10-1-2002

 

Ana Marques Gastão

 

 

 

É jornalista do Diário de Notícias, tendo trabalhado antes no Diário Popular e na revista Face. Formada em Direito pela Universidade Católica, é também advogada. Tirou na Gulbenkian cursos de bailado, de iniciação musical e de piano. Nos seus trabalhos jornalísticos, dedica especial atenção às artes plásticas, da música ao bailado e à literatura, em geral.

Publicou o livro de poesia Tempo para Morrer, Tempo de Viver primeiro e, a seguir, em 2001, Terra sem Mãe.

 

Sou o silêncio que ficou

uma cidade igual às outras

onde os gritos se esvaem

e a tua morte se tornou minha.

 

Em tuas asas

quebradas

tudo se desintegra

menos a memória.

 

(Terra sem Mãe, pág. 39)

 

 

AGOSTO DE 2002 - A Autora acaba de publicar mais um livro de poesia com o título "Nocturnos", de 140 pág., edição da Gótica.

 

 

Diário de Notícias, 31-01-2001

Tecido com a contenção das lágrimas

Terra sem Mãe
Autor:
Ana Marques Gastão
Editora:
Gótica
Páginas:
50
Género:
Poesia
Preço:
1500$00

Maria Teresa Horta

A autora, embora manejando a sua dor, jamais se compraz consigo própria, mesmo quando a leva ao limite do impossível

Terra sem Mãe, de Ana Marques Gastão, é um livro dilacerante, verso a verso tecido com a contenção das lágrimas e o burilar de uma imensa dor que a si mesma se sustenta e à qual assistimos, partilhando-a; observando-a a partir das extensas margens da poesia, que a sua autora jamais utiliza ou violenta a seu favor.

Numa incontornável pulsão, que acaba por não mitigar o sentimento que inicialmente moveu a poetisa à sua escrita, torna-se o livro exacto e emocional objecto poético, provido de uma estética particular na sua intensidade, enorme vaga que se avoluma à medida que o vamos lendo.

Ana Marques Gastão, embora manejando a sua dor, jamais se compraz consigo própria. Mesmo quando leva até ao limite do impossível a queda, a perda, a desorientação aflita de quem procura o chão que lhe falta.

O esteio.

Perdida, como confessa estar, a certa altura, num desértico jardim da memória, onde a tristeza é já uma árvore disforme.

Em Terra sem Mãe, ela transfigura-se, ultrapassando-se frente à morte que a golpeia, através das origens. Nestes seus poemas, a morte da mãe é magnificamente levada à exaustão do desespero e da falta, até ficar reduzida a insistente extremo do afecto.

Terra subitamente estéril. Um mesmo corpo feminino que se iguala na sua permanente imagem que já se transfigura. Vagem uterina que se colhe e se transformará mais tarde em fio de Ariadne, pelo tecido íntimo dos anos, no correr interior das diferenças que nos marcam. Nos aproximam e afastam num único balanceado movimento, que a vida acentua e aceita, desafiando o seu inevitável fim.

Às vezes quase com comprazimento? Então, a poetisa luta contra a morte, no poema que inventa como último recurso para continuar a possuir a figura amada, que desapareceu agarrada ao silêncio.

Silhueta que se esfuma, à medida que as horas passam e os dias apagam?

Extinguiste-te e contigo o corpo./ Mãe, és clamor, e tuas mãos/ a memória de meus ossos.

Imbrincadamente, corpos que se fusionam, assustando à beira do precipício. E nessa junção infinita, quem sabe se salvam. Porque aquela que fica, testemunha, resiste:

Mataram-te,/mas não no meu poema.

Fica a recordação e o sentimento que não se quer esgotado, nem extinto.

Nem discreto. Por completo exposto em cada verso retomado, fica. E visível resta o corpo da mãe, que a escrita recupera. Numa eternidade risível. Ao ponto de nos questionarmos se mais do que exorcismo não será este livro um acto de sacrifício, em que a filha desce como Orfeu, ao fundo dos Infernos, para recuperar a pessoa amada, que não conseguirá resgatar, mas ilumina.

Eu, que descrevo/ esta morte com lágrimas,/ desço ao país do frio/ o da música extremada/ sem suster o dilúvio.

O fim de um mundo, de um paraíso para sempre perdido, que logo traz consigo na pele intacta a inequívoca tatuagem de uma infância inacabada. No seu incontornado apelo de criança abando0nada e sem colo. É então que os papéis se invertem, pois a filha não sustenta o árido vazio da perda.

Repouso/ ó mãe/ minha morte/ em teu colo.

Preferindo a poetisa o papel daquele que, como Cristo, encosta no colo da mãe a cabeça que sangra, enquanto se vai esvaindo.

Terra sem Mãe, é esse anseio infinito que se solta, poema a poema, até formar um todo, frente aos afectos primordiais, raízes profundas das nossas origens.

 

      DNa

    29 de Dezembro de 2001

 

 

“Terra sem Mãe” é o segundo livro de poemas de Ana Marques Gastão (n. 1962), mas na verdade é como se se tratasse de uma estreia, dadas as debilidades da primeira obra. É um livro breve e intenso, uma “Waste Land” de natureza privada. Trata-se, como o título explicita, da morte da mãe, e por isso parece-me errado dizer que o livro se ocupa da morte; a morte da mãe é, por assim dizer, a morte decisiva, porque é o fim da pessoa em quem começámos. Sobre o tema da morte dos pais, temos tido na moderna poesia portuguesa alguns poemas notáveis, nomeadamente de António Osório e Vasco Graça Moura. Mas atrevia-me a dizer que poucas vezes a realidade da morte nos foi apresentada de forma tão crua como neste livro de Ana Marques Gastão. Não é um livro de elegias nem de recomposição: é um livro de decomposição, de agonia. Em vez de metáforas consoladoras (como em alguns extraordinários poemas de Dylan Thomas), o que nos é apresentado é a morte como um facto, um puro (e insustentável) facto. Há terra e vermes, cadáveres e “cinza azulada”, trevas e uma “invisível luz fria”. E há a morte de quem fica vivo: o silêncio, o pranto, a ausência, a dor, e sobretudo a memória, maldição suplementar e não um conforto.

 

“O corpo,

osso abrasado,

meteoro

na minha cabeça.

 

Que é a vida

senão

um bramido inútil?

 

Da tua história

expulsa o tumor.

Num lençol de sangue

alcançarás o repouso.

 

Feridas pelos vidros

para trás ficam as mãos

o riso e os suaves lírios,

o espírito que sai pela boca” (pág. 16)

 

Há neste livro uma espécie de expressionismo minimalista e frio, em poemas breves mas muito carregados.

 

“Sombra sou

num jardim perdido.

Memória

inumana

 

Onde estás?

A tristeza

é uma árvore

disforme.

 

Em que céus,

ou águas,

se acolhe

teu futuro?

 

Dor suprema

a das coisas que ignoro.

 

Terra sem mãe” (pág. 13)

 

 

Nenhum dos poemas é, em rigor, um epitáfio, embora vários sejam invocações e questões sem solução. Há, em Marques Gastão, o problema do Além e da divindade, mas são instâncias que aparecem como questões inevitáveis mas sem resposta. Deus, ainda que exista, parece ser insuficiente para dar sentido a uma morte.

 

“Para que sobrevivas

não bastam

a cruz nem a infância” (pág. 35)

 

Com a morte da mãe tudo se converte em terra morta, a noção do próprio corpo torna-se assustadora, e os mortos existem como realidade finda, decomposta (há uma certa aproximação ao mórbido que tem, aliás, grande tradição na poesia desde os pré-românticos:

 

“Mãe da morte

em ti mergulho

e conheço meu céu” (pág. 41)

 

“On mourra seul”, diz a epígrafe de Pascal, e é essa a consciência obsessiva de quem vai morrer, neste caso daquela que sobreviveu à morte da mãe mas que, pela lei da vida, morrerá aos seus próprios filhos um dia, como se fosse um contágio maléfico: “Uvas amargas as da maturidade”.

            O mais importante neste livro é o modo como a morte, e a morte da mãe, se tornou, para o poeta, a sua condição existencial (“terra sem mãe”), e não um acidente inevitável. É por isso que diz:

 

“Então

a palavra pranto

ergueu-se íngreme

até ao riso.

 

Repouso

ó mãe

minha morte

em teu colo” (pág. 42)

 

“Nunca mais seremos completos”, diz Marques Gastão e o plural não relembra apenas a condição humana de todos, mas reforça a ideia de que uma morte representa muitas pequenas mortes para os que sobrevivem, esses sim os verdadeiramente castigados com a existência da morte. A mãe, feita ossos e cinzas, feita memória das mãos, regressa, mas regressa sempre morta, para assombrar, e por isso mais sublinha o seu não retorno definitivo. Os anos passam, e nós somos os próximos. Ana Marques Gastão pergunta:

 

"Diz-me, ó Deus,

se só há mortos

em minha língua” (pág. 29)

 

e não é necessariamente da língua portuguesa que está a falar. A morte e os mortos falam outra língua, e isso só torna mais notável que este livro impiedoso fale disso na língua dos vivos. 

 

Pedro Mexia