5-9-2012

 

 

Carta a Francisco de Mezas, de António Serrão de Crasto (1613 - 1684)

 

Quando saiu da Inquisição após o auto da fé de 10 de Maio de 1682, António Serrão de Crasto estava velho, alquebrado, quase cego e reduzido à miséria, tendo ainda a seu cuidado uma idosa irmã, a filha doente e dois filhos avariados da cabeça. Nada mais lhe restava do que estender a mão à caridade. Para dar alguma coisa em troca, escrevia versos que forçosamente caíam na pedinchice. É assim que aparecem no manuscrito denominado “Fonte Jocosa fabricada por António Serrão de Crasto, boticário, em Lisboa, ano de 1704” cod. 6031 Microfilme F. R. 709 da BNP, a fls. 172 o Romance dedicado a Tomé Botelho da Silveira, com o título “Delírios de um preso, caduquices de um velho, impertinências de um pobre“ e a fls. 222 a (Carta a) Francisco de Mezas. Este último é bastante mais escorreito do que o primeiro e foi publicado em facsimile pelo prof. Heitor Gomes Teixeira e depois transcrito por Telma Rodrigues na edição da Frenesi

 

 

 

A Francisco de Mezas, em que lhe refere o tempo que o Autor esteve preso na Inquisição e repete um soneto a hũa ameixoeira e duas décimas a um loureiro, que fez na prisão.

 

Romance                                   

 

      Senhor Francisco de Mezas,

Num romance hoje vos falo,

com que ser Poeta mostro,

com que ser pobre declaro.

 

      Porqu’a pobreza e poesia

nasceram de um mesmo parto,

e destes, Poeta e pobre

nasceram em dia aziago.

 

      E como são tão amigos,

e parentes tão chegados,

entre pobre e mais Poeta

nenhũa diferença achei.

 

      E se pobreza, e poesia

cantam no mesmo compasso,

e Loucura, todos três

fazem um terno estremado.

 

      E tão unidos comigo,

todos três estão num laço,

que se não canto com elas,

que com elas choro, é claro.

 

      Poeta, o ócio me fez,

fez-me louco o tempo vário,

a fortuna me fez pobre,

sendo todos meus contrários.

 

      Mas porém não sou Poeta,

que este nome tão preclaro

mal o posso merecer

por quatro trovas, que faço.

 

      Porque ser Poeta um homem,

é um dom tão sublimado,

hũa graça gratis data

e um espírito mui alto.

 

      Mas que sou louco varrido

isso não posso negá-lo,

que as causas p’los efeitos

se conhecem de ordinário.

 

      Porque grande louco é

e de juízo bem falto

quem faz trovas, e faz versos

estando em tão triste estado.

 

      Porém, quod natura dat

(diz um latino adágio)

que nemo negare potest

assim que estou desculpado.

 

      É certo que melhor fora

o ser Louco e insensato,

do que ter algum juízo

para sentir o que passo.

 

      Porque quem perde o juízo,

esse só juízo tem,

e quem a enlouquecer não vem,

esse é Louco, não tem siso:

o Louco só tem juízo

porque o mal que tem não sente,

que neste tempo presente

sentir com entendimento

aumenta mais o tormento

faz a pena mais veemente.

 

      Que ser pobre, é tão patente

que não hei mister prová-lo,

e quando o romance todo

em ser pobre vai fundado.

 

      Tudo isto são rodeios,

que eu, senhor, ando buscando

por dilatar o pedir-vos

de corrido e envergonhado.

 

      Porque não sei com que cara

pedir possa um homem honrado

quando sei que é o pedir

tão duro, custoso e caro.

 

      Que entre morrer, e pedir,

acho fora mais barato

um homem honrado morrer

que pedir necessitado.

 

      Porque é o mal da pobreza

tão forte e desesperado,

tão cruel, tão rigoroso,

tão triste, abatido e baixo;

 

      Que a não trazer a morte

tais medos, receios, tantos,

oh! quantos a tomariam

da vil pobreza obrigados!

 

      Que se a buena luz se nota

fué menester que cercara

Dios, la muerte de congojas,

para que no la tomasen

muchos por sus manos proprias.

 

      Que não é tão feia a morte

como a pintam de ordinário

que vai do pintado ao que é

como do vivo ao pintado.

 

      Que esta anatomia de ossos,

de sangue, e de carne falto,

esse cadáver horrível,

esse esqueleto mirrado.

 

      Essa medonha caveira,

qu’horror causa, e causa espanto,

não é retrato da morte,

se não de una morte retrato.

 

      Que a morte somente é feia,

quando é morte em pecado;

mas é mui bela, e formosa

a morte de um justo, e santo.

 

      É a morte um leve sono,

um aprazível letargo,

doce suspensão das penas,

suave fim dos trabalhos.

 

      É a morte um livro certo,

em que se tem desenganos,

um mui fiel amigo,

que a ninguém traz enganado.

 

      É a morte um Cirurgião

tão destro, perito e sábio,

que só com sua lembrança

corta os herpes do pecado.

 

      Porque quem dela se lembra

e do Juízo é lembrado,

do Inferno e Paraíso,

que não pecará, é claro.

 

      Mas há mortes desastradas,

por ruínas, por naufrágios,

por grandes apoplexias,

e por acidentes vários.

 

      E por isso importa andar

na consciência ajustado,

e ter a conta bem feita

para a dar boa no cabo.

 

      Porque a morte não avisa

quando há-de vir pelo prazo

todos sabem que há-de vir,

mas ninguém como nem quando.

 

      Porque ela para o cobrar

com planta igual e igual passo,

entra nas casas humildes

e nos soberbos Palácios.

 

      Daqui leva coroa e ceptro,

dali, monteira e cajado,

que da sua aguda foice

não escapa alto nem baixo.

 

      Porque para ela não há

nenhum lugar reservado,

porque em todo o mundo tem

poder, jurisdição e mando.

 

      Que ni al rey mas sobido

por que su tributo cobre,

ni al péon abatido

le dexó por escondido

ni le perdonó por pobre.

 

      Feliz quem, como o Cisne

da vida chega ao cabo,

porque o branco cisne acaba

da vida o curso cantando.

 

      E feliz mais mil vezes

a quem ela achou deitado

em sua casa contricto,

e chorando seus pecados.

 

      Mas também a morte tarda

ao triste que a está chamando,

sendo às suas queixas surda,

sem acudir a seus brados.

 

      Porque nunca para os tristes,

com ter asas, vem voando,

para uns apressa o Relógio,

p’ra outros o tem parado.

 

      Porque foge a quem a busca,

dá a quem lhe foge, assaltos;

deixa a quem de nada serve,

leva a quem é necessário.

 

      Leva um rico, deixa um pobre,

deixa um néscio, leva um sábio,

do mundo o ornato tira,

deixa do mundo o embaraço.

 

      Corta hũa encarnada rosa,

arranca um purpúreo cravo,

pisa hũa branca açucena,

marchita um jasmim nevado.

 

      Deixa um funeste cipreste,

e deixa um pinheiro bravo,

não corta a negra azinheira,

nem o inútil carrasco.

 

      Rosa bela é uma dama,

Cravo um mancebo bizarro,

Hũa menina a açucena,

um menino, um jasmim branco.

 

      Funesto cipreste, um velho,

pinheiro, um soberbo inchado,

azinheira, a triste velha;

carrasco inútil, o avaro.

 

      E pois o que seja a morte

tenho dito dilatado,

o que seja agora a vida,

brevemente dizer trato.

 

      A vida é perpétua guerra,

um contínuo sobressalto,

hũa inquieta fadiga,

e um mar sempre alterado.

 

      Também é vida um livro,

mas mui mentiroso, e falso;

e um amigo lisonjeiro,

que a todos traz enganados.

 

      E também é cirurgião,

mas tão pouco experimentado,

que anda curando por fora,

por dentro os herpes deixando.

 

      Mas não sei que tem a vida,

que todos a desejamos;

e para prova disso, quero

uma fábula contar-vos.

 

      Com um feixe de lenha, vinha

Carregado um velho fraco,

Que com trabalho, e canseira

Cortado tinha no mato.

 

      Ele fraco, o peso grande

Deu logo em terra co’facho,

Chamando a morte, viesse

Dar fim a seus anos largos.

 

      A morte veio correndo,

e ao velho perguntando:

que me queres, que aqui estou

muito pronta a teu mandado?

 

      O velho vendo-a, lhe disse,

medroso e sobressaltado:

o que quero é que me ajudes

levar de lenha este cargo.

 

      Pois se todos querem vida

desde o mais alto ao mais baixo,

desde o mais rico ao mais pobre,

desde o valente ao mais fraco.

 

      Deus vo-la dê mui feliz

por anos mui dilatados

com tantos bens como sempre

vos deseja este criado.

 

      Para que sejais dos pobres

remédio, socorro, amparo

para que sejais dos tristes

consolo, alívio, descanso.

 

      Que agora venho, senhor,

meus males comunicar-vos

porque dizem que são menos             

os males comunicados.

 

      Inda que seria melhor,

mudo, ao silêncio deixá-los

que mais que a língua dizendo,

diz o silêncio calando.

 

      Mas foram de qualidade

os que passei, e inda passo,

q’ até no mesmo silêncio

não cabem trabalhos tantos.

 

      E assim acho que me vem

este mote apropriado,

que não vi outro melhor,

nem de conceito mais alto.

 

      Solo el silencio, testigo

puede ser de mi tormento,

y aun no cabe lo que siento

en todo lo que no digo.

 

      Se um dia só de tormento

parece anos mui largos,

quantos me pareceriam

manos dois dias, dez anos?

 

      Que tantos, senhor, obtive

antes de morto, e enterrado:

se bem morto para o gosto

vivo para o estar penando.

 

      Que tantos, senhor, estive

sem ver a Lua nem Sol claro;

porque até o Sol e Lua

a um triste negam seus raios.

 

      Que tantos, senhor, estive

em um cárcere fechado,

porém de ninguém me queixo

senão só de meus pecados.

 

      Porque eles foram a causa

de todos os meus trabalhos

mas para o que eu merecia,

‘inda o castigo foi brando.

 

      Também de nascer me queixo

que um Autor bem estremado

ao nascer chama delito

nesta décima, bem claro.

 

      Apurar, cielos, pretendo

ya que me tratais ansi,

que delito cometi

contra vosotros, naciendo:

mas se naçi ya entendo

que delicto he cometido;

bastante causa há tenido

vuestra justicia y rigor

pues el delicto mayor                       

del hombre, es aver nacido.

 

      Quando os filhos lhe nasciam,

choravam os antigos sábios,

porque quando um homem nasce

nasce sujeito a trabalhos.

 

      Porém quando lhe morriam

ficavam mais consolados,

porque é a morte dos males

termo, fim, morte e descanso.

 

      Como o sol houvera ser

logo em nascendo, um coitado

porque o sol no mesmo dia

tem oriente e tem ocaso.

 

      E sina houvera de ser

que de sua vida o prazo

no dia que tem princípio

nesse dia tem o cabo.

 

      Que o melhor berço que pode

dar a um filho um desdichado

é o túmulo e a faixa,

da mortalha o pobre pano.

 

      Primeiro do que eu o disse

Lá Lope de Veja carpiu

na sua Arcádia famosa

em estas coplas abaixo.

 

      Naci Pastor, aun que noble

donde pluguiera a los hados

que de mortaja servieron

aquellos primeiros paños

 

      Que al que nace para ser

en estremo desdichado,

que nacer, como el morir?

que mejor cuna, que un marmol?

 

      Passar um homem infortúnios,

ruinas, perdas, naufrágios,

por acaso ou por desastre

no mundo é ordinário.

 

      Mas não há maior desgraça

 nem mais lastimoso caso

do que um triste nascer

por herança desgraçado.

 

      Que um Morgado de misérias

é um mui triste Morgado,

E inda mal, inda negro,

que por seu mal vem a tantos!

 

      Como estou de posse dele,

de dor e de pena estalo,

e o coração se me faz

dentro no peito pedaços.     

                      

      Assim peço a Deus me dê

paciência em mal tamanho,

como a paciência de Job,

já que sou o seu retrato.

 

      Porque se Job no monturo

Leproso esteve e chagado,

eu no monturo estou posto

cercado de males vários.

 

      Aleijado estou de dores,

de estalicídio afogado,

abrasando sempre em febre,

da vista dos olhos falso.

 

      Porque hũa catarata

no olho direito trago

que já totalmente dele

a vista me tem tirado.

 

      E sobretudo já velho

que diz um texto estremado

que senectus morbus est

e mal sem remédio os anos.

 

      É a velhice um edifício

que se vai arruinando

e em lhe faltando os pontões

qualquer vento o deita abaixo.

 

      E os pontões bons da velhice

são mimos e são regalos;

mas que regalos e mimos

ter pode um preso coitado?

 

      Mais que estar continuamente

suas penas lamentando

chorando os presentes males

e os futuros receando.

 

      E se Job ficou sem filhos

eu em os meus não vos falo

porque casos tão lastimosos

não são para relatados.

 

      Se Job perdeu os seus bens,

eu destes meus limitados

em um instante fiquei

destruído e assolado.

 

      Considerando uma tarde

no meu triste e mau estado,

cheio de todos os males

e de todos os bens falto.

 

      Fiz a hũa ameixieira

este soneto chorando

porque era da minha vista

objecto quotidiano.

 

 

SONETO    

                                                       

Onze vezes de folhas revestida,
Onze vezes de flores adornada,
Onze vezes de fruto carregada
Te vi, ameixieira, aqui nascida.

Outras tantas também te vi despida,
De folhas, flores, frutos despojada,
Pelo rigor do Inverno saqueada,
E a seco tronco toda reduzida.

Também a mim me vi já revestido
De folhas, flores, frutos adornado,
De amigos e parentes assistido

De tudo já estou tão despojado.

mas tu virás a ter o que hás perdido

e eu não terei jamais o antigo estado.

 

 

      E a um loureiro que foi

vizinho meu oito anos,

e que deixou de o ser

por ser p’lo pé cortado.

 

      À sua fatal ruina

e ao seu grande fracasso

estas décimas lhe fiz

por não parecer ingrato.

 

DÉCIMAS

 

      Quando altivo e levantado

(verde loureiro) te viste

Logo por terra caíste

aos golpes de um machado:

já estás por terra prostrado,

perdida a pompa e verdor,

que neste mundo traidor,

tudo vem a fenecer,

ao do tempo ao poder

ou da fortuna ao rigor.

 

      Resististe altivo e forte

de Jupiter sempre ao raio

mas foi teu mortal desmaio

da fortuna um duro corte,

Que ao tempo, fortuna e morte

tudo vem pagar tributos,

homens, aves, plantas, brutos;

porque em sua cruel guerra

derribam, prostram por terra

flores, folhas, troncos, frutos.

 

     E tornando a ir seguindo                  

o fio dos meus trabalhos

neste que agora vos digo,

cuido que a Job avantajo:

 

      Que ele não esteve preso,

e eu estive tempo tanto,

ele com paz e sossego,

eu com guerra, e sobressalto.

 

      Ele não pediu esmola

eu hoje ando mendigando

e a uma de duas cousas

está quem pede arriscado:

 

      Se pede, e nada lhe dão

fica muito envergonhado;

e se lhe dão, fica feito,

p’la obrigação escravo.

 

      Que, de dívida, obrigação,

é tão grande em um honrado,

que é para ele ferrete

que nunca tem fim, nem cabo.

 

      Que o homem honrado, sempre

das mercês está lembrado;

porém, quem é vilão, delas

nem se lembra, nem faz caso.

 

      Honrado, e agradecido,

concordam no mesmo caso;

e em caso também concordam

vilão ruim, com ingrato.

 

      São as mercês umas flores

por dois modos encontradas

num vilão ruim, papoulas

e perpétuas num honrado.

 

      Fazer a honrados bem

é um generoso acto,

mas a um vilão ruim,

pecado mortal oitavo.

 

      Porém o fazer bem a todos

sempre foi muito louvado,

que o Sol com todos reparte

suas Luzes e seus raios.

 

      Nasce o Sol claro, e sereno,

ao mundo alumiando,

Luz ao alto monte dando,

e luz ao vale pequeno,

não falta no campo ameno

o fresco orvalho do céu

a quanto nele nasceu;                                    

porque, por diversos modos,

amanheceu para todos,

quando Deus amanheceu.

 

      Se é chorar e mais cantar

do mal, alívio e descanso:

nem descanso, nem alívio,

achei chorando ou cantando.

 

      Que há males de qualidade,

de qualidade trabalhos,

que o chorar os faz maiores

e o cantar os faz dobrados.

 

      Que seja o chorar alívio,

o cantar remédio brando,

noutra petição que fiz,

o disse já neste caso.

 

      E nas Décimas, de que

agora menção vos faço

qu’ainda que sejam já ditas

aqui a propósito as acho.

 

      Se um aflito coração

das penas quiser sarar,

vá-se dos olhos sangrar

porque as suas veias são:

o chorar de uma aflição

é alívio e desafogo,

que acudir com água ao fogo

o remédio vem a ser;

assim, quem penas tiver,

dos olhos se sangre logo.

 

      Porém, quem aflito canta

melhor seus males diverte

porque quem chora converte

sua pena em outra tanta:

quem canta os males espanta,

 e quem chora os multiplica.

Logo desculpado fica

todo aquele que penar

se o remédio de cantar

aos males que tem, aplica.

 

      Com cantar o caminhante

seu caminho vai passando;

as penas de Amor cantando

alivia o triste amante:

no mar canta o navegante,

canta no campo o Pastor,

Canta o Cativo e o Senhor                        

e ao som do seu grilhão

canta o preso, e da prisão

cantando abranda o rigor.

 

      E nas quintilhas que fiz

das acções de David Santo

também nestas três o digo

e cuido qu’ando acertado.

 

      Que estes versos e outros muitos,

que em minha memória trago

fazia, por ir do tempo

as tristes horas passando.

 

      Mas para cantar agora,

de chorar deixo este dia,

penas suspendo esta hora,

pois as aumenta quem chora

e quem canta as alivia.

 

      E na melhor opinião

de uma pena e um mal fero

alívio as lágrimas são;

porém, deixo-as porque não

ter na vida alívio espero.

 

      Que no mal que estou passando,

e nas penas que padeço,

quer chorando, e não chorando,

quer cantando e não cantando,

sempre de alívio careço.

 

      Também dizem que é alívio

companheiros nos trabalhos;

mas porém nesta opinião

sou de parecer contrário.

 

      Que nas quintilhas que digo

em duas o digo claro,

e nesta opinião cuido

que não sou de razão falto.

 

      Bem sei que nesta aflição

não me faltarão parceiros

mas de alívio não me são,

que não é consolação,

ter nos males companheiros.

 

      Que o mal que outro padece

não alivia o meu mal,

que cada um lhe parece

que a sua pena carece

de outra que lhe seja igual.

 

      Dizem que havia hũa feira

em a qual os desgraçados

trocavam uns com os outros

seus desgostos e trabalhos.         

                

      Porém ninguém os trocou

que não se achasse enganado

pois deixando os seus por graves,

levava outros mais pesados.

 

      Mas eu, se a tal feira fora

como ficara aliviado,

se com os maiores dela

trocara os grandes que passo!

 

      E assim nunca serei

como aquele pobre sábio,

que vendo a outro mais pobre

ficou muito consolado.

 

      Cuentan de un sabio, q’un dia

tan pobre y misero estava,

que solo se sostentava

de una planta que cogia.

avrá otro, ( entre si dizia)

mas pobre, y misero que yó?

quando los ojos bolvió

alló la respuesta viendo

que iba otro sabio cogiendo

las hojas que el arrojó.

 

      Agora, venho, senhor,

não me atrevo a falar claro

ao que venho vos direi

por metáforas falando.

 

      Hoje chega a vosso porto

um navio destroçado,

pelo fado perseguido,

e perdido em um naufrágio.

 

      Hoje busca o vosso auxílio

um Pastor, a quem o raio

da fortuna lhe deixou

tudo o que tinha, arrasado.

 

      Hoje, busca o vosso abrigo

um passageiro roubado

pel’o tempo, que à surdina

a tudo anda roubando.

 

      Finalmente a vossa casa

chega hoje um triste coitado

constrangido da pobreza

a buscar socorro e amparo.

 

      Porque num instante breve

em um limitado prazo

me deixaram, a fortuna,

o tempo, a pobreza, e fado.

 

      O roubado passageiro,

o navio destroçado,                                    

e o abrasado Pastor,

no caminho, mar e campo.

 

      Que campo de guerra é,

um mar proceloso e bravo,

um arriscado caminho,

o mundo enganado e tirano.

 

      Inda que em fado falei,

inda que em fortuna falo,

crer que há fado e fortuna

é um erro muito crasso.

 

      Que de Deus é Providência

o que nos parece acaso;

mas os seus altos juízos

ninguém pode investigá-los,

 

      Que as bonanças e doenças,

os bens, as perdas, e danos

tudo é de Deus providência.

e não  fortuna, nem fado.

 

      Que Deus os trabalhos dá

como recto, justo e sábio

ao mau para que se emende

e ao bom para experimentá-lo.

 

      Porque um mau quando padece

perdas, danos e trabalhos,

então é que a Deus chama

então de Deus é lembrado.

 

      Porém, um bom quando os tem

sempre a Deus está louvando,

e como lhe vem de Deus

os tem por mimo, e regalo.

 

      E deixando já rodeios,

e metáforas deixando,

que esmola venho pedir-vos

e agora vos digo claro.

 

      E como de esmolas hoje

vivo, me sustento, e valho,

louvar a esmola quero

que não quero ser ingrato.

 

      Assim que será razão

dar-lhe louvores e gabos,

inda que todos para ela

virão a ser limitados.

     

      Porque tem tão grande força,

tanto poder, valor tanto

que até o mesmo Deus

parece deixa obrigado.

 

      Porque quem dá ao pobre

vem a ter lucro tamanho

que por um que ao pobre dá

cobra cento de contado.

 

      Estes, Deus lhe dá na terra

com bens mui multiplicados

e depois lhe dá no Céu

bens eternos soberanos.

 

      Uma onzena é muito grande

sem nela intervir pecado,

o lucrar cento por um

quem ao pobre o dá a ganho.

 

      Da esmola tem um proveito

na terra o pobre coitado:

quem lha dá tem dois proveitos

mui ricos, e belos ambos.

 

      Tem um proveito na terra

com bens felizes, e largos

outro proveito no Céu

que nunca tem fim, nem cabo.

 

      A esmola é hũa letra

muito segura de câmbio,

a qual Deus à vista paga

sem lhe pôr nenhuns embargos.

 

      Que esta letra aceita Deus

e a paga de contado

pl’o rédito do pobre

com ser pagador tão fraco.

 

      E quem para o pobre abre

a mão, bem aventurado

chama o Santo Rei David

em um de seus Santos Salmos.

 

      Porém quem dela a desabre

digo será condenado,

que o rico avarento o foi

por não dar esmola a Lázaro.

 

      Porque só das boas obras

vai da vida acompanhado

quem nela as faz, que o mais

é tudo nela emprestado.

 

      E das obras todas boas

é certo, patente e claro

à esmola o lugar primeiro

com razão sempre foi dado.

 

      Porque o jejum quebranta a carne

se do coração obrando

rompe o Céu; o dar esmola

inda tem valor mais alto.

 

      Que, como a água apaga o fogo

apaga a esmola o pecado,

e quem sem pecado fica,

fica capaz de ser salvo.

 

      É a esmola hũa fazenda                     

na qual sempre é certo o ganho

porque é fazenda de Lei

sem avarias nem danos.

 

      É a esmola Águia Real

de voo tão remontado,

que num instante da terra

ao céu chega voando.

 

      É a esmola uma luz viva

de lume tão limpo e claro

que diante de Deus arde

sem nunca ter fim, nem cabo.

 

      Quem leva esta luz diante

vai seguro navegando,

e quem sem ela caminha

vai a perder-se arriscado.

 

      Porque no mar deste mundo

há mui perigosos baixos,

e na estrada desta vida

há passos mui arriscados.

 

      Quem levar das boas obras

diante o farol preclaro

chegará com mar bonança

seguro ao porto salvo.

 

      Mas quem caminhar sem ele

em um caminho intrincado,

ou nele se perderá,

ou cairá num barranco.

 

      Enfim, a esmola é

lucro, onzena, letra, câmbio,

é proveito, obrigação,

águia, luz, fazenda, ganho.

 

      O querer contar seus frutos,

que será mais fácil acho

do mar contar as areias,

dos céus os brilhantes astros.

 

      Contar-vos dela pudera

exemplos agora raros

pois nunca a pobre nenhum

deixastes desconsolado.

 

      Nem para vós tais exemplos,

bem sei, não são necessários,

que às petições da pobreza

sempre dais mui bom despacho.

 

      Se o romance, meu senhor,

vos parecer dilatado,

a mim me parece breve,

inda vou continuando.

 

      Que enquanto falo convosco

de meus males desabafo,

porque é alívio de um triste

o falar com um avisado.

 

      Como é falar com um néscio

pena, e tormento dobrado,

que um néscio sempre dá pena,

sempre um discreto regalo.

 

      Do romance desculpai

tantas faltas, e erros tantos,

que bem sei que leva muitos

em seus versos mal limados.

 

      De todos seja desculpa

ser no coração formado

sem pena, com muita pena,

sem tinta, tinta chorando.

 

      Porque as lágrimas são tinta

que por dois ocultos canos

e os olhos vão subindo

de um coração magoado.

 

      No coração tinta negra,

nos olhos um humor branco,

que para alívio de um triste

dele se vai lambicando.

 

      Que num triste sempre se acha

em um tempo dois contrários:

a fortuna sempre em negro,

e a sorte sempre em branco.

 

      Foi o coração papel,

de penas somente alvo:

pl’os trabalhos, batido,

pl’os desgostos cortado.

 

      Selado pela fortuna

passento, pl’o que passo;

custaneiro porque as custas

em dobro tenho bem pago.

 

      Do papel do coração

fiz na memória um traslado:

e dela neste papel,

em que agora vo-lo trago.

 

      Este Romance, senhor,

não é para ser mostrado

e assim, tanto que o lerdes,

o fazei logo em pedaços.

 

      Porque duas coisas tem

para ser logo rasgado:

é hũa ser tão mal feito

e outra é falar tão claro.

 

      Que inda que seja verdade

o falá-la custa caro:

e fazer bem, e chitom

sempre foi muito louvado.

 

      E a Deus, senhor, que vos guarde

anos felizes, e largos

cativo e criado vosso

António Serrão de Crasto.

 

      E quando, por velho e cego,

não servir para criado,

serei vosso merceeiro,

por vós sempre a Deus rogando.

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

Heitor Gomes Teixeira, As tábuas do painel de um auto:António Serrão de Crasto, Lisboa, Universidade Nova, 1977 (Tese de Licenciatura, de 1972)

 

António Serrão de Crasto, Os ratos da inquisição,  seguido de A Francisco Mezas, prefácio biográfico de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Frenesi, 2004.