5-4-2018
Apresentação do livro "A Inquisição Portuguesa em face dos seus processos" na Livraria Ferin em 5 de Abril de 2018, pelo Dr. Xavier de Basto
O meu 
Amigo Arlindo Correia insistiu comigo para ser eu a proceder 
à apresentação 
da obra que hoje dá 
a público sobre a Inquisição 
portuguesa, composta por três 
volumes sob o título 
geral 
“A Inquisição 
Portuguesa em face dos seus Processos
A 
escolha do apresentador não 
podia ser mais desajustada. Não 
sou historiador profissional, nem sequer amador, e, para mais, a 
época da história 
portuguesa aqui tratada não 
me 
é, de todo, familiar. Certamente que gosto de ler sobre história 
– e gostei de ler o livro 
do Autor 
– 
mas não 
é 
este o período que especialmente me atrai, inclinando-me muito mais para 
me interessar por história 
contemporânea.
A 
escolha do Arlindo Correia só 
pode pois assentar na velha amizade que nos une e alguma cumplicidade 
intelectual em outros domínios, 
porém, que não 
o da Inquisição. 
O que sei da tenebrosa instituição 
continua a ser muito pouco e, se aumentou agora alguma coisa, devo-o 
à leitura da obra de Arlindo Correia que me cabe aqui 
apresentar.
Recordo bem o interesse que suscitou, nos anos 80 do século passado, a publicação de 
“A 
Inquisição e os cristãos 
novos“ de António 
José Saraiva, com uma explicação de cariz marxista do fenómeno inquisitorial e recordo ainda ter lido, há muitos anos, a obra de Alexandre Herculano 
“Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal”, 
de que me ficou a impressão 
indelével de uma prosa clássica 
de beleza suprema. 
É 
tudo, mas 
é muito pouco.
Estou 
assim bem longe de poder corresponder ao caderno de encargos típico de um apresentador de um livro 
– que 
é 
o de proceder 
à 
respectiva leitura e análise 
crítica, aguçando 
o apetite dos leitores a que o obra se dirige. Nada disso vou poder fazer, mas o 
responsável
é o próprio 
autor pela escolha que fez para apresentar aqui o seu livro.
Se não vou conseguir, como se verá mais adiante, fazer uma ajustada apresentação do livro, posso porém, 
com conhecimento de causa, dizer alguma coisa de certo sobre o Autor, as suas 
qualidades humanas e intelectuais.
Foi há mais de trinta anos 
– 
pouco mais de 37 anos, para ser exacto 
– 
que conheci Arlindo Correia. O primeiro contacto foi profissional. Como um dos 
primeiros conhecedores da técnica 
do IVA em Portugal, era a escolha natural e indispensável para fazer parte da Comissão do IVA, a que presidi, entre 1980 e 1984. A partir de então, estivemos ligados a outras tarefas profissionais que não vem ao caso aqui lembrar.
Tendo 
atingido elevados postos na administração 
tributária 
– foi subdirector geral 
na então 
DGCI 
– com experiência 
de trabalho nas instituições 
europeias, Arlindo Correia após 
a passagem 
à 
situação de reformado muito pouco tempo dedicou 
à profissão 
de fiscalista, para a qual tinha, e tem certamente ainda, qualificações excepcionais, mas para que lhe faltam apetites, o que, 
diga-se de passagem, não 
se lhe pode levar a mal.
Começámos, os seus Amigos e Colegas, a vê-lo afastar-se progressivamente dos temas 
áridos da fiscalidade, embora sem recusar, uma vez por outra, a 
colaboração 
em iniciativas e eventos sobre problemática 
tributária. Foi o caso do livro de homenagem póstuma a uma colega que muito estimámos, a Maria Teresa Lemos, e o seminário sobre os 25 anos de entrada em vigor do IVA em Portugal, 
cujas actas foram publicadas pelo Ministério 
das Finanças, 
obras em que Arlindo Correia, eu próprio 
e outros participámos 
como editores.
Começámos, os seus Amigos e Colegas, a ter notícia de uma significativa inflexão nos interesses intelectuais do Arlindo, sobretudo através da sua página 
da internet, que iniciou bem cedo, em Julho de 2000, muito antes da grande 
explosão do que agora se chama redes sociais. Nessa página, Arlindo começou 
publicando textos de muito interesse, sobretudo notas biográficas de humanistas portugueses.
Foi o 
caso das notas sobre André 
de Gouveia e sobre o escocês 
George Buchanan, mandado vir para Portugal pelo mesmo André de Gouveia no reinado de D. João III e que acabou por sair do país, acusado pela inquisição, entre outras coisas, de não respeitar as interdições 
alimentares da religião 
católica, ou do texto sobre Diogo de Teive, também contemporâneo, 
a par de notas sobre Damião 
de Góis, Nicolau Clenardo, André de Resende e vários 
outros.
Também nessa fase do seu labor, Arlindo Correia publicou na sua página resultados das suas leituras de materiais de arquivo 
sobre a Inquisição 
e algumas das suas vítimas.
É o caso do texto sobre 
“Relaxados pela Inquisição 
de Goa”, ou 
“A 
Inquisição no tempo da Viradeira” (ou seja, o período 
que se seguir 
à 
queda do Marquês 
de Pombal) e outros. A circunstância 
de o ANTT ter colocado online os processos da Inquisição de Lisboa deu a Arlindo Correia, como ele próprio nos informa na contracapa do volume primeiro, ocasião de proceder a um estudo e análise 
pormenorizada dos processos inquisitoriais. Não deve ter sido pequena tarefa, só acessível 
a um espírito determinado, intelectualmente obstinado, que não desiste perante as dificuldades, que sempre caracterizou 
Arlindo Correia. Na verdade, o que a Torre do Tombo colocou 
à disposição 
dos internautas foi o fac-simile dos processos, que foram digitalizados. Com 
isso poupou trabalho junto dos arquivos físicos, 
em papel velho de séculos, 
mas não o esforço 
de decifração da caligrafia da 
época. 
Essa decifração 
coube a Arlindo Correia e 
é 
fácil imaginar, para quem olhe, mesmo só de soslaio, para os processos digitalizados, quanto esforço, paciência 
e saber são 
necessários para a levar a bom termo. Ficaram agora 
à disposição 
do leitor moderno os processos inquisitoriais, da Inquisição de Lisboa (e alguns, mas não todos, de Coimbra e 
Évora) 
que jaziam, indecifrados, nos arquivos. Presta assim Arlindo Correia um inestimável serviço 
ao aprofundamento dos conhecimentos do modo de agir do Santo Ofício, através 
do estudo de tantos processos dos séculos 
XVII e XVIII, com transcrição 
das peças mais importantes de cada um deles e explicação da sequência 
dos acontecimentos que os processos acompanham ou criam, alguns de arrepiante 
violência e arbitrariedade. Já irei dizer alguma coisa sobre essa parte do longo e esforçado trabalho de Arlindo Correia, incidindo sobre processos 
concretos, só 
para referir5um par de casos interessantes ou que julgo paradigmáticos do modo de proceder do Tribunal.
Antes 
disso, porém, 
permitam-me algumas observações 
de carácter mais geral sobre a obra que agora Arlindo Correia dá a público.
O próprio título 
dos volumes indicia o foco do Autor: 
é 
a inquisição, mas vista e analisada pelos seus processos. São estes os dados ou elementos da sua análise. Percebe-se, em vários 
passos da obra, uma crítica 
mais ou menos explícita, 
a quem analisa a instituição 
inquisitorial sem dar atenção 
suprema aos processos em arquivo, sem ter procedido a uma leitura completa das 
respectivas peças.
O 
procedimento de Arlindo Correia 
é 
o oposto. Ele parte dos processos concretos, lidos e analisados na sua 
totalidade, cujas peças 
principais publica nos volumes II e III volume da sua obra. 
É da análise 
dos processos que Arlindo Correia retira as suas conclusões sobre a natureza, quer do processo inquisitorial, quer da 
própria 
instituição.
Não 
é 
assim escopo de AC proceder a um síntese 
histórica ou a uma história 
genética da Inquisição. 
Embora reconhecendo a importância 
que, em vários 
casos, a cobiça 
pelo património 
dos condenados pode ter dito no seu trágico 
destino, quando além 
da perda da vida, perderam também 
o património, Arlindo Correia não 
adere a uma interpretação 
materialista, de inspiração 
marxista, da origem e estabelecimento da Inquisição, 
como foi, por exemplo, a do livro de António 
José Saraiva, a que atrás 
fiz referência. Também 
não adere, antes repele, com veemência, interpretações 
que inscrevam a Inquisição 
num instrumento de luta religiosa, de defesa de uma fé, a católica, 
contra uma outra, a judaica. Na ideia do Autor, a Inquisição não 
defendia a fé 
católica contra os judaizantes, já que a maior parte dos envolvidos, cristãos novos, não 
seriam de fé 
judaica, alguns até 
seriam eventualmente católicos 
devotos, de onde se não 
pode também transformar a inquisição num perseguidor de judeus ou judaizantes.
Para 
Arlindo Correia, a Inquisição 
foi uma instituição 
que visou o poder pelo poder, cuja função 
era condenar, sendo assim praticamente inexistentes as absolvições.
A análise que faz dos processos leva Arlindo Correia a contrariar a 
ideia de alguma historiografia, segundo a qual a Inquisição portuguesa teria sido menos cruel, mais branda do que outros 
tribunais do Santo Ofício, 
designadamente a Inquisição 
espanhola. Se as sentenças 
de morte poderão 
não ter atingido números 
muito elevados, os que escapavam 
à 
punição suprema, viam suas vidas e de suas famílias destroçadas, 
reduzidas a 
“papa”, na expressão 
metafórica que usa para caracterizar o destino desses infelizes. As 
confissões 
e a delação forçadas, 
a tortura, a irrelevância 
da defesa, a perda dos bens, a expulsão 
revelam uma crueldade no tratamento dos cristãos 
novos, que contradiz a alegada maior brandura da Inquisição Portuguesa.
Do 
mesmo modo, o Autor manifesta-se contrário
à ideia corrente de que a Inquisição cumpria rigorosamente o processo inquisitorial, a cuja análise fina, assente sobretudo no Regimento de 1640, o estudo 
também 
procede. O escrutínio 
pormenorizado dos muitos processos, segundo Arlindo Correia, mostra que não havia, na prática, 
meios de defesa dos réus, 
sobretudo a defesa por negação 
dos factos imputados, que nunca era aceita. Só 
a confissão dos factos imputados, mesmo quando eram evidentemente 
falsos, poderia salvar os acusados das sanções mais duras. Embora o processo previsse a negação, a contradita e outras formas de defesa, o objectivo do 
Tribunal era condenar, atropelando as regras processuais previstas no Regimento, 
que só 
formalmente eram cumpridas. 
É 
pois, segundo o Autor, um mito o da correcção 
jurídica dos processos da Inquisição; uma coisa 
é 
a Inquisição formal outra a Inquisição real, como mostra através de vários 
exemplos concretos retirados dos processos analisados. 
Já então 
a law in the books era diferente da law in action. 
Mesmo 
no plano formal, Arlindo Correia considera gritantes as deficiências 
do processo inquisitorial e pronuncia-se no sentido de apreciar essas deficiências confrontando o processo inquisitorial com as regras 
modernas do Direito processual penal e civil. Neste ponto 
– e como Alindo Correia preza o contraditório, que a Inquisição 
ignorava 
– o apresentador do livro dirá que não 
pode concordar como esse confronto, e que lhe pareceria mais esclarecedor 
proceder a uma comparação 
entre o processo inquisitorial e o processo penal comum da 
época, dos tribunais régios. 
Talvez as diferenças 
formais não sejam muito significativas, mas 
é apenas um palpite de leigo na matéria… 
Os valores que são 
hoje conquistas que julgamos irreversíveis 
da civilização 
têm datas de nascimento, demoraram séculos a ser adquiridos e mesmo hoje são, em muitos lugares, violados grosseiramente 
à vista de todos nós.
A 
confissão extraída 
mediante tortura só 
começou a ser denunciada como eticamente condenável no século 
XVIII, no século do Iluminismo. Foi na obra de Cesare 
Beccaria, Dei delitti e delle pene, publicada em 1764, que aparece pela primeira 
vez uma condenação 
clara da tortura, das condenações 
secretas, que se discorre sobre o direito de punir e sobre a necessidade de 
proporção entre os delitos e as penas, para além da bem conhecida rejeição da pena de morte, de cuja abolição Portugal foi pioneiro. Está na obra de Cesare Beccaria o lançamento pioneiro dos princípios garantísticos 
do moderno direito penal.
Não quero com isto, todavia, deixar de concordar com Arlindo 
Correia que a leitura dos processos que ele, com esta obra, nos proporciona, 
mostra muitas vezes uma crueldade extrema, uma arbitrariedade intolerável, que seguramente no tempo mereceria condenação de espíritos 
mais ilustrados, mas não 
a ponto de conduzir de imediato 
à 
correcção que só 
séculos depois foi possível 
introduzir no direito e no processo penal.
Não posso aqui alongar-me demais na ilustração do trabalho de Arlindo Correia, onde ele me parece mais 
valioso 
– 
que 
é o da síntese 
que faz de múltiplos 
processos, antecedendo a publicação 
das principais peças 
de alguns deles.
Vou só 
– 
e com isso ficará 
completa esta apresentação 
do livro que, como já 
disse, não irá 
fazer justiça adequada aos méritos 
da obra, por deficiência 
do juíz referir uns poucos casos que me impressionaram 
particularmente, sem revelar deles demasiado, para não tirar aos leitores da obra o suspense da leitura.
Na página 309 do volume II, trata-se de processos da Inquisição de Coimbra e da Inquisição de Lisboa, de que foram réus Tomás 
Rodrigues e Violante Oliveira, sua mulher.
Arlindo Correia intitula a análise 
longa que faz desse processo 
“Razia 
de uma família 
inteira 
– Tomás 
Rodrigues, esposa e filhos”, 
porque com efeito os Tribunais de Coimbra e de Lisboa aniquilaram quase toda a 
família, posto que os filhos de Tomás Rodrigues, três 
homens e uma mulher, fossem eclesiásticos, 
certamente por influência 
do Pai, com o intuito de fugir 
à 
Inquisição.
Tudo 
começa em Coimbra em 1604, quando marido e mulher foram presos. 
Havia então 
forte sentimento anti-semita na cidade, que não 
aceitou que tivessem sido soltos, em consequência 
de um perdão 
geral concedido pelo Papa aos cristãos 
novos. Pegaram fogo 
às 
portas e 
às janelas da casa de Tomás Rodrigues.
Terá sido esse ambiente que o levou a transferir-se com a família para Lisboa, deixando apenas em Coimbra, no convento de 
Celas, sua filha Maria que, segundo tudo indica, já tinha decidido professar, apesar de ter apenas 15 ou 16 anos; 
aliás, 
vivia em conventos desde os oito anos. A mudança 
de sede de nada valeu, porque a perseguição 
inquisitorial continuou. Em Novembro de 1621, sua filha foi presa em Coimbra com 
acusação 
de judaísmo e no mês 
seguinte, em Lisboa, foi preso Tomás. 
Contestou as acusações, 
por negação, apresentou contraditas e coarctadas. Foi morto no auto da fé 
de 5 de Maio de 1624. Já 
antes em 7 de Outubro de 1622, tinham sido expedidos quatro mandados de prisão contra sua esposa e seus três filhos sacerdotes.
A 
mulher, Violante, morreu na prisão 
e foi relaxada em estátua. 
Igual sorte tiveram seus filhos, Padre António 
Oliveira e Padre João 
Oliveira, que se terão 
suicidado na prisão, 
recusando alimentação. 
Só o outro filho Padre Simão de Oliveira escapou 
à 
morte, depois de vários 
anos no cárcere 
e várias 
“confissões” 
em que, para salvar a pele, acusava toda a família, 
o que certamente lhe terá 
destruído a consciência 
moral.
Vale 
a pena ler a descrição 
que Arlindo Correia faz dos processos que a Inquisição dirigiu a todos eles. Apesar de os filhos serem eclesiásticos e das provas urdidas pela Inquisição não 
terem nenhuma consistência 
e até serem, em algumas fases dos processos, consideradas 
insuficientes pelos Inquisidores, estes voltavam sempre 
à carga, com tormentos, novas acusações, por considerarem insuficiente ou diminutas as confissões. Terrível 
processo este, que dizimou uma família 
coimbrã do século 
XVII. Coisa semelhante aconteceu também 
a uma família de Montemor-o- Velho: mãe viúva 
e seus sete filhos.
Um 
outro processo que 
é 
muito interessante de ler 
é 
o que ilustra o uso da Inquisição 
e de alegados delitos 
“religiosos” para condenar 
à 
morte um militar, João
Álvares de Barbuda, a quem não se quis atribuir, 
às 
claras, as culpas pela perda de Olivença. 
Tratado no livro logo no início 
do Volume III, mostra como a Inquisição 
podia também estar ao serviço 
do poder civil.
João 
Álvares 
de Barbuda tinha uma brilhante carreira militar, de que se orgulhava e terá tido um papel menor na perda de Olivença, em 1657, na guerra da Restauração. Foi feito prisioneiro pelos espanhóis e foi tido como estando entre os responsáveis pelo desaire. Foi entregue 
à Inquisição 
em 8 de Novembro de 1663, acusado de judaísmo. 
A irmã Brites também 
foi presa, para fornecer provas contra o irmão 
- e assim escapou 
à 
execução.
O 
processo mostra a arbitrariedade na apreciação 
das provas, que eram nulas. Barbuda não 
professava a fé 
judaica. Nunca conveio com as acusações. 
Negou sempre tudo o que lhe era imputado, mas nada foi aceite, e acabou 
relaxado, tendo saído 
no auto de fé 
de 4 de Abril de 1666. Era cristão-novo 
e a Inquisição 
serviu assim para o Governo se vingar de um desastre militar, sem assumir a 
responsabilidade da acusação 
e da pena.
Termino esta pequena “pesca”, assistemática, nos processos que Arlindo Correia aqui transcreve e comenta, fornecendo imprescindível guia de leitura, com a referência aos processos dos Pinas, de Lava Rabos, uma povoação, hoje chamada S. João do Campo, a poucos km de Coimbra, na estrada que liga a cidade do Mondego a Montemor-o- Velho e depois à Figueira da Foz. Como refere AC, o nome, muito patusco, Lava Rabos, foi mudado por Decreto de 15 de Março de 1880, a pedido dos seus habitantes. Foi no final do século XIX e nos princípios do século XX que se procedeu à mudança de vários nomes inconvenientes de povoações portuguesas: foi o caso em 1907 de uma povoação então chamada Porcalhota, que mudou o nome para Amadora…cidade hoje servida por uma linha do metro de Lisboa…
Os 
processos contra aos irmãos 
Pina de Lava Rabos, Tomé 
e Filipa, na Inquisição 
de Coimbra e na Inquisição 
de Lisboa (Arlindo Correia apenas analisa e transcreve os da Inquisição de Lisboa, por não 
ser possível o acesso aos da Inquisição de Coimbra) não 
terminam com a pena máxima, 
mas são elucidativos da crueldade dos procedimentos, sempre 
dirigidos a obter confissões 
e delações.
Particularmente impressionante 
é 
o relato que o processo faz do tormento a que foi submetida Filipa Pina, uma 
pobre empregada doméstica, 
irmã de Tomé 
de Pina, um modesto sapateiro. Tinha 30 anos quando foi presa. Negou, a princípio, o que lhe era imputado, afirmando-se católica devota. Várias 
testemunhas, de Lava Rabos, asseguravam que era boa católica. Pressionada, acabou por confessar, mas a confissão foi dada como insuficiente e, por isso, por ser 
“diminuta”, 
foi posta a tormento. Como se lê 
no processo, o Tribunal mandou que fosse 
“posta 
a tormento e aí 
atada perfeitamente, a arbítrio 
dos Inquisidores e juízo 
do médico e cirurgião”.
O 
processo descreve com todo o realismo o sofrimento de Filipa durante a sessão de tormento, aliás 
bem 
“regulamentada” 
no Regulamento de 1640, cujas regras também 
vêm transcritas na obra.
No 
caso de Filipa Pina, de Lava Rabos, as coisas passaram-se assim: Foi 
“a Ré despojada de seus vestidos e assentada no banquinho (…) e sendo começada a atar, 
disse que pelas chagas de Jesus lhe valessem, Virgem Mãe de Deus, Espírito Santo, Divino Jesus me acuda, e a foram atando e que Santo 
António lhe acudisse que não 
tinha de que mais dizer, Virgem Mãe de Deus, acudi-me, Virgem sagrada, Senhor Inquisidor haja dó de mim, Virgem do pé da Cruz me 
acuda, e sendo admoestada com caridade, disse que pelas chagas de Jesus, 
houvesse ele Senhor Inquisidor dó dela que não tinha de que 
mais dizer, que houvesse dó 
dela que era 
órfã desamparada, que não tinha de que 
dizer nada que já tinha dito a verdade, que pelas chagas de Cristo Nosso Senhor, 
que padeceu por seus pecados lhe acudisse, que não era de mais lembrada, que a Virgem lhe acudisse que morria, 
dando grandes gritos e ais, chamando por Nossa Senhora e sendo admoestada com 
caridade da parte de Cristo nosso Senhor, disse que pela salvação de sua alma, que se tivera, que o houvera de dizer, e foi atada 
perfeitamente e posto o calibre; por se ter satisfeito ao assento da Mesa, 
mandou o Senhor Inquisidor fosse desatada e mandada para seu cárcere e admoestada em forma (…)”. 
Foi condenada a cárcere 
e hábito penitencial perpétuo, 
instrução religiosa e penitências. 
Ninguém mais empregava uma mulher como ela. Acabou a ter de pedir 
esmola a uma parente.
O 
livro de Arlindo Correia tem o mérito 
de nos dar, em primeira mão, 
sem reinterpretações 
nem intermediações, 
um quadro realista do que foi a Inquisição 
Portuguesa, os seus procedimentos e arbitrariedades, de como serviu desígnios tortuosos, ao mesmo tempo que nos permite compreender, 
nos depoimentos dos intervenientes dos processo, réus, inquisidores e testemunhas, o quadro mental do Portugal 
dos séculos 
XVII e XVIII, 
época 
do iluminismo na Europa. Iluminismo que não 
floresceu em Portugal nos mesmos termos em que tanto contribuiu para o progresso 
humano em outras partes do nosso continente europeu. A longa presença do Tribunal do Santo Ofício na história 
portuguesa impediu assim muitas transformações sociais, políticas 
e mentais que, noutros lugares, de tolerância 
e pluralismo religioso, puderam ocorrer.
Uma última palavra de felicitação vai para o editor da obra, pela qualidade da edição.