4-11-2009

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Manuel Fernandes Vila-Real (cont.)

(1608-1652)

 

 

De sorte que todas estas causas moveram ao Marquês de Nisa a meditar minha ruína; e porque lhe seria notado fazê-lo por sua pessoa directamente, havendo-me trazido de França e dito de mim tantos louvores por escrito e palavra, se valeu do padre Macedo, meu público inimigo, para perverterem minhas acções, ainda as mais inocentes. E em meu abono não quero eu mais que as últimas palavras de uma certidão sua que está em poder de Gaspar de Faria Severim, em que o Marquês de Nisa diz: E finalmente em seis anos que estive em França não conheci nele coisa alguma contra o serviço de Vossa Majestade, antes muito fervor, zelo e verdade etc. (É a que trasladámos.).

A que acrescento que nos fidalgos de Portugal o último escândalo, ainda que muito leve, os faz esquecer das maiores obrigações; e que sejam grandes as que o Marquês me tem ele o sabe, e eu o sinto; mas não é coisa nova pagarem-se grandes serviços com grandes ingratidões.

0 Padre frei Francisco de Macedo (que já foi da Companhia de Jesus e, fugido dela, se fez capucho, e agora é da Ordem Terceira de S. Francisco, aonde  já não pode. sossegar e, para ter mais liberdade, se retirou a Telheiras) é meu público inimigo; porque, havendo pregado um sermão em Paris na língua francesa, que ele ignora, e, queixando-me eu e outros da casa do Marquês de Nisa que nos não havia convidado para ouvi-lo, disse ao mesmo Marquês que o não fizera, porque fazia mais confiança do mais humilde francês, que de nenhum português. Escandalizado eu deste proceder, pois se dava por meu amigo, e estávamos todos em uma casa, comendo a uma mesa, lhe não falei alguns dias, até que, querendo ele desculpar-se, em que se culpou mais, viemos a picar-nos de palavras que me obrigaram a dizer-lhe que pudera haver escusado fazer aquele sermão, para não zombarem de sua confiança, e muito menos fazer elogios e versos aos príncipes e senhores da Corte, pedindo-lhes a todos dinheiro, e queixando-se dos que lho não davam, pois isso era em tão grande descrédito da pátria, do Marquês que o tinha em sua casa por seu confessor, e do hábito que trazia. Daqui resultaram mais palavras, com que ficou meu inimigo declarado. Tudo isto passou, estando nós ceando, em presença do padre frei Antonio de Serpa, de José Henriques, estribeiro do Marquês, Manuel de Leão, Luis Álvares, Francisco Serrão, Salgado e outros criados do Marquês, que poderão dizer quanto estimaram o que eu disse, pelo grande escândalo que todos tinham deste e doutros procedimentos do dito padre e de sua grande ambição, pois tudo era pedir dinheiro para mandar a sua irmã ou à que lhe é, como ele dizia.

Acrescentou-se-lhe o ódio com que, no tempo das revoltas de Paris, me ordenou o Marquês procurasse um passaporte para mandar diante a Nantes aos religiosos que tinha em sua casa, com alguns criados. E, alcançando eu o passaporte, o disse ao Marquês, a tempo que naquele instante lhe tinha pedido licença o padre Macedo para ir a S.Germão, aonde a Corte estava retirada, para pedir dinheiro à Rainha e Cardeal pelos elogios que lhe havia feito e por um livro que havia dedicado ao Marquês. Ao qual disse eu que lhe protestava da parte de Sua Majestade impedisse aquela petição pelo grande descrédito que disso resultava a seu real serviço, e mais em tempo que ele Marquês aguardava favorável resposta de sua embaixada, e que a Corte não tinha um real para comer, quanto mais para dar ao padre Macedo por papéis cujo gasto havia saído da fazenda de Sua Majestade. O Marquês, reconhecendo que isto era conveniente, escreveu diante de mim e de sua mão um escrito, que mandou copiar por seu secretário Luis Álvares, em que ordenava ao padre Macedo que logo se viesse para casa (porquanto ele era ido dormir a um convento dos Recoletos), por importar assim ao serviço de Sua Majestade. Soube o padre Macedo donde isto procedera e fez queixas de que eu lhe impedia sua fortuna.

E porque entre os homens que escrevem e se picam de juízo o maior agravo é reprovar-lhes suas obras, o padre Macedo me teve ódio mortal, porque eu o não gabava de grande teólogo e que só dizia dele ser grande latino e fácil na composição de versos, que os franceses não estimavam muito. E ultimamente havendo ele composto, com grande segredo, um tratado que intitulou Mina e contra-mina de Holanda, em que havia a mor parte das razões que eu havia dito em outro papel meu contra Holanda, disse eu que o autor acertara no escrito, mas não no assunto, porque não tinha nele nenhum fundamento. O que eu dizia era que os príncipes da Europa impedissem os aumentos dos holandeses privando-os do comércio que os enriquecia; e ele queria que todos fizessem uma liga, que à força de armas os arruinassem; que era uma coisa impossível e fora de propósito.

Conhece-se seu ódio com evidência em que, como ele pretendia, tornou a França com o doutor Luis Pereira de Castro (11), e vendo que, se eu lá estivesse, lhe seria de impedimento à sua ambição insaciável, me quis arruinar, ainda que contra sua consciência; porque se fora zelo da fé, devia dizer o que de mim sabia, quando logo cheguei a este reino, e não cinco meses depois. E, se ele vai a França, dali passará a Roma, que é o que tanto deseja, como já pretendeu, estando com o Marquês, para livrar-se do hábito que traz, ou alcançar bulas para ter pensões com que sustentar quem ele quer e ama, como é público.

Não falo em lhe haver emprestado em França três dobrões e haver-lhos pedido nesta cidade pelo mês de Agosto com algum enfado, porque o referido basta para que se conheça o ódio que me tem e que eu lhe perdoo de todo meu coração, para que Deus se lembre de minha miséria.

Outro meu inimigo mortal é um Jorge de Sousa da Costa, que foi alcaide nesta cidade, porque foi um dos da primeira conjuração do jantar de S. Germão; a que se acrescentou haver eu dito dele tinha parte de cristão novo, como é notório. E ultimamente estando eu com o Marquês de Nisa na cerimónia de dar o hábito de Cristo ao filho de Viole d’Athis, que morreu na tomada de Salvaterra, e vendo o dito Jorge de Sousa como o abade do convento de S. Germão de Paris fazia caso de mim na livraria em que estávamos, porque me conhecia, se começou a rir e zombar, de que eu enfadado me cheguei a ele e lhe disse que o aguardava no campo para lhe mostrar de quem se zombava. E, porque ele não quis sair ao desafio, eu o creditei de covarde, e disse aos criados do Marquês o que passava para envergonhá-lo. Disto sabe o Marquês que estimou muito o que eu fizera, porque naquele tempo lhe estava pouco afecto por seus vícios e sair de noite fora de casa; e o sabem também frei António de Serpa, Miguel Botelho, Fernão Marinho, José Henriques e todos os mais, porque foram e são coisas públicas.

Para vingar-se de mim se fez amigo de Simão Lopes Manuel e de Diogo de Pereda, que sabia eram meus inimigos declarados, comunicando-se com eles por cartas, e quando foi a Ruão, aonde esteve pousado em casa de Francisco Rodrigues Lobo, como já disse. 

Outro inimigo meu é Alonso Lope mourisco expulso, que vive em Paris, e declarado castelhano, e contra Portugal em tudo o que pode; por cuja causa tendo eu notícia no ano de 1643 ou princípio de 1644 que ele dizia da Rainha e Cardeal algumas familiaridades indecentes, dei disso conta ao Conde da Vidigueira pedindo-lhe licença para que o arruinássemos. Ele o estimou muito, porém, faltando uma testemunha que lho foi declarar, tive com ele sobre esta matéria grandes dúvidas e cheguei a dizer-lhe que lhe havia de dar de punhaladas, se me não dissesse quem lhe havia dito semelhante coisa; ele houve por bem de o dizer; e desde aquele tempo ficámos inimigos declarados. Sabe disto o Conde da Vidigueira e António Moniz de Carvalho, que me fez queixa de eu lho não haver comunicado, porque ele o houvera arruinado.

Outro inimigo é Simão Lopes Manuel, homem de natural perverso, e que com capa de cristandade tem feito infinitas maldades e processos todos injustos. Com este homem não falei em minha vida mais de três ou quatro vezes, e a última haverá sete anos, vindo ele de Portugal, onde esteve preso no Porto, dizem que por espia. A causa deste ódio é haver-me feito uma traição, abominada ainda de seus amigos e sequazes, porque, sendo eu juiz árbitro de certas dúvidas, que havia entre Diogo de Pereda e outros, para acordá-los na pretensão de uns fardos de Ruão, ele foi o que serviu de medianeiro, dizendo que não era justo refusar-me uma coisa que eu tinha julgado; e ao mesmo instante foi fazer embargo nos ditos fardos. Eu me queixei deste modo de proceder; a que ele respondeu que se lhe não dava de mim, sendo que ele foi o que me veio buscar para dizer-me que era meu servidor e que me conhecia por reputação e escritos, e que desejava ocasiões de servir-me. Enfadado eu de tão ruim termo, levei a causa a Paris e nela alcancei sentença, em que Simão Lopes foi condenado em duzentos mil réis de custas pelo injusto embargo; e nunca mais lhe falei nem de chapéu.

De seus procedimentos podem dar notícia Duarte Dias de Lisboa, morador nesta cidade, que me disse lhe devia muita fazenda, sem lhe querer dar conta dela; João Garcia de Luares, que foi com o Marquês de Nisa e andou com ele em demanda três anos, até que alcançou sentença contra ele de fazenda considerável que lhe negava; Cristóvão Fernandes da Rocha; e todos os franceses de Ruão que lhe chamam o demandão injusto.

Não falo em Paulo de Leme, nem em Diogo de Pereda, porque todos três são um composto para todos seus intentos, a que ajuntaram um francês chamado Guenete, que foi caixeiro de seu cunhado Diogo da Fonseca de Olivedo, se bem, como já disse, Diogo de Pereda foi cabeça de bando contra mim no Consulado.

Desta inimizade sabem o Marquês de Nisa e António Moniz de Carvalho, ainda que se congraçava com eles com avisos de grande cristão e com mandar-lhe presentes de doces pelas festas; o residente Cristóvão Soares de Abreu e outros muitos, além dos referidos.

Outro inimigo é Francisco Fernandes Martins, irmão de minha mulher, porque, vindo ele de Madrid no fim do ano de 1647, quis tomar à outra sua irmã viúva quatro ou cinco mil cruzados, de cujos réditos se sustentava, e havendo-lhe já dado duzentos mil réis, me escreveu quisesse ir a Ruão impedir aquela violência de seu irmão, o que eu fiz e por este respeito viemos a mais que palavras, de que nos não falamos; e ficava em Ruão ao tempo de minha partida. Esta jornada a Ruão foi segunda feita da Semana Santa de 1648; e me tornei a Paris, passada a Páscoa.

Declaro que com o doutor António Moniz de Carvalho tive em Paris algumas diferenças, e ainda que depois nos fizemos amigos, darei delas notícia, pelo que pode suceder. Pelo mês de Maio ou Junho do ano de 1643 me comunicou dito Antonio Moniz certo discurso breve que tinha feito, e por me parecer que o assunto era digno de publicar-se, lhe disse o aumentasse; e para isso lhe dei dois ou três livros de que podia valer-se. E porque eu fui naquele tempo dar liberdade aos portugueses, quando vim o achei doente, e me deu o que tinha escrito, pedindo-me o visse, para se imprimir. Fiz o que me ordenou e o comecei a imprimir. E, como os criados do Marquês de Nisa andavam buscando ocasiões em que malquistassem a todos, tomaram daqui motivo para dizerem que o livro era meu, em ódio a António Moniz; e em meu ódio lhe fizeram dizer que eu dizia que havia feito o livro; de que resultou que António Moniz me pediu um dia lhe desse um escrito meu, em que declarasse que o livro era seu e que eu havia só assistido na impressão dele. E porque ele queria que eu dissesse no escrito algumas palavras afrontosas, tivemos sobre isso palavras, e lhe dei o escrito na forma que a mim me pareceu conveniente, porque de verdade o livro era feito por ele. Conheceu ele depois donde isto procedera e ficámos correndo em amizade, como dantes; e fio eu tanto de seu bom natural, que me atrevo a dizer estarei por tudo o que ele de mim disser. O livro é França interessada com Portugal.

E, conhecendo eu que nos ministros deste Santo Tribunal se deve falar com todo respeito e reverência, peço humildemente licença a Vossas senhorias para dizer o que sinto do doutor Luis Pereira de Castro, por haver achado nele, dez ou doze dias antes de minha prisão uma vontade e estimação muito contrária ao que sempre nele tinha experimentado. Entendo, deve proceder de que se lhe diria o que eu havia dito, quando foi de sua eleição para Embaixador, que é o que segue.

Perguntou-me certo ministro o que me parecia do doutor Luis Pereira de Castro, e foi com tanta instância, que eu disse, levado do zelo do serviço da pátria, que me não parecia acertada por muitas causas:

1.ª Por ser coisa imprópria mandar a um eclesiástico letrado a tratar socorros e negócios de guerra. 

2.ª Porque, havendo de ir, era necessário dar-se-lhe título de bispo para ter autoridade.

3.ª Pelo ódio que tinha com ele monsieur d’Avaux, e que seria de dano, no estado em que estava França.

4.ª Porque 300 000 réis cada mês não eram bastantes para sustentar-se com luzimento sem gastar de sua fazenda, o que ele não havia de fazer.

5.ª Por seu natural violento, de todo contrário ao humor dos franceses e dos que com eles hão-de negociar.

6.ª Por levar consigo uma pedra de escândalo, coisa abominável naquelas partes, e que já lhe havia sido de grande descrédito em Munster (12).

De sorte que eu a não aprovava; e disto poderá dar notícia Pantaleão Figueira; e não nomeio o ministro por não ser necessário. 

Falando eu com o doutor Luis Pereira de Castro, dez dias antes de minha prisão, na sala do palácio sobre haver-se nomeado o doutor Antonio Raposo por secretário da embaixada, ele me respondeu de maneira que fiquei sem sentido. E o que ele me disse poderá dizer o ilustríssimo Bispo-Conde a quem o referi com algum sentimento, na janela da Junta dos Três Estados. E afirmo a Vossas Senhorias pelo miserável estado. em que meus pecados me têm posto que, a não ser eu tão zeloso do serviço da pátria, que tive pensamentos de me passar a Castela, e dali a morrer por esse mundo, só por não ouvir semelhante coisa da boca de um eclesiástico, que em sua casa e fora dela me tratava sempre com tanta estimação. Faço esta lembrança para que se avaliem seus avisos como eu mereço; sem embargo do que reconheço nele todas as partes e qualidades que se requerem para o cargo que exercita, e tenho por sem dúvida que sua negociação será de grande utilidade a este reino pelo estado da Corte de Paris.

Esta declaração, diz Vila-Real terminando a sua memória, feita com toda a verdade e com bastantes lágrimas e suspiros, peço a Vossas Senhorias com toda submissão e reverência sejam servidos mandar se junte a meu processo para servir-me no que houver lugar. E posto que, no tocante aos tempos pudera ser com mais certeza, se tivera o jornal de minha vida e ocupações, contudo vai feita oito dias mais a menos, segundo pode minha afligida memória, esperando da justiça e misericórdia que Vossas Senhorias usam com todos que o antecipá-la eu, antes de saber a causa de minha prisão, me sirva de algum alívio e descargo aos castigos que aguardo e merecem meus grandes pecados. Isto mesmo havia já declarado em primeiro de Dezembro de 1649.»

Assim procurava o desgraçado Vila-Real, ainda ignorante da causa da sua prisão, mas ou por conhecer qual o modo da defesa nos processos inquisitoriais ou guiado pelo seu juízo claro e experiente, assim procurava prevenir as acusações dando como suspeitos quantos julgava poderem ser seus acusadores.

Estas suspeições curiosíssimas, por nos representarem muitos factos particulares da sua vida e nos pintarem como que outros tantos quadros dela, motivo por que as transcrevemos na íntegra, nem todas, nem em tudo merecem crédito; é mesmo plausível supor que muitas pequem, total ou parcialmente por exageradas, conforme convinha ao propósito. Não é nosso fim aquilatá-las; mais longe voltará este assunto, quando o réu as apresentar juntamente com outras nas suas contraditas; e então veremos o que a seu respeito respondem as testemunhas. Entretanto podemos desde já assentar, à vista dos depoimentos de frei Francisco e do Marquês de Nisa, que daquele Vila-Real tinha toda a razão de temer-se, porém que a não tinha quanto a este. No tocante às origens de inimizade de com o primeiro, elas são grandes, naturais, perceptíveis e próprias até certo ponto do carácter de ambos; as da inimizade com o segundo mais fáceis de esquecer, menos prováveis e menos adequadas à ideia favorável que se forma do Embaixador de França, embora não desconheçamos que pessoas, aliás julgadas excelentes, se deixam levar uma ou outra vez à prática de más acções por móveis interesseiros e mesquinhos, do que ele do depoimento de Vila-Real não sai inteiramente sem mácula. Vila-Real julga que o Marquês é que induziu frei Francisco a ir acusá-lo. Neste particular discordamos. Se houve alguém que influísse no ânimo do sábio religioso, antes seria Luis Pereira de Castro do que o Marquês. Não é licito asseverar coisa alguma; não queremos condenar sem provas concludentes; formamos apenas conjecturas, encostando-nos a razões não de todo desatendíveis, mas que poderão talvez ser destruídas por outras mais valiosas; Frei Francisco e Luis Pereira foram ofendidos gravemente por Vila-Real um na sua dignidade de homem e de literato, outro na sua honra pessoal e na sua reputação como ministro; diante de ambos se pôs Vila-Real como estorvo a ambiciosas pretensões; que muito pois que ambos se combinassem para prejudicá-lo, sem talvez preverem bem as fatais, terríveis e últimas consequências do seu condenável procedimento. Cumpre ainda lembrar que frei Francisco diligenciou e obteve acompanhar Luis Pereira na sua missão diplomática, a dependência em que dele ficaria por esse motivo, o desejo que teria de mostrar tomava contra Vila-Real o partido do seu protector ou ao menos do seu superior, serviço em que comprazia a seu próprio ódio, e que Luis Pereira era ministro da Inquisição, o que devia facilitar-lhe o caminho de persegui-lo.

 

IX

 

Às proposições censuradas do El Político christianissimo, à introdução de livros proibidos no reino, às denúncias de frei Francisco, aos depoimentos comprometedores das testemunhas, aos jejuns judaicos provados em forma, grave culpa de Vila-Real aos olhos dos inquisidores, veio juntar-se neste tempo outra acusação que lhe acarretou bastante prejuízo.

João de Águila, natural de Faro, morador em Amsterdam, residente em Lisboa, filho de João de Águila, Biscainho e de Joana Mendes, menor de vinte anos, apresentou-se na Inquisição em 12 de Janeiro de cinquenta e aí declarou que aos nove fora de Portugal para Amsterdam, onde professara publicamente a lei de Moisés e se deixara circuncidar; que tomara por nome judaico Abraham Guer; que desde então, frequentara as sinagogas e celebrara os ritos e cerimónias da mesma lei; e que estava arrependido de suas culpas, pelo que foi reconciliado e ouviu sua sentença a 28 de Janeiro. Ora na sessão de 21, João de Águila, depois de apontar diversos nomes de cristãos novos que em Nantes viviam judaicamente, confessou: haver em Paris um português chamado Vila-Real, que compunha livros e assistia aos embaixadores e que vem a Portugal a pretender despachos de serviços, como o escreveu a Jerónimo Nunes da Costa, patrão dele denunciante; que Vila-Real era judeu observante da lei de Moisés, posto não circuncidado, segundo lhe parecia; que nunca lhe falou nem o viu, mas que o sabia por o mesmo se corresponder com o dito Jerónimo Nunes o qual lhe disse, quando ele confitente passou a França e esteve em Nantes, que, se fosse a parte onde morasse Vila-Real, se podia agasalhar em sua casa sem medo de ele o acusar, por ser muito bom judeu; que Vila-Real esteve em Nantes em casa de Nuno Alvares de Matos e este na daquele, tratando-se ambos como professos na lei de Moisés; que os judeus de Nantes por ele nomeados davam-se com Vila-Real e reconheciam-no como judeu; que, achando-se em Nantes, soube ter escrito Vila-Real a Nuno Álvares de Matos que haviam chegado a Franca dois sobrinhos seus fugidos de Portugal, e que pretendia casar um destes com sua filha e ir para Amsterdam, o que não intentara fazer, se não fora judeu de crença; que o não executou por lhe mover pleito Jacques Fernandes, judeu público em Amsterdam, português, no qual lhe pediu seis mil florins, e se deixou ficar em França, pois ali o dito Jacques não podia demandá-lo em virtude de ser judeu público e de ter vivido como católico nas cidades de Nantes e Paris; que António Henriques Gomes, morador em Ruão, era judeu observante da lei de Moisés, o que sabia com a mesma certeza com que o sabia de Vila-Real, e por lho dizerem os judeus de Nantes, com os quais se tratava como tal; que compusera livros contra a fé católica e o Santo Ofício e a favor da dita lei, livros que ele confitente viu, por o autor os comunicar ao gagão Mortera, mestre dele confitente; que o mesmo Mortera dizia eram feitos os ditos livros com aprovação de Vila-Real e com seu auxílio, por serem muito íntimos e particulares amigos; e que tanto era judeu António Henriques Gomes que o gagão Mortera se admirava, de não passar para Amsterdarn, para nesta cidade frequentar livremente as sinagogas. 

A 14 de Março tornou Vila-Real a ser chamado à Mesa e nela foi interrogado in genere, em geral. Há quanto tempo, disseram-lhe os inquisidores, passou à lei de Moisés, que tem por boa e verdadeira e em que espera salvar-se? Quantos sábados guardou por obra ou na vontade, começando a guarda deles na sexta feira à tarde, vestindo-se de roupa lavada e melhores vestidos, como para dias de festa, conforme os judeus faziam, não trabalhando em nada nos ditos dias? Quantas Páscoas de judeus, que caem na junção da lua de Março, celebrou só ou em companhia de outros da sua nação ao modo judaico, comendo o cordeiro pascal com pão ázimo e alfaces agrestes? Quantas vezes deixou de comer carne de porco, lebres, coelhos, aves, afogados e peixes sem escama? Quantas fez o jejum do dia grande no mês de Setembro, estando todo o dia sem comer nem beber, senão à noite depois de saírem as estrelas, ceando então coisas que não fossem de carne? Quantas só ou em companhia de outrem da sua nação fez o jejum da Rainha Ester, no mês de Fevereiro, estando três dias contínuos sem comer nem beber senão na noite do último dia? Quantas fez o jejum de Thamy, que tem lugar nas segundas e quintas-feiras da semana, estando sem comer nem beber até à noite, e ceando então coisas sem serem de carne? Quantas, vindo a carne do açougue, lhe tirou ou mandou tirar toda a gordura e dessangrá-la e deitou ou mandou deitar na panela em que se cozia azeite frito com cebola? Quantas tirou ou mandou tirar a landoa do quarto traseiro da rês miúda e a gordura? Quantas amortalhou ou mandou amortalhar alguém com camisa e lençol de pano novo e ordenou que fosse sepultado em cova funda e terra virgem? Quantas, morrendo-lhe alguém em casa ou na vizinhança, botou ou mandou botar fora a água que em casa tinha para beber? Quantas, morrendo-lhe alguma pessoa com que fosse unido por parentesco, comeu por alguns dias em mesa baixa e loiça nova e atrás da porta, como os judeus faziam? Quantas mandou varrer a casa da porta para dentro, principalmente nas sextas feiras à tarde, para que com a casa mais limpa e arranjada se celebrasse a guarda do sábado? Quantas lançou a bênção a alguma ou algumas pessoas, sem fazer o sinal da cruz, pondo-lhe a mão sobre a cabeça e correndo-a pelo rosto abaixo e nomeando os patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, como os judeus?

Até aqui Vila-Real respondeu a todos os quesitos negativamente; aos restantes porém fê-lo do modo que vamos ver.

Quantas vezes leu livros que dizem ser boa e verdadeira a lei de Moisés e falsa a lei evangélica de Cristo nosso Senhor? Nunca leu livros que contivessem judaísmo, nem cerimónias da lei de Moisés, e só parte de uns que compôs um judeu português, Manasses Ben Ismael, de que não sabe o nome cristão, morador em Amsterdam, onde é gagão, os quais têm por título: Conciliador dos Lugares da Escritura, no parecer encontrados e Ressurreição dos mortos, ambos em espanhol, De termino vitæ, em latim; a sua doutrina quanto ao assunto não era herética, posto no discurso constasse de opiniões de rabinos e de proposições contrárias à santa fé. Estes livros deu-os ao Marquês de Nisa, o Conciliador em Paris, e os outros mandando-lhos de Ruão. Quantas vezes teve livros heréticos, lendo-os e fazendo-os entrar em terras de católicos onde se não consentem heresias, antes, se castigam? A isto respondeu o que já outra ocasião depusera quanto aos que trouxe de França. Quantas escreveu alguns livros ou papéis ou imprimiu alguns deles em que se contivessem proposições mal soantes e que muito estranhavam o procedimento do Santo Ofício, mostrando-se desafecto às suas coisas e favorecendo as pessoas que nele são presas e processadas? Depois de estar preso, fez a 19 de Janeiro uma memória (é a de que transcrevemos parte), que foi presente á Mesa em 24 com a relação dos seus escritos e dos que havia impresso, e em nenhum deles se houve como mau cristão. O El Politico christianissimo dera-o a rever a frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo e a Cristóvão Soares de Abreu, secretário da embaixada, e nele nada havia contra a fé nem contra o procedimento do Santo Ofício, pois que aí se dizia a seu respeito era só com o desejo de o defender; além disso, o mesmo livro foi revisto por Mazarino por ordem do Cardeal Richelieu. Também escreveu por ordem do Marquês de Nisa uma memória sobre a conveniência de se tirar o confisco aos culpados. e presos pelo Santo Ofício, tanto de seus bens, como dos alheios que em seu poder tivessem, para assim se aumentar o comércio; memória que o Marquês estimou muito e enviou a S. M., reforçando-a com outra que compôs e mandou para Portugal por via de Itália, para que assim chegando o mesmo alvitre de várias partes mais persuadisse. Nesta sessão foi o réu admoestado pela segunda vez.

Na sessão in specie, em particular, a 29 do dito mês, depôs Vila-Real : que, tendo sido revisto o El Político christianissimo por Mazarino e por frei Francisco julgava não conter coisa alguma defesa; que entretanto confessava pretender nele que se emendasse o procedimento do Santo Ofício; quanto às outras proposições não o movera nenhuma tenção malévola contra o baptismo. Nas controvérsias religiosas referia-se às de França e às razões de Estado que moveram o Cardeal Richelieu a se ajudar dos hereges contra os católicos, posto nalgumas coisas intentasse tocar no Santo Ofício, do que estava arrependido. Em França tratava com todos os portugueses sendo alguns judeus encobertos, porque os judeus naquele País se castigavam com muito rigor. Quanto a judeus públicos, por causa do serviço de S.M., correspondia-se com Jerónimo Nunes da Costa e Lopo Ramires, de Amsterdam, e com Duarte Nunes da Costa, de Hamburgo. Escrevera uma vez a Menasses Ben Ismael, mas por ordem do Marquês de Nisa, e duas por cumprimento para Mildburgo, a D. Jorge da Costa. Não recebera de Amsterdam o livro de doutrinas e cerimónias hebraicas intitulado Thesoiro dos Denim; mas só o vira. Tinha em seu poder parte da obra de António Henriques Gomes, porém fora ele que fizera com que não se acabasse de imprimir. Unicamente por gracejo dizia descender de profetas. Ao contrário do que se afirmava, contestara a opinião do Marquês de se consentir que a gente de nação morasse no reino com segurança e com segurança mandasse a ele as suas fazendas, tirando-se-lhe para isso o confisco e dando-se-lhe abertas e publicadas, porque seria fornecer motivos a Espanha para mais se queixar de Portugal em Roma. Não saíra de Paris com o fim de ir noutra parte celebrar a Páscoa, pois não se ausentara daquela cidade durante ela ou na Quaresma, senão em quarenta e sete e em quarenta e nove, vindo para o reino. Não era judeu e, se o fosse, aceitaria grandes partidos que dizia lhe tinham sido feitos de Amsterdam. Além disto, respondeu não ter jejuado, às quatro perguntas que lhe dirigiram correspondentes aos quatro jejuns do cárcere, aos quais, note-se bem, segundo o modo caviloso dos processos inquisitoriais, não só não se marcou nem lugar nem tempo, mas até se falsificou este para mais embaraçar e comprometer o réu. Nesta sessão foi a terceira e última admoestação antes do libelo.

 

X

 

Apertado o espírito pelos terrores inquisitoriais e pela diuturnidade da prisão, desnorteado o pensamento, à força de cogitar na sua grande desgraça e de debater-se no enredado labirinto de tantas perguntas, qual mais escura e misteriosa, caminhando quase nas trevas, instado frequentemente por todos para confessar a verdade, e julgando que poderia conseguir misericórdia descobrindo só parte dela, Vila-Real no dia seguinte, 30 de Março, compareceu, na Mesa, e, pondo-se de joelhos, pediu para confessar suas culpas. Haverá dezoito anos, expôs Vila-Real, conheceu que sua mulher, Isabel Dias, seguia a lei de Moisés pelos jejuns e cerimónias que fazia, o que lhe estranhou; Inês Dias e Maria de Morais, mãe e irmã dela, também a seguiam; pediram-lhe todas que as imitasse, o que ele não quis; mas consentiu persistissem no erro; neste estado continuaram as coisas dois ou três anos, gastando ele confitente a maior parte deste tempo em Coimbra e no seu campo em negócios que lá tinha, até que, voltando a Lisboa, se resolveu, principalmente por esta causa, a deixar o reino, como deixou, indo para Sevilha, onde esteve despachado para fazer uma viagem às Índias de Castela, o que não tendo efeito, passou a Madrid e daí a Málaga: e nisto gastou uns três anos, sem escrever a sua mulher pelo  aborrecimento que lhe tinha em razão da crença; de Málaga passou a França, onde em Ruão tratou de comprar um navio, e nesta ocasião, instado por João Rodrigues de Morais, Diogo Henriques Cardoso e António de Cáceres, cristãos novos, todos moradores naquela cidade, trocou a fé católica pela lei de Moisés e nela continuou três anos; era então hóspede do dito João Rodrigues de Morais; e celebrou com ele e com as outras pessoas nomeadas as Páscoas de trinta e nove e quarenta, e com os mesmos fez o jejum grande, que vem na lua de Setembro, naqueles anos e casa. Terminou a sessão expondo quais os sujeitos a que se declarou como judeu, exposição que se prolongou (tantos foram) pelas sessões de 31 de Março e de 1 e 4 de Abril. Finalmente na sessão de 5 de Abril nomeou as pessoas que sabia professarem publicamente a lei de Moisés, sendo entre outras um Custódio Lobo da Costa, cristão novo, natural de Lisboa, mercador e poeta. Confessou também nesta sessão que jejuara judaicamente algumas vezes em Paris e Fontainebleau, e ratificou tudo quanto dissera.

Estes depoimentos, com que o réu procurava escudar-se, mostrando obediência às admoestações dos inquisidores e de quantos o rodeavam para confessar as suas culpas, único meio de obter misericórdia, confessando o que fez ou não fez, e delatando, sabe Deus com que razão, tantas pessoas do seu conhecimento, para não incorrer na condenação de diminuto, estes depoimentos não tardaram porém a ser prejudicados pela constância na sua crença, pois, apenas decorrido um dia, a sós no cárcere, longe dos juízes e supondo que ninguém via, fez novo jejum judaico e na quinta feira seguinte, que era a de Endoenças, outro, e na quinta feira 28, outro, ocorrendo nestes três a circunstância agravante de serem depois da confissão. Além disto, no sábado, 30, Vila-Real comeu de carne, contra os preceitos da Igreja, aproveitando o carneiro que se lhe dera na quinta feira antecedente, em que jejuara. Tudo foi observado pelos vigias (os mesmos dos quatro jejuns anteriores) e declarado com as formalidades já sabidas.

Entretanto, sete dias depois do último jejum, a 5 de Maio, Vila-Real, ignorante de que os seus actos eram conhecidos, vinha de novo à Mesa e depunha: que havia onze anos, se apartara da fé; que recebia os sacramentos para se fingir católico e não todos os anos; que determinara, apenas chegasse ao reino, apresentar-se ao Santo Ofício e confessar suas culpas; mas que elas lhe meteram medo, assim como a censura de que fora objecto o seu livro El politico christianissimo; e que logo nos dias seguintes ao da prisão, tocado de arrependimento, deixara a lei de Moisés e tornara à fé cristã, isto, acabando de fazer três jejuns judaicos, depois de seis meses de cárcere!

Desde 5 de Maio até 26 de Agosto, Vila-Real não tornou a ser chamado. Não se julgue daqui entretanto que a Inquisição se esquecera dele. Neste dia porém compareceu na Mesa, e, interrogado em especial a respeito dos sete jejuns que fizera e de comer carne num sábado, sem se lhe assinar, como antes, nem o lugar nem o tempo, respondeu a todas as questões negativamente; depois do que foi admoestado a dizer a verdade e advertido de que o promotor do Santo Ofício pretendia acusá-lo por suas diminuições e apresentar contra ele um libelo criminal, admoestação e advertência que se lhe repetiram no dia imediato.

Cumpridas estas formalidades, o promotor apresentou o seu libelo, cujas forças eram as seguintes: Depois do último perdão geral, apartou-se o réu da fé de Cristo; assim o confessou e que permanecera na lei de Moisés até certo tempo; sendo admoestado várias vezes para declarar suas culpas e toda a verdade delas e as pessoas com quem as comunicou e sabe andarem apartadas da fé, tudo nega e encobre, não por esquecimento, mas por malícia, porque se prova que jejuou sete vezes e comeu carne uma vez ao sábado; e, sendo o réu admoestado, e não querendo dizer todas suas culpas, etc., e negando e encobrindo tudo, por ser ainda herege e apóstata da nossa santa fé, pede ele promotor que, provado o necessário, seja como herege e apóstata da nossa santa fé católica, ficto, falso, simulado e confitente diminuto, declarado por tal, e que incorreu em sentença de excomunhão e confiscação de todos seus bens para o fisco e câmara real e nas mais penas em direito contra os semelhantes estabelecidas e que seja relaxado à Justiça secular.

A este libelo, que lhe foi lido, respondeu Vila-Real que o contestava pela matéria de suas confissões; que queria estar com procurador para sua defesa; e que para esse fim aceitava o licenciado António de Magalhães, que naquela Mesa costumava advogar pelos presos, e lhe fora indigitado, ao qual se deu o competente juramento a 31 de Agosto, obrigando-se ele procurador a desistir da causa, se pelo decurso da mesma entendesse que o réu se não defendia com justiça.

Contestado pelo réu, como anteriormente, o libelo pela matéria da sua confissão e ratificado com protesto de confessar tudo que de novo lhe viesse à memória, e juntamente com o de contraditas a seu tempo, foi lançado a 1 de Setembro da defesa, por não ter vindo até então com ela; requereu o promotor para se publicar ao réu a prova de justiça; foi, antes disso admoestado para dizer toda a verdade; e em seguida fez-se-lhe a publicação; à qual respondeu que era verdade o que tinha confessado na Mesa e a publicação enquanto com isso concordava; que tudo o mais contestava pela matéria da sua confissão; e que tinha contraditas com que vir.  

Cifrava-se a prova da justiça no resumo dos depoimentos dos três livreiros ouvidos acerca do verdadeiro autor da obra El politico christianissimo e das testemunhas da acusação: frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo, o Marquês de Nisa, os dois criados deste, frei António de Serpa e os vigias dos jejuns; porém esse resumo fez-se, como de costume, com todo o resguardo e astúcia, de maneira que o preso não soube dele nem quais os seus acusadores, nem as pessoas a que estes se referiam, nem o tempo, nem o teatro dos factos. Mostraremos um exemplo. Referindo-se ao depoimento de frei Francisco de 22 de Outubro de 1649, já de nós conhecido, a prova expressava-se por estas palavras: «Uma das ditas testemunhas da justiça autora, jurada e ratificada na forma de direito, diz mais: que sabe, pelo ver e ouvir, que, do dito tempo de quatro anos a esta parte, se achou ele réu Manuel Fernandes em certo lugar, onde por vezes dizia que era justo haver no Santo Ofício abertas e publicadas, e pedia com instância a certa pessoa de grande autoridade que escrevesse a outra ainda superior que favorecesse a gente de nação,» etc. Como daqui se mostra, omitia-se o nome do acusador; marcava-se arbitrariamente a data de quatro anos; não se especificava o lugar do sucesso, e escondiam-se o Marquês de Nisa e D. João IV nas designações vagas de certa pessoa de grande autoridade e outra ainda superior, tudo com o fim de desnortear, confundir e prejudicar o réu, para o que se usou do mesmo resguardo e astúcia nos outros actos que directamente lhe diziam respeito e em que figurava.

Estas considerações levam-nos a fazer outras acerca do modo de defesa costumado no tribunal do Santo Ofício. O defensor, já o sabemos, era uma criatura do tribunal, por ele escolhido, e não da vontade do criminoso; elegia-o a Mesa de entre os familiares; além disto no juramento impunha-se-lhe a obrigação de abandonar a defesa, no caso de não achar nela justiça, ou, o que valia o mesmo, no caso de ser conveniente à Inquisição. Mas ainda há mais: o defensor não podia requerer o que o direito lhe aconselhava, porque não podia usar do direito, nem exceder as práticas ordenadas; não via o processo, nem os termos que nele se continuavam, pelo que estava na mesma ou quase na mesma ignorância do preso; ao contrário, esses termos corriam na sua ausência só com o preso, e de nenhum se lhe dava vista para os contestar ou anular, enquanto que o promotor da justiça via para acusar o réu todo o processo e estava senhor de todo o segredo, desigualdade flagrante que não ocorria em nenhum tribunal secular ou eclesiástico nem em delito algum de lesa majestade humana. A defesa limitava-se portanto a coarctar, isto é, a mostrar que o réu estava ausente do sítio do delito na ocasião em que diziam tê-lo cometido, a contraditar, isto é, a dar por suspeitas indistintamente quantas pessoas o réu imaginava que poderiam acusá-lo, e a aconselhar-lhe que confessasse tudo para não ser condenado, sem mostrar como as testemunhas em seu desfavor eram inválidas por singulares, não contestes, defeituosas, algumas interessadas na vida, pois para salvá-la depunham contra ele, e por outras muitas circunstâncias indignas de credito, e que eram às vezes presos que se confessavam sócios no mesmo crime. Arredar-se deste caminho e querer usar dos meios de direito acarretaria ao defensor ser encerrado num cárcere e experimentar áspero castigo por sentir mal do procedimento do Santo Ofício. O defensor por conseguinte mais comprometia do que defendia o réu; nem podia fazer outra coisa. Sobre o que fica dito, às entrevistas do réu com o procurador assistia sempre o meirinho do Santo Ofício ou um dos solicitadores no seu impedimento, o que representava uma grande coacção; o despacho por que as contraditas do réu ou algum artigo delas eram recebidos não se lhe publicava, para de nenhum modo conhecer as pessoas que testemunhavam contra ele, e até mesmo, não sendo recebidas as contraditas, podiam deixar de lhe publicar o despacho, se por este lhe fosse factível descobrir as testemunhas ou se dali resultasse algum inconveniente considerável; e na sessão in specie o Regimento, depois de estatuir que o réu fosse perguntado no modo em que as testemunhas depusessem contra ele e formando-se uma pergunta da cada testemunha, determinava que, havendo alguma circunstância particular, pela qual se pudesse conhecer a testemunha, se calasse esta circunstância, e que se houvesse testemunhas contestes, se fizesse de todas uma só pergunta. No caso de Vila-Real, a defesa consistiu unicamente nas contraditas, como vimos.

 

XI

 

Foram três essas contraditas, e nelas deu o réu por suspeitas e portanto indignas de crédito muitas pessoas que eram ou podiam ser seus inimigos. De algumas já conhecemos os motivos da suspeição no que transcrevemos da memória por ele apresentada à Mesa no dia 4 de Janeiro; os provarás que lhe respeitam desnecessário pois se torna resumi-los aqui; seria repetir o que já foi escrito. Mas, além dessas pessoas, isto é: do Marquês de Nisa, de frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo, Jorge de Sousa da Costa, Alonso Lopes, Simão Lopes Manuel, Paulo de Lene, Diogo de Pereda, Guenete, Francisco Fernandes Martins, Antonio Moniz de Carvalho e Luis Pereira de Castro, mas, além de todos estes, outros especificou Vila-Real cujo testemunho se não devia atender pelo mal que lhe queriam ou que ele imaginava quererem-lhe.

Vejamos quais os seus nomes e quais os motivos da suspeição, com o que juntaremos novos elementos para se formar ideia daquela época, já de nós tão distante, e sobretudo do carácter de Vila-Real, e para dar mais alguns toques à sua biografia.

Francisco Álvares era seu inimigo, alegava o réu, porque no ano de 1644, estando por embaixador extraordinário em França o Marquês de Cascais, D. João de Castro, seu filho natural, e D. Diogo de Almeida se quiseram passar, por conselho do contraditado, ao exército de Alemanha, então sob o governo do príncipe de Condé, e ele réu foi pela posta a busca-los, e, achando-os em companhia do contraditado, por força fez que voltassem, pegando no contraditado, lançando-o no chão, e dando-lhe muitas pancadas, donde o contraditado ficou ferido no nariz com um grande defeito e disformidade.  

O padre frei Manuel de S. Tomé, da ordem dos Pregadores, que foi a França por confessor do Marquês de Cascais, era seu inimigo, porque, sabendo ele réu de uma leviandade sua com uma donzela francesa, filha de um português, o repreendeu, caso que se tornou público, o que muito o escandalizou.  

Francisco Luis Rebelo era seu inimigo, porque, andando de amores no mosteiro de Sant’Ana de Lisboa com uma religiosa chamada D. Vicência de Almeida, ele réu veio a ter com esta amizade (seria a mesma para quem Vila-Real escreveu o discurso El color verde?), o que o contraditado sentiu muito, resultando daí fazer uma sátira, em que falava nele réu com grande desprezo, e ele réu responder-lhe com outra, em que o tratava mal, tocando em coisas de sua honra, a qual se divulgou na Corte e foi aplaudida; pelo que o contraditado se agravou extremamente, assim como um seu irmão, cujo nome ignora, por a sátira o ofender também.

Roqueomont, francês, morador em Lisboa, era seu inimigo capital por ele réu galantear sua mulher, indo a sua casa algumas vezes e recebendo escritos seus, o que o contraditado soube, e tanto que o procurou em casa do padre João Baptista Caldeira, com ânimo de ofendê-lo, o que não fez por falta de oportunidade. A fora o que, anteriormente o contraditado tinha dito grandes males dele réu e ameaçado arruiná-lo de todo, por lhe contarem que falava contra os ministros de França, chegando, em vingança, a escrever queixando-se disto ao Secretário de Estado, Pedro Vieira da Silva. Acrescia ser o contraditado homem malévolo, do que se jactava publicamente, e havido por todos como mentiroso.

João Saint-Pé, Cônsul da nação francesa, morador em Lisboa, era seu inimigo, porque Vila-Real nunca lhe deu a sentença que a seu favor alcançara em França a respeito do exercício do seu cargo por lhe não pagar o custo da mesma e certo dinheiro que lhe devia, e não fazer escritura pública para cumprimento de uma convenção que entre si tinham.

Guilherme Garnier, francês, capitão do navio em que Vila-Real veio de França com o Marquês era seu inimigo por imaginar que ele réu fora a causa de não lhe dar o Marquês certa quantia além do frete, como esperava; pelo que, encontrando-se, se descompuseram de palavras; e também por julgar que pela influência dele réu é que a Companhia do Comércio lhe impusera a cláusula de levar na sua embarcação, pela mesma fretada para ir ao Brasil, um capitão-de-mar-e-guerra português, que recebesse as ordens do general e ao qual ficasse subordinado.

João de Lartiga, francês, corretor e intérprete, era seu inimigo por ele réu lhe não ter falado no fretamento do navio de Garnier, sendo a sua ocupação fazer semelhantes ajustes.

Os capitães Desparques e Doalde, franceses, que no ano passado haviam feito parte da frota da Companhia para o Brasil, eram seus inimigos, por ele réu os censurar de não terem ido ao Porto buscar uns navios, como se lhes ordenara, por dar à Companhia informação desfavorável acerca do segundo, e por lhe dizer que, se tivesse voto, não iriam ao Brasil sem prestarem fiança.

Antonio da Cunha, criado do Marquês de Cascais, era seu inimigo por lhe ter reprovado ele réu alguns actos de seu amo, quando embaixador em França.

Motta, criado do mesmo, também por lhe ter censurado servir ao Marquês em França de medianeiro para coisas impróprias.

Marcos da Silva e Manuel da Costa, que foram caixeiros dele réu, eram seus inimigos, o que bem se viu na má vontade que mostraram, quando a Companhia do Comércio o encarregou de tratar dos seus negócios em França.

E afinal eram-no todos os criados do Marquês de Nisa que estiveram com este nas suas embaixadas por terem tido inveja do modo por que tratavam a ele réu.

Todos os franceses moradores em Lisboa por ele réu ter alcançado a dita sentença a favor de seu Cônsul Saint-Pé, com o que ficaram contrariados, e pelas queixas que fez dos ministros de França.

Todos os portugueses em França, a quem, e aos seus parentes e interessados em Portugal, não convinha que ele réu fosse Cônsul, e particularmente os de Nantes por umas palavras injuriosas que disse contra os mesmos ao Marquês.

E toda a tripulação do navio em que ele réu veio de França pela dependência em que estavam de Garnier, seu capitão.

Foram muitas as pessoas dadas por Vila-Real para prova destas contraditas, principalmente das primeiras, que são as mais importantes, mas de cujos vinte e sete artigos, somente se receberam sete por tocarem ao Marquês de Nisa, a frei Francisco de Santo Agostinho e a Fernão Marinho, testemunhas da justiça, não o sendo os mais ex causa. Das segundas contraditas,  em cinco artigos, recebeu-se apenas um; e das terceiras, em nove, receberam-se unicamente dois, por tocarem ao dito Fernão Marinho, testemunha da justiça, ficando excluídos os outros ex causa.

Os sujeitos inquiridos foram: Miguel Botelho de Carvalho, ex-secretário do Marquês de Nisa em França, Antonio Moniz de Carvalho, que fora residente de Portugal no mesmo país, João Baptista Caldeira, o padre João Correia da ordem de S. Domingos, o padre Amaro Barreiros, Francisco de Melo, Francisco Salgado e Manuel Leão, ambos criados do Marquês, João Mendes Sampaio, criado do camareiro-mor, e João Rodrigues de Sá, Conde de Penaguião, camareiro-mor. Os seus depoimentos pouco ou nada provaram do que o réu tinha alegado. Quanto ao Marquês de Nisa, uns disseram que era amigo do réu; outro (Francisco de Melo) que o Marquês lhe pedira os seus livros; que sentira havê-los dado ao camareiro-mor; mas que por esta razão não ficara mal com ele, antes, se pudesse, lhe faria todo o bem, e que muito estimaria vê-lo livre; outro que, embora o Marquês se doesse de Vila-Real se ter sentado com ele à mesa, não resultara daí inimizade alguma, e até depois lhe concedera essa honra várias vezes; outro (o Conde de Penaguião) declarou gostar de ouvir o réu sobre as coisas de fora do reino e sobre a vinda do Marquês de Nisa, pela circunstância deste a fazer sem ordem de S. Majestade; ignorava porém que o Marquês se tornasse por isso inimigo do réu; que naquele tempo o Marquês não tinha amizade com ele testemunha por pensar que o acrimoniara com S. Majestade por causa da sua vinda; que o réu lhe emprestou o Legatus, de Marselaer, pedindo-o ao Marquês, que o tinha para defender-se; que ele testemunha já possuíra este livro; que nele se tratava das penas contra os embaixadores que deixavam as Cortes dos príncipes onde estavam, sem licença; e que ele testemunha desculpava o procedimento de S. Majestade contra o Marquês, mostrando a passagem correspondente do dito livro, o que era natural que o Marquês soubesse Quanto a frei Francisco, o réu indispôs-se com ele por o não convidar para ouvir um sermão que o padre pregara em França, segundo uma das testemunhas; segundo outra, descompuseram-se uma vez à ceia em casa do Marquês, não se lembrava porquê; mas depois continuaram a falar-se, e não sabia que fossem inimigos; ouviu também dizer que o réu obstara a que o padre fosse a Saint-Germain, pelos motivos conhecidos. Só uma das testemunhas disse que o réu era mal visto em Nantes pelos portugueses por amor do seu emprego de Cônsul. Quanto aos criados do Marquês, concordaram as testemunhas no facto de lhes mover inveja à preferência dada ao réu pelo mesmo Marquês e na Corte de França, mas que em geral não eram inimigos dele; somente se desaviera com Jorge de Sousa, chegando a desafiarem-se, posto sem efeito. Com António da Cunha, criado do Marquês de Cascais, tivera o réu algumas questões em matérias leves acerca do dito Marquês, das quais, na opinião do depoente, não resultara inimizade.

Estas inquirições duraram de 6 a 12 de Dezembro de cinquenta, e, como se conclui do que acabamos de ler, de nada serviram à defesa de Vila-Real.

 

XII

 

Uma das coisas que mais inquietavam o réu eram os jejuns e com razão, porque essa culpa, ainda sem outras, lhe poderia trazer gravíssimo comprometimento; um dos seus empenhos consistia portanto em defender-se dela; e por isso, já antes, a 24 de Setembro, pedira declaração do tempo e lugar ou lugares em que se dizia terem sido feitos. A resposta do promotor foi porém, como de costume, tão deficiente e escura, que o deixou no mesmo embaraço e perplexidade em que estava anteriormente: a declaração do tempo já a sabia pela publicação da culpa (onde o tempo falsamente se marcava), e no tocante ao lugar limitava-lhe a cidade de Lisboa. Já não era pouco!

Desnorteado por estas vagas indicações, imaginando que os jejuns sucederam fora da prisão, Vila-Real pede que se apure a verdade do que depõem contra ele; declara o seu modo de vida; onde passava os dias até depois de anoitecer; e combate com vários argumentos tirados da própria lei de Moisés a impossibilidade de os ter celebrado. Vai ainda mais longe: apresenta uns artigos de defesa e contraditas em que repete os mesmos argumentos, além de outros, e entre estes o seguinte: os jejuns eram acções independentes de cúmplices; não se podiam saber senão declarando-se; e ele réu decerto não se declararia a dezasseis pesoas, que tantas eram as testemunhas: argumento proveniente da ignorância de Vila-Real acerca dos vigias, pois as dezasseis testemunhas eram eles. Não se ocupavam porém só esses artigos dos jejuns e de haver comido o réu carne a um sábado, culpa que lhes andava anexa, conforme temos visto; espraiavam-se também a respeito das acusações de importação e leitura de livros proibidos, que combatiam pouco mais ou menos do modo que já sabemos, e sobre o réu pretender a reforma do Santo Ofício com abertas e publicadas, o que negavam, mostrando, pelo contrário, havê-la impugnado; ter entrado nisso, não por favorecer a gente de nação, mas como pessoa a quem se comunicavam as matérias de confiança; acrescentando que fora contra a negociação agenciada pelo padre Antonio Vieira em Holanda neste particular e até recusara acompanhar frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo àquele país para igual fim, e mesmo lhe estranhara a ida, por ser contra o que havia escrito em Lisboa no assunto em desfavor de Vieira.

Estes artigos de nada lhe valeram também. A 20 de Novembro decidiram os Inquisidores que não fosse recebida a defesa, vistos os autos, ser o réu confitente e não excluir com o que articulava a culpa em que estava diminuto. Quanto às contraditas não lhe foram recebidas ex causa.  

 

XIII

 

A 8 de Novembro efectuara-se a primeira sessão apertada, e nela o réu nada mais confessara. Em 17 de Dezembro foi a segunda, e nesta declarou que tinha celebrado a Páscoa de Março de 1646 em Ruão com Francisco Fernandes Martins, seu cunhado, Isabel Dias, sua mulher, e Maria de Morais, sua cunhada; e denunciou António Rodrigues de Morais e Luis António de Morais como desejando ir para Holanda para ali viverem livremente no judaísmo. Inúteis depoimentos: a Mesa assentou que, posto o réu confessasse ter-se apartado da fé e tomado a crença da Lei de Moisés, dizendo de muitas pessoas com que não estava delato, não se achavam as suas confissões no termo de serem recebidas, por ter feito, antes de confessar, quatro jejuns judaicos e depois três; donde se concluía não estar verdadeiramente arrependido e dever, como herege e apóstata da Santa fé católica falso, ficto, simulado, confitente diminuto, ser entregue à justiça secular, servatis servandis, e que incorreu em sentença de excomunhão maior e confiscação de todos os seus bens aplicados ao fisco e câmara e nas mais penas contra os semelhantes estabelecidas. Este assento foi confirmado pelo Conselho Geral a 17 de Janeiro de cinquenta e um, e só se declarou ao réu vinte e dois meses depois, isto é, a 18 de Novembro de cinquenta e dois, porque o Santo Ofício entre os seus actos punha arbitrariamente os intervalos que muito bem lhe parecia, sem piedade nenhuma com os presos, antes, para lhes aumentar o sofrimento, conservá-los na cruel incerteza do destino horrível que os esperava e acumular ou escogitar por meio do testemunho de outros presos provas dos crimes de que eram processados ou de crimes novos.

Mais de um ano, depois do assento do Conselho, jazeu Vila-Real dentro dos muros da sua estreita prisão, sem tornar a ser interrogado e sem que o processo nos fale a seu respeito, até que em 25 de Janeiro de cinquenta e dois, sendo inquiridos dois presos seus vizinhos, fez um deles um depoimento que veio ainda concorrer para comprometê-lo. Segundo esse depoimento, o réu, conversando com os presos uma vez, dissera que tinha estado em França, onde o haviam estimado muito reis e príncipes, correspondendo-se com alguns e em especial com cardeais; que fora parar à Inquisição, tendo voltado ao reino, persuadido pelo Marquês de Niza, o qual, depois de lhe segurar que El-Rei lhe faria grandes mercês, testemunhara contra ele e buscara doze ou catorze franceses que depuseram ter-lhe visto fazer um jejum e comer carne ao sábado (ainda a ignorância de haver vigias); mas Deus o castigara com a prisão nos cárceres do Santo Ofício de seu cunhado, o conde de Vila Franca. Outra vez perguntou Vila-Real a um preso vizinho pelo homem grande, que era Duarte da Silva, obtendo em resposta que vivia bem e muito mimoso, pois lhe davam quanto pedia; e se Duarte da Silva sabia estarem seus filhos na Inquisição; ao que o preso tornou que sim. Pediu-lhe também Vila-Real notícias de um fulano Sequeira, encarcerado pelo Corpo de Deus, porque era pessoa que lhe podia dar novas importantes e que lhe indicasse algum preso que pudesse contar o que passava lá por fora; ao que o interrogado replicou que estivera com um Sequeira, o qual lhe dissera, que sairiam todos com perdão geral, porém que era outro. Pediu-lhe igualmente Vila-Real que, se o soltassem antes dele, procurasse o padre António Vieira e o avisasse de se indagar muito na Inquisição do seu procedimento nas terras estrangeiras por onde andara, e de que portanto lhe convinha acautelar-se; o que o preso lhe prometeu fazer por si ou por outrem. Perguntou mais Vila-Real a outro preso por um parente deste; e, ouvindo que comparecera na Mesa para acusar-se, observou que considerasse o que fazia e advertisse que se levavam ao Santo Ofício com aquela pressa muitos inocentes; que, pois tinha andado por Castela, depusesse das pessoas culpadas de lá, e não dos inocentes que estavam no reino, nem inquietasse estes e os tirasse de suas casas. Disse ainda Vila-Real, falando geralmente aos presos do corredor, que Duarte da Silva prejudicava a todos, porque a sua muita riqueza era motivo de lhe demorarem a prisão, e que só de uma vez tinham ido para a Inquisição dez mil cruzados (13). Além disto, queixou-se-lhes Vila-Real do Santo Ofício, observando que prendia um homem, embora estimado e bem conceituado, porque dois cristãos novos testemunhavam que se declarara com eles, e que, se o mesmo preso se queria defender e apresentar em prova da sua defesa outros cristãos novos, lhe respondiam que no Santo Ofício não se dava crédito a gente de nação.

Quando houve estas conversas, o réu estava na quinta casa do Corredor Meio Novo, para onde fora manado em 16 de Dezembro de cinquenta e um, e o declarante na sexta. Naturalmente por meio de sinais convencionados, talvez aqueles toques na parede que um dos vigias notou, ou por Francisco Gomes Neto, desde Junho de cinquenta, pouco mais ou menos, seu companheiro de cárcere, ficou sabendo que nos vizinhos existiam presos seus correligionários; julgou levianamente poder confiar-se neles, e cometeu a imprudência de falar-lhes. Constou este abuso aos inquisidores, e daí proveio ser mudado o réu de casa e de corredor, e ir o preso declarante, que então foi ocupar a casa onde morara Vila-Real, relatar o que lhe ouvira, para prevenir, observava ele, que fizesse o mesmo no cárcere que novamente lhe tinham assinado (14).

 

XIV

 

Estivera só Vila-Real ao princípio (assim o mandava o Regimento), e assim se conservou até algum tempo depois dos jejuns, o último dos quais teve lugar a 29 de Abril de cinquenta; aí porém pelo mês de Junho deste ano, como já dissemos, foi-lhe dado por companheiro Francisco Gomes Neto, cristão novo, natural de Lisboa e em Lisboa morador, preso também por culpas de judaísmo; com quem viveu vinte e nove meses e de quem o separaram a 17 de Novembro de cinquenta e dois. Apartado de Gomes Neto, Vila-Real no dia seguinte compareceu ante os inquisidores e confessou o seguinte: Até àquela hora observara a lei de Moisés; ajudara-o nisso muito o seu companheiro, o qual para guardá-la jejuava judaicamente; fazia a cama à sexta-feira, e às vezes com roupa lavada, quando a tinha; na sexta-feira varria a casa, lavava a loiça e limpava o candeeiro; nas luas da Páscoa de Março não comia pão, por não ser ázimo; nos sábados não trabalhava em nada; e jejuava muitas vezes dois a três dias seguidos, sem neles comer senão no fim do último; jejuava também, ora com o companheiro ora às semanas; em muitos sábados comeram ambos carne, que guardavam da quinta-feira; para imitar Gomes Neto, passou muitos dias e noites sem se deitar na cama, dormindo no estrado e só se deitando ao sábado; rezavam juntos os salmos sem gloria Patri, e ele réu fazia confissões gerais de seus pecados a Deus todos os dias três vezes em cada dia e noite, e rezava pelas contas que trazia nas mãos, para mostrar, se o vissem, que era cristão; nos seis meses antes de preso fez alguns jejuns nas segundas e quintas-feiras e no dia grande do mês de Setembro e no tempo das três semanas, que caem na lua de Junho, os quais seriam seis ou sete; em França comprara o livro Ritti hebraici que dera ao Marquês de Nisa; quando ele réu e Neto jejuavam, botavam o comer aos gatos e às galinhas; com a gordura da carne, lixo da casa e caliça formara um betume com que tapara os buracos das estacas, e outros que havia nas paredes, para melhor pintar e escrever algumas coisas por passatempo; subira no estrado, que para isso empinara, tapara dois buracos que achou na abóbada do quinto cárcere do Corredor Meio Novo, sete meses depois de estar nele, e tendo já Neto por companheiro, a fim de não serem vistos nem ouvidos; e o mesmo fez, sendo mudado com o Neto para a primeira casa do Pátio Cano: sendo mudados ambos para a nova casa do Pátio Novo, observando na abóbada dela também buracos, por detrás dos quais se via claridade, não os quis tapar e descontinuou os jejuns, tendo só feito neste cárcere três em Setembro e Outubro próximo passados com o companheiro, não deixando contudo de praticar as cerimónias que declarara.

Isto foi a 18 de Novembro; e três dias depois, a 21, Gomes Neto confessava ante a Mesa que Vila-Real fizera juntamente com ele muitos jejuns e práticas judaicas, e, o que mais, ao contrário da asserção do seu companheiro, que fora este que o induzira com o exemplo a arreigar-se e a continuar na lei de Moisés. Estas mútuas acusações merecem crédito limitado; não desconhecemos entretanto que a união de presos de judaísmo no mesmo cárcere devia estimulá-los a permanecerem na sua crença, e, porventura, a sua junção obedecia da parte do Santo Ofício ao propósito de experimentá-los na fé que seguiam ou aparentavam e de esclarecer a verdade, ou acumular provas para os comprometer, servindo-se das recriminações de uns contra os outros, com que procuravam atenuar ou encobrir as próprias culpas, e que às vezes lhes eram arrancadas no meio de insuportáveis tormentos. Depois das duas confissões que acabamos de sumariar, Vila-Real estava perdido. Senão vejamos o assento da Mesa datado do mesmo dia 21 e confirmado a 22 pelo Conselho, cujas forças são as seguintes: Não ficava alterada a decisão anterior, que mandava entregar o réu à justiça secular, porque não confessar os jejuns que fizera no cárcere, estando ainda sem companheiro e após ter confessado culpas de judaísmo, antes, manifestamente mostrava querê-los encobrir, indicando outros feitos nos seis meses anteriores à sua prisão e acrescentando que os que fez no cárcere foi em companhia de Neto; porque primeiramente declarara ter até então permanecido na lei de Moisés, e agora na última confissão ter sempre continuado nas suas cerimónias; porque, segundo a fé do notário (15), depois desta última confissão dera a entender que ela era do que havia feito exteriormente e não do que guardava no coração, sinais evidentes da sua impertinência; ao que muito ajudava «ser o réu hábil e muito presumido de sábio», e que portanto não deixaria a sua antiga e arreigada crença comunicada por ele com tanta gente, sem declarar seus irmãos que tinha em Lisboa, nem pessoa alguma que residisse nesta cidade, e «ser tão manhoso que atinou com os buracos das vigias dos cárceres e tapou as da quinta casa do Corredor Meio Novo e da primeira do Pátio Cano», donde proviria grande prejuízo à Inquisição, divulgando-se este segredo tão importante, o que tudo muito se devia atender, ainda no caso de o réu poder escapar com  vida.

 

XV

 

Entretanto aproximava-se o desenlace fatal e preparavam-se todas as coisas necessárias ao auto que devia ter lugar no domingo, 1 de Dezembro (era o domingo sempre o dia destinado à lúgubre cerimonia). Armava-se o cadafalso para ele na grande praça do Terreiro do Paço, tão diversa então da de hoje porque tudo destruiu o espantoso terramoto de 1755 e o incêndio subsequente: o famoso palácio real, edificação de El-Rei D. Manuel e os vários e irregulares edifícios que o cercavam, e porque tudo foi substituído pelas construções pombalinas que vemos agora. A um dos lados da praça, o oriental, junto à Casa dos Contos, encostava-se o terrível teatro, onde a intolerância religiosa e as ideias barbaramente exclusivas da época representavam os seus espectáculos. A fábrica de madeira, que para o efeito ali se levantava por aqueles tempos, abrangia uma área extensa, uns cento e quarenta e cinco palmos de fundo por outros tantos na sua maior largura. Ao meio do lado do fundo, o da Casa dos Contos, ficava o altar de Cristo; à direita deste o lugar do bispo inquisidor e o dos senhores do Conselho; á esquerda o dos bispos e o guião do Santo Ofício; logo depois, já no lado esquerdo ou do sul, o do cabido, tendo nas costas três casas que a este pertenciam; à esquerda das mesmas três dos secretários, e a escada por onde desciam os penitentes que iam a queimar; e em frente da última das ditas casas o púlpito para os sermões que na solenidade se pregavam; do outro lado, o direito ou do norte em continuação aos senhores do Conselho, via-se o estrado dos revedores; atrás dele o dos inquisidores e deputados, e atrás três casas para os inquisidores; e, prosseguindo, o lugar destinado ao colector; em cujas costas havia um pátio que servia de entrada para o cadafalso. Todas estas divisões formavam os três lados da metade mais larga da construção. No meio deles abria-se um espaço desimpedido. A outra metade, alguma coisa mais estreita, era ocupada por uma parte do dito espaço, e por muitos bancos em plateia, que corriam em toda a largura virados para o lado onde estava o altar de Cristo, nos quais se assentavam os penitentes com os familiares. À frente do primeiro destes, ao meio, erguia-se o altar das abjurações. De uma janelas da Casa dos Contos, situada acima do lugar dos senhores do Conselho, costumava assistir Sua Majestade.

Este o teatro; vejamos agora os preparativos para a fúnebre representação.

No domingo anterior àquele em que a mesma devia realizar-se, a 24 de Novembro, de manhã, o inquisidor mais antigo foi participar a El-Rei que o auto se publicava nesse dia em todas as Igrejas de Lisboa, e pedir-lhe ordenasse ao capitão da guarda que pelos tudescos fizesse guardar as portas do cadafalso, para ninguém entrar sem ordem do corregedor da Corte, que estaria presente; em seguida executou-se a publicação em todas as Igrejas, determinando-se por apostólica autoridade que em nenhuma houvesse no dia do auto sermão ou procissão; nomeou o inquisidor geral um desembargador para nele tratar do despacho dos relaxados; chamou-se um pintor para pintar os seus retratos e os hábitos afogueados que haviam de levar; avisou-se o juiz e o tesoureiro do fisco para comparecerem; tomaram-se a rol os familiares residentes na cidade para acompanharem os penitentes, declarando se quais os velhos para irem com as mulheres; e escolheram-se alguns clérigos bons leitores e de boa voz para lerem as sentenças; na quinta feira mandou se dizer por um notário ao colector e ao prelado da diocese e por um solicitador ao cabido da sé que teriam os seus lugares no auto, se quisessem, e pelos familiares aos prelados dos conventos que a ele enviassem alguns religiosos; na sexta feira de manhã avisou-se ao regedor pelo meirinho do Santo Ofício que passasse as ordens necessárias para julgar e executar os relaxados e pediu-se-lhe determinasse aos ministros da justiça que acompanhassem a procissão e estivessem no cadafalso e à porta do pátio da Inquisição; no mesmo dia, também de manhã, preveniram-se os religiosos que haviam de prestar o seu auxílio espiritual aos condenados para se apresentarem no tribunal da uma até às duas da tarde; notificou-se aos relaxados por um notário que o estavam; ataram-se-lhes as mãos e deu-se a cada um, um padre que lhe cuidasse da alma, cabendo ao pobre Vila-Real ser amarrado pelo guarda Bernardo João e ajudado pelo jesuíta Mateus de Figueiredo; mandou-se recado ao tesoureiro da capela d’El-Rei para fazer armar os altares do cadafalso e ao reposteiro-mor para o fazer revestir de panos como era uso; no sábado de manhã avisaram-se os familiares que deviam acompanhar os presos para se acharem no pátio da Inquisição no domingo de madrugada, e o prior de S. Domingos para mandar a comunidade à hora marcada, a fim de levar o guião de S. Pedro Mártir e de entrar na procissão; e juntaram-se as sentenças aos processos; à tarde chamaram-se os homens que deviam conduzir as estátuas dos condenados e as arcas dos processos os quais dormiram no pátio da Inquisição, para estarem prontos logo de manhã cedo; à noite fizeram-se quatro cópias da lista dos pesos que iam no auto: uma para o alcaide, na qual se puseram só os nomes das pessoas vivas, pela mesma ordem em que haviam de desfilar no séquito, declarando os que levariam hábito penitencial, afogueado, mordaça ou carocha ou alguma outra penitência e os relaxados, para poder dar a cada um quando os fosse entregando, o que lhe competia, conforme a sentença; outra para o inquisidor encarregado de presidir à entrega dos penitenciados aos que deviam acompanhá-los, a qual era na mesma forma; outra para o meirinho, contendo, além dos nomes dos vivos, os dos defuntos, cujas sentenças também se leriam no auto e distinção das abjurações, para no mesmo modo fazer chegar os réus ao lugar onde tinham de ouvir suas sentenças e juntar os que houvessem de abjurar em cada abjuração; e outra para os notários, igual à do meirinho, para que fosse dando por ela os processos aos clérigos leitores das sentenças e as abjurações a seu tempo devido; e no domingo de manhã mandou-se outra lista por um deputado a El-Rei e outras duas por familiares ao colector apostólico e ao prelado diocesano.

Preparado tudo, e soando a hora marcada, pôs-se em marcha a terrível procissão: os frades da ordem de S. Domingos com o guião do Santo Ofício; o solicitador mais antigo, de vara alçada; alguns guardas dos cárceres; um com mordaças para os presos que se desmandassem; os penitenciados em número de cinquenta, sendo vinte e oito homens e vinte e duas mulheres, cada um com o seu familiar; o capelão do cárcere da penitência, levando nas mãos erguido o crucifixo e rodeado de seis familiares com tochas: e logo após cinco relaxados: quatro homens e uma mulher com os religiosos que lhes assistiam; dois em estátua, por haverem morrido nos cárceres; e vários ministros da justiça para os livrarem do furor e das violências do povo fanático. Pouco depois de sair a procissão do pátio inquisitorial, partiram para o auto as arcas dos processos com dois familiares; e, interposto o tempo necessário para ela entrar no Terreiro do Paço, os inquisidores e mais ministros do Santo Ofício, a cavalo, precedendo-os o meirinho com a vara levantada. Chegado o acompanhamento ao cadafalso, presentes El-Rei e a família real (16), tomados os seus lugares pelo Inquisidor Geral, D. Francisco de Castro, bispo da Guarda, e pelos senhores do Conselho, inquisidores, deputados, cabido e mais pessoas para ele convocadas, subiu ao púlpito frei Luis de Sousa, Abade-Geral de Alcobaça, e portanto esmoler-mor, e pregou o sermão que em tais ocasiões era da praxe, exaltando a religião católica, condenando as heresias e aconselhando para com os réus misericórdia e, acabado o sermão, leu-se do púlpito o édito da fé e monitório geral, no qual se incitavam todos, convidados e povo, que imensa multidão de povo se reunira na grande praça, a denunciarem as culpas reservadas ao conhecimento do Santo Ofício, de que porventura soubessem.

 

XVI

 

Aterrado pelo perigo iminente, vendo-se já naquele lúgubre teatro, cercado por toda a parte do medonho aparato com que o Santo Ofício acompanhava os autos da fé, tremendo ao pensar nas fogueiras já quase acesas, parecendo-lhe que já sentia o calor das chamas, que lhe envolviam o corpo, que o sufocavam, que lhe queimavam as carnes, que lhe estalavam os ossos, que o atormentavam, que o matavam, esperando, mais pelo aferro que nos prende à vida, do que pelo raciocínio, abrandar ainda a crueza do seu destino, o coração de seus juízes, e admoestado pelas práticas do religioso que tinha consigo em tão apertado transe, Vila-Real, recolhido numa das casas do cadafalso destinada para as confissões, pediu misericórdia; declarou apartar-se dos erros em que até ali vivera; e também: que durante a prisão fez quatrocentos e trinta e quatro jejuns, incluindo cinquenta e quatro de três dias, trinta e cinco de dois, e muitas cerimónias, além das que já dissera; que estava tão aferrado à lei de Moisés, que depois da primeira notificação, haveria quinze dias, se dispusera para morrer na mesma lei com as cerimónias dela, lavando-se e vestindo camisa nova, destinada para tal fim, e que também, para melhor disposição de sua morte, jejuara quinta-feira passada; que Neto lhe contara haver comunicado em Estremoz a sua crença a algumas pessoas cujos nomes não sabia ao certo; que compusera um tratado, a pedido do doutor Velasco de Gouveia e do Marquês de Nisa, em França, mostrando como ao papa não pertencia prover os reis nem tinha autoridade sobre o poder temporal deles, com tenção de correr naquele país o dito tratado, por causa de semelhante proposição não se permitir no reino; e que aproveitara nele o ensejo de patentear o seu pouco afecto às coisas da Igreja; que de França escrevera uma carta ao secretário Gaspar Clemente, em resposta de outra sua, dando-lhe satisfação da obra El politico Christianissimo, censurada pelo Santo Ofício, falando com alguma indecência nos revedores, por causa da dita censura; que dissera em França e em Lisboa ao Marquês de Nisa e a sua mulher e ao Conde capitão que descendia da tribo de Levi e era profeta; que pedira ao Marquês de Nisa escrevesse a S. M. a favor de haver no Santo Ofício abertas e publicadas, fazendo sobre isso varias diligências e escrevendo ao padre António Vieira; que ainda solto, jejuara mais algumas vezes, além das sete ou oito; que, estando preso, falou com os outros presos do mesmo corredor e os esforçou como crente na lei de Moisés; que pedia misericórdia; que a sua salvação seria arriscada no estado em que se achava; e que não se lastimava, por ser naturalmente duro e não ter o dom das lágrimas, porém que interiormente estava compungido.  

Em seguida a esta abjuração e confissão a Mesa reunida na casa destinada para esse fim no cadafalso, tomou o seguinte acordo:

“Pareceu a todos os votos, excepto o deputado frei Pedro de Magalhães, que não estava alterado o assento do Conselho com o que confessou no auto, porque pelo modo de suas confissões se via que ele as fazia mais com intento de escapar da morte, do que por estar arrependido e por dizer que não tinha cúmplices, sendo o réu mui conhecido e tendo muitas comunicações nesta cidade, e não declarar senão pessoas ausentes e que estavam livres do Santo Ofício; pelo que o dito assento se devia dar à execução. E ao mencionado deputado pareceu que, visto confessar os jejuns dos cárceres e não estar diminuto e poder estar arrependido, ficasse reservado.”

Esperava o Conselho a decisão da Mesa, e, recebida esta, confirmou-a assim: “Foram vistos em Conselho na casa para esse efeito ordenada no auto da fé que se está celebrando no Terreiro do Paço estes autos, culpas e confissão, que no mesmo auto faz Manuel Fernandes Vila-Real, neles contido, e assentou-se que as confissões do réu não estão em termos de serem recebidas, e que, como herege impenitente, seja relaxado à justiça secular.” (17)

Com esta decisão aniquilou-se aos olhos de Vila-Real a derradeira esperança; restava-lhe só preparar-se para a morte.

Havendo chegado o tempo próprio, leram as sentenças os clérigos; sendo primeiro lidas as dos reconciliados, que lhes eram dadas pelos notários, conforme a lista que lhes fora fornecida (18), e indo cada réu ouvir a sua, conduzido por um guarda dos cárceres, de ordem dos solicitadores. Terminada a leitura, o inquisidor mais antigo tomou sobrepeliz, estola e capa roxa, e, com a autoridade devida às suas funções, procedeu à absolvição, seguido dos clérigos da freguesia, dos clérigos leitores e do capelão do cárcere da penitência, os quais com as varas tocaram os penitenciados; depois do que, se tornou o inquisidor ao seu lugar e se leram as sentenças dos relaxados. A do nosso réu, relatadas longamente as suas culpas, terminava a final com as seguintes palavras: «Christi Jesu nomine invocato, declaram o réu Manuel Fernandes Vila-Real por convicto e confesso no crime de heresia e apostasia, e que foi e ao presente é herege apóstata da nossa santa fé católica, e que incorreu em sentença de excomunhão maior e em confiscação de todos seus bens para o fisco e câmara real e nas mais penas em direito contra os semelhantes estabelecidas, e que, como herege apóstata, convicto, confesso, ficto, falso, simulado e impenitente, o condenam e relaxam á justiça secular, a quem pedem com muita instância se haja com ele benigna e piedosamente e não proceda a pena de morte nem a efusão de sangue». 

Estas últimas palavras, ao contrário do que se pode imaginar, correspondiam neste caso à aplicação da pena de morte. 

Lidas as sentenças, o meirinho entregou Vila-Real, assim como os seus companheiros, aos ministros da justiça secular que assistiam no auto; selaram os inquisidores as sentenças com o selo do Santo Ofício; e o inquisidor mais antigo deu-as ao desembargador que presidia no despacho dos relaxados, o qual sem examinar os competentes processos, porque a Relação fazia só obra pela cópia delas que o Santo Ofício lhe ministrava, condenou-os todos à morte, sendo na de Vila-Real de garrote por ter abjurado a perfídia, pois só se queimavam vivos os hereges profitentes.

Retirados os relaxados do cadafalso, ordenou-se a procissão dos penitentes e reconciliados na mesma forma em que tinham ido, e voltou à Inquisição, em cuja sala o alcaide do cárcere da penitência tomou entrega deles da mão do meirinho e os recolheu nas suas prisões para na terça-feira seguinte serem açoitados pelas suas da cidade os condenados a essa pena e serem conduzidos à cadeia pública os condenados a degredo, depois de instruídos convenientemente na fé, com precatório ao Juiz dos Degredados para fazer cumprir as suas sentenças.

 

XVII

 

Restava só para finalizar a horrível tragédia que temos esboçado imperfeitamente e em que Vila-Real é o autor mais interessante, o último acto, a sua execução. Chegou a hora tremenda e ele caminhou para o lugar do suplício. Já o aguardava impaciente a populaça, ávida sempre destas cenas atrozes: já estava preparado o instrumento homicida; já o ensaiava o algoz; tudo lhe feriu a alma num relance: e ao encarar, como num sonho do inferno, a morte pública e ignominiosa que lhe destinavam, estremeceu, fechando os olhos involuntariamente, desejou perder a razão e o sentimento, para não ver, para não pensar, para não sofrer; mas dentro em breve, sentiu apertarem-lhe o pescoço, faltar-lhe a respiração, fugir-lhe o último arranco e juntamente com ele fugir-lhe a vida.

Assim acabou Manuel Fernandes Vila-Real.

Havia trinta e sete meses que fora preso; tinha quarenta e quatro anos de idade e bastantes de bons serviços à pátria; como vimos, esses serviços porém (fundadamente ele o previa quando os alegou em sua defesa) não valeram nada no tribunal da fé, antes, da intolerância religiosa diante de coisa alguma para satisfazer suas ruins paixões, embora prejudicasse o país.

Assim acabou Vila-Real, mas a justiça implacável do Santo Ofício não estava ainda satisfeita: cumpria manchar-lhe a memória; publicar-lhe mais longe a culpa; divulgar-lhe o castigo, para aviso, para escarmento de presentes e futuros; e o hábito que ele levara no auto-da-fé foi exposto com o seu nome e a sua pátria nas freguesias onde nascera e onde era morador e numa das Igrejas principais de Lisboa, como determinava o Regimento! 

Além de Vila-Real, a Inquisição relaxou naquele dia mais seis réus à justiça secular, como já sabemos, todos pelo crime de judaísmo, quatro em carne: Manuel de Carnide, Francisco Gomes Neto, Simão Rodrigues Nobre e Brites Gomes, e dois em estátua (os que morreram no cárcere): Fernando Alves e Antónia Mendes. Simão Rodrigues Nobre era advogado na cidade da Guarda. Quanto a Francisco Gomes Neto já o conhecemos por figurar no processo de Vila-Real como seu companheiro de prisão e seu denunciante. 

No que fica expendido acerca da existência e das obras de Vila-Real há já o suficiente para formar ideia da sua pessoa e da sua valia literária; entretanto findaremos este estudo pondo aqui dois atendíveis testemunhos a seu favor: um é o autor da Histoire sécrète de D.Antoine Roy de Portugal, o qual lhe faz o seguinte elogio: «homme d’agréable commerce; son esprit était d’un caractère à se faire beaucoup d’amis; aussi tous les gens de qualité et de bon gout se faisant un plaisir de le voir»; o outro é frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo, o qual no Propugnaculum Lusitano-Gallicum, pag. 182, o intitula: “acutus et peritus hujus seculi scriptor» 

Estas palavras de Macedo, postas aqui em seguida ao suplício do homem que ele com suas acusações levou aos cárceres do Santo Ofício e à morte, soam-nos como uma ironia cruel ou como a piedade do algoz ao ver cair aos pés no cadafalso a vítima estrangulada por suas próprias mãos (19)

 

Publicado em “O occidente : revista illustrada de Portugal e do estrangeiro” nos n.ºs 554, de 11-5-1894 a 572, de 11-11-1894 nas páginas seguintes:

 

554 – 115 a 117

555 – 127

556 – 134

557 – 143

558 – 150

560 – 165 e 166

562 – 183

564 – 194 e 195

565 – 206 e 207

568 – 227 a 230

569 – 238 e 239

570 – 243 e 244

571 – 251

572 – 263

 

Foi publicado em seguida em separata.

 

NOTAS:

 

 (11) Aqui há engano, porque Luis Pereira de Castro não chegou a partir para França, para onde já antes de 26 de Novembro de 1649 estava nomeado embaixador ordinário. Se é verdadeira a data da sua morte (20 de Dezembro do dito ano), conclui-se das  palavras de Vila-Real que este escreveu a memória que vamos extractando antes dela; e que, dando-se aquele acontecimento, a não emendou na parte correspondente, ou por estar preso e ignorá-lo, o que é mais provável, ou por descuido, embora a entregasse à Inquisição um mês depois, a 24 de Janeiro de cinquenta.

Em 26 de Janeiro, dois dias depois de apresentá-la ao Santo Ofício, já estava nomeado para substituir Luis Pereira de Castro na embaixada de França, Sebastião César de Menezes, bispo eleito de Coimbra, nomeação que ainda não se verificou, mas sim a de Francisco de Sousa Coutinho. Em todo o caso, o que se vê é que Vila-Real o supunha ainda vivo, pois diz quase no fim da memória: “tenho por sem dúvida que sua negociação será de grande utilidade etc. “

(12) A cujo congresso fora nomeado ministro plenipotenciário, mas onde nunca fora recebido, pelas maquinações e influência de Espanha.

(13) Sobre Duarte da Silva, potência monetária do tempo, com grosso trato no reino e fora dele, para França, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Itália e para a colónia do Brasil, e sobre o seu processo e fatais consequências do mesmo nas praças de Amsterdam e Hamburgo, as quais com o governo português tinha largas transacções, que por essa causa ou se dificultaram ou se anularam, veja-se o que dizemos de pag. 486 a 489 do 2.º vol. da nossa História do infante D. Duarte, irmão d‘E1-Reí D. João IV.

(14) Apesar de ser rigorosamente proibido falarem os presos uns com outros e até baterem nas paredes para se chamarem ou avisarem, parece que havia grande relaxação no cumprimento dessas ordens, pois o declarante ouvia seus vizinhos conversarem depois de jantar, e Vila-Real, que era o que então lhes dava os bons dias e o que mais falava, fazê-lo ora em português, ora servindo se de algumas palavras latinas; mandar recados de uns cárceres para outros, no que os restantes presos o imitavam; e até recitar versos. Uma vez um preso, passando por defronte da porta do cárcere de Vila-Real, disse-lhe que o tinham levado ao tormento. Estas infracções das ordens inquisitoriais eram porventura permitidas intencionalmente. Deixavam os desgraçados assim à larga para mais se enredarem, e alcançavam depois pelas mútuas denúncias novos elementos de acusação. O declarante ignorava o nome de Vila-Real e denominava-o o homem da voz delgada. Aos presos ouvia nomear o capitão, e este capitão era, como sabemos, Vila-Real. O Regimento, ainda para evitar a correspondência dos presos e as suas consequências, determinava que não pusessem no mesmo cárcere, nem até no mesmo corredor os que fossem parentes, nem, quando possível, no mesmo corredor os conhecidos ou da mesma terra, nem os que tivessem igual crime, nem presos novos com antigos.

(15) Terminadas as confissões do réu, o inquisidor que estava presente e o escrivão que as escrevia declaravam a fé que prestavam às mesmas, para que a todo o tempo constasse o crédito que se lhes devia dar. Isto depois de recolhido o preso ao seu cárcere.

(16) O processo de Vila-Real assim o declara, e a lista do auto-da-fé diz numa nota manuscrita que assistiu El-Rei, a Rainha, o Príncipe e os Infantes. Este Príncipe e os Infantes eram então: D Teodósio, de dezoito anos, D. Joana, de dezasseis, ambos falecidos no ano seguinte, 1653, o primeiro seis meses e o segundo onze depois do auto, D. Catarina, mais tarde Rainha de Inglaterra, de catorze, e D. Afonso e D. Pedro que vieram a ser Reis, um de dez e outro de quatro.

(17) Nem era de esperar outro procedimento do Conselho, depois do seu assento de 22 de Novembro, confirmando o da Mesa de 21, onde se mostra bem claro o medo de que Vila-Real, ficando vivo, revelasse o segredo das vigias, com que atinara, do que resultaria grande dano à Inquisição.

(18) Esta lista com as competentes penas foi impressa e dela existe um exemplar na Biblioteca Nacional, Repartição dos Mss. Colecção Moreira. Posto sobremaneira curiosa, não a copiámos aqui pela sua extensão e monotonia.

Eis a verba do nosso réu: 3 (número de ordem entre os relaxados em carne) — 44 (anos que tinha) - Manuel Fernandes Vila-Real, cristão novo, natural e residente nesta cidade de Lisboa e morador em Paris, reino e Corte de França, convicto, ficto, falso, simulado, confitente, diminuto e impenitente.”

O mais moço dos réus, António de Noronha, contava dezassete anos apenas, e o mais velho, Luis Mendes, oitenta; ambos saíram culpados de judaísmo e foram condenados, o primeiro a cárcere e hábito a arbítrio, e o segundo a cárcere e hábito perpétuo.

Havia entre os réus sete grupos de parentes; nem isto admira, porque os mistérios, os terrores e a crueza da tortura levavam á Inquisição famílias inteiras: estes terríveis meios e o inato amor da vida faziam até com que, para se livrarem, os filhos às vezes comprometessem os próprios pais e os pais os próprios filhos, com suas confissões. Eram esses grupos: Leonor Pires e suas irmãs Maria Simões e Maria das Candeias; Jorge Dias Brandão e seu irmão Rodrigo Aires Brandão; Duarte da Silva (o rico negociante de que já falámos) e seus filhos Francisco Dias da Silva e Catarina da Silva; Manuel Soares Pereira e suas irmãs Maria Soares e Guiomar Soares; Francisco Pires e seus irmãos João Lopes, Guiomar Rodrigues e Maria Álvares; Inês Rodrigues e suas filhas Antónia de Noronha e Maria de Noronha; Manuel Rodrigues o Corre e sua filha Maria das Candeias. Todos pelo crime de judaísmo. 

As penas impostas aos réus foram: hábito, hábito a arbítrio, hábito perpétuo, hábito com insígnias de fogo, cárcere a arbítrio, açoites, galés, desterro para o Brasil e Angola, e morte, que era o castigo que esperava os relaxados à justiça secular.

(19) O processo de Vila-Real, fundo principal deste estudo, guarda-se no Arquivo Nacional da Torre de Tombo.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Processos da Inquisição de Lisboa:

7794 - Manuel Fernandes Villa Real – Mf. 2157

5401 - Francisco Gomes Neto, online -  imagens 403 e ss, 424 e ss, 433 e ss.

7938 - João d’Águila, online  - imagens 60 a 64

 

José Ramos-Coelho, Historia do infante D. Duarte, irmão d‘El-Reí D. João IV, Lisboa, Tipografia da Academia Real das Ciências, 1890, 2 vols.

Online: www.archive.org

 

Luis Reis Torgal, Ideologia Poíitica e Teoria Do Estado Na Restauração, Biblioteca da Universidade de Coimbra, 1981

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P.e Ilídio de Sousa Ribeiro, Fr. Francisco de Santo Agostinho de Macedo, Universidade de Coimbra, 1952.

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"Declaração que faço eu, Manuel Fernandes Villa Real, preso n'este cárcere do santo officio", e Sentença no processo n.º 7794, da Inquisição de Lisboa, in Dicionário bibliográfico português, de Brito Aranha, vol. XVI, pp. 189-209, 1893.

 

Saul Levi Mortera, Tratado Da Verdade Da Lei de Moises, Introdução e notas de H. P. Salomon, Universidade de Coimbra, 1988

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Carsten L. Wilke, S. L. Steinheim-Institut für deutsch-jüdische Geschichte, Duisburg (Alemania), Antonio Enríquez Gómez, el seudo-portugués, in Cadernos de Estudos Sefarditas  n.º 6 (2006).

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El politico cristianissimo o Discursos politicos sobre algunas acciones de la vida del Eminentissimo Señor Cardenal Duque de Richelieu/ por el Capitan M.F. de Villarreal, En Pamplona : En Casa de Ivan Antonio Berdum, 1642, 266 pags.

Online: http://bibliotecaforal.bizkaia.net/