8-4-2001

 

 

 

 

 

 

ZECA AFONSO

(1929 - 1987)

 

 

 

QUADRAS POPULARES

 

 

 

 

 

Nestas quadras vão notícias

P’ra quem está mal informado

Dá-me o tom desta cantiga

Quero estar bem preparado

 

 

 

 

Quero estar bem preparado

O Sol e Dó bate fino

Quando o compasso é folgado

Entra melhor no ouvido

 

Os ricos mentem ao povo

Com artes de feiticeiro

Dizem que são pela Pátria

Mas só pensam no dinheiro

 

 

 

 

Hoje os tempos estão mudados

Mal vai para quem trabalha

Sai das tuas tamanquinhas

E luta contra o canalha

 

 

Sobem as rendas de casa

A habitação é um luxo

Mas há quem tenha palácio

Piscina, parque e repuxo.

 

 

 

 

 

 

Foi dar a Lisboa um Pinto

Habitar um aviário

Fizeram dele ministro

Mas não passa dum falsário

 

Nunca vi na minha vida

De uniforme ou à paisana

Um guarda republicana

Bater num capitalista

 

 

 

 

Tu chamaste-me comuna

Pensando que me ofendias

Com esse nome viveu

Paris os seus melhores dias

 

Haja ganas com fartura

P’ra levantar o país

Quando o mal não tem remédio

Corta-se o mal pela raiz

 

 

 

 

Mineiros da nossa terra

Abrindo covas no fundo

Pescadores lá do mar alto

Que deram lições ao mundo

 

Muita gente prevenida

Grita e berra que se farta

Antes que seja crescida

Há que matar a lagarta

 

 

 

 

 

Cãezinhos de pelo fino

Pela trela passeando

São os últimos suspiros

Que a Europa nos está mandando

 

Hoje há Sandras e Patrícias

Sinal dos tempos que vão

Acabaram-se as Marias

Tudo vem da imitação

 

 

 

 

 

Sónias, Mónicas, Sofias

E Carlas ao desbarato

Ninguém quer um fato próprio

Tudo quer mudar de fato

 

Algarve, o que vejo agora?

Fazem de ti capoeira

Para pedires uma bica

Falas em língua estrangeira

 

 

 

 

 

Vida cara, vida cara

Onde irá isto parar?

Pergunta a dona de casa

Sem ter com que se amanhar

 

É já miséria doirada

Ver comida boa e farta

E pagar uma fortuna

Por um quilo de batata

 

 

 

 

 

É já miséria revolta

Ver a loiça sobre a mesa

Quem fez o cabaz da fome,

Rouba, rouba concerteza

 

Tudo são palavras mansas

Tudo são palavras caras

Avança, meu povo, avança

Avança que já não páras

 

 

 

 

 

Há de tudo nesta feira

Juncada de rosmaninho

Menina, toma cautela

Que andam chulos p’lo caminho

 

Na sociedade marcada

O sistema é que não presta

E p’ra manter a fachada

Há sempre um tambor da festa

 

 

 

 

Tenho debaixo da língua

O princípio duma trova

Hei-de encontrar uma rima

Dedicada à gente nova

 

 

A velhice não se enjeita

Como o lixo da calçada

País que os velhos rejeita

Não é país, não é nada

 

 

 

 

 

Numa escola de Setúbal

Ficou surda uma menina

Tanta pancada lhe dera

A professora malina

 

Discursos, festas, colóquios

Não chegam (nem caridade)

O melhor são as crianças

Disse o poeta, e é verdade

 

 

 

 

Seja cada dia um ano

Que um ano não dá p’ra mais:

Colóquios, festas, sorrisos,

Missas internacionais

 

 

Faz aqui falta uma trova

Duma criança oprimida;

Ela que fale da fome,

Ela que fale da vida

 

 

 

 

 

Ela que fale da pomba

Que tem a asa ferida;

Ela que fale da nuvem

Que encobre a terra poluída

 

Veio uma carta de longe

Dum amigo de Bragança

Que fugiu daqui a salto

E hoje vive na França

 

 

 

 

 

Diz que trabalha na “chaine”

Como uma besta de carga

E que não foi de vontade

Que deixou a pátria amada

 

Mandou o filho à escola

Onde só fala francês

Quando as saudades apertam

Diz que vai voltar de vez

 

 

 

 

 

Mas sabe que o desemprego

É um inimigo real

E assim se vai conformando

Longe da terra natal

 

O emigra erga a mola

Num país que não é seu

Produz fortunas alheias

Com as mãos que Deus lhe deu

 

 

 

 

 

Disse-me um dia um careca

Quando uma cobra tem sede

Corta-lhe logo a cabeça

Encosta-a bem à parede

 

Agora diz-me ó careca

Quando uma cobra tem sede

Corta-lhe logo a cabeça

Encosta-a bem à parede

 

 

 

 

 

Quando uma lancha se afunda

Nunca a culpa é do patrão

É sempre de quem se amola

Lá no fundo do porão

 

Esta terra será nossa

Quando houver revolução

 

 

 

 

                               

 

Zeca, 75 Anos
Por NUNO PACHECO
Segunda-feira, 02 de Agosto de 2004

Aveiro, 2 de Agosto de 1929. Na freguesia da Glória nascia um menino que teria o nome de José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos. Pai: José Nepomuceno Afonso, magistrado. Mãe: Maria das Dores, professora primária. Não tardarão a embarcar, os pais, para África. Ele irá depois.

Aveiro, 2 de Agosto de 2004. Hoje. Junto à Praça Fonte Nova, uma rua vai receber o nome do menino que foi para África e voltou, para aqui viver, cantar e morrer: José Afonso. Há outras ruas ou praças com o nome dele, em terras que alguma vez o viram ou ouviram, na sua errância pelo Portugal que amava, aquele que lhe permitia sentir de perto a vida das suas gentes. Agora haverá mais uma, na cidade onde nasceu. À noite, para que e lembrança não se confine à laje suspensa da toponímia, haverá música de homenagem no Largo do Rossio (21h30). De entrada livre, como ele idealizava o universo, e com nomes próximos: Sérgio Godinho, que com ele cantou, e Vítor Almeida Silva que, de óculos de aros grossos, o imitou no antigo "Chuva de Estrelas".

Depois, o que virá? De novo o silêncio? O que é possível saber dele, para que o não esqueçam? Há, disponíveis, além dos discos, vários livros e informações dispersas que permitem conhecer melhor não só o músico como também o homem (ver caixa). Para este ano, a juntar aos materiais disponíveis, prevê-se o lançamento pela primeira vez em DVD (há uma edição, em VHS) do Concerto no Coliseu dos Recreios de Lisboa, gravado a 29 de Janeiro de 1983 e difundido pela RTP com críticas do próprio cantor pela forma como o programa foi, então, montado e reduzido. Mesmo assim, ficou para a história como o único registo videográfico disponível de um momento irrepetível: sendo o primeiro concerto de José Afonso como músico profissional foi também o último, porque a doença que o minava (uma esclerose lateral amiotrópica) só lhe daria mais quatro anos de vida. Morreria em Setúbal, a 23 de Fevereiro de 1987, com 57 anos.

Uma noite histórica e outros registos

Na noite do Coliseu, tensa e inesquecível, há um momento em que a voz do cantor cede à comoção e denota um estrangulamento breve, numa passagem da "Balada do Outono" que, ali e naquelas circunstâncias, soava já como epitáfio: "Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar". Muitos dos presentes não conseguiram esconder as lágrimas e ainda hoje, ao ouvir ao gravação do espectáculo, é possível sentir esse momento como um arrepio. Com José Afonso, nesse palco onde o abraço era já meia despedida, estavam, entre músicos e cantores, Octávio Sérgio, Lopes Almeida, Durval Moreirinhas, António Sérgio, Rui Pato, Francisco Fanhais, Fausto, Júlio Pereira, Janita Salomé, Serginho, Guilherme Inês, Rui Júnior e Rui Castro.

A edição do DVD, quase pronta, reunirá, segundo a editora que a preparou (a Costa do Castelo), mais uma hora de extras à gravação do concerto tal como foi difundido pela RTP, também com 60 minutos (terá sido impossível uma remontagem, para ampliação, do material original). Serão sete extras, no total, todos dos arquivos da RTP: uma participação do cantor no programa Lugar de Exílio, em Maio de 1980, onde fala, da sua vida e carreira, e canta, acompanhando-se à viola (a gravação é a cores); uma espécie de teledisco gravado numa quinta de Azeitão, 1981, com a canção "Saudades de Coimbra"; imagens do 25 de Abril com "Grândola Vila Morena" em fundo; e vários registos a preto e branco, dele a cantar: "Os vampiros"; "Menino do bairro negro" na série Coimbra Musical, em 1978; "Os fantoches de Kissinger", na série Pifelin, 1975; "Milho Verde", num dueto com o cantor francês Georges Moustaki, 1975; e um registo do I Encontro Livre da Canção Portuguesa, no Palácio de Cristal do Porto, logo a seguir ao 25 de Abril (na noite de a 3 de Maio de 1974), ele e outros cantores a entoarem juntos "Venham mais cinco".

Grândola e o que se seguiu

Para quem conhece mal ou não conhece sequer José Afonso, refira-se que dos três aos dez anos ele andou por Angola (1933-36), Aveiro (1936), Moçambique (1937), Belmonte (1938-39), devido a obrigações de carreira do pai. Em 1940 vai para Coimbra, onde casa pela primeira vez e onde fica até ser chamado ao serviço militar, em 1953. Entretanto, começa a cantar. Primeiro no liceu, depois na Universidade. Rui Pato, seu amigo, acompanha-o à viola. Grava o primeiro 45 rotações, "Baladas de Coimbra", em 1958 e, durante uma deslocação ao Algarve (é então professor) conhece aquela que virá a ser a sua futura mulher: Zélia Santos. É com ela que, em 1964, ruma de novo a África, com destino a Moçambique, uma viagem decisiva no cimentar da sua consciência anti-colonial. No regresso, é expulso do liceu e perseguido pelas suas posições políticas. Canta mais para sobreviver do que por opção de carreira, mas no entanto os seus discos começam a ser bandeira de uma geração que vê nele um dos seus mais lúcidos arautos.

A escolha de "Grândola Vila Morena" para senha do 25 de Abril de 1974 associa para sempre o seu nome à história da revolução dos cravos. De 1966 até 1985 gravou 15 álbuns, todos já reeditados em CD (a esmagadora maioria pela Movieplay, que possui o catálogo Orfeu, mas também pela EMI-VC e pela Strauss). O último, "Galinhas do Mato", teve em 2002 uma edição especial, pela MVM, com um documentário vídeo extra, com vários depoimentos. A estes álbuns juntaram-se nestes anos algumas colectâneas e três outros CD com gravações antigas: "Carlos Paredes/José Afonso/Luiz Goes", da EMI, 1992 (que tem, por exemplo, o "Coro dos Caídos" e "Canção do Mar"), "Os Vampiros" (uma edição medíocre da Edisco, de 1987) e "De Capa e Batina", esta com libreto biográfico de 72 páginas e textos de José Niza (Movieplay, 1996).

Para perpetuar a sua obra e memória, como músico, poeta, cantor e compositor, têm contribuído a actividade da Associação José Afonso, o prémio musical José Afonso atribuído anualmente pela Câmara da Amadora e os discos (de homenagem ou reencontro) "Filhos da Madrugada" (1994) e "Maio Maduro Maio" (1995), onde se propõem diferentes releituras de muitas das suas canções.

  

DISCOS OBRIGATÓRIOS

Sem dispensar outros, há pelo menos cinco discos de José Afonso de audição obrigatória, todos disponíveis em CD: “Baladas e Canções” (1967, com registos de 1964), “Traz Outro Amigo Também” (1970), “Cantigas do Maio” (1971). “Venham Mais Cinco” (1973) e ‘Como Se Fora Seu Filho” (1983). Correspondendo a várias fases da sua evolução criativa, são obras-primas.

 

OBRAS BIOGRÁFICAS

A par de inúmeros artigos dispersos, há três livros de referência: José Afonso—Andarilho, Poeta e Cantor”, editado pela Associação José Afonso (1994), “José Afonso, O Rosto da Utopia”, de José A. Salvador (Terramar, 1994, 1999) e “Zeca Afonso, As Voltas de um Andarilho”, de Viriato Telas (Ulmeiro, 1999).

 

MEMÓRIAS INTIMISTAS

Aos ensaios juntam-se memórias de amigos ou familiares. É o caso de “José Afonso, Um Olhar Fraterno”, do irmão mais velho do cantor, João Afonso dos Santos (Caminho, 2002) e de “Zeca Afonso Antes do Mito”, de um amigo dos tempos de Coimbra, António dos Santos Silva (Minerva, 2000). De José Jorge Letria, cantor nos anos -70, há três: “José Afonso: O Que Faz Falta”, colectânea de depoimentos co-organizada com José Fanha (Campo das Letras, 2804); “Zeca Afonso e a Malta das Cantigas”, a história contada aos mais novos (Terramar, 2882); e “Carta a Zeca Afonso”, epístola em forma de poema (Universitária Poesia, 1999).

 

POESIA E CANÇÕES

Livros com poemas e canções há três: uma reedição actualizada de “Cantares”, editado pela Nova Realidade em 1965 e reeditado pela Fora do Texto, Coimbra, 1992; o pequeno “Quadras Populares”, de 1982. reeditado pela Ulmeiro em 1990; e, por fim, o único que reúne a totalidade da sua poesia, “Textos e Canções, editado pela Assírio & Alvim em 1983 e com última edição revista e aumentada por Elfriede Engelmayer datada de 2000. Este último é essencial.

 

ANÁLISE DA OBRA

O livro mais relevante é “José Afonso, Poeta”, de Elfriede Engelmayer, estudiosa da obra de José Afonso (Ulmeiro, 1999). Mas é também digno de nota o opúsculo “A Música Tradicional na Obra de José Afonso”, de Mário Correia (Câmara da Amadora, 1999).

 

INTERNET

Com notas biográficas, discografia e canções há dois:

http://alfarrabio.um.geira.pt/zeca , criado por Arménia Rua, da Universidade do Minho; e www.instituto-camoes.pt/bases/zeca.htm , que o Instituto Camões mantém activo. Há também lugar para José Afonso num espaço dedicado aos “Poetas da Música”: http://www.terravista.pt/meiapraia/2425/jafonso.html