6-10-2018

 

 

 

 

Et tu n'es pas revenu

 

de Marceline Loridan-Ivens et Judith Perrignon

 

Librairie Générale Française

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTA DE LEITURA

 

A autora deste livrinho nasceu em 19 de Março de 1928, com o nome de Marceline Rozenberg e faleceu no dia 18 do mês passado, com 90 anos, com o nome de Marceline Loridan-Ivens, os sobrenomes dos seus dois maridos. O livro foi escrito com a ajuda de Judith Perrignon; ela foi sobretudo cineasta.

 

O livro é muito bonito e comovente. A família era judia e a autora e seu pai, Salomon ( do seu nome Shloïme em yiddish ) Rozenberg não conseguiram escapar à milícia francesa que trabalhava para os alemães em Abril de 1944. Ela, com 15 anos na altura,  foi para Birkenau, o seu pai para Auschwitz. Por acaso encontrou por duas vezes o seu pai  que não estava mais longe que 3 km. e pôde mesmo trocar algumas palavras com ele.

 

 

Conseguiu sobreviver à fome, ao frio, à brutalidade dos guardas e regressou a França em Maio de 1945. Ela e a família ficaram ansiosas pelo regresso do pai e só perderam toda a esperança ao fim de três anos. O livro é um testemunho doloroso da ausência do pai durante toda a vida da autora, uma tragédia com que ela nunca se conformou.

 

 

 

 

 

 

#2398, 13-10-2018

 

In memoriam

(1918 (*)– 2018) Cineasta, realizou o documentário “Argélia, Ano zero” que teve sucesso internacional, mas muita gente em França e na Argélia ficou ofendida.

José Cutileiro

 

Marceline Loridan-Ivens

 

Marceline Loridan-Ivens, de solteira Rozemberg, que morreu no seu duplex de Saint-Germain-des-Prés, Paris, de complicações de mal cardíaco na passada terça-feira, dia 18 de Setembro, foi cineasta notável,  actriz e realizadora lançada nessa via a convite do sociólogo Edgar Morin, entrando pela mão dele em “Chronique d’un été” (Crónica de Um Verão), 1961, filme de Jean Rouch e Morin em que ela perguntava a pessoas cruzadas ao acaso em ruas de Paris se elas eram felizes e a seguir falava do campo de concentração onde estivera presa foi a altura do cinema verité  e gente houve que ficou fascinada ao ver num ecrã de cinema aquela mulher intensa, com muitos anos de Rive Gauche, de colaboração com escritores e filósofos, de ajuda à frente de libertação argelina, de passagem breve e desiludida pelo partido comunista francês, de amores, muitos amores — “Je ne crois pas à la fidélité” —  desde que, por via de Bergen Belsen na Alemanha e Theresienstadt, perto de Praga, onde tropas russas a libertaram, deixara Auschwitz para onde fora levada aos 15 anos com o pai em 1944 (no mesmo comboio de Simone Jacob, depois Veil; ficaram amigas para a vida) denunciados, descobriu depois da guerra, por camponês vizinho que costumava vir apanhar avelãs caídas no parque do pequeno castelo em zona livre que os Rozemberg, fugidos da Polónia, tinham comprado no começo da Segunda Guerra Mundial.

Fez vários documentários, por exemplo, “Algérie, Année Zero” (“Argélia Ano Zero”, 1962), que teve sucesso internacional mas muita gente em França e na Argélia recebeu ofendida, antes de encontrar o seu segundo marido (o primeiro durara pouco, fora trabalhar para Madagascar e consentira que ela guardasse o nome), o realizador holandês Joris Ivens, muito mais velho do que ela. Viveram felizes juntos ate à morte dele. Trabalharam no Vietname, produzindo documentário que defendia os vietcongues e atacava os americanos e abalaram depois para a China, fascinados pela revolução cultural  em França, Jean-Luc Godard e muitos outros intelectuais de esquerda ficaram também babados — produziram vários pequenos filmes até que a mulher de Mao os tomou de ponta (era a altura do Gang dos 4) e tiveram de fugir. Dessa devoção dizia depois que fora “falsa, ingénua e simplista”. Com a idade, de resto, ao gosto permanente e absoluto da liberdade, juntara visão sensata e global do mundo — e grande preocupação com o que sentia ser o recrudescimento da xenofobia e, em especial, do anti-semitismo em Franca. A seguir à vitória aliada de 1945, na qual, graças à resistência do general De Gaulle e dos comunistas (estes só depois de Hitler quebrar o pacto germano-soviético e invadir a URSS) a França comungava, De Gaulle declarou que a perseguição aos judeus fora feita pelos alemães e não pelos franceses. Esse mito, conveniente à vasta maioria dos franceses, durou décadas — e só acabou quando o Presidente Chirac declarou que o Estado francês também fora culpado. Mas a esse passo em frente estavam a juntar-se ultimamente passos para trás. O anti-semitismo levantava outra vez a cabeça em várias partes do mundo, incluindo a França.

Escreveu vários livros sobre a sua experiência do Holocausto. “L’Amour Après” (O Amor Depois), publicado este ano, descreve o trauma íntimo do cativeiro (o doutor Mengele e outros médicos avaliaram-na nua). Em 1915 (**), publicara “Et tu n’est pas revenu” (E tu não voltaste), longa carta ao pai assassinado (ambos com colaboração de Judith Perrignon). A sua energia e o seu gosto activo da liberdade acompanharam-na até ao fim bem como, às vezes, irritação com o dever de memória. “Acabamos vítimas do nosso próprio discurso.”

Era um dos cerca de 160 sobreviventes de 2500 judeus franceses que voltaram depois da guerra, dos 76.500 mandados para Auschwitz-Birkenau. Na sua pedra tumular pediu apenas uma inscrição: o número que os nazis lhe tinham tatuado no antebraço, à chegada.

(*) lapso: é 1928.

(**) é 2015.

 

 

 

Cultura-Ípsilon

Marceline Loridan-Ivens (1928-2018): a cineasta que escreveu sobre o que é amar e desejar depois de sobreviver a Auschwitz

Uma mulher de uma força extraordinária, uma cineasta atenta, uma escritora de uma intensidade rara: os elogios sucedem-se nos obituários e testemunhos da imprensa francesa. Marceline Loridan, que enfrentou os horrores dos campos de concentração nazis, começou por se culpar por ter sobrevivido e, depois, viveu para testemunhar.

LUCINDA CANELAS 

19 de Setembro de 2018, 18:51

 

Chegou a Auschwitz em 1944 e tatuaram-lhe no braço o número 78750. Foi lá que “viu tudo da morte sem nada conhecer do amor”, escreveria mais tarde. E foi essa experiência de sobrevivência nos campos de concentração nazis que marcou todo o seu percurso de 1945 em diante. Um vida de resistência, de denúncia permanente dos horrores do Holocausto e de todas as guerras, uma vida de uma imensa liberdade que agora chegou ao fim. Marceline Loridan-Ivens morreu a 18 de Setembro, em Paris. Tinha 90 anos. A notícia foi avançada à AFP pelo advogado Jean Veil, filho da intelectual e política francesa Simone Veil (1927-2017), uma amiga de longa data que, como ela, sobreviveu a Auschwitz.

Escritora e produtora, infatigável e combativa, Marceline Loridan-Ivens teve uma carreira como cineasta que é indissociável daquele que foi o seu segundo marido, o documentarista holandês Joris Ivens (1898-1989), 30 anos mais velho do que ela. Dessa parceria nasceriam projectos como O Paralelo 17 (1968) e Comment Yukong Déplaça les Montagnes, uma série de 12 títulos rodados entre 1972 e 1976.

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Para fazer o primeiro, o casal viveu durante dois meses de 1968 entre os camponeses de uma pequena aldeia na chamada zona desmilitarizada entre o Vietname do Sul, controlado pelas tropas americanas, e o do Norte, em luta pela independência com o apoio da China, da União Soviética e de outras nações comunistas. Marceline e Joris acompanharam estes habitantes no seu dia-a-dia, passado, em boa parte, nas galerias subterrâneas em que se refugiavam dos bombardeamentos norte-americanos. O segundo, composto pelos tais 12 filmes que, no total, formam um documentário de 12 horas, centra-se na revolução cultural chinesa e valeu-lhes a reprovação da mulher do próprio Mao Tsé-Tung, Jiang Qing, e uma saída apressada do país.

“Estive lá, vivi a guerra vietnamita e o horror dos bombardeamentos”, contou a cineasta ao PÚBLICO em 2000, quando esteve no Porto para acompanhar a exibição de O Paralelo 17 e de duas das mais importantes obras de Joris Ivens, Terra de Espanha (1937) e Os 400 Milhões (1939). “Foram meses a madrugar para fugir às bombas e a escapar por um triz à morte”, disse, lembrando que um dos operadores de câmara morreu e que outros, como ela, ficaram feridos.

Na mesma entrevista recordou ainda que foi por causa de Terra de Espanha, que viu pouco tempo depois de ser libertada do último campo de concentração onde esteve detida, que se interessou pelo cinema de Ivens. “Quando se volta de um lugar como aquele, em que se viu tamanho horror, em que tantas vezes a morte esteve por um triz, não é fácil encontrar um lugar. Por isso envolvi-me na luta pela libertação dos povos: era uma maneira de fazer qualquer coisa da minha vida. E acabei por partilhar o destino atribulado do meu marido.”

   Sobreviver para contar

Marceline Loridan-Ivens nasceu Rozenberg em Março de 1928 em Épinal, França, numa família judia oriunda da Polónia. Com a chegada dos nazis ao território francês entrou para as fileiras da resistência e com ela colaborou até que foi presa pela Gestapo, a polícia secreta de Hitler. Com o pai, foi deportada para Auschwitz-Birkenau (Polónia) em 1944, onde viria a encontrar Simone Veil. Transferida primeiro para o campo de Bergen-Belsen (Alemanha), foi libertada em Maio de 1945, quando o exército soviético abriu os portões de Theresienstadt, na actual República Checa, e durante muito tempo teve dificuldade em aceitar que estava entre os que tinham sobrevivido a algo inimaginável.

Escreve o Figaro que, depois da guerra, Marceline passou a frequentar a Cinemateca Francesa e a trabalhar para o sociólogo Roland Barthes, que haveria de a apresentar aos dois homens que lhe abriram a porta do cinema – o filósofo Edgar Morin e o antropólogo e cineasta Jean Rouch. A escritora é a mulher que aparece a falar sobre as deportações durante a Segunda Guerra no célebre monólogo da Praça da Concórdia no filme que Morin e Rouch realizaram — Crónica de um Verão (1961) — e que é o verdadeiro manifesto do cinema-vérité, movimento que questionava a capacidade do cinema para captar a realidade.

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Foi neste filme que, contou ao PÚBLICO, Joris Ivens a viu pela primeira vez. E o impacto, ao que parece, foi grande: “Virou-se para o Jean Rouch e prometeu: ‘Se algum dia me cruzar com esta rapariga, apaixono-me.’” E assim foi. Com ele partilhou o sexto andar do número 61 da Rue des Saints-Pères, a sua casa nos últimos 40 anos. “Joris aceitou a minha liberdade e eu aceitei a sua", disse ao jornal francês Le Figaro.

Marceline, que até à morte usou os apelidos dos seus dois maridos – o engenheiro Francis Loridan, de quem se divorciou, e o cineasta holandês, com quem permaneceu de 1963 até 1989, ano da morte do realizador – dedicou uma parte da sua vida ao cinema e outra à escrita, nunca deixando de dar testemunho da sua experiência nos campos de concentração, fosse nos filmes, nos livros, em festivais e conferências ou nas salas dos liceus.

“Quando dou o meu testemunho nas escolas peço que se mostre um filme aos alunos. Para que as crianças vejam do que se trata e não se fiquem só pela linguagem, na abstracção. A imagem tem uma força que a palavra não tem. É preciso testemunhar sempre e é por isso que eu escrevo e faço filmes”, dizia a cineasta, para acrescentar em seguida que nem sempre esta urgência de falar sobre o que acontecera aos judeus na Segunda Guerra Mundial era bem vista, até mesmo por membros da sua família, que preferiam que Marceline tivesse optado pelo silêncio.

Mas a escritora e cineasta nunca se calou. Entre as memórias que recuperava com frequência nas suas sessões nos liceus está a imagem das crianças que eram levadas para as câmaras de gás, a quem diziam que tomassem bem conta da sua roupa depois de se despirem para que a pudessem recuperar depois, e a da menina que se recusava a deixar a sua boneca para trás. “Os bebés e os velhos eram enviados [para as câmaras] primeiro”, lembrava muitas vezes aos alunos.

    O amor e o desejo

Nos últimos anos foi na escrita, no entanto, que Marceline Loridan-Ivens se concentrou. Et tu n’es pas revenu (Grasset, 2015), escrito com a jornalista e romancista Judith Perrignon, é um livro-testemunho que vários críticos consideraram de uma intensidade rara em que a cineasta, uma das últimas sobreviventes de Auschwitz-Birkenau, se dirige ao pai, deportado no mesmo dia que ela e um dos que sucumbiram àquela que foi a mais mortífera rede de campos de concentração nazis.

Evocando uma breve nota que o pai conseguira fazer-lhe chegar às mãos em Auschwitz e de que recordava apenas a primeira linha (“Ma chère petite fille”) e a assinatura (“Shloïme”), Marceline disse a Perrignon que estava na altura de lhe responder, conta a ensaísta num texto publicado esta quarta-feira no diário francês Le Monde e em que a ela se refere como “uma filha de Birkenau. Matrícula 78750 no braço”.

Et tu n’es pas revenu seguir-se-ia a sua última obra, também escrita com Judith Perrignon. Em L’amour après (Grasset, 2018), Marceline Loridan-Ivens dedicou-se a um tema-tabu ao falar sobre o que é amar e desejar alguém depois de Auschwitz. E fê-lo à sua maneira – desassombradamente, contando com precisão de que forma o seu corpo se recusava a obedecer àquilo que a sua mente tinha já decidido, e sem deixar de mencionar os nomes dos homens que passaram pela sua cama (da lista dos amantes fazem parte Georges Perec ou Edgar Morin) e as duas vezes que tentou pôr fim à vida (dois dos seus irmãos, Henriette e Michel, suicidaram-se). “Eu não sei render-me, não gosto que me toquem, não gosto de me despir.”

É também nesta derradeira obra, publicada aos 89 anos, que a autora admite que foi nos campos que conquistou “uma certa forma de liberdade” – as palavras são suas, numa entrevista que deu à revista Madame Figaro  em Março deste ano – de que nunca mais abdicou: “Esta liberdade construída nos campos perseguiu-me depois. Jamais qualquer pessoa seria capaz de me impor o que quer que fosse.”

L’amour après é um livro confessional e delicado em que o relato de um longo caminho de regresso ao amor e ao desejo é, ao mesmo tempo, o testemunho de um regresso à vida, escrevia em Janeiro deste ano Jérôme Garcin, jornalista e editor de Cultura do semanário francês L’Obs.

Quando foi libertada, Marceline tinha 17 anos e um “corpo seco”, lembra nesta última obra. Nos dois anos que passara em trabalhos forçados, sob o olhar dos nazis, nudez fora sinónimo de humilhação, de “violação colectiva”. “O meu corpo de mulher desenhou-se ao mesmo tempo que era condenado. Em Auschwitz. Que fazer dele depois de ter sobrevivido? Seria ele capaz do desejo, do prazer… De amar simplesmente?”, pergunta-se na capa da edição da Grasset esta mulher que, de acordo com os relatos da imprensa francesa, manteve até ao fim os cabelos vermelhos, uma elegância natural e um tom acutilante.

Foi na altura do lançamento do livro que contou ao jornal regional Ouest France que cedo começou a ter amantes, em parte para se libertar do controlo da mãe, e que na maioria das vezes foi ela quem os deixou. De muitos guarda cartas e outros objectos numa mala que foi essencial no processo de escrita deste L’amour après. “Quem amei um dia, amo para sempre.”

O cineasta português Sérgio Tréfaut, também ele habituado ao documentário, quis homenageá-la e o resultado, ainda que longe da intenção inicial, é Treblinka. “Num dos seus livros ela diz que, mesmo passados 70 anos do final da Segunda Guerra, é como se todos os comboios a levassem a Auschwitz”, disse Tréfaut ao PÚBLICO na altura da estreia do filme.

Marceline não esqueceu mas, como escreve esta quarta-feira Judith Perrignon no Monde, também não deixou que a proximidade da morte lhe arrancasse a alegria da vida, a capacidade de resistir, mesmo quando o seu corpo começava a dar conta de que o fim, provavelmente, não estaria longe.

No lançamento de Et tu n’es pas revenu em Jerusalém, Marceline  deixou de ver. Assim, de repente, de um só golpe, diz Perrignon. No dia seguinte, em vez de ficar sossegada e deprimida por causa da cegueira, quis ir dançar, beber e fumar a um bar de que gostava muito em Telavive. “L’amour après” é um hino à liberdade. Ela não tinha idade.”

 

lcanelas@publico.pt