6-3-2015

 

 

História da Inquisição Portuguesa, em face dos seus processos

 

 

 

 

A Inquisição deve ser estudada pelos processos

 

Sempre me impressionou o pouco que os nossos historiadores da Inquisição ligam aos processos. Dizem eles que os cristãos novos judaizavam e por isso eram condenados pela Inquisição. E ficam-se por aí. Nem tentam definir o que se deverá entender por “judaizar”, ficam-se apenas pelo uso da palavra. Ora, se a Inquisição no século XVI, ainda utilizou a palavra “judaizar”, depressa deixou de o fazer, passando a acusar os réus de rituais, declarações em forma, jejuns, em resumo, coisas concretas, como juridicamente seria exigido; se eram verdadeiras ou falsas, isso não importava muito aos Inquisidores, desde que tivessem a aparência de verdadeiras. De facto, uma noção vaga e indefinida como “judaizar” nunca poderia ter qualquer valor jurídico. E, pouco a pouco, os processos começaram a ficar imbuídos de uma certa lógica jurídica, até bastante antes do final do séc. XVI. 

Pondo de lado os processos, os historiadores dedicam-se a estudar as relações de poder entre a Inquisição e o Rei, entre a Inquisição e o Papa, entre a Inquisição e os Bispos e assim por diante. Estão assim a  prestar um péssimo serviço à Igreja Católica que tem necessidade urgente de condenar a Inquisição e de separar as águas. No estudo da actuação da Inquisição em si, ficam-se em geral pela rama. Constatam o enorme poder da Inquisição, mas não vão investigar o que é que os Inquisidores fizeram com esse poder, esquecendo a grande máxima de que “o poder corrompe sempre".

A iniquidade da Inquisição atingiu níveis que vão além da imaginação. Muitas condenações à morte são autênticos assassinatos. Não tenho nenhum pejo em chamar assim as sentenças da inquisição, sempre que constato que os Inquisidores sabiam muito bem que os réus não tinham quaisquer convicções judaicas. E esses casos não são assim tão poucos casos como isso.

 

O poder da Inquisição

 

O poder inquisitorial deveria ser o centro de todas as atenções. Liga-se intimamente à autoridade da Igreja Católica que foi realçada e reelaborada pelo Concílio de Trento, com a obrigatoriedade da frequência dos sacramentos, dos jejuns e abstinência em determinados dias do ano, e com a venda das bulas para a sua parcial dispensa. Juntem-se a isto os instrumentos de controle, como o rol das desobrigas e as funções de registo civil que a Igreja Católica se atribuiu, obrigando os párocos ao registo pormenorizado  de baptismos, casamentos e óbitos, embora este acabasse afinal por ser um bom serviço público. Veja-se a pequena percentagem de faltas nos róis da desobriga dos séculos passados que se seguiram ao Concílio [1]. Esta apreciação pela positiva do poder inquisitorial deverá ligar-se também ao regime autoritário que vigorou até 1974 que, sendo embora não confessional, tinha uma ligação estreita com a estrutura da Igreja Católica. Não era por acaso que, nas nossas aldeias, quem não ia à Missa dominical, era considerado “comunista” e opositor do regime.

 

Como é que a Inquisição durou 285 anos

 

Há duas dezenas de anos, um professor de Coimbra, José Veiga Torres, publicou um artigo [2] com uma tese ainda mais espectacular: o poder da Inquisição era sustentado, não tanto ou não só pelos Inquisidores, mas sobretudo pelos familiares e comissários da Inquisição, que através das suas funções, ganhavam grande ascendente na sociedade. Esses elementos eram fundamentais para avaliar a impureza de sangue dos potenciais réus [3]É por aí que se deve estudar o “êxito” da Inquisição, não pelos processos. Os processos seguem regras jurídicas pré-estabelecidas, uma jurisprudência sábia construída ao longo de séculos, não têm mais nada que se lhes diga.

Esta tese surrealista merece muita atenção. Desde logo se reconhece que a Inquisição pouco tinha a ver com a religião, pois procurava-se sobretudo a “impureza” de sangue. Mas o Autor esquece que a tal “impureza” de sangue teria quando muito os defeitos da raça apenas para os cristãos novos inteiros, estando quase todos os outros cristãos novos com sangue misto já assimilados na sociedade portuguesa.  Por outro lado, muito cedo, logo no princípio do séc. XVII, a Inquisição começou a ter dificuldade em determinar a porção de sangue judeu que tinha cada cristão novo. Começou então a dizer que os réus tinham parte de cristão novo, segundo “fama constante”. 

De toda a maneira, reconhece este Autor que a acção da Inquisição não era sobre hereges, mas sim a perseguição racial.

Já não tem razão, quando quer dar importância à acção dos familiares e comissários do Santo Ofício. Os familiares não desempenhavam qualquer actividade importante. Limitavam-se a prender os Réus por ordem dos Inquisidores ou a conduzi-los de um lado para o outro. A missão mais importante que vi num processo, foi a do familiar  Francisco Rodrigues, que foi mandado a Madrid prender Diogo Rebelo (Pr. n.º 3389) [4] . É verdade que os familiares ganhavam algum prestígio social com a sua nomeação, mas não o suficiente para justificar a existência da Inquisição.

O mesmo se diga dos Comissários que não tinham poder de decisão. Interrogavam as testemunhas por ordem da Inquisição mas, como veremos, o processo em si pouca importância tinha na sorte do réu.

Dizer, porém, que o estudo dos processos não tem importância é uma perfeita barbaridade. São os processos que nos revelam desde logo as perversidades que, apesar de tudo, existiam nos Regimentos  e sobretudo, as perversidades que eram cometidas pelos Inquisidores contra ou à margem dos Regimentos. E, porque houve necessidade de passar a construir os processos sobre uma base jurídica, são os processos que nos revelam como isso foi feito, através da única defesa que foi deixada aos réus: confessar o que não tinham feito, denunciando a seguir conhecidos e parentes, que seriam presos a seguir.  Só assim é que a Inquisição pôde durar 285 anos.

Também António José Saraiva disse que não precisava de ver processos, achava que havia já documentação suficiente tirada dos processos para defender as suas ideias. Mas é por isso mesmo que elas são deficientes, como veremos a seguir.

Uma boa parte dos nossos historiadores aceita que a Inquisição era de facto um Tribunal da Fé, que examinava as crenças dos cristãos novos e os condenava porque eles, apesar de terem sido baptizados, continuavam a acreditar na religião judaica.

 

A aliança da direita católica com os meios judaicos

 

Esta ideia peregrina, da direita católica e sem qualquer base nos factos, é facilitada por uma aliança contranatura da mesma direita católica com os estudiosos judaicos e filo-judaicos que vêem nos processos a demonstração do cripto judaísmo dos cristãos novos e ficam contentes com isso.

Um exemplo disso foram as posições de Israel Salvator Révah (1917 – 1973), que, na discussão com António José Saraiva,  disse ter visto um milhar de processos. Achou ele que todos os cristãos novos eram potencialmente judeus. Isto não diz grande coisa, mas serviu-lhe para se opor às teses de António José Saraiva. Além disso, até pode ser verdade, todos os judeus são potencialmente judeus, na sua raça, mas deixam de o ser quando entram os casamentos mistos, como dizia o Sionista Ze'ev Jabotinsky (1880 – 1940) [5].

 

Benzion Nethanyahu, The origins of the Inquisition in fifteenth Century Spain. New York: Random House, 1st edition August 1995, 1384 pág. (na edição de 2001)

Este autor foi pai do actual Primeiro Ministro de Israel, Benjamin Nethanyahu; faleceu em 2012, com 102 anos. No seu livro acima mencionado, defendeu a tese de que os marranos (isto é, os judeus baptizados, os cristãos novos) queriam realmente integrar-se na sociedade ibérica e, por isso, aceitaram o baptismo de boa mente.

A propaganda da Inquisição de que eles continuavam a ser judeus no seu interior é falsa, era um mero truque para esconder o ódio racial. Aliás, a limpeza de sangue nada tinha a ver com a religião, mas sim com a raça. As regras da limpeza de sangue destinavam-se a bloquear a integração na sociedade dos cristãos novos, negando-lhes a possibilidade de ocupar certos cargos ou ter certas profissões.

As ideias do conceituado historiador motivaram algumas reacções negativas em Israel, tanto assim que lhe negaram a entrada como professor na Universidade Hebreia, em Israel.

  

A pureza de sangue

O apuramento da “pureza de sangue” nos tempos da Inquisição era perfeitamente ridículo. Alexandre de Gusmão, Conselheiro da Corte de D. João V, embora tivesse alguma parte de cristão novo, escreveu este texto que na altura fez algum brado:

 

«É necessário saber que cada um de nós na sua árvore de costado até quartos avós tem 32 quartos avós ; cada hum destes tem outros 32 quartos avós também na sua árvore, que ficam sendo nossos oitavos avós, e somam neste grau 1024 avós; cada um destes tem da mesma sorte na sua arvore outros 32 quartos avós no seu quarto grau, e somam neste numero 31.768 avós. Cada hum destes tem no seu quarto grau outros 32 quartos avós, que para nós somam 1.016.566 avós. Cada hum destes no seu quarto grau tem outros 32 quartos avós, que nos vem a ficar em vigésimo grau, e que somam nele 32.530.432, que cada um de nós tem nesse grau, todas existentes ou ao menos contemporâneos. À vista do que, tomara me dissessem os senhores Puritanos se têm noticia que todos fossem familiares do Santo Ofício, e, porque os não havia, se tem certeza de que todos eles fossem puros ». Cálculo a respeito dos cristãos novos. Ms. [6]

As contas estão erradas, mas o princípio é verdadeiro.

 

Se a Inquisição queria ter um mínimo de seriedade, então deveria ter averiguado sempre donde provinha o sangue de “judeu” dos réus e indicá-lo nos seus processos e não limitar-se a dizer que o réu tinha “fama” de ser cristão novo.

No séc. XX, Hitler foi muito mais preciso nas suas regras para aferição de quem tinha sangue judaico:

Uma pessoa com dois avós judeus, era considerada ou judeu ou um misto do 1.º grau.

Uma pessoa com um só avô judeu era considerada um misto do 2.º grau.

Um misto do 1.º grau não podia casar com um alemão puro nem com um misto do 2.º grau. Se casasse com um judeu, ficaria judeu para todos os efeitos. Era aconselhado ou a não se casar, ou a casar com outro misto do 1.º grau.

Um misto do 2.º grau que casasse com um alemão puro, deixaria de ser considerado judeu. Em geral, os mistos do 2.º grau não sofriam perseguição racial [7]

Isto é: quem tivesse um bisavô judeu ou mesmo mais do que um, era considerado ariano puro se, depois deles, não tivesse outros ascendentes judeus (inteiros). Reconhecia o Estado que ele estava assimilado e já não era perseguido. 

Dir-se-á: mas Hitler matava os judeus que não lhe interessavam para o trabalho escravo e a Inquisição apenas os queria converter.

De facto, há alguns anos, corria, sobretudo em Itália, a ideia de que a Inquisição portuguesa tinha sido relativamente benigna, pois tinha morto relativamente poucos cristãos novos, não mais de uns dois ou três mil. Esta afirmação esquece o que acontecia aos outros penitenciados. Na melhor das hipóteses, saíam dos cárceres na miséria, desprovidos de quaisquer bens, obrigados a penitências e a cárcere em lugares diferentes das suas moradas, tendo de pedir esmola para sobreviver. Eram obrigados a trazer o hábito penitencial que os fazia objecto da chacota de todos. Mas normalmente saíam doentes, e até aleijados pelos tormentos, sem vontade de viver e de facto com a vida encurtada pela desgraça que lhes tinha acontecido. Mas a Inquisição dizia que os tinha “reconciliado” com a Fé!...

Veja-se o exemplo dos netos do Doutor Pedro Nunes [8] , que o avô tinha feito fidalgos e a quem deixara bens para uma boa vida, como foram atormentados:  Matias, 8 anos preso em Coimbra e Pedro, 9 anos preso em Lisboa. Só é de admirar como não endoideceram no cárcere, como aconteceu a tantos outros.

Embora o relaxe fosse a pena máxima, bem se pode dizer que os “reconciliados” sofriam muito mais do que eles. E estes nunca serão menos de uns 40 000!...

Não! A Inquisição portuguesa não teve nada de benigna.

Perguntar-se-á então por que é que a Inquisição continuou durante séculos a perseguir todos os que tinham ascendentes judeus e mesmo também os que disso só tinham a fama?  A razão é muito simples: a Inquisição acabaria se não tivesse a quem prender. Por isso fomentou a acusação de toda e qualquer pessoa que tivesse a fama de ter um antepassado judeu.

 

A assimilação da população cristã nova

 

Podemos aceitar que os judeus têm tendência a evitar a assimilação na restante população nos países em que vivem.  Por isso, os judeus ortodoxos insistem em que os seus familiares casem apenas com judeus.

Vejamos, porém, o que aconteceu no séc. XVI. Desde que se soube que seria instituída a Inquisição em Portugal, começaram os que queriam continuar a comportar-se como judeus a sair de Portugal, em grande número. Foram muitos para a Índia, pensando que a Inquisição nunca lá chegaria (Enganaram-se!).  Partiram para a Flandres mas depois foram muitos para Itália, onde os governantes os acolheram de bom grado dando-lhes privilégios e liberdade para comerciarem, nomeadamente em Ferrara, Livorno e mesmo, Veneza. Alguns prosseguiram depois para Salónica e para a Turquia.

Os que ficaram não tiveram outro remédio senão integrar-se na sociedade portuguesa. Tendo sido baptizados, tinham de cumprir todas as obrigações da Religião Católica: baptizavam os filhos, iam à Missa nos domingos e dias santos, confessavam-se  e comungavam no período Pascal, tal e qual como os cristãos velhos. Note-se que, nos processos, os cristãos novos sabem sempre as orações do Catecismo: Pai Nosso, Avé Maria, Credo, Salvé Rainha, falhando só por vezes os Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja.

Dir-se-á: mas no seu interior, continuavam judeus.

Aqui, há que distinguir entre os costumes da raça, que não têm que ver com religião e actividades que podem significar uma fé diferente da católica. Nos éditos da Fé, os dois tipos de actividade são confundidos, mas, pouco a pouco, os Inquisidores deixaram de acusar pelos primeiros, porque não eram fundamento válido para a condenação.

Desde logo, não comer carne de porco nem peixe sem escama não constitui heresia nenhuma. Só o seria se o cristão novo declarasse que não o fazia por respeito da lei de Moisés, que era a sua religião. Era perfeitamente livre de não gostar de carne de porco e de peixe sem escama.

Guardar os sábados, ou vestir roupas melhores nesse dia, não pode também ser mais do que um costume judaico e só seria heresia se os cristãos novos dissessem que não trabalhavam por respeito à religião, à lei de Moisés.

Rezar à noite olhando para as estrelas do céu, sendo embora um costume dos judeus, não é heresia nenhuma, ao contrário do que quis a Inquisição nalguns processos.

Lavar a boca, cuspindo a água, a mesma coisa.

Enfaixar os mortos em vez de os vestir seria também um costume da raça.

E assim por diante.

E fazer jejuns judaicos? Tenho de conceder que os jejuns judaicos seriam um sinal de convicções religiosas diferentes das da religião católica. E, de facto, a Inquisição aproveitou-os para condenar e relaxar muito cristão novo. Foram criadas celas especiais, com postigos para vigiar o preso, onde este ficava sozinho. Estavam dois guardas ou dois familiares a observar o preso pelos buracos de vigia 24 horas por dia e faziam depois o seu relatório de modo a identificar o jejum como judeu.  Era tal a importância que davam a esta acusação que o Regimento de 1640 no Liv. III. Tit. IX , n..º III, diz:

III. Havendo alguma testemunha deposto contra o réu, de culpa cometida no cárcere do Santo Oficio, se lhe fará publicação dela, tomando o tempo cinco ou seis meses atrás de sua prisão, dizendo-se que de tanto tempo a esta parte; e ter-se-á mui particular advertência, que na publicação se não declare circunstância alguma, por que o réu possa vir em conhecimento do lugar em que a culpa de que a testemunha depõe foi cometida.

 

Manuel Fernandes Vila-Real apercebeu-se de que o tinham visto fazer jejuns judaicos e foi essa uma das razões que levaram à sua condenação à morte [9]

Tudo leva a crer que os cristãos novos depressa abandonaram todas as práticas religiosas judaicas. Seria um suicídio se as fizessem. Os que viviam melhor tinham criados cristãos velhos que estariam prontos a denunciá-los se vissem alguma coisa de judeu na actuação deles. Aliás, deixaram de ter instrução religiosa judaica. Teriam alguma dificuldade em aceitar os mistérios da fé católica, mas isso também os católicos a tinham. Mas não teriam a imprudência de se manifestarem nesse sentido.

Um bom exemplo é o processo n.º 14409, contra Ana de Milão. Furiosos por Rodrigo de Andrade, seu marido, ter convencido o Rei (da Ibéria unida)  e o Papa a promulgarem um perdão para os cristãos novos, os Inquisidores  não descansaram enquanto não a conseguiram prender dizendo aos confessores das criadas para lhes ordenar que fossem à Inquisição acusá-la de não comer nem carne de porco nem peixe sem escama, e de rezar à noite olhando as estrelas.  O marido queixou-se ao Papa que pediu o processo para Lisboa, mas os Inquisidores recusaram entregá-lo e só o fizeram quando o perdão já estava despachado e a senhora libertada.  Ana de Milão e seus filhos foram para o estrangeiro. Em Portugal, passado o perdão, recomeçaram as prisões. A Inquisição prendeu em 1606, a irmã, Guiomar Gomes,  o marido desta, Henrique Dias Milão,  sete filhos, um criado e uma escrava.

 

Evolução do processo da Inquisição

 

No início da Inquisição, os processos são bastante sumários.  Em geral, os réus não estão presos mais de dois anos. Não há ainda as sessões de Inventário e de Genealogia. Faz-se o libelo ou acusação, mas não a publicação da prova da justiça . Não se oferece ao réu um procurador para a sua defesa. E, sobretudo, não se dão provas precisas da heresia do réu, é mais uma “impressão” dos inquisidores de que o réu não acredita no dogma e nos mistérios da religião católica. Muitas vezes a acusação descreve ainda meros costumes judaicos como sejam não comer carne de porco ou peixe sem escama, vestir camisa lavada aos sábados, ou mesmo guardar os sábados, etc.  Pouco a pouco, os Inquisidores começam a acusar de elementos mais concretos, como sejam declarações dos réus  contra a religião católica, de crença na Lei de Moisés, rejeição dos sacramentos e outras. Sobretudo, começou a imperar o princípio fundamental do processo inquisitorial: não há defesa possível, o único processo de o réu salvar a vida é confessar e a seguir acusar a outros das mesmas faltas que lhe são imputadas.

Esta alteração do processo deu-se ainda antes do final do séc. XVI. São um bom exemplo  disso os processos de Tomás Nunes, médico em Vila do Conde (Processo n.º 1883) e de seu filho Lopes Nunes, médico em Ponte de Lima (Pr. n.º 2179). Quando iam num barco no Tejo com destino à Flandres, foram presos na Alfândega e entregues na Inquisição, junto com a mulher do primeiro e uma filha.  Nada havia contra eles, mas as mulheres denunciaram a ambos. O pai foi relaxado e o filho, depois de muito atormentado, acabou por confessar ser crente na Lei de Moisés e escapou com vida, mas deverá ter saído depois do País.

Esta modificação do processo, mais consentânea com uma base jurídica, constata-se sobretudo após a publicação e a entrada em vigor do Regimento de 1613. Os Inquisidores querem ter uma base jurídica com acusações declaradas pelas testemunhas e ao mesmo tempo a denúncia de outros réus com as mesmas “culpas”.

 

O processo inquisitorial, um processo absurdo

 

Ao mesmo tempo que o processo inquisitorial se torna mais lógico sob o aspecto jurídico, com a exigência de acusações que provam a heresia do réu, torna-se mais absurdo porque é coarctada toda e qualquer defesa. Ou seja, o réu é acusado de declarações que provariam ser herege, mas não lhe é permitido de modo nenhum provar que isso é falso, ou que as denúncias são falsas.  A “contrariedade” ou a contestação por negação nunca eram aceites.  Há casos muito flagrantes, como

-  o de Pedro Serrão de Castro [10] , filho de António Serrão de Castro, que tinha uma vida religiosa muito intensa, mas não lhe valeu de nada, foi relaxado na mesma;

-  o das duas freiras de Beja, as duas irmãs, Joana das Chagas [11] e Maria da Vitória [12] , que foram relaxadas, por não se conformarem com a rotina da Inquisição que era confessar e depois denunciar [13].

 

Até onde ia a crença religiosa judia?

 

Pode-se perfeitamente admitir que em certas famílias judias que viviam mais isoladas da sociedade e preservavam a unidade familiar judaica, de tal modo que todos os casamentos eram celebrados com cristãos novos inteiros, tenha permanecido uma certa crença judaica, Esta crença, no entanto, manifestar-se-ia não tanto na adopção de ritos judaicos, mas mais na rejeição no interior dos dogmas e dos mistérios da religião católica.

Há alguns exemplos disso nos processos, embora raros. Grácia da Veiga [14] , casada com André Soares de Sequeira [15] confidenciou a Manuel Cordeiro, bufo da Inquisição, que ela se tinha declarado com várias pessoas como crente na Lei de Moisés, não imaginando que ele iria logo contar isso aos Inquisidores.

Em geral, porém, os cristãos novos não eram suicidas, e não andavam a declarar a sua fé às claras, pelo contrário.

Podemos também dizer que o casamento com cristãos velhos era um primeiro passo para a assimilação dos cristãos novos,  sendo raros os casos em que o cônjuge cristão novo se encarregasse de transmitir as convicções da religião judaica aos seus filhos.

Aliás, a leitura e o estudo dos processos da Inquisição permitem-nos identificar as localidades em que persistiu o isolamento da comunidade ou das famílias judaicas, com os matrimónios celebrados quase sistematicamente apenas entre cristãos novos.

Ainda antes de meados do séc. XVII, começam a existir já grandes dúvidas sobre a condição do sangue de muitas famílias, isto é de saber se eram cristãs novas ou cristãs velhas.

Isto era importante, porque muito ridiculamente, a denúncia falsa de heresia contra alguém que tivesse parte de cristão novo nunca constituía perjúrio, ao passo que se fosse cristão velho legítimo, o denunciante seria logo acusado de falsidade.

Foi o que aconteceu a Diogo Rebelo [16] , relaxado em 1632, que acusou de judaísmo a muitas dezenas de pessoas mas foi condenado como falsário por causa dos cristãos velhos que incluiu no rol.  Os enganos de Diogo Rebelo foram devidos a dois motivos:

   a)  por um lado, como estudante em Coimbra, não conhecia os ascendentes  de muitos colegas vindos da Província, que, por qualquer motivo, ganhavam a falsa fama de terem sangue de cristãos novos;

   b)  por outro, na terra dele, em Lamego, os cristãos novos estavam já muito assimilados na sociedade através de casamentos mistos durante mais de um século, havendo cada vez mais dúvidas em saber se havia algum cristão novo entre os seus ascendentes, o qual transformaria em cristãos novos todos os eus descendentes.  É assim que no seu processo, a fls. 224, são elencadas seis pessoas de Lamego que não se sabe se são cristãs velhas ou cristãs novas.

 

Aparecerem de facto algumas localidades onde a assimilação terá sido retardada por factores diversos. Assinale-se a  Guarda, onde houve sem dúvida uma protecção do Inquisidor Geral Francisco de Castro aos cristãos novos. Falecido ele em 1 de Janeiro de 1653, a Inquisição atacou em força, relaxando muitos elementos das famílias Carvalho e Aires.

Também no Alentejo se constatou até bastante tarde a permanência de convicções judaicas, pela dispersão dos cristãos novos em quintas isoladas. Quando Francisco de Sá e Mesquita [17]    denunciou cerca de 100 pessoas (incluindo alguns cristãos velhos) em 1720, dois deles foram ainda fazer jejuns judaicos nos cárceres e acabaram relaxados, quando a maior parte dos acusados foi absolvida [18]. Mas todas estes casos eram excepções. Os cristãos novos tinham abandonado todos os seus costumes até porque tinham todo o interesse em não chamar a atenção sobre eles.  E se algo ficara dos antigos costumes só mesmo nos casos de matrimónios de cristãos novos inteiros.  Quanto aos outros, queriam era esquecer o sangue judeu que lhes diziam que tinham nas veias e muitos tentavam passar por cristãos velhos. Como dizia o sionista  Ze'ev Jabotinsky, o casamento misto é um grande passo para a assimilação.

 

 

NOTAS:

 

 

[1] Conforme João Rocha Nunes, A reforma católica na diocese de Viseu (1552-1639), Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

 

[2] José Veiga Torres, Da Repressão Religiosa para a Promoção Social – A Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil, in Revista Critica de Ciências Sociais, n.º 40, Outubro de 1994.

 

[3] "Esta demonstração (a Inquisição como promoção social dos seus elementos) implica a necessidade de uma teorização global do papel histórico desempenhado pela Inquisição na sociedade portuguesa, que passe pela especialização funcional adquirida pela burocracia inquisitorial na investigação linhagística, e do seu objectivo instrumental, que era o da diferenciação e exclusão social da “impureza de sangue”. – epígrafe do artigo acima citado.

 

[4] Salvo outra indicação, todos os processos mencionados são da Inquisição de Lisboa.

 

[5] Wikipedia

 

[6] João Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses

 

[7] Wikipedia - Mischling_Test.

 

[8] Processos n.ºs 8298 da Inquisição de Lisboa (Pedro Nunes Pereira) e 4724, da Inquisição de Coimbra (Matias Pereira de Sampaio)

 

[9] Processo n.º 7794.

 

[10] Processo n.º 9797

 

[11] Processp n.º 345, da Inq. de Évora

 

[12] Processo n.º 2493, da Inq. de Évora

 

[13] Veja-se o depoimento do Jesuíta Paulo Mendes que assistiu a Irmã Maria da Vitória no cadafalso: “Na  cidade de Évora se celebrou Auto da Fé em 26 de Novembro de 1675; nele foram condenadas à morte duas Religiosas irmãs, filhas dos mesmos pais, as quais teriam 50 anos de idade, pouco mais ou menos, e quase todos tinham vivido na Religião, onde entraram muito crianças; em uma delas, a qual, se bem me lembro, se chamava Maria da Vitória, e a mais moça na idade, adverti as coisas seguintes:

Primeiramente, observei nela grande conformidade com a vontade de Deus, a quem repetidas vezes, oferecia a morte afrontosa, a que estava condenada, em satisfação de seus pecados; se bem que pelo crime de heresia não merecia tal castigo, pois estava nele inocente, como cristã que era, e religiosa, falava com Deus tão afectuosamente, e tanto de coração, ao parecer, que causava devoção e lástima em todos os que a ouviam.

De véspera de Todos os Santos até àquele dia, disse que jejuara a pão e água, e que fazia outras penitências, porque o coração lhe dizia que havia de morrer naquele mês. A outras pessoas ouvi dizer que se açoitava todas as noites e que, enquanto estivera presa, rezava sempre o ofício divino.

Estando já no Acto da Fé, se reconciliou por vezes ao Padre que lhe assistia, pedindo-lhe com muitas lágrimas que não a desamparasse até à morte. Neste tempo, saiu o Senhor da freguesia de Santo Antão para um enfermo, e é incrível a consolação que esta mulher mostrou de ver o SS.mo Sacramento, dizendo que Deus lhe fizera aquela mercê para que comungasse espiritualmente; já que os Senhores Inquisidores lhe tiravam o comungar na realidade. Vendo ali uma irmã ou sobrinha sua, que ela dizia a chegara àquele estado, lhe perdoou e pediu a Deus que lhe perdoasse, e a todos os que podiam ter culpa da sua morte: da qual acrescentava que facilmente se podia livrar, porque bem sabia que testemunhas tinha contra si, porém que não queria levantar a outrem e impor-se a si, um testemunho falso em matéria tão grave, e que antes queria morrer do que fazer tal ofensa de Deus.

Na casa da Audiência, vestindo-lhe o verdugo a alva, pediu-lhe que a tratasse com modéstia e que quando lhe quisesse dar o garrote, lhe atasse os pés muito bem, para que com a morte não se descompusesse, pois era esposa de Cristo. Aqui se tornou a confessar geralmente.

Indo já para a fogueira, encontrámos à porta do Rossio grande parte da Comunidade de S. Francisco, a quem a dita Religiosa e sua irmã pediram perdão do descrédito que causavam ao seu Convento, com aquela afronta, porém que soubessem que iam a morrer por não se impor[em] um falso testemunho.  Os ditos religiosos as acompanharam até à fogueira, e lhe assistiram à morte, e a muitos deles ouvi dizer que eram as religiosas mais observantes e edificativas que havia no seu Convento, e que nele tinham instituído uma devoção, que era estarem sempre duas Freiras em oração diante do Santíssimo e que elas comummente assistiam de noite.

Já junto da morte, pediu a um Religioso que, como expirava, lhe tirasse as contas que levava na mão, e um retrato de Nossa Senhora da Conceição, porque não queria que se queimassem.

É costume em Évora levarem o retrato do penitente, que vai pintado na samarra, entre duas figuras do diabo; olhando para esta pintura outras vezes dizia: “No dia do Juízo se saberá se levaram os diabos a minha alma ou se a levaram os Anjos””.

 

[14] 1654 – Pr. n.º 1302; 1655 – Pr. n.º 1302-1

 

[15] 1653 – Pr. 11472; 1656 – Pr. n.º 11472-1; 1656 – Pr. 11472-2

 

[16] Processo n.º 3389

 

[17] Processos n.ºs 11300-1 e 11300-2

 

[18] Mas ficaram presos durante cerca de três anos e ainda tiveram de pagar as custas!