6-2-2001

 

Alexandre O'Neill

 

 

O PAÍS RELATIVO

 

 

País por conhecer, por escrever, por ler...

 

                        *

 

País purista a prosear bonito,

a versejar tão chique e tão pudico,

enquanto a língua portuguesa se vai rindo,

galhofeira, comigo.

 

                        *

 

País que me pede livros andejantes

com o dedo, hirto, a correr as estantes.

 

                        *

 

País engravatado todo o ano

e a assoar-se na gravata por engano.

 

                        *

 

País onde qualquer palerma diz,

a afastar do busílis o nariz:

-Não, não é para mim este país!

mas quem é que bàquestica sem lavar

o sovaco que lhe dá o ar?

 

                        *

 

Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes

que há neste país.

 

                        *

 

País do cibinho mastigado

devagarinho.

 

                        *

 

País amador do rapapé,

do meter butes e do parlapié,

que se espaneja, cobertas as miúdas,

e as desleixa quando já ventrudas.

 

                        *

 

O incrível país da minha tia,

trémulo de bondade e de aletria.

 

                        *

 

Moroso país da surda cólera,

de repente que se quer feliz.

 

                        *

 

Já sabemos, país, que és um homenzinho...

 

                        *

 

País tunante que diz que passa a vida

a meter entre parêntesis a cedilha.

 

                        *

 

A damisela passeia

no país da alcateia,

tão exterior a si mesma

que não é senão a fome

com que este país a come.

 

                        *

 

País do eufemismo, à morte dia a dia

pergunta mesureiro: - Como vai a vida?

 

                        *

 

País dos gigantones que passeiam

a importância e o papelão,

inaugurando esguichos no engonço

do gesto e do chavão.

 

E ainda há quem os ouça, quem os leia,

lhes agradeça a fontanária ideia!

 

                        *

 

Corre boleada, pelo azul,

a frota de nuvens do país.

 

                        *

 

País desconfiado a reolhar para cima

dum ombro que, com razão duvida.

 

                        *

 

Este país que viaja a meu lado,

vai transido mas transistorizado.

 

                        *

 

Nhurro país que nunca se desdiz.

 

                        *

 

Cedilhado o cê, país, não te revejas

na cedilha, que a palavra urge.

 

                        *

 

Este país, enquanto se alivia,

manda-nos à mãe, à irmã, à tia,

a nós e à tirania,

sem perder tempo nem caligrafia.

 

                        *

 

Nesta mosquitomaquia

que é a vida,

ó país,

que parece comprida!

 

                        *

 

A Santa Paciência, país, a tua padroeira,

já perde a paciência à nossa cabeceira.

 

                        *

 

País pobrete e nada alegrete,

baú fechado com um aloquete,

que entre dois sudários não contém senão

a triste maçã do coração.

 

                        *

 

Que Santa Sulipanta nos conforte

na má vida, país, na boa morte!

 

                        *

 

País das troncas e delongas ao telefone

com mil cavilhas para cada nome.

 

                        *

 

De ramona, país, que de viagens

tens, tão contrafeito...

 

                        *

 

Embezerra, país, que bem mereces,

prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.

 

                        *

 

Desaninhada a perdiz,

não a discutas, país!

Espirra-lhe a morte pra cima

com os dois canos do nariz!

 

                        *

 

Um país maluco de andorinhas

tesourando as nossas cabecinhas

de enfermiços meninos, roda-viva

em que entrássemos de corpo e alegria!

 

                        *

 

Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro

e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.

 

Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,

já o passo a meu filho, cansado de o olhar...

 

                        *

                       

No sumapau seboso da terceira,

contigo viajei, ó país por lavar,

aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,

a conversa pancrácia e o jeito alvar.

 

 

Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;

entornado de sono, resvalaste para mim.

Mas também me ofereceste a cordial botelha,

empinada que foi, tal e qual clarim!

 

            (Feira Cabisbaixa – 1965)

 

 

 

   

AUTOCRÍTICA

 

 

Ninguém ma pediu e já não está na moda,

pelo menos aquela pressurosa contrição

feita com cálculo e unção, aquela hipócrita

autoflagelação despudorada,

mas já é tempo (para mim) de deitar contas

ao verso e ao seu reverso, de mostrar a língua

a esse médico de quem tenho um pouco,

para ver como vai o foro íntimo

e, por consequência, o verso público.

 

                        *

 

“Nado e criado em Lisboa...” era um começo

não autocrítico, mas autobiográfico.

Sei muito bem que a biografia

explica muita coisa (até a azia!)

mas para quê esquadrinhar os anos

(joguei berlinde, joguei pião e juro aqui

que nunca o fiz para os americanos!)

à cata da raiz, se o que vivi,

para o mal e para o bem, está aqui?

 

“Nado e criado em Lisboa...” rejeitado

por excessivamente circunloquial.

 

(Comecemos sem mais delongas, prima,

ó volta e meia prima pobre, rima,

que a questão é simples: a poesia

dum tal...)

 

                        *

 

Dizem que me junqueiro, que me tolentino

e até que me paulino,

que tenho tudo e todos no ouvido

e não sou nada original.

 

Sim senhores, tem visos de verdade!

 

Serei eu, meu Deus, um ser reminiscente,

um desses semblantes ante os quais manda a prudência

que se pergunte ao botão antes de mais:

- Onde é que eu já vi este tratante?

 

                        *

 

Se pensar bem, o Junqueiro não me diz lá grande coisa.

O seu anticlericalismo fica-se pela batina;

o seu verso é tribunício e eu gosto da surdina

(ou do simulacro de estentor quando ele ajuda à crítica).

O 5 de Outubro já veio e já se foi,

mas não é a lata-de-travões junqueiriana

que estamos a pedir na circunstância épica

que se aprò... que se aprò... que se aproxima.

 

Liguei sempre ao Junqueiro (sei porquê)

a conversa de advogado e a conversa de barbeiro.

 

Um tio advogado recitou-mo quando eu tinha treze anos

e não era mudo e só na rocha de granito;

um barbeiro anarquista, que me fazia a barba

com a estropiada mão bombista,

impingia-me “A Lágrima”, mas só ele é que se comovia

com aquela aguadilha que tremia

e ainda hoje deve tremer, tremeluzir

em certas almas litográficas, singelas.

 

Depois vi o Sérgio desmontar

as peças duma máquina que nem sequer havia

e perdi o Junqueiro de vista.

 

Será que eu me Junqueiro? Pode ser,

já que tenho comido, sem saber,

de muita alpista...

 

Quanto a esse Tolentino, esse faceto,

devo dizer que nada lhe roubei

mas que podia ser seu neto.

 

Como neto podia muito bem

ser de Paulino, desse abade

que com certeza me arranjaria mãe...

 

            (Continua o desfile, ó prima, já que a prosa

            vai bonita a pretexto da autocrítica...)

 

                        *

 

Cesário diz-me muito: gostava de ferramentas, como eu,

e vê-se que para ele o ser feliz

era lançar, originais e exactos, os seus alexandrinos,

empunhar ferramental honesto

cuja eficácia ele sabia que

não vinha da beleza, mas da perfeita

adequação.

Não tem halo, tem elo e o seu encadeado

É o verso habilmente proseado.

 

            (Que feliz eu seria, ó prima, se o Cesário

            me tivesse deixado uma garlopa!)

 

António Nobre, embora seja muito em inho,

é o grande Só que somos nós,

por isso gosto dela (ai de mim, coitadinho!)

 

            (E em conclusão do megalómano discurso,

            ó prima, um bilhete-postal para o Pessoa,

            a quem devemos todos tanto, a prima inclusive!)

 

Muito querido Pessoa, saberias agora

que não basta ser lúcido, merda, que não basta

a gente coser-se com as paredes

e cercar de grandes muros quem se sonha,

que não basta dizer basta de provincianos!

 

                        *

 

Bem sei que tenho sido, não poucas vezes, derrotado pela pressa,

que me espojo na anedota ou a embalo

na folha-de-flandres da conversa,

bem sei que muitos dos meus versos

nem para atacadores.

Sei que não se deve, que não é táctico cuspinhar contra o vento,

que logo, a jusante, um sujeito nos berra:

- Ó cavalheiro sua besta e se faz obséquio fosses cuspir na tua irmã!

Sei que não é bonito jogar ao chinquilho nos salões,

onde há tocheiros, santos, meninada, abstracções, tias

que a minha malha pode ofender, partir.

Sei que o sal das palavras

vai saraivar, às vezes, carne viva.

Sei que a rapariga que vem forrar os cantos

onde os homens se juntam, magote de pexotes,

com a sua esquivança de felino,

não aguenta a palavra com que eu lhe pego na palavra

e à queima-roupa lhe atiro.

 

                        *

 

A poesia é a vida? Pois claro!

Conforme a vida que se tem o verso vem

- e se a vida é vidinha, já não há poesia

que resista. O mais é literatura,

libertinura, pegas no paleio;

o mais é isto: o tolo dum poeta

a beber, dia a dia, a bica preta,

convencido de si, do seu recheio...

A poesia é a vida? Pois claro!

Embora custe caro, muito caro,

E a morte se meta de permeio.

 

                        *

 

De permeio, a morte? Sim, a arrenegada,

venha rebuçada ou escancarada,

a que te ceifa inteiro ou se deita, primeiro,

de esperança, na tua lástima de cama.

 

De permeio, pois pois, que isso de morrer

Não faz parte de nenhum programa.

 

E podia fazer?

 

                        (Feira Cabisbaixa – 1965)

 

 

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