5-5-2012

 

 

 

Como a cristã nova Isabel Henriques, que se tinha  apresentado na Inquisição e fora “reconciliada” em 1667, presa em 1703, denunciada depois pela filha e pela enteada, foi morta no auto da fé de 12 de Setembro de 1706

 

 

 

Isabel Henriques nasceu na Covilhã em 1644 e, por volta dos 21 anos, casou em Lisboa com o médico Simão Lopes Samuda, viúvo de Leonor da Silva, de quem tinha uma filha, Violante Nunes Rosa, ainda criança de colo à morte da mãe. Isabel teve oito filhos; a genealogia dela apareceu já na página dedicada a Maria de Melo Rosa, filha da Violante.

Esteve na Inquisição duas vezes:

- em 5 de Novembro de 1667  (Pr. n.º 1830) apresentou-se voluntariamente nos Estaus a confessar culpas de Judaísmo e antes do final desse ano, estava despachada.  Estranhamente, aparece no mesmo processo a fazer mais confissões a 11 de Agosto de 1670, sendo de novo absolvida.

- em 4 de Setembro de 1703 (Pr. n.º 1830-1), quando já tinha 59 anos (e não 53, como ela referiu na genealogia) é-lhe passado mandado de prisão e veio a morrer no auto de fé de 12 de Setembro de 1706, como convicta negativa, pertinaz e relapsa.

Os processos de Isabel Henriques permitem fazer algumas reflexões sobre a apresentação. Esta está prevista no Título II do Livro II do Regimento de 1640. O Réu apresenta-se voluntariamente para confessar as culpas que diz ter de heresia, por abandonar a crença na religião católica, sendo cristão baptizado.

Na apresentação, o Réu está em posição bastante mais favorável do que quando é acusado pela máquina inquisitorial. Embora o desenrolar da peça teatral seja praticamente o mesmo, ele pode mais facilmente escolher o guião, porque a iniciativa está do seu lado. Podia até ter tido informação ou mesmo combinado com aqueles que tinham ido acusá-lo e pode até informar previamente as pessoas que vai acusar. Pode contar com a benevolência do tribunal, porque é o próprio Regimento que a impõe nos casos de apresentação. E, no final, o Réu fica com a esperança de que, estando “reconciliado”, os Inquisidores o deixem em paz, de preferência, para sempre.

Como é evidente, os Inquisidores não deveriam gostar muito das apresentações, pois estava fora de questão o confisco de bens e por isso nada rendiam. Também o poder de humilhar era bastante menor, porque a iniciativa estava do outro lado.

Por isso, a certa altura, no início do Sec. XVIII, começaram a ser instigadas as confissões que implicavam os “reconciliados” e estes a ser presos para ser sujeitos a novo processo. Bastava insistir nas prisões no interior da mesma família.

Foi o que aconteceu no caso de Isabel Henriques, como veremos. Ela era analfabeta e certamente desconhecedora da maldade que reinava na Inquisição de Lisboa. Pensaria estar a coberto de qualquer ataque daqueles lados, após o primeiro processo. Evitaria certamente falar em religião fosse com quem fosse, e faria todas as práticas católicas que eram controladas: missa dominical, confissão e comunhão anuais. Por isso, no segundo processo, teve a ilusão de que se conseguiria defender, o que era praticamente impossível. Em casa não faria quaisquer cerimónias judias, até porque tinha criadas que a poderiam acusar à Inquisição. Comeriam normalmente carne de porco, de coelho e peixe de pele, sem problemas, ao contrário do que os inquisidores obrigavam os Réus a dizer.  Guardava os sábados de trabalho? Talvez, mas certamente nem nos outros dias da semana teria mais tarefas a fazer do que no sábado. Pertencia ao grupo de famílias da classe média a que não faltavam escravos e serviçais para fazer os trabalhos de casa.

Mais uma vez se prova que a Inquisição era uma instituição absurda por querer o impossível (conhecer a crença das pessoas) e perversa, pois queria era espoliar, humilhar, ferir (no tormento) e até matar.

 

A APRESENTAÇÃO EM 1667

 

O processo da apresentação de Isabel Henriques na Inquisição (Pr. n.º 1830) é bastante estranho porque não tem… apresentação (a menos que tenha sido retirada do processo.) Apenas uma anotação a fls. 5: “Apresentada em 5 de Novembro de 1667”. Segue-se de imediato a transcrição das culpas em outros processos, na sua maior parte, denunciadas também por apresentados:

Fls. 6 – Pedro Lopes Henriques (Pr. n.º 9075), irmão dela, solt. nat. Covilhã, mor. em Lisboa, apresentado  - Depoimento de 5-11-1667.

Fls. 9 – Catarina Henriques, mãe ( não aparece o processo da apresentação), nat. da Covilhã, res. em Lisboa - Dep. de 7-11-1667

Fls. 10 v. – Catarina Henriques, sobrinha, filha de João Álvares de Castro, nat. de Beja e residente em Lisboa  (não aparece o processo; há outro com o n.º 6755, mas é de 1704).- Dep. de 8-11-1667

Fls. 12 – Gaspar Lopes Henriques, irmão (Pr. n.º 5379 e 5379-1) - Dep. de 8-11-1667

Fls. 14 v. - Pedro Lopes Henriques (Pr. n.º 9075 ), irmão dela - Dep. de 18-11-1667

Fls. 15 v. – Catarina Henriques, mãe (não aparece o processo da apresentação) - Dep. de 18-11-1667

Fls. 17 – Diogo Henriques, irmão, (Pr. n.º 2073) - Dep. de 21-11-1667

Fls. 20 -  André Rodrigues Lopes (Não aparece o processo de Évora) - Dep. de 12-11-1667

Fls. 21 – Duarte Lopes, filho de João Álvares (Pr. n.º 6198, de Évora) - Dep. de 14-11-1667

Fls 22 – Leonor dos Reis (Pr. n.º 3072 de Évora), casada com André Rodrigues Lopes, assentista - Dep. de 22-11-1667

Fls. 23 v. – Inês de Castro (não aparece o processo), casada com Henrique Vaz - Dep. de 26-11-1667

Fls. 24 v. – Simão Lopes Samuda, (não aparece o processo da apresentação) médico, seu marido - Dep. de 10-12-1667

Fls. 25 v. - Henrique Vaz (pr. n.º 8311-A, de Évora) - Dep. de 14-12-1667

 

Entretanto, a apresentação é relatada a fls. 28 no documento que tem por título “Termo de Curador”, datado de 8 de Novembro de 1667. Diz aí que Isabel Henriques se apresentara no dia 5, mas como não houvera possibilidade de a ouvir nesse dia, fora adiado para o dia 8. Como é menor de 25 anos, nomeiam-lhe como Curador, Francisco Dias Carvalho, solicitador da Inquisição.

Na mesma data, inicia as suas confissões  (fls. 29) denunciando

- seu falecido pai, João Esteves Henriques

- sua mãe, Catarina Henriques

- Pedro Lopes Henriques e Diogo Henriques, seus irmãos

- Gaspar Lopes Henriques, seu irmão

- Catarina Henriques, sua sobrinha filha de sua irmã Branca Lopes Henriques e de seu cunhado, João Álvares de Castro, já falecido

- Branca Lopes Henriques, sua irmã

- Henrique Vaz, casado em primeiras núpcias com Custódia Henriques, sua irmã, já falecida e em segundas com Inês de Castro;

- Duarte Lopes e André Rodrigues Lopes, filhos do primeiro casamento de João Álvares de Castro

- Inês de Castro, casada com Henrique Vaz.

- D. Leonor, casada com André Rodrigues Lopes, seu sobrinho antes referido

- Manuel da Costa (Pr. n.º 6599, de Évora)  e seu irmão Brás da Costa (Pr. n.º 615, de Évora),  de Beja, filhos de Tomás Rodrigues e de Maria do Rosário; o segundo já se encontrava preso, mas não o primeiro.

Nas denúncias repetem-se as mesmas fórmulas que aparecem na primeira denúncia-confissão respeitante a seu pai: 

Disse que haverá dez anos pouco mais ou menos, na vila de Covilhã, em sua casa (…) disse o dito seu Pai dela confitente que, para salvação de sua Alma, não havia de crer em Cristo Senhor nosso, nem em sua santa Lei, porque não era boa nem verdadeira, e que somente havia de crer na Lei de Moisés por ser a boa e sempre se havia de salvar, e que para isso havia de crer somente em o Deus dos Altos Céus, e encomendar-se dele rezando a oração do Padre Nosso, e que havia de guardar os sábados de trabalho e fazer o jejum do Dia Grande a dez da lua do mês de Setembro, estando em todo o dia sem comer, nem beber senão à noite, em que havia de comer coisas que não fossem de carne e deixar de comer a de porco, lebre, coelho e peixe de pele, porque ele assim o fazia, por guarda da mesma Lei de Moisés em que vivia, e pela qual esperava salvar sua Alma. E, persuadida ela confitente do dito ensino, parecendo-lhe que, por ser feito por seu pai, era o que lhe convinha para salvação de sua alma, se apartou ali da nossa Santa Fé Católica, em que até então vivia, de que tinha suficiente notícia e instrução, e se confessava e comungava, e tomou a crença da Lei de Moisés, declarando ali ao dito seu pai, que nela ficava crendo para salvação de sua alma, e que por sua guarda faria as ditas cerimónias, que lhe ensinava, como em efeito fazia, quando podia. E então ali não passou mais, mas depois se ficou tratando com o dito seu pai, como crentes, e observantes da dita Lei de Moisés, cuja crença durou nela confitente até que Deus Nosso Senhor foi servido de a alumiar em seu coração para a largar e vir confessar suas culpas nesta Mesa e de as haver cometido está muito arrependida, pede perdão e que com ela se use de misericórdia:”

Constata-se também que os denunciados são, com muito poucas excepções, os mesmos que os denunciantes. O esquema estava bem estudado e a iniciativa estava do lado dos penitentes, para conseguir o resultado esperado.

A 11 de Novembro, foi sessão de Genealogia (fls. 35), onde, depois de enumerar os membros da família, disse ser analfabeta e recitou as orações do catecismo.

 

GENEALOGIA, REFERIDA AO INÍCIO DO SEC. XVIII

 

João Esteves Henriques, já falecido antes de 1667, casara com Catarina Henriques, de quem teve:

 

A) Diogo Henriques (1667 – Pr. n.º 2073), de 20 anos em 1667, residente em Lisboa, casou com sua sobrinha Joana de Castro (1669 - Pr. n.º 10084)  

B) Pedro Lopes Henriques (1667 – Pr. n.º 9075),  falecido antes de 1704, residente em Lisboa, casou com sua sobrinha Catarina Henriques (1704 – Pr. n.º 6755 – faleceu no cárcere em 7-10-1706). Tiveram filhas:

                Branca Lopes Henriques (1704 – Pr. n.º 21)

                Isabel de Castro Rosa (1712 – Pr. n.º 665)

C) Alvaro Rodrigues, falecido aos 15 anos

D) Gaspar Lopes Henriques (1667 – Pr. n.º 5379, 1703 – 5379-1), médico,  casou com Jerónima Henriques de Chaves  (1703 - Pr. n.º 8265 e 1706 - 8265-1). Tiveram filhos:

                 Joana Leonor de Chaves (1712 . Pr. n.º 699)

                 Catarina Micaela de Chaves (1705 – Pr. n.º 1705)

                 Diogo de Carvalho Chaves (1733 – Pr. n.º 3533)

                 Jacinta Eugénia de Carvalho (1727 – Pr n.º 9160)

E) Branca Lopes Henriques, casada em Beja com João Álvares de Castro, já falecido em 1667, de quem teve:

                 Catarina Henriques (1704 - Pr. n.º 6755), que depois casou com seu tio Pedro Lopes Henriques. tiveram

                                Branca Lopes (1704-Pr. n.º 21), de 22 anos  

                                Isabel de Castro Rosa (1712 – Pr. n..º 665), de 10 anos

                Joana de Castro (1669 - Pr. n.º 10084), casou com seu tio Diogo Henriques; tiveram um filho, João Álvares que faleceu solteiro.

                Gregório Lopes Henriques (1670 – Pr. n.º 4351, de Évora), que faleceu solteiro

                Clara Henriques  (1683 - Pr. n.º 9876, de Évora), casou com Jorge Lopes Rosa de quem teve:

                                Branca Lopes Henriques (1720-Pr. n.º 1372), casada com Francisco Soares da Silva

                                Duarte Lopes Rosa, médico (1714 - Pr. n.º 1640), casado com D. Branca Henriques de Castro, sua prima

                                João Álvares de Castro

                                Catarina Micaela

                Henrique Vaz de Castro, foi casado com Filipa da Costa de quem teve:

                                Branca Henriques de Castro, casada com Duarte Lopes Rosa, seu primo (1714 – Pr. n.º 1640)

                Duarte Lopes Rosa, casado com Joana da Paz, que vivem em Roma com seus filhos

                João Esteves Henriques, de 4 anos em 1667, que depois casou com Grácia de Mesquita, de quem teve:

                                Branca Lopes Henriques (1705 – Pr. n.º 8339)

                                Luisa de Mesquita (1705 – Pr. n.º 3606)

                                Rafael Esteves de Sá (1712 – Pr. n.º 5464)

                                Catarina Henriques  (1712 - Pr. n.º 6506)

                                Joana Nunes Rosa  (1712 – Pr. n.º 8147)  

F) Custódia Henriques, já falecida, foi casada em Beja com Henrique Vaz de quem não teve filhos

G) Clara Henriques, foi casada na vila de Alvito com João Álvares e não teve filhos.

H) Isabel Henriques [(1667 - Pr. n.º 1830 e 1705 - 1830-1) (queimada em 12-9-1706)], casada com Simão Lopes Samuda, médico,  falecido antes de 1703, de quem tem 8 filhos

                Catarina Henriques(1703 –Pr. n.º  8793),  casada com Álvaro Henriques Ferreira, tendo sido antes casada com  Manuel Mendes Henriques (1704 - Pr. n.º 6784), sem filhos de qualquer dos matrimónios

                Guiomar Maria Henriques(1703 - Pr. n.º 8247), que casou com o médico António de Mesquita (1703 – Pr. n.º 153), de quem teve:

                                Rafael de Sá e Mesquita (1712 - Pr. n.º 11493), de 18 anos,

                                Isabel Henriques (1712 - Pr. n.º 8144), de 17 anos,

                                Luisa Antónia de Mesquita (1712 - Pr. n.º 8159), de 15 anos,

                                Violante Nunes Rosa (1712 - Pr. n.º 11486), de 13 anos

                                Gracia Maria Leonor

                                Joana Maria Henriques

                                Simão Lopes Samuda

                Branca Lopes Henriques(1703 - Pr. n.º 9760), casada com Manuel de Mesas, advogado, residente em Lisboa. Têm filhos:

                                Maria de Mesas

                                Isabel Henriques

                                Simão Lopes Samuda

                João Esteves Henriques de Samuda(1703 - Pr. n.º 8337)

                Manuel Samuda de Leão (1703 - Pr. n.º 7178), médico

                Pedro Lopes Henriques Samuda (1703 - Pr. n.º 2792), clérigo in minoribus, tem uma pensão de um benefício em Coruche

                Clara Henriques (1703 – Pr. n.º 25)

                Custódia Henriques (1703 - Pr. n.º 1390)

                ENTEADA: Violante Nunes Rosa (1703 – Pr. n.º 7733), viúva de Rodrigo de Sequeira, de quem teve 2 filhos:

                                Simão Lopes Samuda, médico (1703 – Pr. n.º 2784)

                                Maria de Melo Rosa (1703 – Pr. n.º 998)

 

Ainda na  mesma data, a 11 de Novembro de 1667, a sessão da Crença (fls. 38) (n.º XI, Tit. VII, Liv. II do Regimento). 

A 18 de Novembro, mais confissões (fls. 40), por ter pedido audiência. Disse que haveria três anos, em Beja, em sua casa, estando com sua mãe, seus irmãos Diogo e Pedro e seu marido, Simão Lopes Samuda, médico, “estando todos cinco ceando, por ocasião de dizerem que não comiam um pouco de cação que veio à mesa, se declararam ela confitente, e o dito seu marido Simão Lopes, Catarina Henriques, Pedro  Lopes e Diogo Henriques, que criam, e viviam na Lei de Moisés para salvação de suas almas e por sua observância guardavam os sábados e evitavam de comer carne de porco, lebre, coelho e peixe de pele e ali não passaram mais, mas depois até ao tempo da apresentação dela confitente, se ficou tratando com o dito seu marido, Mãe e irmãos, como crentes e observantes da dita Lei, fazendo todos juntos as cerimónias dela."

Denuncia a seguir Inácia das Candeias (Pr. n.º 1993, de Évora) casada com João Rodrigues Preto e a irmã desta Maria Valente (Pr. n.º 1375, de Évora), de Beja, chamadas pela alcunha de “chouriceiras”, que ambas estavam já presas no Santo Ofício.

6-12-1667 – fls. 43 – O escrivão faz o processo concluso.

Na mesma data vai a Visto da Mesa (fls. 44). Inquisidores e Deputados dão-se por satisfeitos com as confissões da  apresentada, dizem não haver lugar ao confisco e que seja absolvida da excomunhão.

A fls. 46, a sentença; não foi publicada em auto da fé, mas sim na Mesa da Inquisição em 14 de Dezembro de 1667.

Como não sabia ler, foi o seu Curador que assinou a abjuração em forma não datada, a fls. 48; o mesmo no termo de segredo a fls. 49, datado de 17 de Dezembro.

Na mesma data, o termo de ida (e penitências) a fls. 50. No primeiro ano, deverá confessar-se “nas quatro festas principais, a saber, Natal, Páscoa da Ressurreição e do Espírito Santo, Assunção de Nossa Senhora, comungará de licença do seu confessor; e no mesmo ano, rezará cada semana um terço do Rosário à Virgem Nossa Senhora, e em cada sexta feira, cinco Padre Nossos e cinco Ave Marias a honra das cinco chagas de Cristo; e que se pode ir em paz para onde bem lhe estiver, não sendo fora do Reino, porque dele se não sairá sem licença desta Mesa, o que tudo prometeu cumprir sob cargo do juramento dos Santos Evangelhos em que pôs sua mão”.

A fls. 51, um Fr. Jorge de Castro informa os Inquisidores com data de 16 de Dezembro de 1667, que instruiu na doutrina cristã a Isabel Henriques, que a confessou e que ela comungou.

A fls. 52, a conta de custas: 886 Réis, com indicação de “Pago”.

11 de Agosto de 1670 – a fls. 54 aparece “Mais confissão”. Isabel Henriques ter-se-ia apresentado na Mesa da Inquisição para denunciar outras pessoas. O Inquisidor considera-a ainda menor (mas já tinha 26 anos) e nomeia-lhe como curador o Alcaide dos cárceres secretos, Agostinho Nunes.  Denuncia então

 - sua sobrinha Joana de Castro (Pr. n.º 10084 e 13729), casada com o seu irmão Diogo Henriques;

- Clara Henriques, irmã da anterior (Pr. n.º 9876, de Évora).

- Gregório Lopes, irmão das anteriores  (Pr. n.º 4351, de Évora).

Com toda a evidência, estas confissões destinavam-se a facilitar os processos de apresentação daqueles sobrinhos. Mas a Inquisição repete o visto da Mesa, a Sentença e uma nova conta de custas.

A fls. 60 e 61 um longo requerimento de quatro páginas da cunhada da Ré, Jerónima Henriques de Chaves (Pr. n.º 8265), aparentemente alegando contraditas contra as denúncias que estavam a condenar seu marido, Gaspar Lopes Henriques (Pr. n.º 5379), médico. Essas contraditas não incluem a cunhada Isabel Henriques, irmã de seu marido e assim não se percebe por que é que o documento se encontra aqui. Mas ela não é competente para alegar contraditas e, talvez por isso, o pedido foi arrumado no primeiro sítio que calhou aparecer. O papel não tem data, mas deve referir-se ao período entre Outubro de 1704, quando ela foi liberdade e seu marido continuou preso, e Setembro de 1706, quando ela foi de novo presa (Pr. n.º 8265-1); foram ambos ao auto da fé de 6 de Novembro de 1707.

 

2.º PROCESSO – PRESA EM 4 DE SETEMBRO DE 1703

 

No ano de 1703, a Inquisição investiu contra a família de Isabel Henriques, já então viúva.  Em meados de Março foram presos o genro António de Mesquita, médico e os filhos João Esteves Henriques, Pedro Lopes Henriques  e Manuel Samuda de Leão. Um médico do Seixal, Diogo Nunes (Pr. n.º 2361), preso em 3 de Agosto de 1702, estava a denunciar as centenas de pessoas que conhecia, incluindo os quatro referidos. Destes, o mais “falador” foi António de Mesquita, que iniciou imediatamente as confissões, denunciando também toda a gente a começar pelos que lhe eram mais chegados; bem sabia ele que era o único modo de salvar a pele. Em consequência de tais denúncias, foram presos em 22 e 23 de Agosto, as filhas de Isabel, Clara Henriques, Custódia Henriques e Guiomar Henriques, a enteada Violante Nunes Rosa e os filhos desta Simão Lopes de Samuda e Maria de Melo Rosa. E, no início de Setembro a mãe, Isabel Henriques e a filha Catarina Henriques.

O decreto da prisão foi emitido em 4 de Setembro de 1703 (fls.2);  foi presa e entregue nos Estaus pelo Visconde de Fonte Arcada, familiar da Inquisição (fls. 4).

No início, como é habitual, a transcrição das denúncias feitas noutros processos:

Depoimento de 11-8-1703  – Leonor Chaves, solteira,  de 14 anos, filha de José Nunes Chaves  - (Pr. n.º 2382, fls.68). O escrivão confunde-se e escreve Catherina Henriques em vez de Isabel Henriques. Depoimento feito na sala do tormento. Há uma ratificação ad bonum no dia 12.

Dep. de 25-8-1703 – Jorge Mendes Nobre (Pr. n..º 8279), Advogado, nat. de Trancoso e residente em Lisboa.

Dep. de  27-3-1704 – Maria de Sequeira, casada com Diogo Rodrigues Ramos – Évora – (Pr. n.º 8999, de Évora)

Dep. de  23-8-1704 – Pedro Lopes Henriques de Samuda, seu filho, clérigo in minoribus. Depoimento feito na sala do tormento (Pr. n.º 2792, fls. 171 v.). A 25-8-1704, ratificação ad bonum (fls. 173).

Dep. de  10-7-1705 – João Esteves Henriques, seu filho. Depoimento na sala do tormento (Pr. n.º 8337, fls. 194). Ratificação ad bonum a 11-7-1705 (fls. 196).

Dep. de 5-9-1705 – Guiomar Maria Henriques, sua filha,  casada com António de Mesquita – (Pr. n.º  8247, fls. 114)

Dep. de 5-9-1705 – Violante Nunes Rosa, sua enteada,  - (Pr. n.º 7733 – fls. 118)

 

13-9-1703 (Fls. 21) – Inventário – À pergunta habitual do Inquisidor, responde que não tem culpas que confessar. Às perguntas sobre os seus bens, responde de má vontade e diz sempre não saber o valor que têm os seus bens. Tem uma quinta no Campo Grande que parte com a quinta de Gaspar de Albuquerque.  Descreve diversos móveis, entre os quais quatro caixões grandes da Índia e um mafamede, que não sabe quanto valem. Deve um conto de Réis a Manuel de Leal, ourives de ouro e tem outras dívidas de que não se lembra. A ela não lhe devem coisa alguma.

22-10-170 (fls. 24) -  Genealogia  - Erra a idade, dizendo que tem 53 anos, quando já tem 59. Declara que não sabe por que foi presa. Foi reconciliada na Inquisição há muito tempo, mas não se lembra em que ano. Também foram apresentados seus irmãos Pedro Lopes Henriques, Gaspar Lopes Henriques e Diogo Henriques, este já falecido. Também fora apresentada sua mãe, Catarina Henriques. 

Sessão in genere (fls. 28) – 24-10-1703 –  Como prescreve o Regimento de 1640 (n.º IV, Título VI, Liv. II), a Ré foi interrogada sobre as suas culpas em geral e instigada a confessar. Disse que não tinha culpas que confessar e respondeu negativamente a todas as perguntas do Inquisidor sobre cerimónias judaicas.

Sessão in specie (fls. 32) - 25-1-1704 – Está prevista no n.º VI, Título V, Liv. II, do Regulamento. O Réu ou Ré negativos são interrogados pelos detalhes das denúncias, omitindo porém as circunstâncias que poderão dar a conhecer a identidade do denunciante. Respondeu negativamente a todas as perguntas, “não passou tal”, isto é, não teve tal conversa.

Admoestação antes do libelo (fls. 34) -  8-2-1704

Libelo (fls. 35) – Ao contrário do que é costume, os Inquisidores não anotaram no processo,  ao lado, o nome das testemunhas que denunciaram a Ré. Foi-lhe lido o libelo e, respondendo ao Inquisidor, diz que se quer defender e quer estar com procurador. Dizem-lhe que lhe será atribuído como defensor, um dos quatro procuradores de que a Inquisição dispõe.

12-2-1704 (fls. 38) – Juramento do  Licenciado Manuel Alves da Costa, como Procurador.  Na mesma data a Ré fala com ele.

Treslado do Libelo (fls. 40) – No final, a fls. 41 v., o Procurador escreve algumas linhas de defesa, declarando em nome da Ré, que desde a sua reconciliação em 1667, ela sempre foi católica praticante, cumpridora e frequentando os sacramentos. Indicou como testemunhas de defesa, três seus antigos criados, o Padre Cura de São Nicolau, um Religioso de Xabregas que ali confessa, um cirurgião do Lagar do Sebo, residência da Ré, e Manuel Tomé Marques, contratador, residente no mesmo sítio.

A defesa é aceite por despacho de 12 de Fevereiro (fls. 42 v.) e são mandadas ouvir as testemunhas.

Defesa (fls. 43) – 9-3-1704 (o texto diz 1705, supõe-se que por engano) – António Rodrigues, cirurgião, diz que tem a Ré na conta de boa cristã, e que só fazia obras de cristã. Joana da Fonseca, viúva, criada da Ré, fez idêntico depoimento.  Maria Henriques, filha da anterior e também criada da Ré, fez também idêntico depoimento. Não foram ouvidas mais testemunhas de defesa. Sem que o processo indique o motivo, não foi interrogada a criada, Maria Henriques Lopes, o Padre Cura de São Nicolau, o Religioso de Xabregas nem Manuel Tomé Marques.

Em 23 de Fevereiro de 1704, foi a Ré citada para formar interrogatórios a fazer aos denunciantes. Só veio a reunir com o seu procurador para isso a 18 de Março (fls. 48). O procurador pede para as testemunhas serem reperguntadas de detalhes sobre os seus depoimentos.  Os Inquisidores autorizam as perguntas (fls.50) e mandam uma comissão (deprecada) a Évora para ser reperguntada Maria de Sequeira.

A 17-3-1704, são reperguntados Leonor de Chaves e Jorge Mendes Nobre, advogado e ambos confirmam os seus depoimentos iniciais.

A 7 de Junho de 1704 (fls. 57) a Ré é citada da existência de mais prova. Trata-se do depoimento de Maria de Sequeira. Segue-se a comissão para a Inquisição de Évora em que a testemunha confirma o depoimento inicial.

A 11 de Dezembro de 1704 (fls. 65) novo termo de citação de mais prova; estância com o Procurador no dia seguinte. O Procurador oferece os mesmos interrogatórios.  A testemunha é o filho da Ré, Pedro Lopes Henriques de Samuda. Ouvido a 24 de Dezembro, confirma o seu depoimento.

11-3-1705 (fls. 69) – O Promotor requer a publicação da prova da justiça; segue-se a admoestação antes da publicação, tudo nos termos do n.º I, Titulo VIII, do Liv. II do Regimento de 1640.

A Ré é notificada de quatro testemunhos, todos sem identificação do denunciante, nem do lugar, nem do tempo em que ocorreram os factos. Interrogada, a Ré diz que é tudo falso, que tem contraditas com que vir e que quer estar com o seu Procurador, o que acontece a 13 de Março de 1705.

De fls. 74 a 76, encontra-se uma longa lista de inimigos da Ré, objecto das contraditas. Depois, a fls. 77 e 78, um documento enumerando mais inimigos da Ré, datado pela Inquisição de 12 de Dezembro de 1702, apresentado em nome da Ré e de todos os seus filhos, enteada e netos, entregue, segundo nota no canto superior esquerdo, por Luis Alves da Rocha.

A 31 de Março de 1705 (fls. 79), a Ré nomeia as testemunhas para as contraditas. A fls. 81, o despacho pelo qual se recebem apenas as contraditas que respeitam às testemunhas do processo (que a Ré não conhece), nos termos do n.º IV, Título X, Liv. II do Regimento.

Isabel Henriques saberia já nesta altura, ou pelo menos desconfiava que seus filhos e genro a teriam denunciado e acusa-os também de serem seus inimigos. Como veremos, seria muito difícil que a Inquisição aceitasse tal tese. Mesmo que ela tivesse razões de queixa dos filhos, e os repreendesse, certamente que eles não a odiariam. Constata-se que os filhos ou pelo menos alguns não seriam muito recomendáveis. Tinham sido criados com bastante luxo e não seriam muito amigos do trabalho. Sobretudo, o Pedro Lopes de Samuda dava bastantes preocupações à mãe. O pai ter-lhe-ia comprado um benefício eclesiástico que lhe permitia viver sem trabalhar; dedicava-se sobretudo a namoriscar e, quando o dinheiro não chegava, tirava coisas de casa para oferecer às senhoras.

O genro, António de Mesquita, também não era muito recomendável, embora vivesse do seu trabalho como médico. Tendo-se embeiçado de uma mulata escrava de sua meia irmã, Violante Nunes Rosa, desflorou-a, engravidou-a, tirou-lha lá de casa e pediu às cunhadas para a esconderem. Toda a família se zangou com ele.

De qualquer modo, a alegação de contraditas para retirar o crédito às testemunhas era um tipo de defesa muito utilizado, mas com muito poucos resultados, tal como acontece no presente processo.

A audição das testemunhas das contraditas estende-se no processo de fls. 72 a 99 v., incluindo uma comissão (deprecada) para Vila Franca de Xira.

A 13 de Julho de 1705 (fls. 100), um termo de citação para mais prova. Era o testemunho-denúncia de seu filho João Esteves Henriques, feito no dia 10 de Julho anterior, após o tormento a que foi submetido. Na mesma data, a Ré está com o seu procurador e através deste pede que a testemunha (ignorando ela sempre quem é) seja reperguntada com os mesmos “interrogatórios”, o que é aceite pelos Inquisidores. O seu filho é interrogado no mesmo dia (fls. 102 e ss.) e naturalmente confirmou as suas anteriores declarações, pois que havia ele de fazer? O Promotor publica então a prova da justiça com este testemunho e a Ré é notificada (fls. 106); diz ela que é tudo falso. Diz ter contraditas com que vir e que quer estar com o seu Procurador, o que acontece no dia seguinte, 14 de Julho (fls. 107).

Como é habitual, o Procurador escreve a sua defesa no final do treslado. A fls. 108 v. e 109 vem mais uma lista de inimigos da Ré e depois mais uma lista de testemunhas a serem ouvidas. A fls. 111 v., o despacho dos Inquisidores que apenas recebem as contraditas respeitantes a Jorge Mendes Nobre, Advogado e ao filho da Ré, João Esteves Henriques.

As testemunhas às contraditas depõem de fls. 112 a 119 e naturalmente não conseguem provar que os dois filhos João Esteves Henriques e Pedro Lopes Henriques são inimigos de sua mãe, apesar das repreensões que esta lhes fazia.

O processo é concluso em 31 de Agosto de 1705 (fls. 119 v.)

Na mesma data, vai a visto da Mesa da Inquisição e o Inquisidor Paulo Afonso de Albuquerque (é a letra dele) escreve um enorme relatório de 14 páginas (fls. 120 a 126 v.) com letra miudinha. Os votos (pareceres) dividem-se em três grupos:

1.º grupo constituído pelo mesmo Inquisidor, e pelos Deputados Jerónimo Vaz Vieira, Estêvão de Foyos Pereira e o P. Mestre Fr. António Pacheco, da Ordem dos Pregadores.

Este foram de opinião ”que a dita Ré  pela prova da justiça estava legitimamente convicta do 2.º lapso do crime de judaísmo, heresia e apostasia por que foi presa e acusada, visto deporem contra a mesma 5 testemunhas de declaração de judaísmo em forma de relapsia das mesmas culpas que se acham ratificadas com certidão de bom crédito e repetidas na forma de Direito pelos interrogatórios com que a Ré veio por seu Procurador.” Concedem, porém, que o crédito da testemunha Leonor de Chaves é diminuído por lhe ter trocado o nome e por não se lembrar bem dos factos.

O relator entretém-se depois a afastar as contraditas alegadas. Mas nunca levanta qualquer dúvida de que os testemunhos sejam falsos!...

2.º grupo constituído pelos Inquisidores Nuno da Cunha de Ataíde, João de Sousa de Castelo Branco e Deputado Miguel Barbosa de Araújo.

Afastam o depoimento de Leonor de Chaves, que nem sequer sabia o nome da Ré e, quando se lhe perguntou por ele, foi preciso  “que lha nomeassem”. Também Jorge Mendes Nobre, a segunda testemunha “tem muita inverosimilidade, porque no seu 1.º testemunho também errou o nome à Ré e poderá mui bem ser que se equivocasse com uma filha da mesma, que se chama Catarina Henriques, e pelo que consta do original do testemunho, também tem muita inverosimilidade, porque no teor dele não depôs contra ela, e só se acha na margem do mesmo, nem na repergunta, deu a razão da sua equivocação”.  

Dão também relevo às más relações do Pedro e do João com sua mãe e da hostilidade que tinham para com ela. Se viviam e comiam lá em casa e até falavam com ela é porque só assim é que conseguiam ter quem os alimentasse.

São assim de opinião que não há testemunhos quer permitam impor a esta Ré pena ordinária, “quanto mais que a Ré tem presos nestes cárceres todos seus filhos convictos e 3 deles notificados como tais, que se acham cumpliciados com a dita sua mãe e é quase pôr sem dúvida que deponham contra a dita Ré sua mãe, de que resultará ter contra si uma claríssima prova e que a convençam como de Direito se requer, nem há razão para que se apresse o despacho deste processo para este auto, principalmente havendo nele tantos relaxados, nem ainda resulta prejuízo algum de se não despachar, porque no caso de que lhe não acresça mais prova, se tomará assento final em sua causa, e assim pelas sobreditas razões lhes parecia que a Ré devia ficar reservada”.

3.º grupo – Deputado D. Fernando de Almeida diz “que a causa da Ré, visto se achar a final, se devia despachar; mas que a prova não era suficiente para a convencer no 2.º lapso, pelas razões ponderadas, e só para antes de outro despacho ser posta a tormento pelos urgentes indícios que das suas culpas lhe resultam em haver reincidido nas mesmas”.

Os autos irão ao Conselho Geral. Não assina o Deputado Estêvão de Foyos Pereira, por estar ausente.

Em 1 de Setembro, o Conselho Geral decide que fique “reservada”. Esta figura não existe no Regimento, foi inventada pelos Inquisidores como uma espécie de prisão preventiva. Não é diferente de deixar o Réu preso sem que nada aconteça no processo.  Neste caso, sabiam muito bem de que é que estavam à espera.

A 10 de Setembro de 1705 (fls. 130), a Ré é citada de que há mais prova contra ela: são os testemunhos de sua enteada, Violante Nunes Rosa (Pr. n.º 7733) e de sua filha, Guiomar Maria Henriques (Pr. n.º 8247), em depoimentos de 5 de Setembro anterior. Que é que tinha acontecido às duas?

Tinham sido presas  em 23 de Agosto de 1703 e mantiveram-se sempre negativas, nada tinham confessado. Assim, na lógica da Inquisição, foram ambas condenadas à morte pelo Conselho Geral, a Guiomar em 3 de Julho de 1975 e a Violante no dia 7 do mesmo mês. Receberam ambas em 23 de Agosto a 1.ª notificação, prevista no n.º I, Tit. XV. Liv. II do Regimento, em que foram ainda admoestadas para confessar. Em 4 de Setembro seguinte a 2.ª notificação (n.º V, Tit. XV, Liv. II) de que iriam ao auto de fé dois dias depois e aí seriam queimadas; foram-lhes atadas as mãos. Só então é que tomaram consciência do vespeiro onde estavam metidas. Iniciaram ambas as suas confissões, em que praticamente denunciaram todos os cristãos novos que conheciam; não assinavam as confissões por terem as mãos atadas  Foi assim que incluíram também sua mãe e madrasta nas confissões.

O processo de Violante Nunes Rosa foi mais rápido. Foi ainda ao auto da fé de 6 de Setembro de 1705, condenada a cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão, confisco de todos os seus bens e degredo para São Tomé por sete anos.  Conseguiu ficar em liberdade mediante um termo de fiança de um homem de negócio, mas depois fugiu para Inglaterra.

O processo de Guiomar Maria Henriques (esposa do médico António de Mesquita) foi mais demorado. Em 5 de Setembro (já ela tinha feito muitas confissões), o Conselho Geral decidiu que ela ficasse “reservada”. Depois de muitas mais confissões, foi “examinada pelos encontros da sua crença” e foi ao auto da fé de 12 de Setembro de 1706, condenada à mesma pena de sua meia irmã, incluindo o degredo por sete anos para São Tomé. Saiu também em liberdade mediante um termo de fiança de um ourives de prata.

Para se salvarem as duas, morreu a mãe (e madrasta) delas.

Regressando a Isabel Henriques. Reuniu com o seu Procurador a 11-9-1705 e requereu que as duas testemunhas que se tinham então revelado, fossem reperguntadas com os mesmos “interrogatórios”.  No mesmo dia é interrogada Guiomar que ainda está presa; no dia 19, a enteada Violante, que já estava “reconciliada”. Como é evidente, ambas confirmaram o que antes tinham dito.

O conteúdo dos depoimentos é a costumada conversa de se “declararem como criam e viviam na Lei de Moisés para salvação de suas almas”. Porém, o depoimento da Guiomar é importante porque ela disse que a declaração foi feita em Alcochete em casa de Gracia Nunes. Disse também que com sua mãe “tinha muitos piques pela dita Ré sua mãe a repreender de ser preguiçosa e estar pela manhã na cama”.

A 9 de Novembro, o Promotor publica as duas denúncias como prova da justiça (fls. 141). A Ré declara que tem contraditas com que vir e que quer estar com o seu Procurador, o que aconteceu no mesmo dia. O Procurador vem a fls. 143 v. com um artigo de coarctada. Diz “que ela Ré nunca em sua vida foi à Vila de Alcochete, e veio da sua terra para esta cidade haverá quarenta anos pouco mais ou menos e sempre nela residiu e somente haverá três anos foi à Vila das Caldas curar-se aos banhos, e outra nenhuma jornada fez fora desta cidade e seu termo, e à banda de além não foi nunca e menos à Vila de Alcochete onde não nem trato nem conhecimento de pessoa alguma…” A seguir indica as testemunhas a serem ouvidas.

Coarctada era a invocação de um alibi. Assim define Elias Lipiner: “O modo de defesa pelo qual o réu negativo pretendia livrar-se, provando a sua presença em lugar diverso daquele em que se pretendia tivesse praticado a heresia de que o acusavam”.

A defesa é recebida pelos Inquisidores (fls. 146 v.). A fls. 147 e ss. estão os interrogatórios das testemunhas, criadas da Ré e de sua filha Guiomar.  São inconclusivas quando à ida da Ré a Alcochete nove anos e dois meses antes. Duas testemunhas dizem que, por essa altura, a Ré e sua filha Guiomar foram a uma romaria por mar à banda de além “de uma Senhora que está em um convento de frades em que gastaram oito dias pouco mais ou menos, mas não sabe por que parte foram ou vieram, nem onde assistiram” .

Ainda para prova da coarctada, foi enviada uma comissão (deprecada) à Inquisição de Évora, para ser ouvido em Coruche Romão Franco, cristão velho de raça preta, que fora escravo da Ré.  A 18 de Maio de 1706 (fls. 161), disse este que a sua antiga dona, Isabel Henriques, que conhece há 40 anos, apenas saíra de casa para ir curar-se à vila de Caldas e para ir à sua quinta do Campo Grande; que saíra de casa dela há quatro anos por lhe terem dado carta de alforria.

A 10-11-1705, a Ré pediu para estar com o seu Procurador, o que aconteceu a 12. Em resultado desse encontro, o Procurador fez a exposição de fls. 166 em que ela diz que havia em Alcochete uma viúva a quem seu marido devia 2 000 cruzados à razão de juro e que por divergências sobre os pagamentos com seu marido, ficou ela sua inimiga; mas que nunca a conheceu. Para esta contradita, indica de novo testemunhas.  A fls. 169, um despacho de 16 de Novembro de 1705 dos Inquisidores, recusando receber esta contradita, “vista sua matéria”.

A fls. 169 v., o escrivão faz o processo concluso para ser visto em Mesa.

5 de Julho de 1706 – Visto o processo na Mesa da Inquisição (fls. 171 a 172 v.) – O Inquisidor Afonso Pinto de Albuquerque usa todos os argumentos para condenar a Ré : “E pareceu a todos os votos que o assento da Mesa de 31 do mês de Agosto de 705 em que a julgou por legitimamente convicta do 2.º lapso do crime de judaísmo, heresia e apostasia, por que foi presa e acusada, não estava alterado, antes mais confirmado, por lhe haverem depois acrescido mais duas testemunhas de declaração de judaísmo em forma, a saber Guiomar Maria Henriques, sua filha, 6.ª testemunha da justiça,  e Violante Nunes Rosa, sua enteada, 7.ª testemunha da justiça, que ambas se acham ratificadas com certidão de bom crédito…” Uma obra prima de perversidade e hipocrisia.

Tem ele depois de rebater o artigo da coarctada em que a Ré dizia que nunca tinha ido a Alcochete: “Nem também lhe deve debilitar o crédito a coarctada alegada à mesma testemunha, dizendo a Ré que não fora nunca à vila de Alcochete onde a dita testemunha lhe dá a culpa, porque além da dita Ré poder ir e vir à dita Vila como tão perto, sem que as testemunhas o soubessem, se não prova a tal coarctada e as testemunhas nela nomeadas, que se perguntaram, é um mulato, e criadas da mesma Ré, e de suas filhas, a quem nesta Mesa se dá mui pouco crédito, por deporem geralmente tudo o que se articula, e ultra petita em ordem a desculparem os réus, sem fazerem escrúpulo algum no modo de assim jurarem, depondo algumas delas assertivamente de a Ré não ir à dita Vila, outras que a Ré no dito tempo coarctado, passara à Banda de além, sem saberem individuar por que parte fora, nem onde estivera, e que na dita Banda de além tinha conhecimento com uma viúva mui rica, onde e na Vila de Alcochete, se não pode fazer continuar a tal diligência, por falta de notícia, sendo que, como a testemunha lhe dá trato sucessivo depois da tal declaração, também por ele se opõem a esta coarctada.

Lá mais para o fim, mais estas pérolas: “… e assim não alegando a Ré cousa que a alivie em suas contraditas e coarctada, e tendo contra si 7 testemunhas de declaração de justiça em forma no 2.º lapso, em que entram três filhos e uma enteada, ficando ilesos entre os mais os testemunhos dos ditos seus filhos, ajudados da violenta e veementíssima presunção que lhe resultam do 1.º lapso, era a dita prova não só suficiente, mas ainda superabundante a convencer a Ré no 2.º lapso….”

A 20 de Julho de 1706 (fls. 174), o Conselho Geral confirma a sentença de morte.

A 10 de Setembro de 1706 (fls. 175) foi a Ré notificada da ida ao auto da fé de 12 de Setembro e foram-lhe atadas as mãos. E para a Ré “poder tratar e comunicar as coisas da alma”, ficou com ela o Padre Luis Gonzaga, da Companhia de Jesus.

A fls. 176 a 179, a sentença para ser publicada e lida no auto de fé. É interessante verificar que os actos de judaísmo ali descritos vão muito além até daquilo que afirmaram as testemunhas do processo. Mas isso não tinha importância para o caso, já que também os depoimentos nada tinham de verdade, destinavam-se apenas a salvar a vida das testemunhas.

Mais uma vez, como é habitual,  o Inquisidor que redigiu a sentença descarta toda a defesa da Ré dizendo apenas “e não provou coisa relevante”.

Falta no processo a habitual anotação da ida ao auto da fé.

Termina com a conta das custas a fls. 180.

Edgar Samuel escreveu em 2004 no artigo do Oxford Dictionary of National Biography sobre Isaac de Sequeira Samuda (Simão Lopes Samuda), filho de Violante Nunes Rosa:

“Ele (Simão Lopes Samuda), sua mãe, um tio e cinco tias fugiram para Londres, onde o seu (meio-)irmão mais velho, Abraão de Almeida (Gaspar de Almeida de Sequeira), era um dos doze Judeus  correctores ajuramentados na Bolsa Real.”

Não nos diz a data, nem quem eram os tios e tias, todos os quase todos, filhos de Isabel Henriques. No entanto o médico deve ter fugido mais cedo, porque se constata num processo de 1712 que nessa data ele já tinha fugido, mas as tias ainda estavam em Portugal.

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e linguagem, Rio de Janeiro, Documentário, 1977

 

Oxford Dictionary of National Biography, Isaac de Sequeira Samuda, by Edgar Samuel, Sept. 2004, 820 words, index - 101071570

 

Regimento do Santo Ofício dos Reynos de Portugal, ordenado por mandado do Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Dom Francisco de Castro, Inquisidor Geral do Conselho de Estado de Sua Magestade, in Narrativa da perseguição de Hippolyto Joseph da Costa Pereira Furtado de Mendonça, natural da Colónia do Sacramento, no Rio da Prata. Vol II, contendo o antigo Regimento do S. Officio, cujos títulos e parágrafos se citam na narrativa; e foi impresso nos Estaos por Manuel da Silva, no anno de 1640.

Londres: Impresso por W. Lewis, 1 . Paternoster-Row. 1811

Online: http://books.google.com