4-9-2016
As asneiras que se dizem e fazem em Portugal, a propósito da Inquisição
Por volta de 2005, decidi-me a começar a ler e estudar processos da Inquisição. A ocasião era boa, porquanto os Arquivos da Torre do Tombo tinham encetado a tarefa de digitalizar e publicar na Internet a totalidade dos processos da Inquisição de Lisboa. O ideal seria que fizessem o mesmo com os processos de Coimbra e de Évora, mas essa tarefa não foi ainda iniciada. Como consolação, direi que se constata que os processos destas duas Inquisições são bastante mais arbitrários, a apresentação mais rudimentar a, portanto, de menor valor documental. Descarreguei no meu PC centenas de processos e fui-os estudando, pondo as conclusões no meu site.
Por sua vez, os nossos historiadores, ao estudar a Inquisição, não se preocupam muito em ver os processos. Entendem ser natural a Inquisição perseguir os cristãos novos, porque judaizavam, porque continuava a existir cripto judaísmo. Também não se preocupam a definir o que entendem por isso. Afirmam e mais nada. Depois estudam a vida e obra dos Inquisidores (pela rama), as relações dos Inquisidores com os Bispos, da Inquisição com o Papa e com os poderes políticos e assim por diante. Aos processos, não ligam grande coisa.
No séc. XIX e início do séc. XX, sempre se considerou a Inquisição como uma entidade perversa e mal intencionada. Mas, no tempo de Salazar, fez-se aproximar a acção da Inquisição da Igreja Católica e até se foram procurar os “benefícios” da Inquisição, nomeadamente o ter impedido que se implantassem em força os protestantes. Até hoje.
No séc. XX, a nossa Universidade estudou a Inquisição com base no axioma: “Os cristãos novos judaizavam e por isso eram castigados pela Inquisição”. Este verbo “judaizar” nunca chega a ser definido. Esperava eu que, após o 25 de Abril, se alterasse o modo de estudar a matéria, mas… nada!
O equívoco principal está na determinação de quem era considerado como cristão novo. Para a Inquisição cristão novo era todo aquele que tinha um antepassado judeu. Inicialmente, indicava-se a fracção de sangue judeu: se era judeu um dos pais, o filho era ½ cristão novo, se era um avô, era ¼ de cristão novo e assim por diante. No séc. XVII, a Inquisição deixou de fazer contas e passou a dizer que o Réu tinha “parte” de cristão novo ou mesmo “fama” de cristão novo”. Ora isto é totalmente estúpido, mesmo em termos de perseguição racial. Como já disse nestas páginas (ver “Quem é que era considerado como Judeu – por Hitler? pela Inquisição?” http://arlindo-correia.com/201015.html ), Hitler só considerava como Judeus aqueles que tivessem pelo menos três avós Judeus, sendo os outros considerados como mestiços que, em princípio, não eram perseguidos.
O judaísmo no sentido mais restrito, desaparece com os casamentos mistos. Já dizia o sionista Ze'ev Jabotinsky que não há assimilação (dos judeus), enquanto não houver casamentos mistos.
Nos primeiros tempos da Inquisição, quando os cristãos novos tinham um comportamento exterior neutro em matéria de religião e praticavam os actos exteriores de católicos (ida à missa dominical, confissão e comunhão anuais no tempo quaresmal), nada lhes acontecia.
Foi esta a Inquisição que o Cardeal D. Henrique criou e administrou. Ele tinha sem dúvida ódio aos judeus como se vê do texto da carta que escreveu a Pedro Domenico em 10 de Fevereiro de 1542 (Corpo Diplomático Português, vol. V, pag- 34- ver o texto em Notas sobre a Inquisição - http://arlindo-correia.com/100913.html), mas não perseguia cristãos novos só por o serem. Foi amigo de Pedro Nunes e de Tomás Rodrigues da Veiga, professores de grande mérito na Universidade de Coimbra, que nunca foram molestados por serem cristãos novos.
A certa altura, difícil de determinar, mas que se situará mais ou menos perto do final do séc. XVI, as coisas mudaram. Já tinham fugido para o estrangeiro os cristãos novos que queriam realmente “viver na Lei de Moisés”. Os cristãos novos que tinham ficado em Portugal queriam era viver o melhor que podiam e de preferência sem ser incomodados. E não lhes era difícil terem sucesso. Mandavam os filhos para a Universidade para terem profissões rentáveis como as de médicos e advogados, procuravam grandes negócios como as importações do Ultramar e a arrematação de grandes contratos com a Coroa, por exemplo de cobranças de impostos e fornecimentos militares, trabalhavam boas terras próprias ou alheias, auferindo grandes proveitos com a sua exploração. Em resumo, ganharam boas situações que tinham todo o interesse em manter e por isso, não se desviavam um milímetro dos sinais (pelo menos exteriores) de católicos.
A Inquisição ficava assim sem ter que fazer… a menos que alterasse o sistema. E foi o que fez. Alargou o seu campo de acção e passou a perseguir genericamente todos os cristãos novos. Deixou de ser Inquisição, para ser uma entidade racista imbuída de anti-semitismo, que iria fazer os possíveis por reduzir todos os cristãos novos à miséria. E era isso mesmo que o resto da população desejava, à uma pela inveja do sucesso daqueles novos ricos e também pela doutrinação que lhe vinha dos púlpitos contra o judaísmo.
Mas como podia agora a “Inquisição” (que já o não era) perseguir sistematicamente os cristãos novos se eles tinham todo o comportamento exterior de católicos? Simplesmente prendendo os cristãos novos, ameaçando-os de morte se eles não confessassem o credo judaico e não denunciassem que outros tantos acreditavam na Lei de Moisés e rejeitavam o dogma católico. Isto é a coisa mais evidente do mundo, lendo os processos.
Pois bem. Eu afirmo que a Inquisição, no que toca aos cristãos novos, não tinha que ver com Religião. Era uma instituição de poder que actuava em termos de manter esse mesmo poder. Os Inquisidores eram perversos e cruéis ( e também corruptos, embora essa faceta esteja algo escondida e nunca seja estudada).
Como é possível pensar que os reconciliados saíam dos Estaus contentes e satisfeitos, firmes na fé de uma Igreja Católica em nome da qual tinham sido tão maltratados?
Acho que a Igreja Católica se deveria demarcar da Inquisição e fazer um acto de contrição em relação a todo o tempo em que teve a ver com ela. É um lugar comum entre nós julgar que a Inquisição era uma instituição da Igreja Católica. Não era.
O
Prof. José Pedro Paiva escreveu um livro defendendo essa tese. É característica
deste Professor defender teses que são contrariadas pelos próprios factos que
descreve para as provar: é o caso do livro
Baluartes da fé e da disciplina – O enlace entre a
Inquisição e os Bispos em Portugal (1536 – 1750),
480 pags., Fevereiro 2011 – Imprensa da Universidade de
Coimbra, ISBN 978-989-26-0090-1 (Ver a minha crítica em
Notas sobre a
Inquisição -
Os Bispos iam para Inquisidores e os Inquisidores tornavam-se também Bispos mas assumiam a mentalidade de cada uma das instituições.
Atendendo à barbaridade de certos Inquisidores, considerá-los como elementos válidos da Igreja Católica abala seriamente o prestígio desta. De facto, eu não tenho qualquer dúvida em classificar como assassinos os Inquisidores que condenaram Réus à morte sabendo muito bem que eram inocentes, por não terem quaisquer convicções judaicas.
É uma grande ilusão ligar a Inquisição à Igreja Católica. Os Papas Clemente X (1670 – 1676) e Inocêncio XI (1676 – 1689) convencidos de que a Inquisição portuguesa era comandada pelo Rei, quiseram colocá-la sob o mando da Igreja. Estavam enganados e enganado ficou o Papa Inocêncio XI ao publicar o Breve Romanus Pontifex em 22 de Agosto de 1681, convencido que tal conseguiria. Os Inquisidores é que ficaram encantados, pouco tinham que alterar.
Como muito bem reparou a Prof. Ana Maria Homem Leal de Faria, no seu artigo sobre a crise de 1674-1682, a Inquisição apoiava-se no Papa quando o Rei a incomodava e no Papa quando era o Rei a fazê-lo. Mas nunca abdicava do poder de que dispunha. À mesma conclusão se chega lendo os livros de Ana Isabel Salazar-Codes.
No séc. XX, teve eco a disputa entre os Prof. António José Saraiva e Israel Salvator Révah, sobre a natureza e os fins da Inquisição. O primeiro concluiu com base na teoria marxista que a Inquisição perseguira e tentara eliminar a “classe capitalista”. O segundo afirmou ter consultado muitas centenas de processos e concluído que os cristãos novos eram potencialmente judeus. Saraiva era criticado por não ter consultado os processos e se ter baseado unicamente nos poucos livros que haviam sido publicados, o que era verdade; mas a sua tese era ainda absurda em face das dezenas de milhares de indigentes que a Inquisição perseguiu e que ele tomou... por capitalistas. Mas tinha razão em considerar que a Inquisição pouco ou nada tinha a ver com a Religião. Quanto a Révah, tenho algumas dúvidas sobre a compreensão dele dos textos dos processos. Pouco ou nada se aproveita de tal polémica.
Que pretendia então a Inquisição? Nada, apenas continuar a existir como instância de poder. Para isso, tinha de ter uma ocupação e essa era perseguir cristãos novos, conceito entendido em termos larguíssimos como sendo toda aquela pessoa que tinha pelo menos um judeu entre os seus antepassados directos.
É ideia corrente que os cristãos novos perseguidos pela Inquisição tinham convicções judaicas. Basta consultar meia dúzia de processos para se ficar convencido do contrário. Aquele ponto de vista da direita católica é apoiado pelos estudiosos judaicos, a quem interessa que se invoque o cripto judaísmo para justificar a Inquisição, porque isso seria uma prova da sua existência. Verifica-se assim uma aliança contranatura que prejudica a interpretação dos factos entre dois grupos que nada deveriam ter em comum. Os estudiosos católicos acentuam o judaísmo real ou (na maior parte das vezes) suposto, para justificar a Inquisição e os meios judaicos ficam contentes com isso porque vêem justificada a permanência da sua crença.
Uma consequência grave desta aliança contranatura é a proliferação real ou virtual de Museus Judaicos que, na minha opinião, não têm razão de ser. É o caso do Museu Judaico de Belmonte, que se refere à perseguição dos cristãos novos (supostos judeus) pela Inquisição. A perspectiva está errada, não eram judeus, apenas tinham umas gotas de sangue judeu que tinham herdado dos seus antepassados. Mais grave ainda: o êxito turístico do Museu Judaico de Belmonte está a criar invejas noutras localidades que estão a “inventariar” os cristãos novos da zona que foram perseguidos para criarem também uma estrutura do mesmo género; é o caso de Viseu. Mas poderá ser também o caso de Penamacor, Montemor-o-Velho, Leiria, Beja, etc.
O processo que o não era
É costume estudar os processos da Inquisição com base no livro de Elias Lipiner “Santa Inquisição: terror e linguagem,o Rio de Janeiro, Documentário, 1977. “
Eu cheguei, porém, à conclusão que é preferível confrontar os processos da Inquisição com as regras modernas do Direito processual penal e civil para apontar as deficiências do processo inquisitorial que são gritantes.
O processo da Inquisição não tinha defesa possível. Lido o libelo ao Réu, vinha este com “contrariedades”, isto é, contestava por negação as faltas que lhe eram apontadas e indicava testemunhas. Esta prova é é tratada de modo muito arbitrário em quase todos os processos. Muitas das testemunhas indicadas não eram ouvidas sem qualquer justificação. Nem o Réu, nem o seu Procurador tinham conhecimento dos depoimentos. A contestação não servia para nada, nunca era tida em conta. Pelo contrário, o Réu passava a ser considerado como negativo. Veja-se o caso de Pedro Serrão de Castro htttp://arlindo-correia.com/100912.html) que provou ser católico praticante e fervoroso, o que não podia deixar de ser conhecido pelos Inquisidores – não escapou ao cadafalso.
Uma prova da inutilidade da defesa é que a “Publicação da prova da justiça” é sempre igual ao libelo, indica as mesmas culpas.
Costuma dizer-se que o Réu se “defendia” em seguida com contraditas e coarctadas. Não é verdade.
Como tenho referido, as contraditas não são uma contestação. A palavra “contradita” não tem aqui o sentido geral de contestação que figura no dicionário. São as contraditas das testemunhas, previstas nos art.ºs 521 e 522 do actual Código de Processo Civil, isto é, qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento. No Regimento de 1640, as contraditas referem-se sobretudo às relações pessoais entre as testemunhas e os Réus – ódios, inimizades, disputas, etc. Quando o depoimento se mostra impossível em razão do tempo ou do lugar em que ocorreram os factos, chama-se no Regimento coarctada que é assim a invocação de um alibi.
As contraditas e coarctadas só muito raramente resultavam na defesa do Réu. Em geral, os Assentos dizem “não provou” e seguem em frente. Note-se que as contraditas e coarctadas eram utilizadas para avolumar os processos, simulando uma defesa que não tinha consistência. Alongava-se o tempo de prisão, com a realização de audições de testemunhas, deprecadas para a província (chamadas comissões: a Inquisição do processo enviava uma comissão à Inquisição do local da testemunha, e esta por sua vez enviava outra comissão ao Comissário que iria ouvir a testemunha).
A sentença que finaliza o processo e era lida no Auto da Fé não era sentença nenhuma, porque a condenação do réu era feita no Assento da Mesa ou do Conselho Geral. Praticamente não fazia parte do processo, não era uma peça jurídica. Era um manifesto de propaganda e nem sequer era secreta. Era redigida em estilo empolado e mesmo não correspondendo por vezes ao que se passara no processo. Por isso, é errado estudar a sorte do Réu através da sentença.