6-9-2001

 

PAULA REGO

(N. 1935)

 

 

1935 – Paula Figueiroa Rego nasce em Lisboa; a família muda-se em 1938 para o Estoril. De 1945 a 51 frequenta a St. Julian School, em Carcavelos.

1952-56 – Estuda pintura na Slade School of Art, em Londres, onde conhece Victor (Vic) Willing, com quem virá a casar. Em 1956 nasce a sua filha Carolina; regressa a Portugal, vivendo até 63 na Ericeira. Dois outros filhos nascem em 59 e em 61.

1961 – Expõe pela primeira vez na II Exposição Gulbenkian, onde as suas colagens são imediatamente notadas.

1962 – Expõe com o London Group, ao lado de jovens artistas como Hockney, Auerbach e Michael Andrews. Paula e Vic compram uma casa em Londres, onde passam a viver durante parte do ano.

1965 – Primeira exposição individual, em Lisboa (SNBA), com imediato sucesso crítico. Roland Penrose selecciona-a para uma exposição de grupo no Institut of Contemporay Art, em Londres.

1967 – Integra a representação de Portugal na Bienal de S. Paulo (e de novo em 1976). É diagnosticada a Vic uma esclerose múltipla, de que morreria em 1988, depois de um período em que se afirmou como um notável pintor.

1976 – Fixa residência em Londres.

   

 

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Crivelli's Garden

 

1978 – Participa em «Portuguese Art since 1910», na Royal Academy, Londres. Expõe pela primeira vez na Galeria 111.

1981 – Primeira exposição individual em Londres, na Air Gallery, entidade subsidiada pelo Arts Council. Abandona a colagem e retoma a pintura com a série «O Macaco Vermelho». No ano seguinte expõe pela primeira vez numa galeria comercial londrina, a Edward Totah Gallery, 26 anos depois de ter deixado a Slade School.

1983 – Professora convidada na Slade. Exposição «Paitings 1982-3», incluindo a série «Óperas», em Londres, Bristol, Amsterdão e Milão.

1985 – Participa na representação da Grã-Bretanha na Bienal de São Paulo. A Tate Gallery adquire-lhe uma primeira obra. Expõe individualmente em Nova Iorque. Participa na Bienal de Paris.

1987 – Digressão britânica de «Selected Work 1981-86».

1988 – Retrospectiva na Fundação Gulbenkian e na Serpentine Gallery, em Londres.

1989 – Primeira exposição na Marlborough Gal., Londres.

1990 – Primeira artista associada da National Gallery. Itinerância britânica da série de gravuras «Nursery Rhymes» ao longo de cinco anos.

1991 – Itinerância na Grã-Bretanha das «Histórias da National Gallery», mostradas no ano seguinte em Londres e na Gulbenkian.

1992 – «Peter Pan and Other Stories», Marlborough. Publicação de uma longa monografia da autoria de John McEwen, Phaidon Press (tradução portuguesa, ed. Quetzal/111).

1994 – «Mulher Cão», Marlborough; participa em «Here and Now» na Serpentine Gal. e numa mostra de grupo na Saatchi Gallery.

1996 – Expõe na Marlborough de Nova Iorque; participa em «Spellbound: Art and Film», Hayward Gal.

1997 – Retrospectiva na Tate Gallery de Liverpool e no CCB, onde é vista por 62 mil visitantes.

1998 – Expõe na Dulwish Picture Gallery. Participa em «L'École de Londres», Museu Maillol, Paris.

 
   

 

    O outro escândalo

 

O escândalo que as novas pinturas de Paula Rego propõem, devido às questões da sexualidade e da morte que abordam e, inseparavelmente, ao ponto de vista feminino que reclamam e revelam, não deverá ocultar o outro escândalo, talvez mais decisivo ainda, que se reside na diferença entre estas obras e a insignificância ou o tédio reinantes em grande parte do que é exibido como arte contemporânea. Esta é uma das obras em que se manifestam as mudanças do estado das artes na viragem do século.

Elas desafiam os interditos e as ocultações que reinaram com algumas concepções da modernidade, confundindo-a com as ideologias modernistas, caracterizando-a como um «progresso» linear apontado à negação ou fim da arte, cortando-lhe os laços de

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O crime do Padre Amaro

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Flood

contiguidade com a arte do passado e o que desta resiste como permanente actualidade, subordinando-a às lógicas vanguardistas que no terreno político, de que decorrem, já viveram os seus desastres e tiveram a sua crítica. Estas pinturas reconstroem os poderes das imagens e das suas ilusões, reencontram a capacidade que algumas representações têm de espelharem o real e de passarem para lá do espelho, abrindo-se em abismo sobre as questões mais fundas da vida.

Recuperam a possibilidade de emocionar e inquietar, de seduzir e denunciar por imagens, contrariando as tácticas que predominam numa circulação artística assente na gestão burocrática das rupturas, dos revivalismos assépticos e de linguagens que se pretendem experimentais mas se eximem a critérios de prova. Elas põem em causa os relativismos críticos ditos pós-modernos, para os quais tudo e não importa o quê sempre se equivale, depois de inviabilizada a possibilidade de ajuizar da qualidade das obras. Surgem como resposta poderosa à indiferença ambiente e são reconhecidas como tal muito para além das fronteiras especializadas do «mundo da arte».

  A pintura de Paula Rego não pode ser classificada como conservadora ou académica, mesmo se ela vem sendo (em especial desde o seu trabalho na National Gallery) um exercício de reaprendizagem dos meios de expressão pictural, reapropriando-se da possibilidade da representação humana e aprofundando os recursos da volumetria ilusionística do quadro, em contacto com as lições dos mestres antigos e de alguns contemporâneos (como Lucian Freud, que especialmente admira). «O naturalismo está muito fora de moda, mas eu não me importo», declara Paula Rego. «A moda passará. Estas revolucionárias 'pinturas silenciosas, com as suas réplicas sombrias', sobreviverão», comenta Maggie Gee num artigo do «Daily Telegraph».

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Lush

«É tudo copiado à vista», insiste a artista, que expõe com as pinturas os seus desenhos preparatórios realizados com a constante presença dos modelos, desvendando assim os «segredos» de atelier, a «ordem e a disciplina» do trabalho do quadro em que se sustenta o seu poder de subversão. «Aprender a desenhar é muito importante. Eu também não sei muito bem, mas estou a aprender», diz Paula Rego.

De facto, não existe consenso crítico, nem mesmo coexistência pacífica, em torno da sua obra, embora as vozes que a pretendem colocar no exterior da «arte contemporânea» não se façam ouvir publicamente. A pintura de Paula Rego, no processo da continuada renovação com que amplia cada vez mais o seu poder de intervenção, não é a mera sobrevivência da linguagem ultrapassada da pintura, como alguns dizem em surdina, mas uma imensa prova de vitalidade criadora, e a contradição mais subversiva da pretensa ruptura que teria conduzido a tradição da arte, «circa 1968», a não ser mais do que um exercício aplicado no reducionismo e na desmaterialização dos seus meios, revalorizado pela rotação das modas. Não se trata aqui de um retorno ao passado ou de um «regresso à ordem», mesmo se a esta designação, que nos anos 20 se aplicou ao reaquacionar das buscas e impasses das primeiras vanguardas, se não pode associar genericamente uma conotação política ou artisticamente reaccionária.

Tentando minimizar o potencial de contestação que esta pintura opõe à insignificância do «mainstream», é habitual insinuar-se a vinculação de Paula Rego a uma tradição artística que seria apenas regional, colocada à margem da história e alheada da sua direcção dominante, cujo significado não ultrapassaria as margens das ilhas britânicas. Afinal, Paula Rego, sugere-se, não teria ascendido à circulação internacional (veja-se na última «Arte Ibérica» a medíocre contabilidade dos «únicos artistas verdadeiramente conhecidos no exterior» que fazem Delfim Sardo e Vicente Todoli). De facto, Paula Rego faz parte de uma linhagem que tem em Bacon e em Freud os seus nomes maiores (mas que tem outros expoentes distintos em diversos lugares), e já se afirmou como o nome mais importante entre as gerações mais novas da chamada Escola de Londres. Numa recente montagem dos espaços da Tate Gallery, Paula Rego presidia com o seu grande quadro A Dança, de 1988, a uma vasta galeria dedicada à tradição britânica da pintura narrativa do séc. XX («People and Places»), onde se sucediam a Walter Richard Sickert, obras de Stanley Spencer, Carel Weight, Ronald B. Kitaj, David Hockney, Peter Blake e outros pintores que contam histórias, sugerem situações ou descrevem relações humanas.

Mais exactamente, Paula Rego encontrou no meio britânico, menos dependente das concepções vanguardistas da modernidade e também da circulação das modas, as condições favoráveis para aprofundar um trabalho com raízes portugueses, que mergulham nas suas memórias pessoais, decorrem dos incidentes da sua vida e interpelam as prisões mais fundas da nossa existência colectiva. É provável que a vitalidade desafiadora das suas últimas obras resulte dessa dupla localização.

Depois da retrospectiva que em 1997 se viu no CCB, o Centro de Arte Moderna torna agora possível continuar a seguir de perto a obra de Paula Rego, com duas exposições complementares onde se mostram as suas últimas pinturas, feitas «sobre» e para Portugal. Entretanto, expõe-se na Galeria 111 uma recente série de gravuras, «A Cruzada das Crianças», onde mais uma vez são as lendas e o imaginário colectivo que sustentam o comentário actual do desconcerto do mundo; na mesma exposição, duas grandes pinturas e outras obras dos anos 80 permitem revisitar alguns dos passos anteriores de um continuado itinerário de libertação.

Textos de ALEXANDRE POMAR          

EXPRESSO,  CARTAZ,   22-5-1999

 

Mostrar o inominável

 

É a primeira vez que Paula Rego não dá títulos aos seus trabalhos. Não é por acaso que tal acontece – e a prudência, se fosse essa a razão da artista, recomendaria antes a escolha de uma qualquer denominação metafórica. Estas pinturas não contam «histórias», não têm um pretexto literário, nem se poderão ler, ao contrário da sua obra anterior, como se fossem irreverentes devaneios da imaginação. «Sem Título» também não é aqui a fórmula usada com frequência para nomear a pintura abstracta, excluindo outro assunto que a própria realidade pictural do quadro.

É antes, de um modo que se torna para o observador ainda mais incómodo e desafiador, a convocação do inominável, a designação de algo que a sociedade prefere não reconhecer e não enfrentar, identificando-o como uma falha ou um abismo. E é a denúncia desse

 

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Sem título

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Dog woman

 secretismo, que ao mesmo tempo se aponta com a crueza de um panfleto e se deixa ainda permanecer mais adivinhado do que dito. É de um tema tabu, o aborto que uma sociedade hipócrita continua a condenar à clandestinidade, como vergonha e crime, que estas imagens são a revelação, e certamente é esta a primeira vez que tal tema é abordado na pintura.

Esta série de trabalhos, que foi anteriormente mostrada em Madrid, na Galeria Marlborough, por ocasião da feira Arco, é uma denúncia do aborto clandestino e foi iniciada pela pintora como uma reação directa às condições em decorreu o recente referendo, especialmente face à elevada abstenção que se poderia interpretar como desinteresse perante o problema. Cronologicamente, ela surge como uma exacta sequência da série sobre o Crime do Padre Amaro, cuja história se «resolve» por um infanticídio, salvando-se as

 
 

conveniências da moralidade pública com a morte de Amélia e a clandestina entrega do filho às mãos da «tecedeira de anjos» (ou «abafadeira», segundo outra expressão mais popular). «Fiz estes trabalhos para Portugal, revoltada com o que se passou no referendo sobre o aborto», diz a pintora, que têm ainda nas suas memórias vividas do país as situações dramáticas que testemunhava na Ericeira quando as mulheres dos pescadores, rodeadas de filhos, lhe pediam o dinheiro necessário para os desmanchos.

Paula Rego desenha adolescentes e jovens mulheres que sofrem, que escondem a cara ou enfrentam o espectador, culpando-o com o olhar, algumas delas prostradas sobre a cama, outras agachadas sobre um bacio ou um balde, outras ainda contorcendo-se com dores, entregues apenas a si própias e a uma imensa solidão. São retratos de sofrimento e angústia, de ansiedade, desolação, medo, humilhação e vergonha, feitos de uma violência contida, sem sangue nem gritos, com uma construção figurativa formalmente austera,

 

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Sem título

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Sleeper

sempre rigorosa e simples, que os traços precisos dos rostos, os espaços fechados e a estrita economia dos cenários tornam ainda mais realistas e pungentes. Entretanto, o que as reproduções reduzidas podem sugerir de ilustrativo nestas imagens, ganha no contacto directo com a pintura a escala de um confronto físico entre os corpos e olhares das figuras e os dos observadores, com uma intensidade quase insuportável. Em Londres, referiu-se o parentesco com a fisicalidade intensa dos corpos pintados por Lucian Freud; em Madrid, recordaram-se as figuras chocantes de Solana (1886-1945), o inclassificável pintor da «Espanha Negra».

Nesta série, onde é sempre uma mulher só que interpela o espectador, Paula Rego

 

 

 

segue um processo de composição próximo da anterior sequência da «Mulher Cão», mostrada no CCB, por vezes ampliando o espaço para marcar a presença ausente dos homens. Mas não se atenuou nestas obras de intervenção mais imediata a estranha mistura de mágoa e espera, de sensualidade e revolta, que imprimira a essas outras figuras femininas, onde pela primeira vez subvertia a suavidade habitual do uso do pastel com uma energia rudemente matérica. Estas mulheres não são apenas personagens passivas que se queixam da fatalidade de um mundo adverso, e não deixa de estar ambiguamente presente em vários destes rostos a força altiva de um olhar de determinação, de desafio e de dignidade, sublinhada nas cores vivas de um vestido ou de um lenço de cabeça. Se o aborto é um tema tabu, é também porque ele, enquanto poder de destruição, é indissociável de outro poder feminino, o de dar a vida. «É a razão pela qual as mulheres são temidas. O último poder é o de destruir», disse a artista à escritora Maggie Gee, num artigo do «Daily Telegraph» (de 15 de Fevereiro). Não são só vítimas vulneráveis e indefesas estas mulheres que sofrem: «A vida continua. Elas sobreviverão.»
 

 

Amor e crime

A SÉRIE «O Crime do Padre Amaro» foi exposta pela primeira vez na Dulwich Picture Gallery, a mais antiga galeria pública de Londres, famosa pelas suas obras-primas europeias do séc. XVII. A exposição decorreu em Junho de 98, com o apoio da Gulbenkian, que agora a apresenta já ao lado da série seguinte («Sem Título»). Entretanto, chegou a prever-se que estas pinturas desenhadas a pastel representassem Portugual na Bienal de Veneza deste ano, se se concretizasse a construção de um pavilhão nacional nos «Giardini», para cujo projecto Siza Vieira fora convidado.

Antes ou para além do romance de Eça de Queiroz, através do qual Paula Rego voltou a trabalhar sobre um tema português, a pintora tomou como motivo de inspiração os quadros de Murillo na colecção Dulwich – uma Madonna do Rosário, a Menina com Flores, para o qual terá posado a filha do pintor, e duas cenas de género com crianças do povo (Dois Rapazes do Campo e um Miúdo Negro e Convite ao Jogo da Péla). No catálogo londrino, o director do Museu referia que «nos quadros de Murillo as raparigas do mercado e as crianças da rua são geralmente vistas como personagens amáveis e até sentimentais, mas a um olhar mais atento as expressões parecem ambíguas e as figuras estão envolvidas por misteriosas sombras. A juventude e a beleza, em Murillo, são sempre ameaçadas pela decadência e a mortalidade. Paula Rego respondeu a essa subtil combinação de encanto e perigo com um poderoso conjunto de obras em que se associam a fé, a luxúria e a feminilidade».

Nos comentários que escreveu para acompanhar as pinturas, Paula Rego conta como foi impressionada pelos rapazes vestidos de mendigos nas obras de Murillo e, em geral, na colecção do Museu, pela importância do vestuário, das rendas e veludos. «Isso deu-me a ideia de um drama em trajes de época ('a costume drama'). Gosto de vestir as pessoas nas pinturas (...) tal como se vestem as bonecas quando se é pequeno.» A importância das roupas, que são usados nestes quadros como os figurinos no teatro, relaciona-se também com a revisitação da pintura antiga que Paula Rego já fizera nas suas «Histórias da National Gallery» (o actual A Mãe recorda A Prova, um desses quadros de 1990). Para além das qualidades picturais das texturas, pregas e rendas que são trabalhadas com a riqueza matérica do pastel, o vestuário e os seus panejamentos têm uma dimensão ficcional tão determinante como as atitudes das personagens. Os vestidos envolvem e acentuam a sensualidade das mulheres, protegem, escondem e seduzem. Em dois quadros, constroem a estranha ambiguidade erótica das cenas em que Amaro, cercado pelas mulheres, aparece vestido com uma saia.

Paula Rego não ilustrou O Crime do Padre Amaro, nem pintou seguindo a cronologia da sua acção. «Escolhi um romance muito português, porque senti que precisava de actividade social em vez das coisas que se encontram nos contos populares. O Crime do Padre Amaro critica a sociedade, é muito bem observado e uma leitura deliciosa, mas acima de tudo é uma história de amor». Entretanto, a escolha deste livro é também assumida pela artista como uma homenagem prestada ao seu pai, que lhe transmitiu o espírito crítico sobre a realidade do país e que admirava Eça de Queiroz como um exemplo do que de melhor existia em Portugal. Uma outra linha de observação, mais privada ainda, relacionaria os personagens retratados e as cenas de composição mais complexa com a identidade dos modelos com que a pintora trabalha, a partir do desenho de observação («é tudo copiado à vista») e sempre mergulhada numa teia pessoal de cumplicidades e afectos: um amigo muito próximo («uma pessoa mascarada de Padre Amaro»), a constante Lila, que também foi a enfermeira que acompanhou o período final da doença do seu marido («ela tem o poder de se transformar em tudo, como uma actriz»), por vezes uma das filhas, etc.

A versão de Paula Rego não é a história de pecado e inocência que sustenta a sátira anticlerical a preto e branco de Eça de Queiroz. Dominação e dependência, desejo e culpa, não serão aqui os pólos de uma dicotomia maniqueista que talvez molde a visão masculina do mundo, mas que é posta em causa na densidade mais ambígua de um olhar de mulher, com que se revelará um outro lado mais profundo da vida, com os seus segredos, as suas máscaras, «mafias» e armas femininas. Com o misterioso poder revelador das suas imagens, capazes de circulam entre os dois lados dos espelhos, e que voltam a fazer da ilusão figurativa o poder de imaginar um outro real, Paula Rego quer mostrar que «a mulher é uma história por contar». Porque, como ela diz, «a história das mulheres nunca foi contada em pintura».

Um anjo guardião e vingador preside a esta série, alheio ao texto do romance e com a presença bem física de um corpo de mulher. É uma imagem vinda de um mundo antigo, uma imagem dúplice do castigo e do perdão, com os símbolos da Paixão que são a espada e a esponja, mas é também uma imagem inteiramente terrena, arrancada à pintura religiosa para intervir no presente. «O romance é apenas um ponto de partida, um detonador, e depois as imagens tomam a dianteira, como um cofre cheio de segredos, como as bonecas russas».

 

Violências clandestinas

DOIS anos depois de o CCB ter apresentado um largo panorama da sua obra, Paula Rego volta a mostrar em Lisboa uma importante exposição. Já visitada por mais de 20 mil pessoas, a exposição no CAM prolonga-se até finais de Agosto e é um dos acontecimentos culturais mais relevantes do ano. São duas séries - «O Crime do Padre Amaro» e «Untitled» - que vão buscar à literatura realista e à própria realidade portuguesa o pretexto para a instauração de um teatro funesto onde a dor e o silêncio dominam. Apresentam-se, para além das pinturas, os esboços preparativos sendo possível entender o papel determinante que o desenho ocupa hoje na sua pintura. Por trás da série «Untitled» está a recente realização de um referendo em Portugal em torno da despenalização do aborto. P.R. ficou indignada com o desfecho do processo, funcionando «Untitled» como a denúncia de um problema que quase sempre a comunidade preferiu manter na clandestinidade.

Não é a primeira vez que a sua pintura assume objectivos claramente políticos. Já nos anos 60, a ditadura salazarista, os modelos familiares tradicionais e a ordem estabelecida serviram de pretexto a uma pintura repleta de personagens de fábula ou à beira do informe onde o quotidiano do país era invocado de modo irónico ou expressionista.

«Untitled» surge no final dos anos 90, numa altura em que a sua pintura se orienta para o diálogo com grandes mestres da composição como Velázquez, explorando processos de representação pré-modernos. O que desde logo ressalta como imagem genérica desta série são as qualidades teatrais desta pintura, o modo como a «mise-en-scène» é adequada à situação pretendida, intensificando a tensão interpelativa de cada cena. Um exemplo: num dos quadros vemos uma rapariguinha sobre um divã contorcendo-se com dores. Pela roupa que veste - uma saia de colegial e uma camisa impecavelmente branca - podíamos situá-la numa qualquer década anterior ao 25 de Abril. Mas há um pormenor que trai qualquer intenção de fazer pintura de época: a rapariga traz calçadas umas sapatilhas «Nike» que, obviamente, não condizem temporalmente com a restante indumentária. É afinal uma forma subtil de explicitar que qualquer coisa está fora do tempo. Que os anacronismos prevalecem e não falamos apenas de roupa.

Deitadas, expectantes, aguardando o calvário, encontramos personagens que nunca se transformam em ícones abstractos da desgraça. Se, por exemplo, na série de «Avestruzes Dançarinas» (1995) a pesada figura das mulheres contrastava com a ideia de leveza que associamos à dança, tornando-as paradoxais, neste caso a representação realista dos corpos reforça o carácter tangencial das situações representadas. Como em Lucian Freud ou Francis Bacon, P.R. transforma cada corpo numa instância dramática. A própria utilização do pastel encaixa na necessidade de explicitar a presença da carne como lugar da dor, sem simbolismos nem diferições. Os corpos possuem uma animalidade não dissipada pela cultura que os envolve, têm a imperfeição e a rudeza necessária para que nos identifiquemos com eles.

Não havendo propriamente uma relação temática entre as duas séries, não deixam de notar-se evidentes continuidades. Desde logo na afirmação de um olhar feminino na leitura da violência estática que impregna a série em torno do aborto e contamina a dicotomia feminino/masculino nas pinturas inspiradas na história de Amaro. Por outro lado, também aqui estamos no território do segredo, da realidade velada. Um espaço que só é possível desvendar através da sua própria encenação. P.R. inspirou-se claramente no livro de Eça, mas produziu um jogo de espelhos que faz jus à complexa e contraditória personalidade do padre. Não há, portanto, ilustração literária mas um entendimento de que a literatura (como noutros casos em que explorou o imaginário e a cultura popular) participa de modo difuso na tessitura cultural contemporânea.

De quadro para quadro, P.R. vai explicitando a personalidade ambivalente do sacerdote, representando-o como um semi-homem infantilizado («A Companhia das Mulheres») ou com a autoridade de um representante de Cristo na terra («O Embaixador de Jesus»), cruzando na figura do homem adulto, quer a criança reminiscente, quer o homem egoísta. É quase sempre um jogo de pesos e contrapesos como em «A Cela» onde o corpo de um Amaro adulto, deitado num divã, oculta a presença de uma boneca. P.R. reinterpreta o romance de forma fragmentária, lê-o visualmente e constrói uma narrativa autónoma. O espaço definido em cada cena, cada elemento incluído, funcionam como um indício efectivamente importante na construção do drama psicológico.

Em «Untitled» de modo mais evidente, mas também na série inspirada pelo romance queirosiano, a artista não circunda a realidade que pretende abordar. Quando olhamos estas personagens, não são estereótipos o que julgamos ver. Elas possuem a densidade suficiente para encarnar a dor ou uma demência torrencial produzida em funestas circunstâncias.

 

CELSO MARTINS           

EXPRESSO, CARTAZ, 31-7-1999

 

   

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A dança

   

As meninas

Vai ser hoje posto à venda um livro com pinturas de Paula Rego e texto de Agustina Bessa-Luís. A obra, editada por Três Sinais Editores, tem 140 páginas e custa 9800 escudos

Pinturas de Paula Rego
Anotações de Agustina Bessa-Luis
Textos de Eunice Goes, em Londres, e Ricardo Jorge Pinto

Todas as manhãs, Paula Rego vai para o seu atelier em Kentish Town, a norte de Londres, para pintar, e aí fica até ao cair da noite. «À noite não pinto, tenho medo», explica.

O hábito e a necessidade, como a própria diz, arrastam-na todos os dias para o seu amplo atelier. «Se calhar, foi uma injecção que me deram à nascença», diz com ironia, justificando os seus hábitos de trabalho. A semana, austera, é apenas quebrada ao domingo. «O domingo é para família.» Paula Rego necessita dessa disciplina. Pintar não é fácil, principalmente porque o seu objectivo é fazer um retrato o mais próximo possível da realidade. «É horrivelmente difícil pintar. É um grande esforço, envolve um grande esforço físico», diz a pintora, que não acredita em dias de inspiração. «E o que é que fazemos quando ela não vem?»

 

Daí que, todas as manhãs, uma modelo - quase sempre portuguesa - pose para a pintora no atelier de Kentish Town. E são estas modelos que mantém a pintora próxima de Portugal, que lhe falam dos restaurantes portugueses, das praças onde se encontra peixe fresco ou das mercearias onde se compram vinhos nacionais.

Apesar de se sentir bem em Londres - «Londres é mais do que uma pátria, confesso que não sei o que quer dizer pátria» -, Paula Rego diz ter saudades de Portugal, principalmente da família, da língua e «das cantigas». Mas nota-se que não pensa muito sobre o assunto, pois só mais tarde diz ter saudades «de descer ao Tamariz, no Estoril, e fazer o passeio do paredão até Cascais». De resto, não há muito tempo para a nostalgia. Os netos e a nova exposição que está a preparar para o Abbot Hall Art Gallery, gerida pelo Museu de Kendal, ocupam-lhe o tempo inteiro. Aqui, a pintora vai exibir cerca de 70 obras (não sabe o numero exacto, pois «dá azar contar») -, de Junho a Outubro, no bonito museu de Kendal que acolheu recentemente Julien Freud.

 

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As meninas

Ao fim destes anos, com exposições pelo mundo e a consagração internacional, Paula Rego diz ser extremamente insegura. «Há alturas em que penso que não presto para nada, que sou uma porcaria.» As palavras «consagração» ou «fama» têm pouco significado. Há momentos em que a dificuldade da sua arte se sobrepõe a tudo. «Tenho vergonha, constantemente. Quando venho para aqui sinto-me como uma miúda de 10 ou 14 anos.»

Para essa insegurança contribuíram as lições da D. Violeta, professora da 4ª. classe que a ensinou a desenhar. «Aos nove anos já tinha peneiras de querer ser pintora, mas a D. Violeta dizia que eu não tinha jeito nenhum. Olhava para os meus desenhos, dizia que o lado direito da chávena desenhada não condizia com o lado esquerdo, e, pumba, dava-me um safanão.»

Sobre o projecto «As Meninas» com a escritora Agustina Bessa-Luís, Paula Rego tem algumas confissões a fazer. Começou por dizer que nunca a tinha lido. «Nunca tinha lido nada da Agustina Bessa-Luís. Só agora é que a estou a ler. E escreve muito bem. Tem uma escrita extremamente visual. Vêem-se imagens muito fortes no livro.»

A segunda confissão refere-se à execução do projecto. A concepção e execução do projecto são da inteira responsabilidade da escritora. A pintora limitou-se a autorizar a reprodução de alguns quadros. Mas inicialmente Paula Rego não estava muito inclinada a colaborar no projecto. Foi a presença de Agustina que a fez aceitar. «No princípio, o editor tinha sugerido uma série de quadros muito pão pão, queijo queijo, quadros muitos populares. Mas a escritora escolheu outras coisas, como 'O Padre Amaro', 'O Aborto' e outros quadros mais recentes. E eu fiquei contente. Além disso, ela escreveu bem, escreveu um texto bem original.»

Este dueto despertou na pintora a curiosidade de conhecer Agustina Bessa-Luís, por quem mostrou uma grande admiração. «Escreveu muitos livros e faz muitas outras coisas, como política.» Daí que, da próxima vez que for a Portugal, deseje um encontro com a escritora.

Ricardo Jorge Pinto

 Agustina Bessa-Luís nunca conheceu Paula Rego. Mas agora sente-a como uma alma gémea. «Ela é uma espécie de irmã perdida, algures noutro mundo», confessa a escritora do Porto. Esta foi a razão que levou Agustina a aceitar o convite que a editora do livro lhe lançou para escrever o texto sobre a obra da pintora: «Há um conjunto de afinidades entre mim e ela que não é estranho ao meu desejo de escrever sobre as suas telas.»

O facto de Paula Rego ser filha única impressionou Agustina - «eu não sou filha única, mas costumo dizer que sou irmã de um filho único» -, da mesma forma que a sensibilizou o ambiente familiar em que a pintora cresceu - «muito semelhante ao meu, recheado de tias que contavam histórias e preenchiam a nossa imaginação».

Tal como o pai de Paula Rego, também o de Agustina se revelou uma influência fundamental no desenvolvimento artístico da escritora. Mas a criança que acabaria por dedicar o seu talento à escrita começou por testar a sua vocação na pintura. Quando tinha 15 anos, Agustina frequentou uma escola de artes plásticas, que acabaria por abandonar rapidamente: «Temo ter desiludido o meu professor.»

Das aulas, Agustina reteve uma lição de vida: a importância do trabalho na criação artística. A escritora ainda hoje acredita no poder da prática continuada das tarefas: «Não podemos esperar que tudo nasça do nosso talento.» E foi esta crença que Agustina encontrou no trabalho de Paula Rego, em mais uma afinidade que liga estas «irmãs cósmicas» - nas telas de uma e nas páginas de outra, verifica-se o resultado de muitas horas de trabalho que complementa a inspiração. Agora Agustina anseia por conhecer a pintora pessoalmente. «Talvez nunca venha a acontecer», diz com o ar conformado de quem percebe as solicitações de uma artista que tem de acompanhar a sua obra até ao momento da exposição. Mas, ao mesmo tempo, Agustina concede que esse momento de intimidade provavelmente em nada alteraria a imagem que já construiu dela.

Nos últimos meses, a escritora andou a estudar a vida e obra de Paula Rego, tentando contrariar o facto de a pintora se dar a conhecer muito pouco. Agustina deparou com esse obstáculo, que foi vencendo com a persistência duma investigadora habituada a desafios difíceis e com um gosto muito especial por descobrir a realidade por detrás da aparência. O primeiro encontro de Agustina Bessa-Luís com a obra de Paula Rego deu-se há vários anos. Não sabe quantos, mas recorda-se que a primeira imagem duma tela da pintora viu-a num filme inglês, onde surgia uma galeria com quadros de Rego. «A pintura que me chamava a atenção representava figuras femininas.»

Um outro assunto motivou Agustina a escrever sobre a pintora: a imaginação: «Eu li que ela diz que não tem imaginação. Eu sinto a mesma dificuldade.» A superação deste obstáculo é uma das molas impulsionadoras de ambas: olhando a realidade que as envolve, num esforço interpretativo que Agustina elogia em Paula Rego. Confessa que não perde muito tempo a olhar para quadros. «Tudo depende do momento e do lugar.» «Toda a grande obra é cruel. Porque arrasta as almas.»

EXPRESSO, CARTAZ, 31-3-2001

 

 

SITES SOBRE PAULA REGO:

Página de Paula Rego

■ Artcyclopedia

■ Tate Gallery

Paintings, Biography, Articles, Resources

 

 

19-7-2002

Jane Eyre, a bruxa

ANA MARQUES GASTÃO (Em Londres)
 

Em "Jane Eyre", a heroína luta pelo justo equilíbrio entre o dever moral e a felicidade. Paula Rego lançou-se no tema - também adaptado ao cinema -, a partir do romance de Jean Rhys, "The Wide Sargasso See", centrado em Bertha, a mulher louca de Rochester. Se o livro relata a história de amor de uma mulher em luta, as 25 litografias ultrapassam o enredo, entrando num outro universo, o mágico. Paula Rego acaba de expor no Yale Center for British Art.

 

 

Chegou a esta série não por "Jane Eyre", mas pelo romance de Jean Rhys, "The Wide Sargasso See"?

Não comecei pela Jane Eyre, mas pela mulher louca de Rochester, Bertha, que eu já tinha desenhado há anos, e que Jean Rhys trata no seu romance. A Jane é, no entanto, um melhor exemplo para todos do que a outra louca, uma desgraçada, uma vítima. É melhor não se ser vítima, não é?

Claro... Por isso, Jane Eyre diz no romance de Charlotte Brontë: "I resisted all the way"...

Resistência... She did. She resisted all the way. Sabe, o processo das litografias já vem de longe. Já as tinha feito e tinha dado muito mau resultado. Trabalha-se num papel preparado, e depois transfere-se para uma chapa onde a imagem fica, mas o técnico que fez o trabalho, fê-lo tão mal que me roubou metade do desenho. Então peguei nos lápis de cor e consegui puxar lá de dentro a imagem. Liguei-me então a The Curwen Chilford Press. Eles são excelentes. Começámos a fazer as litografias em filme, que mais parecem a reprodução de desenhos. Esta é a técnica que serviu a série da Jane Eyre.

Aquela Jane que está deitada no chão já foi feita em filme?

Sim, foi a primeira e remonta ao momento em que Jane é castigada pela tia e posta no quarto encarnado, onde tinha morrido o tio. Metia medo. Encerram-na lá dentro e ela tem um ataque de pânico. Atiram-na para ali como se fosse um papel de jornal amachucado. Assim a fiz. O assunto e a técnica estão misturados.

Não há uma coisa sem a outra?

Não. Se, por acidente ou por alguma razão, a mão puxa para um lado porque se desenhou de uma certa maneira, vamos atrás dela. Às vezes a história segue o acidente, a maneira como aquilo ficou, o que por vezes conduz a outra história. Pus a Lila no chão com o vestido e desenhei outra vez. E ficou tudo amarfanhado.

Jane Eyre: "small and plain".

Pequenina. Aqui está de costas. Porque é uma espécie de aventura, não é? Vai meter-se num buraco, como o coelho na toca. Está lá a raposa à espera dela, mas ela não se importa, porque domina a raposa por ser uma bruxa.

A narrativa já está a avançar...

Pois. Aqui é muito mais tarde, quando Jane foge de casa do Rochester porque ele não pode casar-se com ela; ele já tem uma mulher louca... Foge lá para o monte, no Norte de Inglaterra, the Heath. Lugar lindíssimo!

Em "Up The Tree" parece haver uma dança. Jane está triste?

Ela está a girar sobre a si própria, como aqueles homens, não me lembro do nome. É uma bruxa.

Não é mais uma feiticeira? As bruxas são más...

Má não, mas tem poderes.

Muitas mulheres têm?

Têm de ter, que remédio, não é? Jane fica muito triste, humilhada, quando descobre do casamento de Rochester, poque tinha dignidade, apesar de ser modesta. Mas continua a gostar dele. E então transforma-se em feiticeira. Faz bruxedos para ver se ele volta. Parece que é tudo Jane Eyre, mas no fundo salto por cima do assunto, porque me apetece continuar a desenhar. Tem também a ver com os fatos. Aqui em baixo, há uma organização que aluga guarda-roupa para filmes e peças de teatro. Também lá fui vestir o António de padre, quando foi d'O Crime do Padre Amaro.

Jane aqui está cansada...

Arranjei um fato à Lila com um espartilho, uma saia extraordinária e um toucado, a bonnet. Quando ela o colocou, descaiu um pouco, e eu disse-lhe: "Deixa estar assim, inclinado". Jane está sozinha a tomar conta da pequena e o único conforto que tem é pôr a cabecinha dentro do chapéu.

Como se fosse uma concha?

Exactamente, e ela encosta-se, como aquelas crianças com os ursinhos que afagam no rosto... Ela tinha o seu bonnet. Mas parece que estava com uma enorme ressaca. Chamávamos-lhe a gravura da ressaca. Há um conjunto de figuras grandes nesta série.

Jane ali está hesitante...

Sim, em Come To Me, Jane está a ouvir Rochester chamar quando Bertha larga fogo à casa. E não sabe se deverá ir. Já sem casa, cego... Não parece apetitoso. A estas grandes figuras solitárias chamo-lhes The Guardians, que se impõem e fazem uma espécie de pontuação na história. Bertha não pertence a este grupo, pois não é protectora, mas desesperada.

Constrói assim os silêncios?

Sim. Com estas figuras ocupam-se espaços maiores para que outras coisas possam existir. Algumas nem se vêem. Não esgotei tudo, não podia fazer mais.

Jane é protectora?

Claro que é, acaba por tomar conta de Helen na escola e de Rochester, o seu bebé.

A mulher-cão é ligada à terra, as avestruzes bailarinas são estóicas, mas trata-se sempre de representações da feminilidade. Como é a sua Jane Eyre?

Uma mulher de bom senso. A winner. Uma vencedora.

Ela não deseja apenas o amor romântico, quer ser respeitada.

Até o amor romântico consegue. A mulher-cão é sobre o amor, e conta a história como ela é: submissão, amor desvairado, castigo, vingança. As avestruzes já estão velhas, mas ainda têm esperança de levar uma beijoca [Risos...]. Por isso, quando acordam estendem os braços à espera do beijinho. Mas ninguém vem. Então, tentam dar uma esvoaçadela e depois caem, bêbedas. Cómico e triste! Jane dir-se-ia mais séria, está mais relacionada com o Anjo da Guarda, de espada na mão. Fiz esse quadro no fim d'O Crime do Padre Amaro, para vingar Amélia.

"SÓ SEI PENSAR COM A MÃO POR MEIO DO LÁPIS"


Os seus quadros são, muitas vezes, sobre a vingança?

Não há outra maneira. Mas repare, Bertha aparece sempre no meio de outras pessoas, agarrada, dependente, a morder. É uma pessoa que não existe por si. Grace Pool dava-lhe de comer e cerveja, o que já não era mau. Jane e Bertha são representadas pelo mesmo modelo: uma é o lado extremo e destrutivo da outra.

São gémeas contraditórias?

Uma está voltada para um lado, a outra para o outro. São figuras complementares, mas opostas. Formam, até certo ponto, um todo. Jane tinha imensa raiva, mas, por meio do controlo, da aplicação no trabalho e da obediência, conseguiu vencer muito mais do que Bertha, que era louca. O instinto não dá resultado. E depois há a sorte. Boa ou má.

Falou na raiva de Jane. Para ganhar amor, ela chega a dizer que se submeteria a quebrar os ossos do braço. Isto é de uma grande violência. Mas ao longo do livro, vai tentanto obtê-lo de uma forma mais doce e inofensiva...

Nela há violência, revolta, luta. Apesar dos bordados, Jane pinta, tem os seus quadros, nos quais descreve náufragos, o mar, pássaros, coisas da época, numa ambiência simbolista. Está tudo, no fundo, ligado à literatura gótica.

Jane balança entre o amor e a autonomia. Não podem caminhar juntos? Jane era uma feminista?

Charlotte Brontë, sim. Tinha muito orgulho em escrever, mesmo quando lhe recusaram essa possibilidade. Dir-se-ia uma feminista, mas não das mais teóricas. Queria justiça.

Jane procura o equilíbrio entre o prazer e o dever.

Nos tempos vitorianos, uma mulher que vai atrás do prazer está tramada. Acontece uma Emma Bovary, e é uma desgraça. Nunca poderia vencer, mas Madame Bovary foi escrita por um homem. As mulheres só podiam resistir não se deixando ir atrás de falinhas mansas.

Jane lida com homens misóginos - Brocklehurst, Rochester e St. John Rivers - e luta contra o domínio patriarcal.

Misóginos eram todos. Os que não pareciam, tinham obsessões como St. John, um mentiroso perante ele próprio, obcecado pela religião. O professor era mau. Mr. Brockehurst está ali, não vê?, parece o Salazar, ao pé das meninas que estão a ser castigadas. Aquela ficou em cima do banco.

E aquela?

Ah, não sei, isso foi tudo inventado. É feito na minha cabeça.

Deixa levar-se pela imaginação? A mão foge-lhe da cabeça?

Parecem ir juntas, mas a mão vai primeiro. Não vê a Jane, tão pequenina, em cima do banco, a ser mostrada ao professor, tal como acontece em toda a parte?

Ainda hoje? É extremamente violento. Não tem ilusões?

O quê? Sobre isto? Era assim, ainda é em muito sítio: eram postas em cima dos bancos, batiam-lhes nas mãos. Se as crianças estão contra a autoridade, há um escape, se se viram contra nós, aí está o mal. O professor é o símbolo da autoridade. Pode ser detestado.

"Jane &icom; Helen" retrata a Jane protectora, afectuosa.

Helen está a morrer. Esta gravura retrata tudo, de forma premonitória, a queda do cavalo, quando do primeiro encontro com Rochester, a casa a arder e o médico. Tenho um desenho da tia das irmãs Brontë e, por isso, pu-la como senhora morta. Se calhar não é justificado, mas apeteceu-me. Em Getting Ready to the Ball, usei a mobília da casa da minha avó na Ericeira. Preciso de saber onde se passam as coisas. Não vê as minhas netas a pôr pó de arroz?

A sofisticação de Jane parece a de uma aristocrata que, no entanto, é empregada e tratada como tal. Quis representar as dissimetrias sociais?

Ela era uma preceptora, não havia como fugir, o que à partida cria logo distâncias, mas também não tinha de ficar à mesa a fazer conversa com os convidados. Até teve muita sorte, porque eles eram arrogantes e toleirões. Ponho todas as pessoas que conheço mascaradas, a fingir. Miss Ingraham é a minha filha, Vitória.

A série termina com o seu auto-retrato com as netas...

Que foi o produto de vários desenhos até chegar a este final. O auto-retrato com as minhas netas, os amantes e os cães amordaçados. Não há ligação aparente com Jane Eyre, mas até pode haver. Não tenho de encontrar qualquer justificação. Tem a ver com a família, as festas, o mar. É o meu primeiro auto-retrato. As coisas desenvolvem-se e tornam-se noutras coisas. E se apetece fazer, faz-se sem motivo. Vai dentro do mesmo bloco, porque foi feito na mesma altura. Tudo tem a ver com o desenho.

O desenho é o centro de tudo? Dele vem a intuição?

Só sei pensar com a mão por meio do lápis. Tenho a imagem na cabeça. Há duas fases: primeiro a ideia que surge e, depois, o trabalho com o modelo. Juntas, a Lila e eu, arranjamos maneira de contar a história. Está tudo no desenho, a história, tudo. O desenho não a ilustra, mas o que me interessa é a acção de fazer o risco sobre a pedra, o papel; a disciplina. A ligação física e visual são essenciais. A história dá o impulso.

Que técnica gosta mais de utilizar, a do pastel?

Tenho trabalhado muito com ela. Desenvolvi a técnica e custa-me voltar a pintar, porque não alcanço os efeitos que quero. Consigo fazer as roupas, o tafetá, as rendas, as asas dos anjos... Gosto mais da actividade gráfica do que da pintura. O risco quando assenta no papel é muito mais interessante e directo do que o pincel, que tem aquela parte mole que anda para trás e para a frente e nunca tem a precisão necessária.

Gosta muito de anjos, não é?

E dos santos. Aliás, Jane, quando está em Heath, é como se fosse uma santa, à procura de refúgio.

"Loving Bewick" é impressionante...

Aquilo é uma coisa erótica.

E extremamente directa...

Jane lia um livro ilustrado por Thomas Bewick, grande ilustrador de bichos. Imaginava situações. Aqui está a imaginar isto. Mas tem muitas interpretações, pode ser o amor eterno. Já fiz várias vezes esta cena, um azulejo também.

Naquela pintura, Edward tem as mãos dentro das botas...

Está a mostrar as virilhas. Está a mostrar-se, a expor-se. A seduzir.

D.H. Lawrence acusou "Jane Eyre" de ser uma obra considerada inconscientemente pornográfica, talvez porque não tenha entendido bem os mecanismos vigentes na sociedade vitoriana...

Erótica sim, agora pornográfica... De certeza que se trata de um ponto de vista pessoal. Bom, é verdade que os surrealistas - que se interessaram pelos pré-rafaelitas - admiravam muito a pintura vitoriana e a poesia. O modernismo deu cabo disso tudo: menos erotismo e mais sexo. Era uma época complicada, não se podia fazer isto, aquilo, as mulheres sofriam uma enorme repressão.

E reprimiam.

Ah, sim. Se pensarmos em Portugal, no tempo da ditadura, não seria muito diferente. Faziam-se as coisas às escondidas.

"Jane Eyre" é um romance actual do ponto de vista da sociedade portuguesa?

Já não é. Mas dir-se-ia, apesar disso, sempre actual. E as pessoas, as mulheres sobretudo, gostam de ler este romance. Dá-lhes satisfação, porque ela vence.

Celestina é uma personagem tradicional espanhola e portuguesa dos finais do séc. XV, a feiticeira-médica do amor. Que lhe interessou ao pintá-la?

A Celestina já acabou. Foi um seguimento de algo que começou pelos desenhos das pessoas a tomarem conta das mulheres velhas. Depois foi por ali fora, por ali fora, até terminar com a Celestina, a festa final. Tem a ver com a minha tia Celeste. Mais do que qualquer outra coisa, é uma zarzuela, nem chega à ópera. Está tudo no palco, tudo à mostra, sem grandes segredos. Depois disso, fiz a Jane Eyre.

"SOMOS OBEDIENTES E FAZEMOS POR TRÁS O QUE QUEREMOS"

Há uma relação entre "Jane Eyre" e "Obedience" e "Sit"?

Há. Gosto muito de Obedience. Fiz um desenho igual para uma organização das vítimas da tortura, em Londres. Jane também é obediente, mas não àquele ponto, não tem de se submeter daquela maneira. Sit, o último da série da mulher-cão, está também ligado a essa ideia de obediência.

Esses temas vão e vêm?

Constantemente. A obediência até pode ser subversiva. Somos obedientes e fazemos por trás o que queremos. Outras vezes, mata, mata o instinto e a vontade de revolta. Por um triz, a maior parte das pessoas não fica por ali com o rabo para cima, como no quadro. Vejo tudo isso como uma experiência da minha meninice.

A ligação à sociedade portuguesa continua profunda, nomeadamente por meio da pintura?

A minha ligação a Portugal é muito antiga. Sei que hoje, mesmo assim, há mais liberdade, excepto no caso do aborto. Mas lembro-me de como era opressivo.

Interessa-se mais pela contradição entre ser-se obediente e assassina, e não tanto pelos processos de vitimização?

A obediência interessa-me mais. A relação de poder entre homem e mulher. É erótico, quando se vê de longe. Por isso trabalho melhor em Londres. Em Lisboa nem pensar. Não que se veja melhor à distância, mas tem-se a capacidade de mostrar. Não custa tanto.

Quando pinta coisas dolorosas, dói como quando pensava nelas?

Dói. No caso da série do aborto - talvez o que mais gostei de fazer em toda a minha vida -, ficava enraivecida. Pinto com determinação, com um propósito. Quando pintei a Lila deitada a olhar, com as pernas abertas, pensei: "Isto é uma natureza-morta, como eu fazia na Slade". Há um elemento clássico que vem à ideia, por isso existe distância.

Quando não tem mais problemas para resolver, já não é perseguida pelos quadros?

Não. Separo-me deles. Acabou-se. Assim não há o risco de fazer coisas em segunda mão.

Para onde vai agora?

Estou à procura. Há sempre coisas a trabalhar, mas não podemos falar nelas. Se falamos desaparecem. Se calhar, é superstição.

 

Exhibition features art by 'consummate storyteller'

 

"Paula Rego: Celestina's House," the first major U.S. exhibition by one of the foremost figurative and narrative artists working in Britain today, will open on Thursday, April 18, at the Yale Center for British Art.

The Yale museum is the only North American venue for the show, which features about 90 works, many of which Rego created during the past four years and which have never been viewed outside of Britain. The exhibit will continue through July 14.

Described as a "consummate storyteller," Rego creates works that illuminate aspects of human behavior. She draws her inspiration from books, films, folk legends and fairy tales, as well as memories of her own childhood and the history of art.

 

 
   

Celestina.s House

 

She is particularly interested in portraying the experience of women and their relationships to others, and her works explore themes of love and cruelty, desire and disgust, rebellion and domination. In the exhibit's title work, "Celestina's House," Rego explores the complexities of matriarchal and familial relationships.

Born in Portugal, Rego studied at the Slade School in England and has made London her permanent residence since 1976. The artist, who has said she likes working "on the edge," has tackled several difficult subjects. The exhibit at the British Art Center will include a group of works produced in 1998 as a response to Portugal's referendum on the legalization of abortion, as well as "The Interrogator's Garden," an investigation of human cruelty and indifference that was inspired by the Foundation of Victims of Torture.

The show will also include a new series of pastels and lithographs that were completed just before the Yale opening -- the theme of which will only be revealed when the show debuts.

The artist has said she does not consider herself a traditional painter and is more interested in "drawing things." She likens the creative process to an "adventure," saying: "First of all it is like this: piece of paper and pencil and you find an image in your head, behind your ear somewhere. You put it down and something suggests something else and then, afterwards, when you go over it with the pen and ink you change it again. So there is constant change, adjustment, and so on ... the drawing is where the story and the picture develop, really."

The exhibition will include a number of Rego's original drawings alongside the finished works, notes Gillian Forrester, associate curator of prints and drawings at the British Art Center and the show's in-house curator. "The inclusion of the preliminary drawings for the major works will provide a unique insight into the way Paula Rego allows her images to evolve, and I believe visitors to the exhibition will benefit greatly by the opportunity to observe her complex and fascinating working processes, which are typically very private."

The artist will discuss her work with the exhibition's curator at an event titled "Paula Rego in Conversation with Fiona Bradley," which will be held at 5:30 p.m. on Wednesday, April 17, at the McNeil Lecture Hall of the Yale University Art Gallery (enter on High Street). The program, which is free and open to the public, is supported by the Yale School of Art and Jonathan Edwards College.

In conjunction with the Yale exhibit, there will also be a film series, "Paula Rego: Artist's Choice," featuring works the artist considers to have been influential on her own work, June 22-July 13; a concert titled "Sol y Canto" ("Sun and Song") on June 28; and a pastel workshop for children and adults June 23-29. Further information about these activities will appear in future issues of the Yale Bulletin & Calendar.

"Paula Rego: Celestina's House" is organized by the Abbot Hall Art Gallery and Museum in Kendal, England. The exhibit is supported by Marlborough Fine Art (London) Ltd., with assistance from the British Council.

 

Rego meets Mr Rochester

In the past, Paula Rego has explored fairy tales and delinquent monkeys, but her new obsession is Charlotte Brontë's Jane Eyre and the pent-up passion of its characters

Kate Kellaway
Observer

Sunday April 14, 2002

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A Painter of Stories

Paula Rego's works are packed with layers of meaning

By Tara Pepper

 

           

Longtime Expatriate Rego Paints Portugal

By BARRY HATTON

Updated: 2:16 p.m. ET Nov. 17, 2004

 

 

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At Tate Britain

Peter Campbell

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