da fé de 28 de Fevereiro de 1557.

 

 

Pr. n.º 4388 – Álvaro Gomes , de 70 anos, morador em Portimão, preso em 11-2-1559, por culpas de judaísmo

Foi denunciante Gaspar Mendes, cristão velho.

O Réu iniciou a sua confissão a 16-5-1559. Disse que vestia camisa lavada ao sábado. Disse que fizera vários jejuns do Quipur.

Hesitou nas suas confissões, revogou-se várias vezes e, segundo os Inquisidores, não deu mostras de arrependimento.

Assento da Mesa de 30-10-1560: “(…) e pareceu que ele estava em termos de impenitente, ficto e simulado confitente e por tal devia de ser declarado e relaxado à justiça secular, servatis servandis, vistas as ditas suas confissões e suas variações e grandes repugnâncias e contradições e a qualidade delas, maiormente o que disse na sessão su próxima (penúltima) e última sessão, com o mais que dos autos consta.”

No Auto da Fé de 16-3-1561, foi o Réu entregue com o traslado da sua sentença ao Relator do processo na Relação.

 

 

Pr. n.º 12932 – Salvador Soares, mourisco forro, de 64 anos, morador em Lisboa, preso em 19-1-1562, por culpas de islamismo

Fora já condenado uma vez a cárcere e hábito penitencial perpétuo no Auto da Fé de 15 de Maio de 1558 – processo n.º 13187. Depois, em 15-11-1559, o Cardeal D. Henrique tirou-lhe o cárcere e o hábito.

Em 1561 foi denunciado por António de Sousa (Pr. n.º 10821), mourisco cativo de Martim Afonso de Sousa, Brites Pires (Pr. n.º 6424), também mourisca cativa e Manuel Fernandes (Pr. n.º 1113), também mourisco cativo.

O promotor diz no libelo que o Réu é cristão baptizado.

Em 3-2-1562, foi admoestado para confessar, o que ele não quis fazer.

Em 10-3-1562, os Inquisidores exararam o parecer de que o Réu deverá ser relaxado, sendo relapso no islamismo.

Foi relaxado por ter crença na seita de Mafamede, no Auto da Fé de 10 de Maio de 1562, tendo sido entregue com o traslado da sua sentença ao Corregedor da Corte Manuel de Almeida.

 

 

Pr. n.º 1284 – Catarina Rodrigues, viúva, de 50 anos, viúva, residente em Leiria, por alcunha a “do Penedo”, presa em 20 de Julho de 1562, por culpas de judaísmo.

Denunciada por Ana Dias,  Isabel Nunes, Ana Garcia, todas cristãs novas, presas nos cárceres da Inquisição. Acusaram-na de só crer no Deus dos Céus e de fazer jejuns judaicos.  É denunciada também pela filha, Ana Lopes (Pr. n.º 6477) e por seu genro Gabriel Lopes (Pr. n.º 15789).

Começou a confessar em 28 de Julho de 1562.

O processo tem Genealogia.

Em 19-2-1563, os Inquisidores deram o parecer de que deveria ser relaxada, “vistos seus autos e confissões e qualidade delas e de sua pessoa e assim as repugnâncias e contradições das suas confissões e suas variações e revogações especialmente o que disse na última audiência que com ela se fez na mesa, porém pareceu mais seguro que o promotor fiscal acusasse em forma as suas culpas para com isso ficar juntamente convicta e confessa, ratificada primeiro a prova larga da justiça-autor e depois da diligência se tornar a ver o que crescer, vistos os ditos autos e qualidade da dita prova.(…)”

Foi apresentado o libelo e depois ratificadas as testemunhas.

Foi relaxada no Auto da Fé de 16 de Maio de 1563, sendo entregue ao Corregedor da Corte.

 

 

Processo n.º 2485 – Gabriel Rodrigues, carapuceiro, de 67 ou 68 anos, natural de Elvas e morador em Lisboa, preso em 25-8-1563, por culpas de judaísmo

Denunciado por Duarte Lopes (pr. n.º 12785), feitor do pescado, Gabriel de Oliveira (Pr. n.º 15412), tosador, Francisco Dias (Pr. n.º 1695), sapateiro, Justa Antunes (Pr. n.º 9296), Manuel Fernandes, de Miranda e outros.

Começou a confessar a 26 de Agosto de 1563.

Vários companheiros de cárcere do Réu denunciaram as conversas heréticas que na prisão o Réu teve com eles.

No final dos depoimentos, uma nota do Inquisidor Ambrósio Campelo, que assinava Ambrosius doctor: “Satisfaz a informação da justiça mas tem contradição em dizer que no tempo que andava errado cria em Jesus Cristo e no Sacramento”.

Foi-lhe notificado o libelo. Em 12-4-1564, pareceu a todos os votos que o Réu estava em condições de ser havido por herege e ser relaxado.

Foi relaxado no Auto da Fé de 11 de Junho de 1564, sendo entregue ao Corregedor da Corte juntamente com o traslado da sua sentença.

 

 

Processo n.º 10742 – Marcos Gomes, viúvo, de 52 anos, natural de Vila do Conde e morador em Tavira, preso em 10-5-1564

Denunciado por João Lopes Cristino (Pr. n.º 1156), Francisco Dias, Rui Dias (Pr. n.º 13039), Lopo da Fonseca (Pr. n.º 2190),Baltasar Dias (Pr. n.º 5081).

Tem Genealogia. Confessou.

Em 14-2-1565 foi admoestado na Mesa para confessar mais.

Em 30-3-1565: “pareceu à maior parte dos votos que antes de outro despacho fosse publicado um despacho da Mesa a este Réu Marcos Gomes, cristão novo, que lhe não recebiam sua reconciliação por não ser de receber e que, melhorando coisa de substância, se tornasse a ver o que acrescesse depois para tomar conclusão no caso; e não melhorando, nem satisfazendo mais, fosse relaxado à justiça secular; ratificadas as testemunhas et servatis servandis, vistos seus autos e confissões, fictas, diminutas e simuladas e não satisfatórias e outras considerações que nisto se houveram, porque pareceu que não melhorando nem satisfazendo mais, devia ser declarado por convicto no crime de heresia e apostasia e como tal e impenitente, ficto e diminuto e simulado confitente, relaxado, ut supra. Em Lisboa, xxx de Março de 1565, quando veio à Mesa e se fez com ele a audiência acima.”

A seguir, um acórdão dizendo a mesma coisa.

Segue-se a sentença. Na véspera do auto, em 30-6-1565, fez mais confissões, mas de nada lhe valeu conforme despacho da Mesa: “pareceu que, sem embargo do que acresceu na audiência supra próxima, depois de lhe ser publicado que o relaxava, e que se cumprisse a sentença atrás, como se nela contém e nisso se fez esta lembrança, que se relaxasse o dito Marcos Gomes, Réu. Em Lisboa, XXX de Junho de 1565, véspera do Auto à tarde depois das seis horas.”

Foi relaxado no Auto da Fé de 1 de Julho de 1565, sendo entregue ao Corregedor da Corte juntamente com o traslado da sua sentença.

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

António Joaquim Moreira, Listas impressas e manuscritas dos Autos da Fé da Inquisição de Lisboa – Cod. 863 da BNP

Online: http://purl.pt/15393

 

J. Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Clássica, Lisboa, 1975.

 

Regimento do Santo Ofício de 16 de Agosto de 1552, in Archivo Histórico Portuguez, Vol. V, pag. 303, 1907

Online: http://www.archive.org

 

I.S. Révah, L’installation de l’Inquisition à Coimbra en 1541 et le premier règlement du Saint Office Portugais, in Bulletin des Études Portugaises, vol. XXVII, 1966, pag. 47-88

 

Regimento do Conselho Geral do Santo Ofício, de 1 de Março de 1570, in António Baião, a Inquisição em Portugal e no Brasil, Separata do Archivo Historico Portuguez, Vol. IV e ss. , Lisboa, 1906, pag. 303

Online: http://www.archive.org

 

Regimento dos Juízes das Confiscações de 26 de Julho de 1572, in Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências, vol. XIII (1918-1919), pags. 795 e ss.

Online: http://www.archive.org

 

Regimento do Solicitador do Fisco, de 24 de Novembro de 1573, in Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências, vol. XIII (1918-1919), pags. 814.

Online: http://www.archive.org

 

Manual de Inquisidores para uso de las Inquisiciones de España y Portugal, ó Compendio de la obra intitulada Directorio de Inquisidores de Nicolao Eymerico, Inquisidor General de Aragon, traducida del francês en idioma castellano, por D. J. Marchena, com adiciones del traductor acerca de la Inquisición de España. Mompeller, Imprenta de Feliz Aviñon, 1821.

Online: http://books.google.com

 

Carta do infante D. Henrique a Pedro Domenico, em 10 de Fevereiro de 1542, in Corpo Diplomático Português, vol. V, pag. 34

Online: http://www.archive.org

 

Doutora Maria Manuela de Sousa Vaquero Freitas Ferreira, O Tribunal da Inquisição de Lamego Contributo para o Estudo da Inquisição no Norte de Portugal, Tese de Doutoramento, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real, 2012.

Online: http://repositorio.utad.pt/bitstream/10348/2811/1/phd_mmsvfferreira.pdf