4-7-2001
VASCO VIEIRA DE ALMEIDA
(N. 11-4-1932)
| Conversa com vista 
    para ... "Un 
    bel'uomo"! Para além de ser um grande advogado, de ser casado com "una bella 
    donna", senhora de uma serena inteligência-com-dengue (só para entendidos 
    que nasceram e viveram em África!), de ter salteado a política quando ela se 
    praticava em clandestino e, já em liberdade, a ter revisitado de passagem, 
    quase à ilharga dos convencionais percursos do poder, de ter a memória 
    fresca e grata dos tempos de formação (menino de casa de seus pais), este 
    lisboeta impenitente que ainda larga o escritório nas tardes de sexta-feira 
    para ir a correr para casa, para o piano que o espera com uma partitura 
    aberta, Vasco Vieira de Almeida é de facto, insisto, um belo homem. Quando o 
    convidei para esta "Conversa" reagiu, com o sentido de humor que pratica 
    mordazmente: " O melhor é entrar já em estágio!". Telefonei-lhe para casa, 
    numa tarde de sexta-feira e interrompi-lhe o estudo do "Concerto Italiano" 
    de Bach. O encontro ficou marcado para a semana seguinte, com almoço, no seu 
    escritório. No prédio, ali para o Marquês, alguns andares têm placa com o 
    seu nome. Lisboa derrama-se, linda como poucas, de quase todos os ângulos 
    das varandas. No interior do último andar, onde conversámos, as paredes 
    dão-nos a ver muito do melhor da pintura portuguesa. Sem tempo para derivas, 
    passámos à sala de jantar. Ampla, luminosa, sóbria, de bom gosto. Papaia "farcie" 
    com "cocktail" de gambas, pato deliciosamente lacado, batata palha e vagens 
    como acompanhamento e, a fechar, um aveludado leite creme - esta a ementa 
    com que a exímia cozinheira, transferida de sua casa para o escritório, nos 
    brindou. Sem esquecer, claro, um excelente tinto do Dão. As duas horas 
    previstas correram céleres e souberam-me a pouco, de tanto mais que havia a 
    arrecadar para estes registos impressos em tiragem dominical de princípio de 
    mês. Mas eu sabia que o tempo de uma sociedade de sucesso como aquela não se 
    compadece com o outro tempo, o tempo destas "Conversas". Nem mesmo para um 
    melómano, como o meu conversado de hoje, o metrónomo da casa que comanda 
    poderia parar e conceder um qualquer ritmo de excepção. Regra aceite, 
    conversa acabada! 
     Maria João 
    Seixas - Vasco, diz-me quem és.
     Vasco Vieira 
    de Almeida - Tudo aquilo que eventualmente possa ter de bom, não tenho disso 
    qualquer dúvida, tem uma ligação directa com meu pai, que era uma pessoa 
    extraordinária, em todos os aspectos. Talvez o homem mais inteligente e 
    culto que conheci, com um grande sentido de humor. Era um homem de valores, 
    extremamente simples e tinha uma forma única de comunicar as coisas que 
    sabia e em que acreditava; não as ensinava, comunicava-as porque existia. 
    Nem meu irmão nem eu fomos à escola. Fizémos a primária em casa. O meu pai 
    fez uns livrinhos, um de gramática portuguesa com 16 páginas, um de francês 
    com 20 e tal páginas e um de matemática com 30. E as lições eram dadas 
    conversando. O que aprendi nesses quatro anos de instrução primária, o que 
    ele me quis ensinar e tudo o que me transmitiu sem me ensinar, foi de uma 
    riqueza excepcional.
     P. - Estamos a falar dos anos 40? R. - Sim, 
    isto passa-se na década de 40. Esses anos marcaram-me profundamente e meu 
    pai influenciou-me para o resto da vida. Era senhor de uma grande coragem 
    (foi preso aos 74 anos, depois das eleições do Delgado). Com ele e com o 
    apurado sentido de humor que tinha, aprendi a não me levar excessivamente a 
    sério. Também foi dele que herdei o rigor de raciocínio que, ao longo do 
    tempo e profissionalmente, me tem sido indispensável. Insistia sempre na 
    necessidade de busca permanente de uma sólida lógica interna do pensamento 
    que não permita pôr em causa as conclusões, a não ser que se rejeitem as 
    premissas.
     P. - Qual era a área de formação do teu pai? R. - 
    Filosofia. Era professor de Filosofia na Faculdade de Letras. A um dado 
    momento quis que eu fosse estudar para França, porque achava que o ensino em 
    Portugal não era grande coisa. O que diria hoje... Não fui capaz. Quando 
    começou a aproximar-se a data de ir para Paris dei-me conta que seria uma 
    enorme estupidez partir, porque estando ao pé dele aprenderia muito mais do 
    que em qualquer Universidade francesa. Foi a coisa mais inteligente que fiz 
    na minha vida. Portanto, tudo o que tenha de positivo foi-me transmitido por 
    ele; as coisas más essas ganhei-as eu, com muito esforço próprio. Fiz sempre 
    o que quis, e o que não fiz foi o que não tive qualidades para realizar. 
    Esta consciência dá um razoável sossego. Sou livre. Não dependo de ninguém.
     P. - Esse grau de independência foi sempre o objectivo da tua vida? R. - Sempre.
     P. - E a política, como é que a política habitou essa tua liberdade? R. - Poder 
    fazer o que queria, juntamente com os valores que meu pai me tinha ensinado, 
    deu, entre outras coisas, que me metesse na política. Estive no MUD Juvenil, 
    onde conheci muita gente, entre a qual pessoas notáveis ligadas ao PC. Na 
    altura eu era um fanático marxista, tendo devorado uma boa parte de "O 
    Capital"! Por outro lado, tive a sorte de conhecer e conviver, lá em casa, 
    com os amigos do meu pai, pessoas fora de série num país atrasado, cinzento 
    e opressivo como era o nosso, como Jaime Cortesão, António Sérgio, Mário 
    Soares, Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça, Câmara Reis... Alguns 
    vinham à noite para jantar e ficavam horas à conversa. Discutia-se sobre 
    tudo, num tom muito despretensioso. Assistir a essas reuniões foi um banho 
    de cultura e civilização, depois do qual só um burro não absorveria para o 
    resto dos seus dias uma série de valores, de princípios, de conhecimentos.
     P. - O teu gosto pela música veio por influência da tua mãe? R. - Dos meus 
    pais. Meu pai, embora não tocasse nenhum instrumento, tinha um grande 
    sentido musical. Minha mãe cantava. Comecei muito cedo a ir a concertos e 
    aprendi piano. Tive as primeira lições com uma professora excelente, Maria 
    Beatriz Soares, depois com o Campos Coelho, a seguir fiz exames de solfejo e 
    piano no Conservatório e, durante dois anos, fui aluno do Lopes Graça de 
    Composição e História da Música, na Academia de Amadores de Música.
     P. - E a política? Voltemos a ela para me falares dos teus envolvimentos. Viveste situações de risco antes do 25 de Abril? R. - De 
    grande risco, não. O regime tratava os chamados "intelectuais" presos de um 
    modo completamente diferente do aplicado aos dirigentes clandestinos, aos 
    operários e aos camponeses. Fui preso duas vezes. A primeira, por ter 
    agredido o agente da Pide quando foi buscar o meu pai a casa para o levar 
    preso. A outra, em 63, por ter colaborado na fuga de Caxias de alguns 
    dirigentes do PC. Na altura, era já director do Banco Português do Atlântico 
    e a Pide imaginava que, por ter aquele lugar, devia ser eu quem tinha a 
    responsabilidade de arranjar financiamentos para o partido. Mas a repressão, 
    que era violentíssima para algumas pessoas, tinha também aspectos de um 
    provincianismo caricato. Foram-me buscar a casa às 6 da manhã. Por lá 
    estiveram algum tempo, como era habitual, a apreender livros e 
    correspondência - um dos agentes cismou que a "República" de Platão era uma 
    obra perigosíssima e só quando lhe expliquei que o autor da obra fora, em 
    tempos, comunista mas entretanto renegara completamente a ideologia, é que 
    acedeu em deixar-me o livro em casa - e, acabada essa função, saímos. Dei-me 
    então conta que nem carro tinham levado e estivemos todos, em plena Lapa, a 
    chamar um táxi que nos transportasse para a António Maria Cardoso.
     P. - Foste maltratado? R. - Não. 
    Estive oito dias nos curros. Obviamente há experiências mais divertidas, mas 
    para mim foi uma época inesquecível. Conheci então pessoas excepcionais, 
    entre elas, um amigo para a vida, o Dr. Arménio Ferreira. Numa das celas, 
    por onde passei depois, estava também um juíz, o Dr. Sebastião Ribeiro, já 
    de certa idade, que tinha ajudado o Henrique Galvão a fugir da prisão, e um 
    médico, Maldonado Freitas, de uma família muito conhecida das Caldas. Certa 
    noite o juiz sentiu-se mal, pareceu-nos que estava a ter um ataque cardíaco. 
    Enquanto o Maldonado Freitas lhe punha panos molhados na cara e lhe dava 
    umas palmadinhas, passei toda a noite a bater na porta da cela a pedir que 
    alguém viesse socorrê-lo. Ninguém apareceu. No dia seguinte, durante a 
    visita da Ana Maria, pedi-lhe que avisasse a filha do Dr. Sebastião Ribeiro 
    de que o pai estava mal, sem assistência médica, que podia morrer ali e era 
    preciso denunciar a situação. A filha escreveu imediatamente uma carta 
    duríssima ao Salazar, dizendo-lhe que se o pai morresse, ela considerá-lo-ia 
    o assassino. Em qualquer ditadura que se preze isto teria dado logo prisão 
    para quem escrevera. Em Portugal deu que o Salazar lhe respondeu. Com um 
    cartão, que vi e sei de cor. Tinha em cima o nome - António de Oliveira 
    Salazar, em baixo - Presidente do Conselho de Ministros, sendo que a 
    profissão estava delicadamente riscada. O texto: "António de Oliveira 
    Salazar, cumprimenta V.Exa. e informa que seu pai se encontra bem e goza de 
    assistência médica permanente." De facto, o Maldonado estava na mesma cela e 
    era médico.
     P. - Estiveste preso durante quanto tempo? R. - Dois 
    meses. Não sabia ainda a razão porque tinha sido preso e pedi à Ana Maria 
    que tentasse perceber de que é que se tratava, quanto tempo poderia ter de 
    cumprir e me desse um sinal. Combinámos que no dia das encomendas, a seguir 
    a essa visita, ela me mandaria dois pastéis de nata se a coisa não tivesse 
    muita gravidade, meia dúzia se fosse grave, uma dúzia se fosse gravíssimo e 
    desse para eu ficar anos. Quando a encomenda chegou, fiquei varado e julguei 
    que ia ser condenado a prisão perpétua: quarenta e oito pastéis! O que eu 
    não sabia é que a Ana tinha combinado o mesmo sinal com as mulheres dos 
    outros presos, porque na altura estava numa cela com muita gente...
     P. - Como é que foste recebido no Banco quanto te libertaram? R. - Fui ter 
    com o dono do Banco, que era o Cupertino de Miranda e disse-lhe que não 
    valia a pena dizer-me nada, que ia pedir a demissão naquele instante, porque 
    era óbvio não poder retomar as funções que tinha depois de ter sido preso 
    por ajudar comunistas a fugirem. Libertava-o assim da incomodidade de me 
    despedir. Nota que durante os dois meses que estive preso o meu ordenado foi 
    religiosamente entregue à Ana. O velho Cupertino disse-me: "Oh homem, 
    deixe-se de disparates, vá para a sua secretária que os depósitos até 
    subiram !".
     P. - Hás-de convir que foi uma surpreendente atitude. Reveladora das contradições que o regime também comportava. R. - A minha 
    entrada para o Banco já tinha sido curiosa. Eu era estagiário de advocacia 
    no escritório do Mário de Castro, tinha vinte e poucos anos, tratava de uns 
    tristes casos de divórcio e não via a minha vida a andar para a frente. Um 
    dia recebo um convite para ser director-geral de um Banco. Não conhecia a 
    pessoa que me falou de lado nenhum. Disse-lhe que mal sabia distinguir um 
    cheque de um piano de cauda, ele achou que isso não tinha a mais pequena 
    importância e marcou-me um encontro. Naquele tempo eu achava que os Bancos 
    eram a marca mais visível do capitalismo fascista e preparei-me a rigor para 
    a entrevista: vesti-me de camisa preta e levei na mão um livro de um 
    economista marxista, Maurice Dobb, "On Economic Theory and Socialism", bem à 
    vista. Quando chego ao gabinete, vejo um homem novo que me diz, ainda eu não 
    tinha dado dois passos: "Até que enfim tenho um marxista aqui no Banco!" 
    Chamava-se José Fernando Martins de Carvalho e foi, até morrer, o meu maior 
    amigo. Morreu cedo, num desastre de aviação. Era o director-geral do Banco e 
    ia passar a administrador. Acabei, mais tarde, por vir a suceder-lhe. Era 
    uma pessoa absolutamente rara, de enorme carácter e inteligência, que me 
    disse ser monárquico integralista e que era óptimo que eu fosse marxista 
    porque, como íamos trabalhar juntos, as posições, assim, ficavam 
    equilibradas.
     P. - Esses anos no Português do Atlântico acabaram por te agarrar à tal actividade fundamental do "capitalismo fascista", já que ainda tentaste outras experiências bancárias antes do 25 de Abril. R. - Foi 
    profissionalmente uma experiência muito estimulante e divertida e onde 
    aprendi imenso. O Cupertino de Miranda era, também, um homem excepcional. Um 
    dia acordei com a sensação que, com trinta e poucos anos, para além de estar 
    a ganhar o que para mim era muito dinheiro (já era administrador nessa 
    altura), nada mais de muito excitante poderia acontecer-me 
    profissionalmente. Senti que começava a morrer, se continuasse no mesmo 
    lugar. Fui ter com o Cupertino de Miranda e disse-lhe isso mesmo, sugerindo 
    que o Banco tomasse a liderança no financiamento de actividades mais 
    directamente ligadas a projectos de desenvolvimento estrutural do país. Ele 
    achou que essa tarefa não podia partir de uma única instituição de crédito e 
    compreendi que teria de afastar-me. Tive então a ideia de recomeçar de novo, 
    com um Banco que eu pudesse inteiramente dirigir. Foi quando Manoel Boullosa, 
    outro homem extraordinário, veio ter comigo e deu-me carta branca para se 
    comprar o Crédito Predial. O arranque a sério deu-se por volta de 71/72, mas 
    só lá estive dois anos, porque entretanto aconteceu o 25 de Abril...
     P. - ... que te convocou de imediato para a actividade política, agora a céu aberto! R. - E a Ana 
    Maria deu-me então um grande apoio. Concordou inteiramente com o facto de, 
    tendo eu tomado sempre posições contra a ditadura, não poder, agora que a 
    liberdade nos tinha sido restituída, pôr-me de lado sem colaborar no 
    processo de construção da democracia. E a 26 de Abril de 74 aceitei o 
    convite da Comissão Coordenadora do Programa do MFA, para tomar medidas 
    económicas de emergência, evitar fugas de capitais, corridas a Bancos, 
    etc... É aí que faço grande amizade com o Ernesto Melo Antunes e o Vítor 
    Alves. São, para mim, as duas grandes referências do 25 de Abril. Tinham 
    ambos uma percepção exacta do estado do país e da prudência que era 
    indispensável usar para conduzir as coisas. Tanto mais que, de um dia para o 
    outro, só se encontravam anti-fascistas radicais. Gente que antes nunca 
    tinha feito nada, nunca se tinha pronunciado... O meu receio a seguir ao 25 
    de Abril era que, com a nossa situação geo-estratégica, num país muito 
    conservador (como ainda é hoje), com uma Igreja muito forte (como continua a 
    ser), qualquer forma de extremismo seria profundamente contra-revolucionária 
    e só poderia trazer a direita outra vez de volta.
     P. - Não te surpreendeu a forma como o regime caiu, esboroando-se como um castelo de cartas? R. - Não. 
    Sabia que o regime estava podre e que a guerra colonial forçosamente 
    acabaria com ele, mas achava que podre iria manter-se mais algum tempo. Não 
    lhe via o fim. Ainda por cima tinha havido, durante o Caetanismo, uma grande 
    abertura económica, as pessoas tinham sentido uma certa descompressão, 
    tínhamos entrado na EFTA. Marcelo Caetano - de quem era amigo e que foi o 
    melhor professor que tive na Faculdade - tentou imediatamente uma 
    liberalização, mas hesitou e não teve força para controlar a extrema-direita 
    do regime e gerir as contradições agudizadas pela guerra. Não era fácil, 
    pelo menos até ao "16 de Março", prever a queda rápida do regime, apoiado 
    num exército que tinha sempre sido um pilar do sistema, com uma oposição 
    dividida e uma polícia política que, embora de má qualidade, funcionava bem 
    com as denúncias que de todo o lado recebia. Só de facto com um golpe 
    militar, como aconteceu, provocado pelo cansaço da guerra colonial e no 
    quadro de quase total isolamento do país.
     P. - Aceitaste depois ser Ministro da Coordenação Económica no primeiro Governo Provisório? R. - Foi uma 
    experiência muito frustrante. Naquelas condições, em que quase ninguém era 
    realmente o que era e poucos tentavam agir com uma visão estratégica, não 
    era possível impor qualquer directriz de fundo, tudo se passava a quente, no 
    momento. O Ernesto Melo Antunes disse-me muitas vezes - "Queres suster a 
    onda, mas o que é preciso é cavalgá-la." Saí na crise Palma Carlos.
     P. - Regressaste à tua vida civil de antes? R. - Voltei 
    para o Crédito Predial, onde estive até ao fim de 74. Depois, no princípio 
    de 75, tive um convite, creio que do marechal Costa Gomes que mandou alguém 
    falar comigo, para saber se eu queria ir para Angola e integrar o Governo de 
    Transição, que devia preparar a passagem para a independência. O MPLA, de 
    que eu conhecia bem alguns dirigentes, também me contactou e convenceram-me 
    a ir dar uma ajuda na área económica. Levei a família, que lá ficou até 
    rebentar a guerra de Luanda. Estive em Angola de Janeiro a Setembro de 75. 
    Foi uma experiência fabulosa, mas muito complicada.
     P. - Queres descrever-me o quadro dessa "complicação" e das maiores dificuldades com que foste confrontado? R. - 
    Portugueses éramos dois - o engenheiro Antunes da Cunha, que tinha a pasta 
    das Obras Públicas e eu, como ministro da Economia. Depois havia os 
    ministros angolanos, para além de três primeiros-ministros, representantes 
    dos três Movimentos. Muitos vinham para o Conselho de Ministros com as 
    pistolas Walter 9 mm em elegantes pastas Samsonite.
     P. - Chegou a haver tiroteio no Conselho de Ministros? R. - Não. Mas 
    creio que todos estávamos preparados para nos atirarmos para debaixo da mesa 
    em caso de necessidade. As dificuldades principais resultavam da falta de 
    orientações de Lisboa, do extremar de posições políticas que era um reflexo 
    da situação conturbada em Portugal, das repercussões da guerra fria em 
    Angola e do choque dos três Movimentos de Libertação que, obviamente, apenas 
    estavam interessados em tomar o poder. Sobretudo, rapidamente se tornou 
    claro que era impossível impedir os erros resultantes de se tentar implantar 
    um regime de planeamento económico centralizado e estatizado, como queria o 
    MPLA. Tentei fazer um esboço das linhas de orientação a adoptar para evitar 
    o colapso económico e permitir o desenvolvimento futuro do país, que foi 
    aceite pelos três Movimentos, mas que ninguém pensava em adoptar. Nesse 
    aspecto a experiência foi absolutamente falhada.
     P. - Também trabalhaste na preparação do primeiro Orçamento Geral e no projecto de Constituição do futuro Estado angolano. Correu bem? R. - Não, 
    como é que querias que neste quadro corresse bem? Nem a FNLA nem a UNITA 
    tinham quadros minimamente preparados para governar o país, mas o pior é que 
    não tinham consciência da própria ignorância. Um dos ministros, quando se 
    discutia o Orçamento, queria que lhe entregassem pessoalmente, e em notas, a 
    verba atribuída ao seu Ministério e, como isso lhe fosse recusado, assaltou 
    o Banco Central com quarenta soldados para recolher os fundos. Ao MPLA, com 
    alguma gente de qualidade, cabem as maiores responsabilidades por tudo o que 
    aconteceu depois, quer na fase imediatamente a seguir à tomada do poder, com 
    uma pseudo-ortodoxia marxista copiada do figurino europeu e completamente 
    inadaptada ao contexto sociológico de Angola, quer, mais tarde, pela criação 
    de um Estado totalmente indiferente ao sofrimento do povo e assente na 
    corrupção de uma pequena classe oligárquica. Tive várias conversas com 
    Agostinho Neto sobre os perigos da concepção totalitária do poder que 
    deixara se instalasse. Nesse sentido, o afastamento de grupos como a Revolta 
    Activa e de homens como Mário Pinto de Andrade e Gentil Viana, foi um erro 
    fatal.
     P. - Como é que reportavas ao governo português essas tuas experiências e o estado das coisas em Angola? R. - 
    Comunicava frequentemente com o Melo Antunes. Mas quando a guerra de Luanda 
    começou a crescer em brasa e numa escalada imparável, que vi de perto (não 
    consegui evitar que matassem, no quintal da minha casa, diante de mim, dois 
    homens, cena que fotografei; nem que bombardeassem parte da casa, comigo lá 
    a morar; nem impedir que me enchessem o jardim com gatos pretos pendurados 
    nas árvores), quando era evidente ser inevitável a destruição do país e 
    totalmente impossível qualquer forma de entendimento a nível político, 
    escrevi uma carta aos três presidentes dos Movimentos, contando o que 
    pensava da situação angolana. Agostinho Neto ficou muito zangado comigo e 
    Jonas Savimbi entendeu que eu devia deixar Angola. Vim a Lisboa falar com o 
    Presidente da República e com a Comissão dos Vinte e expliquei-lhes o meu 
    ponto de vista - ou nós tomávamos militarmente o controle da situação até à 
    data da Independência, o que já parecia impossível, ou então era melhor 
    começar, de imediato, a preparar a evacuação dos portugueses que lá viviam e 
    que quisessem voltar, o que de resto estava a ser preparado por uma equipa 
    de militares de grande capacidade.
     [Ao ouvi-lo, 
    pedi-lhe se me deixava ler a tal carta, polémica e dura. E não resisto a 
    transcrever o seu final. Datada de princípios de Setembro de 1975, foi 
    dirigida ao Colégio Presidencial e aos presidentes dos três Movimentos de 
    Libertação de Angola e é assim que Vasco Vieira de Almeida termina: "... 
    Estou em Angola, apenas para ajudar o povo angolano a libertar-se das 
    sequelas do colonialismo e a construir por suas mãos, democraticamente, o 
    futuro que escolher. Sei que não é a via da violência e da corrupção que o 
    povo pretende. Enquanto estiver neste cargo, que não pedi, cabe-me apontar a 
    prepotência e a incapacidade, venham de onde vierem, e tenho o dever único 
    de defender os superiores interesses da nação independente que Angola quer 
    ser. Fá-lo-ei enquanto estiver convencido de que a minha presença tem 
    qualquer utilidade. Mas pretendo que fique bem claro que não colaborarei na 
    farsa trágica que é neste momento o Governo do país, nem aceitarei ser 
    cúmplice passivo num desastre que se me afigura inevitável e que venho 
    denunciando há largo tempo, se não se alterarem as condições políticas 
    nacionais. Quero, por isso, afirmar que, a manter-se o quadro actual, não 
    vejo sentido em continuar no meu posto e deixarei aos que ficarem a 
    responsabilidade histórica pela destruição dos destinos deste país, que lhes 
    competia defender."]
     P.- Regressas a Portugal e regressas à advocacia. De vez. R. - De vez, 
    sim. Esse regresso à advocacia, em 1976, depois de vir de Angola, foi também 
    complicado. O país vivia um clima de grande agitação e os advogados não eram 
    propriamente um género de primeira necessidade. O André Gonçalves Pereira 
    foi um grande amigo e cedeu-me uma sala no seu escritório, sem nenhuma 
    contrapartida. Naquela altura eu estava sem um tostão, todas as minhas 
    acções tinham voado em fumo, com as nacionalizações. Estive um ano à espera 
    do meu primeiro cliente. Passei esse ano a estudar de novo e furiosamente os 
    manuais de Direito. Tinha estado muito tempo longe deles. Um dia, como tenho 
    muita sorte, começaram a aparecer-me clientes e, passado algum tempo, montei 
    o escritório, onde estás e onde trabalham advogados, na maioria dos casos 
    muito jovens e muito bons profissionais.
     P. - Estamos a chegar ao fim, Vasco, mas vou ainda disparar três ou quatro questões, das breves. Do teu ponto de vista qual é a pior herança que o regime fascista nos legou e que ainda se faça sentir na sociedade portuguesa? R. - O 
    conformismo e o corporativismo.
     P. - Achas que o país entrou em depressão? R. - Entrou, 
    do meu ponto de vista de forma injustificada, tão injustificada como a 
    euforia de há poucos anos atrás. Há razões de grande preocupação, no plano 
    económico, é verdade, e também porque as pessoas sentem a inexistência de um 
    projecto político e não reconhecem autoridade no exercício do poder actual. 
    O projecto dos Estados Gerais ficou por cumprir. Tenho pena, porque era 
    mobilizador. Mas é uma situação que, como todas em política, é reversível, 
    desde que todos nos empenhemos nisso e nos corresponsabilizemos.
     P.- És do que pensas que os novos de hoje pertencem a uma "geração rasca"? R. - De todo. 
    Jovens rascas houve-os em todos os tempos, tal como velhos rascas. A 
    sociedade portuguesa está em transição. Foram gerações mais velhas que 
    criaram um sistema de ensino ineficaz e complacente, que contribuíram para 
    destruir em grande parte o papel da família, que confundiram liberdade com 
    irresponsabilidade, que só falaram de direitos e não de deveres, que criaram 
    um clima de cepticismo e de cinismo. De que é que estavam à espera?
     P.- Para ti, continua a fazer sentido falar-se em "esquerda" e em "direita"? E, caso aches que sim, o que é que melhor caracteriza "ser de esquerda"? R. - Claro 
    que continua a fazer sentido. Há valores que são historicamente património 
    da esquerda: a liberdade, a solidariedade, a capacidade de projectar o 
    futuro, de olhar para a História com optimismo... Ser de esquerda, hoje, 
    exige uma solidariedade global e uma exemplaridade individual que, em cada 
    momento e na acção prática, traduza esses valores com eficácia. O grande 
    desafio é sempre o mesmo - acreditar ser possível realizar a utopia.
     P.- A "direita" não tem utopias? R. - Não. O 
    sonho e a utopia são próprios à natureza da esquerda.
     P.- Dá-me uma palavra de eleição. R. - Ana. 
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    ENTREVISTA: VASCO VIEIRA DE ALMEIDA Na 
    adolescência leu muito, conheceu Cortezão e Sérgio, descobriu a política. Em 
    casa a figura tutelar do pai foi desde cedo a referência fundamental, hoje 
    ainda intacta, na saudade e na memória. Na 
    Universidade, o curso de Direito seguiu de par com uma intensa actividade 
    politica começada nos bancos do liceu no MUD Juvenil. Entre 70 e 74, passa 
    com brilhantismo pela Banca onde é olhado como um "sobredotado": é 
    administrador do Português do Atlântico e, depois, Presidente do Conselho de 
    Administração do Crédito Predial. Nos intervalos, continua a devorar livros, 
    a praticar desporto, a tocar piano. A queda da 
    ditadura e o advento da democracia fazem-no de novo mergulhar na politica, 
    desta feita, à luz do dia: é ministro da Coordenação Económica do primeiro 
    governo saído do 25 de Abril de 74. Mas, logo a seguir, deixa o Terreiro do 
    Paço na célebre crise Palma Carlos. Em 75 muda-se 
    para Luanda e em representação do Governo Português, é o titular da pasta da 
    Economia no Governo de Transição de Angola. Duas experiências que ele resume 
    de forma tão seca quanto frontal: "Foram duas reais derrotas". Talvez também 
    por isso - mas certamente pela sua aversão a cingir-se a disciplinas 
    partidárias e outras -, desiste da politica e escolhe a advocacia. Hoje 
    possui um dos mais reputados escritórios de Lisboa. Vinte anos 
    depois de ter vivido muita coisa, visto quase tudo e ouvido outro tanto, 
    aceitou viajar por esses anos - tão polémicos quanto ele próprio. Não contou 
    tudo: a sobriedade, a discrição - e porque não dizê-lo, a aura de mistério 
    que sempre o envolveu -, traços essenciais da personalidade e do carácter de 
    Vasco Vieira de Almeida, impedi-lo-ão sempre de romper os segredos e os 
    silêncios até ao fim.   
    PÚBLICO - Como chegou à 
    politica antes do 25 de Abril? Pelo ambiente familiar, a personalidade de 
    seu pai, a universidade? VASCO VIEIRA 
    DE ALMEIDA - Por isso tudo. Mas o ambiente familiar foi definitivo. O meu 
    pai, que teve sempre uma grande intervenção cívica e politica, era 
    excepcional pela cultura e pela inteligência, marcou-me muito. Foi preso 
    duas vezes, a ultima das quais com setenta e tal anos. Em casa tive sempre 
    um ambiente liberal, não empenhado ideologicamente, o meu pai era 
    anti-ideologia. Por tudo isto lidei desde novo com gente da oposição: o 
    Cortezão, o António Sérgio, etc. E no final do liceu entrei para o MUD 
    Juvenil onde tive grande actividade política. P. - Que 
    prosseguiu na Faculdade de Direito? R. - Sim, uma 
    época em que conheci muita gente da oposição de quem passei a ser amigo: 
    Carlos Brito, Pedro Ramos de Almeida, Veiga Pereira,João Monjardino,João 
    Pulido Valente, ainda hoje grande amigo... P. - ... 
    gente mais ligada ao PC, ao contrário de outra esquerda, que já marcava a 
    Faculdade nesse tempo... Isso influenciou-o desde logo? R. - Não. 
    Todos os meus amigos eram da oposição ao regime mas de todas as espécies... 
    Havia os da Seara Nova - como o Vasco Martins - que nada tinham a ver com o 
    PC e outros que provavelmente nessa época, ainda não eram comunistas, tinham 
    apenas começado uma luta política. É verdade que discutíamos ideologia - eu 
    discutia muito -, que estive muito próximo de gente ligada ao Partido 
    Comunista - eram aliás pessoas que respeitava pela coragem política e por 
    terem uma acção consequente -, mas não tiveram influência directa em mim. P. - Não 
    tiveram? R. - Não. 
    Aquilo que penso que aconteceu foi uma reacção minha contra o liberalismo do 
    meu pai. Eu não era certamente um liberal, naquela altura estava muito 
    próximo das ideias da esquerda, e influenciado pelos autores que lia.. P. - 
    Quais, por exemplo? R. - 
    Fartei-me de estudar os revolucionários do século XIX, estudei o Marx 
    concerteza e isso influenciou-me durante toda a vida. Ainda hoje sinto essa 
    influência em certos aspectos... com as devidas reservas e distâncias. Nesse 
    sentido, é verdade, estive muito próximo de muita gente que depois foi do 
    PC. P. - Mas 
    você nunca foi? R. - Não. P. - 
    Porquê, se tudo se encaminhava ou o encaminhava para lá? R. - Pela 
    mesma razão pela qual nunca fui para partido nenhum. Nunca fui. Na altura o 
    que contava era sobretudo o meu gosto lúdico pela luta politica. Além disso 
    era suficientemente heterodoxo para poder encaixar-me em partidos, sobretudo 
    naquele que tinha a disciplina mais apertada. Mas naquela altura, no tempo 
    da ditadura, não tinha duvidas em colaborar em acções concretas com o PC. P. - O que 
    o leva a ser preso mais que uma vez... R. - Duas 
    vezes: a primeira no dia das eleições do Humberto Delgado, em 58. A segunda, 
    em 63, estava já na direcção do Banco Português do Atlântico. P. - Da 
    segunda vez, lembro-me de que se atribuía essa prisão ao facto de constar 
    que era você quem dirigia e orientava as finanças do Partido Comunista... R. - Era o 
    que dizia a PIDE, nos interrogatórios... P. - Se 
    fosse só a PIDE que dissesse isso não me valeria a pena colocar-lhe hoje a 
    questão. Justamente, havia sectores - alguns da oposição - onde isso 
    circulava. R. - Sim, 
    isso constou na altura. A razão por que fui preso é simples: ajudei 
    comunistas a fugir na célebre evasão da prisão de Caxias, abriguei-os na 
    minha casa e depois distribuí-os pelos locais combinados. Havendo uma 
    ditadura, eu ajudaria quem quer que fosse a lutar contra ela. E tive o maior 
    gosto em fazê-lo naquela altura. P. - Esse 
    gesto não lhe causou "maçadas" com a administração do Banco onde trabalhava? R. - Não e 
    reconheço que isso foi extraordinário. Quando saí da cadeia disse ao 
    Cupertino de Miranda que me ia embora por ele não poder ter na direcção um 
    tipo que fora preso pela PIDE. O Cupertino respondeu-me apenas: "volte para 
    a sua secretária e continue a trabalhar, os depósitos subiram". Foi o que 
    fiz, voltei para a secretária, continuei a trabalhar... P. - Já 
    conhecia o dr. Álvaro Cunhal nessa altura? R. - Não, só 
    o conheci depois. P. - Soube 
    antes do 25 de Abril que ele iria ocorrer naquela data? R. - Não. P. - Mas 
    logo a seguir começou a colaborar? R. - Sim. Fui 
    contactado horas depois. A primeira pessoa que falou comigo foi o general 
    Galvão de Melo. Pediram-me que ajudasse a tomar as medidas económicas de 
    emergência que se achava - e com razão - que eram necessárias dado o 
    solavanco que o 25 de Abril iria provocar: as corridas aos bancos, etc. A 
    seguir conheci o general Spínola e depois aquele grupo com quem viria a 
    entender-me especialmente bem: o Melo Antunes, o Vítor Alves etc, que 
    integravam a Comissão do Programa do MFA, creio que se chamava assim... Dois 
    dias depois já estava a trabalhar na Cova da Moura. P. - 
    Trabalhava na direcção de um banco, estava a fazer uma carreira, tinha nome 
    e prestígio. O que o fez saltar, de um minuto para o outro, para a Cova da 
    Moura, para a revolução e para os militares? R. - Várias 
    coisas: o estar na Banca não era incompatível com uma acção politica e a 
    história da minha prisão mostrava-o bem. Por outro lado, convenci-me naquela 
    altura de que poderia ter interesse fazer política, construir qualquer coisa 
    de novo. Mas não me passou pela cabeça, quando surgiu o 25 de Abril, que 
    viria a integrar, logo a seguir, o I Governo Provisório... P. - Foi 
    convidado para Ministro da Economia, o país estava em efervescência e sem 
    regras. O que disse a si próprio? Como mergulhou em tudo aquilo? R. - O que 
    disse a mim próprio? Basicamente que estavam criadas as condições de 
    liberdade em Portugal e esse era para mim um objectivo fundamental. Mas por 
    outro lado, nunca achei que a democracia fosse apenas o objectivo final: se 
    era um objectivo em si mesmo, tinha também de ser instrumental na 
    concretização de um projecto politico. A democracia formal só por si não me 
    interessava... P. - E 
    esse projecto consubstanciava-se em quê, definia-se como? R. - Naquilo 
    que fora a minha posição ou no que era a posição da esquerda... P. - Qual 
    esquerda? Tratava-se do socialismo? R. - Não, não 
    era catalogável nesse aspecto. Era preciso fazer avançar a economia - que 
    conhecera um desenvolvimento grande na época -, estabelecendo ao mesmo tempo 
    regras de justiça social. Uma mistura de desafio com a necessidade de evitar 
    um tipo de injustiças e desequilíbrios que eram patentes. P. - E 
    julgou isso possível? Até quando?
     R. - Nos 
    primeiros tempos julguei... Com entusiasmo, pensei que era possível 
    construir a base de qualquer projecto... Mas rapidamente verifiquei que era 
    impossível fazê-lo de forma concertada - apareceram logo todas as 
    diferenças: de posição, de exigências, de intervenção política... P. - Mas 
    isso era natural! Estava uma revolução em curso... Como esperou que fosse de 
    outra maneira? R. - Era mais 
    complexo do que eu pensara à partida: havia o PC com o seu projecto político 
    e, para além dele, dois partidos praticamente inexistentes quando surge o 25 
    de Abril: o PS, que não tinha nem estrutura ideológica nem aparelho, era 
    Mário Soares à frente de um pequeno grupo; e o PSD, a cujo nascimento 
    assisti, na Cova da Moura, quando Sá Carneiro o foi apresentar ao general 
    Spínola. Ficou claro 
    naquela altura que em vez de se revolverem os problemas concretos dando 
    simultaneamente tempo a que se fizesse uma qualquer sedimentação, fez-se o 
    contrário: começou-se a luta pelo poder, deixando a resolução das questões 
    para depois. P. - Do 
    entusiasmo passou à preocupação? R. - Passei. 
    Por verificar que aquele caminho conduzia à destruição do tecido económico 
    português o que mais tarde não podia senão desaguar em formas de capitalismo 
    selvagem - a ultima coisa que eu queria que ocorresse. P. - Fez 
    ouvir a sua voz no Conselho de Ministros contra a ideia - que começava a 
    circular - de que era preciso nacionalizar, por exemplo? R. - 
    Lembro-me de dizer que o acto de nacionalizar por si só, não valia nada. E 
    de acrescentar que em Portugal estávamos sempre atrasados de uma 
    revolução... Aquela era a revolução de há 50 anos na Europa! Simplesmente, 
    era muito impopular dizer isto naquela altura. E foi aí que percebi que não 
    tinha jeito para a politica... Tinha a sensação de dizer coisas certas no 
    momento errado quando o que correspondia à politica útil, era dizer coisas 
    erradas no momento certo. P. - Dá-se 
    então, em Maio de 74, a queda do I Governo, você sai na célebre crise Palma 
    Carlos. Mas ainda antes: como se comportavam, no Conselho de Ministros,que 
    atitudes tinham, Sá Carneiro, Mário Soares, Álvaro Cunhal? Como intervinham? R. - Mário 
    Soares - de quem era amigo há muito tempo -, devido a ser ministro dos 
    Negócios Estrangeiros, viajava muito, vi-o relativamente pouco nessa altura. 
    O Francisco Sá Carneiro - um verdadeiro social-democrata -, conhecera-o na 
    época da Faculdade. Admirei-lhe a frontalidade, os princípios e o facto de 
    actuar sempre de acordo com eles. Corria todos os riscos, era um homem livre 
    a pensar, senti-me muito próximo dele em muitos aspectos... Embora vindo 
    cada um de nós, de caminhos diferentes, e de posições politicas distintas, 
    concordávamos no essencial: evitar a desordem e o caos, que levariam a 
    extremismos de direita ou de esquerda. Lembro-me que fomos os dois um dia à 
    Manutenção Militar, expôr ao MFA o que seriam as consequências daquela 
    radicalização. Isto foi considerado uma terrível tentação de direita para 
    evitar o processo que a ala mais radical do MFA queria pôr em marcha!
     P. - E 
    Cunhal? R. - O dr. 
    Álvaro Cunhal é pura e simplesmente fascinante. Perante ele, temos a 
    sensação de conhecer um dos grandes personagens da história do nosso país. 
    Um homem que pelo menos no Governo, sempre percebeu a necessidade de alguma 
    moderação. Percebia o riscos dos excessos... P. - ... 
    só no Governo? R. - Bem, a 
    certa altura compreendeu que não podia ser ultrapassado por uma extrema 
    esquerda muito activa. Mas a impressão com que fiquei - e que guardo hoje - 
    é que, para além da figura excepcional de homem que é, sempre procurou - 
    pelo menos no Conselho de Ministros -, ter alguma prudência. P. - 
    Intervinha muito no Conselho? R. - Tenho a 
    ideia de que o fazia fundamentalmente nas questões de princípio e não tanto 
    nos problemas concretos que se punham na altura. P. - Tem 
    vindo a dizer-me que percebeu muito cedo o rumo que as coisas tomavam. 
    Preocupou-se. Mas no entanto, ficou-se com a ideia de que poderia ter 
    colaborado mais com o general Spínola... Bem ou mal, era ele que 
    institucionalmente encarnava, pelo menos no início, o tal travão que você 
    achava indispensável. Como Ministro da Economia, não lhe patrocinou - nem 
    proporcionou - as reformas que ele terá querido... R. - Não sei 
    se se pode individualizar dessa maneira. Além disso, o poder não estava no 
    Governo. Estava no MFA e nalguns partidos que o procuraram instrumentalizar. 
    E havia duas posições: quem queria alguma ordem nas instituições para levar 
    a cabo as reformas - grupo onde eu estava - e quem queria radicalizar, 
    quebrar pontes, fazer roturas, para sobre isso construir de novo. P. - O PCP? 
    A extrema esquerda? R. - A 
    extrema-esquerda, nitidamente. Mais aquele batalhão colossal de oportunistas 
    que sempre aparecem nestas coisas... Pessoas sem passado e sem projecto - 
    que hoje vemos que não tinham o menor desejo de intervenção política - mas 
    que procuravam navegar naquela confusão... P. - Em 
    quem está a pensar? R. - Em 
    grupos que nem sequer eram partidos... Grupúsculos que se situavam à 
    esquerda do PS, como por exemplo o MES... Um núcleo pequeno, fechado sobre 
    si próprio, extremamente radical e inconsequente. E como dentro do MFA os 
    grupos mais radicais tiveram de início alguma superioridade, quem procurou 
    resistir-lhes foram aquelas pessoas que se juntaram à volta de Melo Antunes 
    e de Vítor Alves. E enquanto esta contradição não se resolveu dentro do 
    próprio MFA, a confusão continuou... P. - 
    Entretanto, sai do Governo por solidariedade para com Palma Carlos? R. - Não só 
    devido a essa solidariedade, que existiu. Também por constatar a 
    impossibilidade de implantar as tais medidas de estabilização para proceder 
    às reformas. P. - Foi 
    uma derrota? R. - Foi, 
    obviamente. P. - O que 
    fez no dia seguinte? R. - Recusei 
    o convite para participar no II Governo... Nada mudara, não era um II 
    Governo que iria fazer o que não fizera o primeiro. Como não fez. E como 
    entendi que houvera uma clara derrota política daquilo que eu defendera, 
    dispus-me a colaborar apenas em coisas concretas, não queria ser um político 
    profissional.Aproximei-me mais de Melo Antunes e de alguns militares que 
    viriam a formar o Grupo dos 9. P. - 
    Apoiou-o, por exemplo, na elaboração daquele Plano Económico, redigido em 
    Sesimbra no final de 74... R. - ... não 
    colaborei com ele nessa altura. Mas a ideia do Ernesto Melo Antunes - e 
    desse Plano - correspondiam exactamente àquilo que fora a minha própria 
    visão dos problemas e da forma de os encarar. Mas depois meteu-se o 11 de 
    Março. De resto, ele não é senão uma reacção contra essas pessoas e esse 
    Plano... P. - 
    Entretanto, havia África e a questão colonial... R. - ... que 
    era extremamente importante! O golpe de estado do 25 de Abril surge 
    fundamentalmente em função das guerras coloniais... P. - A 
    razão prioritária, final, do 25 de Abril foi, a seu ver, a situação 
    colonial? R. - ... 
    julgo que foi. A experiência que eu tinha é que eram poucos os que lutavam 
    activamente contra o regime. Havia uma massa gigantesca de gente, 
    despolitizada, desinteressada, que deixava andar... É a guerra colonial - um 
    problema insolúvel naquela altura - que cria a movimentação dos militares. P. - Como 
    é que olhava para essa questão antes do 25 de Abril? Defendia negociações 
    rápidas tendentes à independência ou... R. - Desde a 
    universidade que defendia a independência, nunca acreditei na possibilidade 
    prática de manter as colónias. Visitei Angola diversas vezes e percebi 
    várias coisas: havia a justaposição de duas culturas, Portugal não tinha 
    capacidade económica para desenvolver aqueles países e havia gente que, de 
    facto, queria a independência. Parecia-me justificado, inevitável, e além 
    disso, sempre fui anticolonialista. P. - Mas 
    assim como se preocupou aqui com o rumo das coisas, também o inquietou o 
    rumo da descolonização ou achou-o inevitável? R. - 
    Parecia-me óbvio que a situação que então se vivia aqui, iria influenciar 
    esse processo. Era fatal que as contradições internas vividas em Portugal se 
    reflectiriam na descolonização, que iram ser transpostas para lá... O 
    problema era conter as coisas... Quando fui para Luanda, constatei que havia 
    nos soldados a sensação de que a guerra tinha acabado, queriam regressar o 
    mais depressa possível... E nessa altura era impossível alguém bater-se pela 
    ordem, ou mesmo bater-se pelo que quer que fosse. A ideia da independência 
    imediata fazia sentido, desde que acompanhada por um sistema e um regime que 
    estivesse a funcionar solidamente em Portugal. Não estava. P. - No 
    inicio de 75, aceita de novo um cargo ministerial, desta vez em Luanda, no 
    Governo de transição. Repito a pergunta de há pouco: o que o fez saltar para 
    Luanda, acreditar naquilo que mesmo de longe parecia uma tarefa 
    "impossível"? Também pesou na decisão o facto de - como também circulou - a 
    sua mulher ter simpatia pelo MPLA e de a sua família ter bens em Angola 
    pelos quais convinha zelar? R. - Eu sei 
    que isso foi dito na altura mas não teve nada a ver uma coisa com a outra. 
    Nem é o meu estilo ir daqui a correr para um cargo político em Angola salvar 
    uns tostões seja de quem for! Fui porque me vieram dizer que iria haver 
    ministros portugueses no Governo de Transição e que o meu nome fora apoiado 
    por todos os Movimentos de Libertação... P. - Quem 
    lhe veio dizer isso? Quem foi o mensageiro? R. - Não me 
    lembro, mas fiquei espantado com o convite. Os únicos que admitia que me 
    pudessem apoiar, eram os do MPLA, conhecia-os a todos, tinha sido testemunha 
    num julgamento do Agostinho Neto, etc. Entendi que deveria ir, era um 
    desafio, em Portugal não poderia fazer muito mais. Além disso, julguei que, 
    indo, ajudaria a evitar o que não conseguira aqui. P. - Que 
    realidade foi lá encontrar? R. - 
    Encontrei comunistas que queriam ligar Angola à então URSS; oportunistas que 
    queriam manter os negócios; gente que queria fazer uma federação. E, como 
    pano de fundo, três movimentos de libertação, um dos quais tinha recebido 
    auxilio logístico da União Soviética e onde estava muita gente que eu 
    conhecera na Faculdade e que entendi que poderia ter nessa altura, uma visão 
    oposta ou diferente da que vieram a ter sobre alguns problemas... Havia uma 
    UNITA que no fundo tinha sido criada pelos portugueses e uma FNLA apoiada na 
    época pelos americanos, mas que era um movimento sem grande expressão. P. - Como 
    vira os Acordos de Alvor? R. - Tiveram 
    consequências terríveis: meteram na mesma panela três movimentos que nunca 
    poderiam entender-se, tanto que originaram a primeira guerra civil em 
    Luanda, em 75. Parece-me um bocado complicado vir dizer hoje que as coisas 
    poderiam ter sido diferentes... P. - E 
    dizer que foi tudo "inevitável"? R. - Discordo 
    que se diga exclusivamente isso, porque parece uma boa escapadela para a 
    incapacidade política... Mas naquele caso era de facto impossível aguentar a 
    situação. Aliás, quatro meses depois de lá estar, escrevi uma carta que 
    dirigi aos três movimentos... [levanta-se, procura um papel, dá-mo a ler]. 
    Com a redacção desta carta pretendi fazer o retrato daquilo que estava a 
    ocorrer: a destruição de Angola através da luta pelo poder. Na prática não 
    foi possível fazer de outra maneira. P. - 
    Teria, se pudesse, advogado outra orientação? R. - Teria 
    porventura apoiado logo desde o inicio o MPLA. Tinha quadros, eu conhecia 
    bem o Agostinho Neto, o Lúcio Lara, o Mário e o Joaquim Pinto de Andrade, 
    pareciam-me pessoas com quem se podia falar.. P. - Mas 
    nesse caso, Portugal teria tido a capacidade - e a vontade - para diminuir a 
    influência soviética sobre o MPLA? P. - Não sei. 
    Não nos podemos esquecer de que havia a guerra fria, o que fazia com que não 
    fôssemos os únicos envolvidos nesta teia. Éramos apenas um dos peões naquele 
    jogo. O choque entre os Estados Unidos e a União Soviética na guerra fria e 
    a nossa passividade lançaram mais directamente e mais depressa o MPLA para 
    os braços dos russos e dos cubanos do que se a nossa atitude tivesse sido 
    mais clara. P. - Tinha 
    boa relação com o MPLA, era amigo pessoal de Agostinho Neto. Que lhes dizia? R. - Entre 
    muitas outras coisas, dizia-lhe que tivesse cuidado com as soluções 
    socializantes... Se já não eram solução na Europa, um socialismo tropical 
    seria ainda mais complicado! Além disso, o funcionamento de uma sociedade 
    controlada economicamente -para além de ser aberrante com a revolução 
    tecnológica - exige quadros e necessita de uma estrutura muito mais afinada 
    do que uma economia de mercado. Ninguém fez muito caso, nacionalizou-se o 
    comércio externo - uma coisa sem sentido nenhum... P. - Mas 
    você estava lá, era ministro, podia impedir! R. - Vim-me 
    embora quando isso foi feito... P. - O que 
    evitou então enquanto lá esteve? Nada? R. - Não 
    evitei grande coisa. Só estive cinco meses, procurei conciliar, no plano 
    económico, o que os três movimentos queriam fazer. P. - O 
    êxodo e o escorraçamento dos portugueses não o afligia? R. - Foi um 
    erro colossal. Os portugueses que lá estavam não eram politicamente 
    influentes, queriam simplesmente que os deixassem ficar: estavam há muitas 
    gerações e nem sequer eram facilmente substituíveis. Havia muita coisa 
    válida feita em Angola. A guerra obrigou a que se desenvolvesse, mas é 
    indiscutível que muita coisa estava feita e bem feita. P. - Falou 
    com o Agostinho Neto sobre a perseguição dos portugueses? R. - 
    Lembro-me de que uma vez estava a ouvir no carro um discurso e quando o 
    Agostinho Neto acabou de falar, fui imediatamente ter com ele. Disse-lhe que 
    acabara de criar uma situação diabólica, sem resolução possível: por um 
    lado, o querer socializar a economia, por outro, correr com os quadros 
    portugueses. Os quais não só não lhe iriam criar nenhum problema político 
    como estavam dispostos a aceitar a chefia política de um governo angolano. P. - E 
    também aí não conseguiu nada? R. - Não 
    consegui nada. Nesse aspecto a minha intervenção política - em Portugal e em 
    Angola - salda-se por duas reais derrotas... P. - Como 
    era a vida em Luanda em 75? Como se vivia todos os dias? Você deve ter visto 
    tudo, ouvido tudo... R. - 
    Passavam-se as coisas mais extraordinárias num quadro totalmente 
    surrealista. Em Portugal, apesar de tudo, no PREC, havia quadros, havia uma 
    classe média, em Angola isso não acontecia. As reuniões, a vida política, 
    faziam-se numa tensão terrível, em plena guerra civil. E como ninguém estava 
    preparado, as coisas mais elementares eram quase impossíveis. Ninguém sabia 
    como se conduzia um Estado... P. - Um 
    Estado? E como se processava o Conselho de Ministros? R. - Era 
    complicado... O que vinha ao de cima, sempre, eram as lutas entre os três 
    movimentos que depois davam origem a discussões totalmente fantásticas sobre 
    problemas reais, concretos, perante os quais ninguém fazia a menor ideia do 
    que estava a dizer! Tudo isto com os três movimentos actuando em liberdade 
    em Luanda na luta do poder, num cenário de guerra fria, onde o Ocidente e o 
    Leste lutavam pelo controlo final de Angola... E depois existiam também 
    lutas sérias porque as pessoas andavam armadas... P. - Creio 
    que foi ainda consigo no Governo que, uma vez, um ministro abandonou a 
    reunião do Conselho para ir matar alguém que na rádio estava a dizer mal 
    dele... R. - Parece 
    que sim, que foi assim... P. - Quem 
    matou quem? R. - Não 
    queria falar nisso. P. - 
    Voltando àquela carta que me disse que escreveu aos líderes dos Movimentos, 
    que eco teve ela? Que se passou a seguir? R. - Fiquei 
    mais uns tempos mas como a situação não melhorasse, saí. Não queria assumir 
    responsabilidades na destruição de Angola nem na impossibilidade da 
    salvaguarda dos interesses portugueses. Voltei para Lisboa. E repeti ao 
    Presidente da República - general Costa Gomes - o que escrevera na carta. P. - Como 
    reagiu ele? R. - Naquela 
    altura tinha problemas semelhantes a resolver aqui em Portugal. Isto 
    passa-se em 75, no verão quente - ainda longe do 25 de Novembro - , Costa 
    Gomes sentia que não tinha nem meios militares, nem políticos, nem 
    económicos, para controlar a situação em Angola. P. - 
    Voltou para Portugal amargurado, arrependido, desiludido? R. - Não. 
    Tinha a convicção de ter feito o que correspondia ao que eu pensava. Além 
    disso, estava perante um processo contra o qual era inútil tentar bater-me. P. - 
    Desiste completamente da política, decide-se pela advocacia... R. - Sim. 
    Para tentar bater-me em Portugal, teria de entrar num partido político, 
    lutar politicamente integrado numa estrutura partidária. Não me reconhecia 
    em nenhum e não estava disposto - nunca estarei - a aceitar uma disciplina 
    partidária. Resolvi então abandonar completamente a ideia de um dia voltar a 
    intervir politicamente de forma consistente. P. - Aqui, 
    vou abrir um parêntesis: nem agora - com as "sugestões" avançadas pelo 
    Palácio Belém, ao longo de 1993, para que se candidate às próximas eleições 
    presidenciais - você vai rever essa posição? R. - Pode 
    escrever que não serei, em caso algum, candidato a Belém. E pode fechar o 
    parêntesis. P. - 
    Passaram-se vinte anos: como viu, do seu balcão de advogado, os diferentes 
    ciclos que caracterizaram a democracia portuguesa? R. - Bem, a 
    resposta seria longa. Vamos por partes: o período de hegemonia do PS foi 
    relativamente curto e decorreu, sobretudo - como sempre ocorreu com este 
    partido -, em fase de crise conturbada. Mário Soares foi e é o referencial 
    de coragem e determinação, o lutador pela democracia sem o qual ela nunca 
    teria vingado. A AD constituiu uma tentativa do homem excepcional que foi 
    Francisco Sá Carneiro para criar as condições que lhe permitissem governar 
    em alternativa à esquerda. O Bloco Central representou o início de uma fase 
    que depois evoluíu para um período de acomodação da classe politica em 
    perversão do sistema de compromissos de que falava Max Weber; o "eanismo" e 
    o "cavaquismo" não existem enquanto doutrinas... P. - ... 
    mas alguém achará que foram ou são "doutrinas"? R. - Não. O "eanismo", 
    como experiência partidária, constituíu apenas um epifenómeno na vida 
    politica portuguesa. O "cavaquismo" é uma técnica de controle da máquina do 
    Estado orientada por uma acção política assente nos ciclos eleitorais. P. - 
    Passados estes vinte anos, que país é este? R. - Também 
    vamos por partes: somos em primeiro lugar um país democrático: subiu o nível 
    de vida, generalizou-se o ensino, melhoraram-se algumas infraestruturas e 
    fazemos parte da União Europeia. É bom não esquecer que isso deve aos que 
    fizeram o 25 de Abril tornando possível a verdadeira transformação da 
    sociedade portuguesa.... P. - Foi 
    mais difícil realizar isso do que será agora corresponder aos tremendo 
    desafios que nos espreitam? R. - É 
    indiscutível que, hoje, os desafios são mais complexos. Em 74 tratava-se de 
    inserir Portugal no conjunto das democracias europeias ocidentais, num 
    quadro que, sendo de guerra fria, estava estabilizado e era controlado pelas 
    superpotências. Hoje vive-se em transição no plano ideológico, o mundo vive 
    uma permanente revolução tecnológica e científica, tentando responder aos 
    novos problemas postos ao capitalismo, alargando e sacralizando a noção de 
    mercado e globalizando a acção dos seus agentes. P. - Onde 
    conduz tudo isso no plano político? R. - Esta 
    situação, em que praticamente não há dados fixos, leva contraditoriamente à 
    tentativa europeia de criar mecanismos de decisão à escala continental, e de 
    preservar localmente um sistema de democracia representativa basicamente 
    herdado do seculo XIX. P. - 
    Portugal teria outro remédio que não fosse o da Europa Comunitária? R. - Não 
    tinha e por isso a opção foi correcta... P. - Como 
    olha hoje o futuro de Portugal na Europa? R. - A 
    liberdade de comércio, o desaparecimento de barreiras proteccionistas e a 
    defesa de uma economia de mercado sem restrições, podem constituir 
    princípios compreensíveis para os interesses dos países industrializados ou 
    para as organizações que dominam, mas daí não se segue que assegurem a 
    defesa dos interesses das nações mais pobres, apanhadas pela mudança radical 
    das regras de jogo e num momento muito delicado do seu desenvolvimento... P. - ... 
    mas no que nos toca, acha... R. - ... acho 
    que com excepção da área do PEDIP, a aplicação dos fundos estruturais foi 
    incorrectamente feita, pelo que creio ter-se perdido a grande oportunidade 
    de modernização do país que era vital ter-se feito.... P. - Um 
    olhar pessimista ou... afinal o único olhar possível? R. - Deixo 
    apenas uma pergunta em função do que acabo de lhe dizer: poderemos aceitar o 
    sacrifício de inteiros estratos sociais, a deterioração - nalguns casos 
    irreversível - do nosso tecido produtivo, a troco da participação num espaço 
    económico-político, ele próprio de futuro incerto? P. - 
    Porque a própria Europa deixou a de ser uma referência fixa? R. - A sua 
    evolução recente impõe-nos uma reanálise da nossa estratégia, não no sentido 
    da saída da União mas da reavaliação dos nossos objectivos a longo prazo. É 
    verdade que a Europa deixou de ser uma referência fixa e segura, pela qual 
    era possível estabelecer uma orientação. Ela começa antes a surgir, hoje, 
    como um espaço económico cheio de contradição internas, em que voltam ao de 
    cima não só os interesses dos países mais ricos, como decorre num pano de 
    fundo em que o retorno dos nacionalismos e a necessidade de alargamento a 
    leste serão factores crescentes de instabilidade e erosão dessa pretendida 
    coesão politica. P. - 
    Então? 
    R. - Obviamente não há soluções 
    pré-fabricadas nem fáceis, mas é necessário fazer uma reflexão sobre tudo 
    isto. E embora possa parecer parodoxal, a fase de transição que atravessamos 
    não exige formas de navegação à vista orientadas por uma burocracia que 
    administre, mas antes impõe um projecto colectivo a prazo conduzido por um 
    governo que governe. Público | 
| 
    O 
    País na Encruzilhada - II 
    
    Entrevista com Vasco Vieira de Almeida 
    
    Vasco Vieira de Almeida está preocupado e dividido com o futuro do país. 
    Lamenta que a deficiente coordenação e direcção da acção governativa tenha 
    como resultado "uma oportunidade perdida nestes últimos cinco anos", mas 
    espera que a moção de Guterres ao próximo congresso do PS traduza vontade 
    política para uma nova forma de governar. Nesta segunda entrevista do ciclo 
    "O País na Encruzilhada", Vieira de Almeida deixa o alerta: "Depois do 
    próximo Congresso do PS, chegou o último momento possível para mudar de 
    rumo, inverter o estado de espírito de desânimo hoje prevalecente e atacar 
    com energia uma agenda calendarizada de trabalho".
     
    
    PÚBLICO - Foi o primeiro ministro da Economia a seguir ao 25 de Abril, onde 
    integrou o Governo liderado por Palma Carlos. Nesse mês de 1974, que 
    desafios se lhe colocaram?
     
    
    VASCO VIEIRA DE ALMEIDA - As minhas expectativas não resultavam tanto do 
    facto de estar no Governo, que sabia ir ter fatalmente uma vida curta, mas 
    daquilo que tinha sido a minha vivência antes do 25 de Abril, em que, 
    modestamente, tinha participado na luta contra a ditadura. Esperava, como 
    cidadão, e como a maior parte dos portugueses, transformações radicais que 
    passariam pela recuperação dos nossos atrasos estruturais e pelo 
    estabelecimento de formas de justiça social, enquadradas num esquema de 
    desenvolvimento que alterasse profundamente a sociedade portuguesa. Como 
    ministro, entendia que a minha tarefa imediata era dupla: evitar a todo o 
    custo situações de pânico, como a corrida aos bancos, fugas de capitais ou 
    açambarcamento de géneros e a especulação, e lançar as bases de um novo 
    enquadramento da actividade económica que permitisse o controlo do poder 
    económico pelo poder político sem destruir os centros de investimento 
    existentes e promovesse o desenvolvimento das pequenas e médias empresas, 
    como principais geradoras de emprego.
     
    
    Na altura, era também imperioso consolidar a democracia? 
     
    
    Claro. E, como hoje, tinha uma visão ideológica do que era necessário fazer. 
    Sempre detestei o pragmatismo, que ou revela total ausência de ideias ou 
    esconde as piores ideias. Já pensava que só numa perspectiva de esquerda era 
    possível atingir aqueles objectivos. Mas o súbito romper da pressão 
    totalitária, a cobardia, que levou muito bom conservador da época a 
    transformar-se em pseudo-radical intolerante, e a total incompreensão do que 
    tinha de ser uma revolução moderna impediram uma linha política consequente 
    e substituíram-na por simples excitação estéril de curto prazo. Dava ainda 
    extrema importância à eficácia da acção no terreno. Mas já desconfiava da 
    capacidade do sistema político para prosseguir essa via, como se veio a 
    confirmar.
     
    
    Acha que os partidos desistiram de ter projectos autónomos?
     
    
    Não. O que acontece é que as bandeiras agitadas, porque são de carácter 
    genérico e correspondem a aspirações colectivas, são cada vez mais 
    indiferenciadas e perderam credibilidade, por não passarem disso mesmo, 
    bandeiras. O discurso político banalizou-se e a banalidade é hoje elemento 
    intrínseco do discurso político. A banalidade tornou-se a verdade. Daí que a 
    avaliação partidária deve, sobretudo, assentar na sua acção concreta e na 
    capacidade de realização das propostas apresentadas.
     
    
    Os dois principais partidos, PS e PSD, são sociologicamente distintos, 
    mas ideologicamente iguais?
     
    
    Não sou dos que acham que o PS e o PSD são iguais. Mais: não devem, não 
    podem, ser iguais. Mas é um facto que, em vários sectores da sua prática 
    política, apresentam soluções idênticas em nome de um centro que, porque o 
    é, representa a ausência de verdadeiras opções e tende a marginalizar 
    estratos da sociedade que são justamente aqueles que mais necessitam de 
    atenção. Se é verdade que o caminho é estreito e difícil e existem 
    condicionalismos de todo o tipo, não é menos verdade que a criação e 
    distribuição de riqueza, a elevação do nível educacional dos portugueses, a 
    sua qualificação profissional e a luta contra a pobreza têm de fazer-se com 
    uma intensidade e velocidade redobradas, sobretudo num país como Portugal, 
    com tantas desigualdades sociais. Mas creio que seria injusto não reconhecer 
    em geral ao PS a preocupação em dar atenção especial a estes aspectos, como 
    aconteceu com o rendimento mínimo garantido, embora com o grau de 
    desorganização que é seu timbre.
     
    
    Consegue definir o que é ser hoje de esquerda?
     
    
    Neste momento concreto de mudanças aceleradas do Mundo, mais do que invocar 
    princípios que fazem parte da consciência colectiva, como o direito a um 
    sistema de saúde, à justiça, à educação, à cultura, e o acesso a uma 
    cidadania plena, ser de esquerda é ter a capacidade de concretizar esses 
    valores. É enfrentar os fenómenos da globalização e da revolução tecnológica 
    sem aceitar a criação paralela de crescentes situações de exclusão e 
    miséria, é ter uma visão solidária e integrada dos problemas de outros povos 
    e continentes, é não aceitar o primado do económico sobre o político e é 
    manter uma atitude permanente de intervenção. É, acima de tudo, ter a 
    capacidade no terreno de agir nestes sentidos.
     
    
    Há a ideia de que as promessas eleitorais que exigem rupturas não são 
    para cumprir?
     
    
    Para que Portugal possa vencer os desafios que tem pela frente, essas 
    rupturas são inevitáveis, pela necessidade de recuperar o tempo perdido. Por 
    outro lado, é cada vez mais falsa a ideia de que a inacção garante a 
    sobrevivência política.
     
    
    António Guterres vive hoje numa fase particularmente sensível da sua 
    governação. A tragédia de Entre-Rios reforçou esta ideia.
     
    
    As fragilidades não são só deste executivo, mas de todos os que o 
    procederam. O país em si é frágil. A administração pública continua 
    ineficiente e em muitos casos irresponsável, não existem mecanismos de 
    avaliação permanente e, pior que tudo, vive-se um clima de impunidade. A 
    tragédia de Entre-Rios é apenas a ponta do icebergue e só a sua gravidade é 
    excepcional. Mas é preciso combater a facilidade, muito de acordo com o 
    carácter nacional, com que os portugueses passam de fases eufóricas, sem 
    qualquer fundamento numa análise objectiva da realidade, para depressões 
    colectivas que também nada justifica.
     
    
    Como é que se combatem os estados de alma depressivos dos portugueses se 
    o Governo alega que as sondagens continuam a dar a vitória ao PS?
     
    
    Só pode conseguir-se com uma acção enérgica e transparente, assente numa 
    visão estratégica do futuro e acompanhada com rigor pela concretização dessa 
    estratégia. O que não é viável sem uma cultura de planeamento a médio e 
    longo prazos. E é por isso inaceitável o ritmo com que se progride nas 
    reformas estruturais, de que é exemplo a lentidão da acção do PS na primeira 
    legislatura.
     
    
    Acha que o PS ainda vai a tempo de romper com este ciclo de estagnação?
     
    
    Vai. Mas a moção de António Guterres ao Congresso, que reformulou velhos 
    diagnósticos e repete afirmações genéricas que ninguém contesta, só tem 
    interesse se traduzir a vontade política de imediatamente partir para uma 
    nova forma de governar o país. Se assim não for, é contraproducente e 
    descredibilizadora.
     
    
    Fazem-se os diagnósticos certos e fica-se por ali?
     
    
    Fazer diagnósticos é o desporto nacional mais antigo. Executar um projecto 
    nacional é bem mais difícil, porque ele não se reduz a um programa 
    partidário, envolve a clarificação e ordenamento de objectivos e 
    prioridades, e a mobilização dos cidadãos à volta desse combate. Os 
    inegáveis progressos da sociedade portuguesa nos últimos 25 anos têm sido 
    limitados pela explosão de interesses egoístas de uma nova classe média, 
    após décadas de carências e de invisibilidade de largas camadas de 
    população, o que não contribui para a criação de um espírito de 
    solidariedade nacional e claramente dificulta a governabilidade. Daí que 
    seja necessário agir com redobrada determinação.
     
    
    Como interpreta o crescente desinteresse do cidadão comum pela acção 
    política?
     
    
    Para o cidadão comum, o conceito de legitimidade ultrapassa hoje a forma e o 
    momento de assunção do poder, para se alargar à eficácia da gestão 
    governativa. Mas também temos de atribuir boa parte da responsabilidade a 
    nós próprios, na medida em que não exercemos os nossos direitos de 
    cidadania. Assistimos, por isso, a um movimento de sentido duplo - o Estado 
    não se reforma para se aproximar dos cidadãos e a chamada sociedade civil 
    não se organiza como tal para exercer pressão sobre o Estado. É evidente que 
    o poder político só se move por pressão dos cidadãos. Portanto, temos todos 
    uma enorme responsabilidade na definição do caminho que Portugal deve 
    seguir.
     
    
    Deixou de acreditar nos partidos para enfrentar os desafios futuros?
     
    
    A classe política é aquilo que é. O essencial e urgente é a reforma do 
    sistema político - que herdámos do século XIX - para o aproximar dos 
    cidadãos.
     
    
    Não acha que uma das falhas do 25 de Abril foi não ter conseguido, tantos 
    anos depois, envolver a sociedade civil?
     
    
    A mobilização caótica que se verificou então foi depois canalizada 
    exclusivamente para mecanismos partidários tradicionais - o que se 
    justificava, perante a necessidade de consolidação da democracia formal -, 
    mas decorreu num momento em que já era claro que os partidos políticos não 
    são as formas únicas de mediação na sociedade. Temos hoje, e têm as 
    democracias modernas em geral, o problema de saber que tipo de papel devem 
    desempenhar os partidos na vida política e qual a colaboração alargada que 
    deve ser pedida aos cidadãos. Houve, entretanto, já tempo mais do que 
    suficiente para definir modelos de descentralização e de participação dos 
    cidadãos. Há responsabilidades de vários partidos em não se ter caminhado 
    nesse sentido.
     
    
    Partilha da ideia de que o PS tem no Congresso de Maio a sua derradeira 
    oportunidade de lutar contra a onda de pessimismo que se verifica entre os 
    portugueses?
     
    
    Depois do próximo Congresso, chegou o último momento possível para mudar de 
    rumo, inverter o estado de espírito de desânimo hoje prevalecente e atacar 
    com energia uma agenda calendarizada de trabalho. Para o PS, essa tarefa é 
    urgente porque, com um orçamento a aprovar no fim do ano e eleições 
    autárquicas à vista, o tempo escasseia.
     
    
    Não acredita no PSD para encontrar uma liderança capaz de levar por 
    diante uma estratégia económica e de desenvolvimento que quebre este ciclo, 
    nomeadamente se for evidente que o PS está a perder apoio?
     
    
    Não. Neste momento, não há alternativa credível ao PS. Resta como solução 
    que o próprio PS se torne credível.
     
    
    Como independente, tem sido uma das vozes ouvidas pelo primeiro-ministro. 
    Como explica um balanço tão pessimista?
     
    
    O balanço é meramente realista e julgo que não se afasta da análise que o 
    próprio primeiro-ministro implícita e explicitamente tem vindo a fazer, quer 
    na moção, quer em entrevista recente à "Visão". Mais uma vez, o problema não 
    é de diagnóstico, mas das ilações a tirar dele. A reforma fiscal, por 
    exemplo, surge com anos de atraso.
     
    
    Uma das críticas feitas à reforma fiscal é a de não ter em conta os 
    efeitos na economia. Qual é a sua opinião?
     
    
    O facto de se ter feito uma reforma fiscal é, em si mesmo, positivo, por 
    traduzir a disposição política de se intervir numa área que gera sempre as 
    maiores resistências, e por contribuir para a criação de uma maior justiça 
    fiscal. Mas tenho fortes reservas, entre outros, em dois pontos desta 
    reforma: nas medidas ligadas à tributação da poupança, que podem provocar 
    consequências graves a prazo, e na capacidade e isenção da máquina fiscal 
    para gerir a aplicação da reforma. E uma reforma fiscal, geradora de maiores 
    receitas, desacompanhada do esforço paralelo de controlar a despesa corrente 
    do Estado, tem necessariamente efeitos perversos dificilmente controláveis.
     
    
    O Governo tem tido um forte pendor liberal, e, de repente, mudou o 
    discurso para a esquerda...
     
    
    Não sei se mudou o discurso para a esquerda ou se quer que a esquerda mude o 
    discurso.
     
    
    Para mobilizar a sociedade civil, o PS terá que apresentar uma proposta 
    de fundo, mobilizadora, como fez em 1995?
     
    
    Quando se fizeram os Estados Gerais e quando apareceu uma força disposta a 
    abrir-se à sociedade, criaram-se grandes ilusões, e hoje estamos perante uma 
    desilusão generalizada proporcional à ilusão criada, que não se resolve 
    repisando metas anunciadas e não cumpridas. As perspectivas então abertas 
    poderiam conduzir a tudo, ao melhor e ao pior. Ao não demonstrar uma 
    capacidade de realização à altura das expectativas, o PS viu a política 
    reduzida, perante a opinião pública, às questões de campanário ou a questões 
    laterais e aos pequenos escândalos. Estamos hoje perante um problema 
    redondo: não havendo capacidade de agir, não se mobilizam pessoas capazes; 
    não mobilizando pessoas capazes, continua a não se poder agir. Volto de novo 
    à moção de Guterres...
     
    
    As suas expectativas em relação a esta moção não serão exageradas?
     
    
    As prioridades mais mediáticas anunciadas pelo PS - salas de chuto, voto aos 
    16 anos - não são a resposta às necessidades de mudanças estruturais do 
    país. Ia dizer precisamente que a moção tem o defeito de reafirmar ideias 
    genéricas e anunciar de novo reformas que já deviam ter sido realizadas. É 
    um conjunto de constatações de facto, acompanhado de uma lista de intenções. 
    O que será interessante no Congresso é ver se persiste um estado de espírito 
    autista ou se há uma vontade radical de mudança. Vamos ver o que acontece.
     
    
      | 
| Vasco Vieira de Almeida acusa 
    a Comissão Europeia de contribuir para agravar a desconfiança e o 
    desinteresse dos cidadãos. O Tratado de Nice não é considerado por Vasco Vieira de Almeida uma boa solução para o país, por retirar poder aos pequenos estados. Por outro lado, vê na ausência de participação dos cidadãos na construção política da UE uma das razões para o seu desinteresse pelo processo. Com Nice colocou-se um novo quadro à Europa. Trata-se da primeira pedra institucional para implantar a supremacia alemã, apoiada por um directório representativo de grandes interesses nacionais. Vasco Vieira de Almeida não acredita num super-Estado europeu e considera perigosa a ideia de uma Europa como superpotência. Para o advogado, a identidade europeia é uma utopia pós-nacional e nada, na revolução tecnológica, leva a concluir que a solução esteja em formas planetárias de organização em grandes blocos. Sublinha que a política de convergência não pode resultar de fórmulas de fundamentalismo macroeconómico. Quanto à Terceira Via de Guterres e Blair, defende que ela tem dado cobertura à incapacidade de encontrar soluções adequadas aos problemas. Na primeira fase desta entrevista (ver edição de ontem), Vieira de Almeida diz que, depois do próximo Congresso do PS, chegou o último momento para "mudar de rumo, inverter o estado de espírito de desânimo dos portugueses e atacar com energia uma agenda calendarizada de trabalho". Sobre o PS e o PSD, afirma: "Não podem nem devem ser iguais." Considera inaceitável o ritmo com que se progride nas reformas estruturais, "de que é exemplo a lentidão da acção do PS na primeira legislatura". Sobre a moção de Guterres ao Congresso, considera que só tem interesse se traduzir a vontade política de partir para uma nova forma de governar o país. "Será interessante ver se persiste um estado de espírito autista ou se há uma vontade radical de mudança." PÚBLICO - O Tratado de Nice é uma boa solução para Portugal? VASCO VIEIRA DE ALMEIDA - Não. Perante a necessidade política de alargamento a Leste, vieram ao de cima, se é que alguma vez estiveram escondidos, os interesses dos grandes países do continente, que aproveitaram a oportunidade não só para alterar o equilíbrio de poder na União Europeia em detrimento dos pequenos Estados, mas para começar a clarificar a hierarquia entre si. Nice é nitidamente a primeira pedra institucional para implantar a supremacia alemã na Europa, apoiada por um directório representativo de grandes interesses nacionais. Colocou-se em Nice um quadro novo à Europa. E temos agora uma Alemanha descomplexada em relação às duas grandes guerras. Cada vez mais. E consciente de que não pode exigir-se-lhe continuadamente a aceitação de um estatuto que não está à altura do seu poder. A integração europeia pode ser feita à custa do Estado-nação? A existência de uma cidadania europeia, estabelecida em Maastricht em 1992, já impôs e continuará a impor certamente uma adaptação dos contornos do Estado-nação, mas é ilusório e pode vir a revelar-se destrutivo para os próprios objectivos da União pretender institucionalizar de forma centralizadora quase três dezenas de países em estádios de desenvolvimento muito diferentes e com diferentes problemas políticos e tradições culturais. Faz sentido falar em identidade europeia?A ideia de uma identidade europeia aparece como fórmula de uma utopia pós-nacional, mas não parece constituir pólo de atracção para o aparecimento de uma democracia plurinacional. Se é verdade que há que repensar os limites variáveis do modelo de Estado nacional, também tem de desconfiar-se das ideias feitas sobre o seu fim como evolução inelutável do particular para o universal. Nada, na revolução tecnológica a que assistimos, permite a conclusão apressada de que a solução esteja em formas planetárias de organização em grandes blocos e numa humanidade indiferenciada. Há quem entenda que o excesso de directivas tem um efeito nivelador "negativo" na forma de governar países com desenvolvimentos e culturas muito diferentes... O funcionamento da Comissão de Bruxelas está sobretudo virado para uma normalização administrativa, o que contribui para agravar a desconfiança e o desinteresse do cidadão europeu, tanto mais que lhe não é dada participação na construção política da União, assente no voluntarismo da classe dirigente. Mas os problemas de fundo, como uma política externa e uma política de defesa comum, e a própria forma como virá a fazer-se o aprofundamento de uma União alargada, continuam a revelar-se intratáveis. Os interesses nacionais continuam a ser prioritários?A discussão travada em Nice entre alemães e franceses é um bom exemplo de que a supremacia dos interesses nacionais está para ficar, e que é nessa perspectiva que cada país vê as vantagens da UE. A própria integração obriga a que, ao nível regional, se criem instrumentos de mediação, e esses instrumentos são os Estados nacionais, que não podem deixar de ser os intermediários entre as suas populações e os seus projectos. Estudos recentes indicam que Portugal está atrasado, em relação à média europeia, 50 anos. Mesmo que não seja tanto, constata-se um grande défice na convergência com a Europa. Uma política de convergência europeia não pode resultar de fórmulas de fundamentalismo macroeconómico. É preciso articular políticas orçamentais e de redução da inflação com as de emprego e de redução de assimetrias regionais. O rendimento "per capita" na região de Lisboa aproxima-se dos 90 por cento da média europeia, enquanto no Alentejo não chega aos 60 por cento. Este problema não pode ser esquecido. Repito mais uma vez: se o PS se revelar incapaz de fazer esta viragem, fecha-se um ciclo - o que é tanto mais grave quanto não vejo, para já, soluções de substituição. Que balanço faz do modo como Portugal tem conduzido a sua integração na UE? Portugal tem procurado estar no grupo da frente o que é tanto mais necessário quanto é um país pequeno e periférico. Não sou dos que defendem a prioridade absoluta e dogmática de equilíbrios macroeconómicos ou as virtudes salvíficas da gestão restritiva das finanças públicas, mas há que reconhecer os riscos resultantes da derrapagem existente no plano de estabilidade apresentado em Bruxelas e o descontrolo crescente da despesa corrente, bem como as pressões da oferta que têm levado ao crescimento do endividamento externo e à subida da inflação. Nenhum destes indicadores é favorável neste momento, e é preciso virar a tendência. Por outro lado, no plano externo é necessário procurar aprofundar a hipótese de criação de núcleos de pequenos países com interesses regionais harmónicos dos nossos, como forma de ganharmos um peso específico superior. João Cravinho defende que os interesses de Portugal entroncam com os de algumas regiões espanholas... E Pina Moura defende que Portugal deve derrubar a última fronteira, a económica, que nos separa de Espanha. Concorda? A Espanha está noutro patamar. Portugal continua hoje o seu terreno natural de expansão económica, o que não exclui a possibilidade natural de cooperação com algumas regiões desse país. De resto, esse tipo de regionalização está a verificar-se noutras zonas, como por exemplo o Norte de Espanha e Itália e o Sul de França. Mas referia-me mais à acção política no interior da União. Claramente, países como a Grécia, a Irlanda, Portugal ou Bélgica poderão ter de vir a explorar fórmulas de entendimento que permitam posições conjuntas em certas matérias. Isso deu-se já em Nice entre nós e a Bélgica. A Irlanda aplicou uma estratégia económica distinta da defendida por Bruxelas, apresentando taxas de crescimento acima de oito por cento. Quanto à Irlanda, o seu êxito económico é sobretudo resultante de uma política de atracção de investimento externo extremamente positiva, acompanhada de uma obra de qualificação de recursos humanos excepcional e do facto de ter uma população de língua inglesa. António Guterres é um "homem" da Terceira Via. Na sua moção ao Congresso, diz: "Não queremos uma sociedade de mercado, queremos uma economia de mercado." Como interpreta isto, partindo de alguém que quer governar voltado para o eleitorado do PCP? É uma frase antiga do mentor de Blair, Anthony Giddens, que reintroduz ideias com dezenas de anos. Mas não me parece que António Guterres queira ou esteja a governar virado para o eleitorado do PCP. A política de alianças pontuais à esquerda e à direita tem levado, quanto a mim, não a uma maior liberdade de acção no terreno do PS, mas à incoerência governativa. Quanto à Terceira Via, até agora ela não traduziu mais do que a tentativa de encontrar uma fórmula conceptual genérica que tem dado cobertura à incapacidade de encontrar soluções adequadas. Isso passa-se não apenas em Portugal. Veremos que é mais uma moda, como tantas outras que invadiram o pensamento político e económico. Já vimos prever muita coisa: o desaparecimento progressivo dos ciclos económicos, a eterna solidez do crescimento económico americano, ou a força imparável, no plano da bolsa, da nova economia. Tony Blair defende que a Europa se deve tornar numa superpotência e não num super-Estado. Como é que vê esta posição? Que a Europa não deve ser um super-Estado parece-me claro por tudo o que disse. Mas a ideia da superpotência implica a da aceitação de uma teoria de grandes blocos confrontacionais que me parece perigosa. Neste momento, a União e os Estados Unidos estão a caminho de um conflito económico e comercial. Os choques já se verificam no interior da Organização Mundial de Comércio e temos assistido à aplicação de retaliações e contra- retaliações que tornam cada vez mais difícil uma cooperação que não pode assentar apenas no bilateralismo, mas tem de partir da realidade da multipolarização da economia mundial. Não creio que o estatuto da superpotência viesse a facilitar essa tarefa. A adesão dos países do Leste, de acordo com a UE, vai desencadear um fenómeno migratório envolvendo cerca de 3,5 milhões de pessoas. É o grande desafio do futuro? As grandes migrações que começam a verificar-se - não só do Leste, mas do Norte de África - e são o produto precisamente de disparidades de desenvolvimento que só podem resolver-se com um esforço internacional de solidariedade e com o aumento bem direccionado do auxílio económico. Mas essa é uma batalha a médio prazo. Entretanto, é preciso enquadrar essa nova imigração, aproveitando, no caso dos países do Leste, o alto nível de educação de muitos desses imigrantes, e criar mecanismos de integração apropriados. Os portugueses estão preparados para aceitar a chegada de mão-de-obra qualificada disposta a competir ao mais baixo preço? Não se passa facilmente de se ser um país de emigração para se ser de imigração. Mas o envelhecimento populacional não nos dá alternativas. E a qualificação profissional a prosseguir abrirá novas perspectivas de trabalho aos portugueses. De que modo o alargamento a leste se reflectirá em economias periféricas como a nossa? É para enfrentar essas situações que a introdução das novas tecnologias de informação e comunicação, a formação e qualificação profissionais são necessárias. Temos até 2006 os meios excepcionais proporcionados pelo III Quadro Comunitário de Apoio. É neste período dos próximos cinco anos que tudo se vai jogar. Repare-se que é a primeira vez que surge um movimento migratório de mão-de-obra qualificada desta dimensão. Daí que a adesão dos países do Leste, politicamente inevitável, traga ou alterações substanciais ao figurino europeu actual (com sistemas de equilíbrio institucional completamente novos) ou crie uma União a duas ou mais velocidades, o que a prazo significa o aprofundar das contradições que já actualmente se verificam. Daqui a dez anos veremos em que sentido evoluiu a ideia de Europa. Em que sentido vai evoluir?Não sei. É, por isso, que o desenvolvimento estrutural de Portugal é agora uma questão essencial. Vamos ver o que acontece. | 
