4-5-2007

 

Viagem à ilha da Madeira e aos Açores em 1567

 

 

Em 1934, em Itália, os Dr.s Trindade Coelho e Guido Batelli, prepararam uma edição em vários volumes do que chamaram “Documentos para o estudo das relações culturais entre Portugal e Itália”. No 2.º volume desta obra inseriram:

-                  Vespasiano da Bisticci – Vita di portoghesi illustri

-                  Pompeo Arditi – Viaggio all’isola di Madera e alle Azzorre: 1567

É este segundo texto que vou inserir aqui em tradução portuguesa feita por mim. O original está num manuscrito na Biblioteca Oliveriana, em Pesaro, e já em 1934.

A parte respeitante à Madeira foi traduzida em 1981 e inserida em "A Madeira vista por estrangeiros, 1455-1700", coordenação e notas de António Aragão, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Funchal, 1981, 420 pags.

Pompeo Arditi foi natural da cidade de Urbino, mas acabou a sua formação escolar de arquitecto em Pesaro. Era irmão de Curzio e Fabio Arditi, o primeiro célebre engenheiro e cartógrafo, o segundo, secretário do Cardeal Farnese.

Foi contratado pelo Rei D. Sebastião para visitar as ilhas adjacentes e elaborar planos de defesa e reestruturação das fortificações ali existentes. O País estava ainda chocado pela ocupação da Madeira efectuada em 3 de Outubro de 1566 por piratas franceses, comandados por Bertrand de Montluc, um nobre destravado que lá deixou a vida, atingido por um atirador isolado.

Arditi faleceu ainda novo em Corfù, na sequência de ferimentos recebidos na batalha de Lepanto, da Santa Liga contra os turcos.

O texto que nos deixou, escrito em estilo muito vivo, raro nos documentos da época, fala por si e tem muito interesse, sobretudo no que respeita aos Açores.

Segundo os seus editores de 1934, Dr.s Trindade Coelho e Guido Batelli, o texto não reproduz integralmente o manuscrito da Biblioteca Oliveriana, em Pesaro. Sendo assim, não se percebe bem qual a razão por que o Prof. Silvano Peloso em 2004, se limitou a reproduzir simplesmente a versão de Coelho e Batelli.

 

 TEXTO CONSULTADO

Silvano Peloso, Al di là delle colonne d'Ercole. Madera e gli arcipelaghi atlantici nelle cronache italiane di viaggio dell'età delle scoperte, 2004, 334 p., ill., brossura, Sette Città  (collana Nuovo mondo), Viterbo, ISBN 8886091761

 

 

Pompeo Arditi

 

Viagem à ilha da Madeira e aos Açores (1567)

 

No dia 6 de Maio de 1567, partimos com a maré desta Cidade de Lisboa, numa caravela armada, terça-feira à tarde, para ir à ilha da Madeira. Entrados no mar, navegámos toda a noite, soprando um pouco de grego levante (vento de Leste); e, na manhã seguinte, aumentando o vento, perdemos de vista terra, e assim navegámos com óptimo tempo quatro dias sem ver terra, com alterações favoráveis do vento, ora em grego ora em grego tramontana (vento do norte). No quinto dia, então, que foi ao domingo, de manhã cedo, vimos uma pequena ilha chamada Porto Santo, a qual, pelo que dizem os marinheiros, tem de perímetro cinco léguas, e está a 33 graus e 1/3; é muito fértil de cereais e aveia e muito abundante em coelhos. Chegados que fomos ao lado da dita ilha, deixámo-la à mão direita e começámos a ver a ilha da Madeira, que por ser terra muito alta, se vê de muito longe; e fica a quinze léguas da dita ilhazita. Do lado esquerdo da ilha da Madeira, vimos depois três outras ilhazitas, a mais vizinha das quais, distante quatro léguas da ilha. Estas ilhazitas são chamadas Desertas, pois numa delas não habitam mais de seis ou sete pastores e as outras estão desabitadas; são muito pequenas, de modo que a maior não excede uma légua de comprimento e não é mais larga que um tiro de arcabuz; e nalguns lugares é tão estreita, que apenas podem passar três homens a par. Cada uma delas é quase toda um penedo vivo altíssimo e abrupto, de modo que não têm mais de uma saída cada uma, e tão dificultosa, que, há três anos, tendo certos Ingleses ido lá acima para roubar gado, um só Preto, que deu conta do caso, deitando pedras cá para baixo, não só lhes impediu a saída, como matou cinco deles. Vêem-se lá vacas, cordeiros, mulas e cabras em muita quantidade, muitos pavões e galinhas e uma infinidade de coelhos. Dali fomos torneando uma parte da ilha da Madeira, até que à tardinha chegámos ao Funchal, cidade do Bispado, assim chamada porque, quando começou a ser habitada, havia ali muito finocchio, que os Portugueses chamam funcho. Esta ilha da Madeira fica situada a 32 graus e ½; a 70 léguas da mais próxima ilha das Afortunadas (Canárias), que se chama Lançarote, a 100 léguas da costa de África e a 150 de Lisboa; é muito montanhosa, muito pedregosa e muito abundante em fontes de água perfeitíssima. O seu tamanho é dezoito léguas de comprimento e de três a quatro de largura; não é habitada senão junto do mar; pois na montanha, por causa da espessura das árvores, que lá existem em grande quantidade, e altíssimas, de tal maneira que dizem que por causa delas se andam duas ou três léguas sem nunca ver o sol, e pela grande quantidade das águas que ali nascem, mesmo em Julho, ali faz tanto frio, que é quase insuportável; mas junto do mar, onde estão as casas de habitação, há um ar tão temperado, que nunca aí faz calor ou frio. Nesta ilha, habitam no máximo 13 ou 14 mil almas; está dividida em duas capitanias, uma chamada Funchal e a outra, Machico; estas são de dois senhores deste Reino e são morgadios, que vão de herdeiro em herdeiro, e têm como receita a re-décima do Rei, ou seja, se o Rei tem 10 mil escudos de receita, eles têm mil.

A capitania do Funchal faz quase todos os açúcares; pois Machico, por não ter águas tão abundantes, faz poucos, mas tem cereais e aveia. Toda a ilha produz grande quantidade de vinhos que aqui são considerados muito excelentes, e são muito semelhantes às malvasias de Cândia. O trigo que aqui se colhe, é óptimo mas é tão pouco, que não chega para um terço da ilha: por isso são obrigados a comprar fora, nas Canárias e nas ilhas dos Açores. A colheita é aqui muito mais cedo do que a nossa, pois a 12 de Maio comemos pão novo, uvas, figos e melões; mas os homens da ilha diziam que já desde Março comiam pão novo. É muito abundante em frutos de toda a espécie, e entre outros há bananas (muse), daquela espécie que às vezes vem de Chipre para Veneza. É tão fértil esta ilha que, plantando aqui árvores, num ano dão fruto; para além disso, tem aqui uma qualidade maravilhosa, que não só não cria animais venenosos, mas até trazendo-os de fora para aqui, morrem logo, e não se encontram aqui animais nocivos, para além de ratos e rãs, compridas um dedo ao máximo. A cidade do Funchal é a mais habitada de toda a ilha e poderá ter de cinco a seis mil almas; fica situada numa praia de milha e meia de comprimento, que está virada para Cabo Verde; onde ancoram todos os navios que vêm comprar açúcares, vinhos e conservas de açúcar, que nesta cidade se fazem muito boas e em grande abundância. Aqui, tanto os que vendem como os que compram, pagam direitos ao Rei, na ordem dos dez por cento, de modo que o Rei, com isto e com o que recebe dos açúcares da gente da terra, que de cada cinco lhe dão um, cada ano, excluindo todas as despesas, acumula cinquenta mil ducados.

Desta ilha, onde estivemos trinta e quatro dias, partimos a 23 de Junho, um sábado à noite, numa caravela para ir às ilhas dos Açores, e não tínhamos navegado duas léguas, quando se acalmou o vento, de tal modo que todo o resto da noite e até ao meio dia seguinte, não fizemos quase nenhuma viagem. Depois, ao meio dia, passado o cabo que está virado a poente, veio em nossa ajuda um scirocco (vento de sudeste), e de noite perdemos totalmente de vista a ilha, e assim navegámos com óptimo tempo três dias, abandonada a terra, ora com austral, ora com scirocco, e às vezes com levante; e no quarto dia, que foi uma quinta-feira, à tarde, vimos de longe uma das ilhas dos Açores; assim chamadas, pela grande quantidade de açores que aí havia quando foram descobertas, mas agora não há nem um; pois, segundo dizem, assim que começaram a ser habitadas as ilhas, foram-se embora.

Na manhã seguinte, quando foi dia, encontrámo-nos da dita ilha, que se chama Santa Maria, e de lá vimos a ilha de S. Miguel, treze léguas dali distante. Esta ilha de Santa Maria fica a 38 graus; não é muito montanhosa e abunda muito em cereais, aveia e carnes, o seu perímetro poderá ser de sete a oito léguas.

Prosseguindo a navegação, deixámo-la à mão esquerda e fomos para a ilha de S. Miguel; antes que fosse meio dia, chegámos à ponta da ilha que fica para leste; e daí costeando a ilha da parte do sul, chegámos à tarde à cidade de Ponta Delgada; aí desembarcados, ficámos na ilha quarenta dias, tempo em que a percorremos quase toda; por isso, com o maior pormenor que eu puder e souber, descreverei aquilo que em grande parte vi, e outra parte que ouvi dizer aos homens da terra, dignos de fé. Esta ilha fica a 39 graus, e dista da ilha da Madeira cento e cinquenta léguas; o seu tamanho é de dezoito léguas de comprimento e de duas a três de largura; o seu comprimento é de nascente para poente. Do lado nascente é muito montanhosa e toda cheia de árvores, entre as quais há grande quantidade de cedros, da espécie do Monte Líbano; o resto é quase todo plano, com colinas de árvores de fruto, que dão grande quantidade de cereais e aveia; faz-se ainda nesta ilha pastel para tingir panos, em tanta quantidade que cada ano vêm os Ingleses aqui comprá-lo, dele carregando dez a doze navios grandes. Não têm vinhos que valham a pena, porque são tão fracos que não duram mais de três ou quatro meses, de tal modo que parece que Deus deu estas ilhas todas a um Rei, para que uma possa socorrer a outra, acontecendo que todas estas ilhas dos Açores (que são nove, isto é: S. Maria. S. Miguel, a Terceira, S. Jorge, o Pico, o Faial, a Graciosa e o Corvo) todas têm maus vinhos como S. Miguel e todas, excepto o Pico e S. Jorge, têm cereal em abundância, de modo que, fazendo trocas com a ilha da Madeira, dando cereais e recebendo vinhos, se mantêm todas comodamente. Esta ilha de S. Miguel é muito povoada, atingindo, segundo dizem, mais de vinte mil almas; é muito abundante em vacas, ovelhas e porcos; e há aqui tanta quantidade de codornizes que é um espanto; não é muito abundante de água, mas todavia não têm falta dela para as suas necessidades; os melões desta ilha são os melhores de todas estas partes e há-os com quatro e cinco palmos de comprimento. Aqui faz-se também um tão maravilhoso mel de abelhas, que eu creio dificilmente se poderá encontrar outro melhor ou igual. Esta ilha, segundos os vestígios que se vêem, já ardeu toda; e dizem que no ano de 1563, na véspera de S. Pedro, junto de uma terra chamada Vila Franca, começou pouco a pouco a tremer a terra, e pouco depois toda a ilha, enormemente, terramoto que durou três dias seguidos e no quarto abriram-se três montes, dos quais vi eu um; e deitaram tanto fogo, com tanto barulho que se ouviu até em S. Jorge, a trinta e cinco léguas, com nuvens enormes de pedras vulcânicas e tanta quantidade de cinzas que, soprando então vento de poente, as levou até Portugal, distante 260 léguas. Esta cinza causou muito prejuízo às colheitas e cobriu toda a parte da ilha que apanhou, de maneira que só agora em alguns lugares começa a dar um pouco de fruta. Deitou ainda o monte tanta terra nos cinco dias que durou o fogo, que em dois lugares, de um e de outro lado da ilha, virados para norte e para sul, fez no mar duas praias, com duas a três milhas de comprimento e cerca de meia milha de largura. Correram destes montes, rios de materiais incendiados que, por onde corriam, nem montes nem coisa alguma podia desviá-los do seu curso, e eu vi um que passou de um lado para o outro um grande monte e depois entrou no mar, tendo corrido mais de uma légua de terra. Este material converteu-se em pedra duríssima e negra, que à vista parece agora pez. Toda a ilha está cheia de colinas que são abertas em cima, e dentro, vazias, e a sua terra é como cinzas, sinal evidente de que foi o fogo que causou isto; para além disso, por toda a ilha, cavando quatro ou cinco pés debaixo da terra, encontra-se este material queimado e convertido em pedra duríssima. Da parte virada a norte, depois deste fogo, encontrou-se pedra de fazer lume, e usam-na, mas não em muita quantidade. Dizem que a duas léguas daquela terra chamada Vila Franca, no interior da montanha, há certas furnas sulfúreas donde nascem, quase do mesmo lugar, dois ribeiros de água, um tão frio que não é possível aguentar as mãos lá dentro, e o outro tão quente, que, pondo lá um porco, e puxando-o logo para cima está sem nenhum pêlo. Dizem ainda que há aí uma planície, no meio da qual está um lago de águas negríssimas, que está sempre a ferver, das quais sai um enorme fedor, de tal maneira que, se vão lá cães ou outro animal, morrem logo, aos homens não faz dano algum; mas estas coisas, porque era perigoso o caminho pela muita chuva caída, não nos preocupámos em vê-las.

Na ida para a referida Vila Franca, que fica à beira-mar do lado do sul, vimos um maravilhoso ilhéu, quase redondo, de meia milha de perímetro, a mesma distância afastado de terra, o qual tem em volta rocha viva muito alta, que parece talhada a cinzel. No meio, a terra vai-se baixando pouco a pouco, como um teatro e faz no centro um buraco redondo de quarenta canas (cana = cerca de 2,5 m.) de diâmetro onde entra, por alguns buracos em baixo o mar. As gentes da ilha, vendo isto e sabendo a comodidade que dali poderiam tirar, há muitos anos, cortaram a parte que ia para terra, que é a mais estreita e mais baixa e ali fizeram uma entrada, para que ali pudessem entrar navios. Mas ficou tão estreita que não podem entrar navios de mais de cem toneladas, e porque a referida abertura, como disse, está virada para a terra que protege do vento do norte, que lhe poderia ser prejudicial, torna-se um porto muito seguro a todo o tempo. Aqui dentro, no porto deste ilhéu, há uma quantidade incalculável de peixes de toda a espécie, e em terra há um número infinito de pombos selvagens, que se apanham facilmente, e é terreno que, se alguém a isso se dedicasse, produziria óptimos vinhos, pois, inculto como está, tem videiras que dão uvas excelentes. Portanto este tão belo ilhéu, que em todo o mundo não creio haja outro igual, tem estado até hoje tal como o descrevi, sem nenhum proveito para o Rei; e vê-se que, por falta de homens que soubessem demonstrar a Sua Alteza a necessidade que há nestas ilhas de um porto como este, para a sua armada, já que em todas estas ilhas não tem nenhum onde se possa invernar sem perigo, foi deixado desta maneira, sem se lhe ligar grande coisa. Mas agora Sua Alteza, deliberou, por conselho do senhor Tomás, fazer alargar aquela boca, para que comodamente lá possam entrar os navios que vêm das Índias; e manter lá a sua armada para guardar estas ilhas, para que não lhes suceda o que sucedeu no ano passado à ilha da Madeira, que, como vos escrevi, foi saqueada pelos Franceses. E como a profundidade no interior não permite que aí naveguem os ditos navios, quere-o fazer aprofundar até que a navegação seja possível; o que não é difícil de fazer. Mas, antes que se faça isso, para prevenir os acidentes que poderiam surgir, construir-se-á um forte numa parte do dito ilhéu, onde se possa colocar artilharia para defesa do porto, e uma habitação para um capitão e para aqueles poucos homens que serão necessários, de maneira que, construindo uma boa cisterna, porque ali não há água, e armazenando lenha e cereais, com apetrechos para moer, quase sem mais nada, os que ali morarão estarão aptos a manter-se, com as outras comodidades de que em cima falei que ali existem, e a defender aquele lugar de todos os poderes do mundo.

Esta ilha de S. Miguel é toda uma capitania, e morgadio de um fidalgo deste Reino; a localidade principal é a cidade de Ponta Delgada, assim chamada por estar situada na ponta mais estreita da ilha, cidade que poderá ter de oito a nove mil almas, e rende juntamente com toda a ilha cada ano ao Rei cerca de trinta mil ducados, livres de todas as despesas.

Partimos depois desta ilha para a Terceira a 28 de Julho, uma segunda-feira à noite, num navio pequenito, chamado barco de carreira, porque não faz outra viagem senão esta; e navegámos toda a noite com um scirocco muito fraco e ao nascer do dia fez-se calmaria total; mas pouco depois, o vento mudou para mestral (vento de noroeste), que nos era de todo contrário; por isso decidimos, para não voltar atrás, ir costeando, porque o vento não era muito forte, esperando que em breve voltasse para nós, mas ele, fazendo precisamente o contrário, reteve-nos três dias e três noites, quase sempre à vista da Ilha Terceira, sem nunca a podermos atingir; sendo habitual fazer-se esta viagem, que não é mais de trinta léguas, em menos de um dia e uma noite. No quarto dia, finalmente, com a graça de Deus, levantou-se um pouco de scirocco do sul, que nos conduziu, passado meio dia, ao porto da cidade de Angra, isto no primeiro dia de Agosto.

Esta ilha Terceira fica à altura de Lisboa, isto é, a 39 graus ½  e é chamada Terceira, porque foi a terceira a ser descoberta; fica distante de Lisboa duzentas e noventa léguas; não é muito grande, pois não tem mais de seis léguas de comprimento e quatro de largura; o seu comprimento é de levante a poente, como S. Miguel; numa parte, tem montes pedregosos e noutra parte, colinas férteis e amenas que dão muito trigo e ainda nalguns lugares pastel, mas não tão bom e em tanta quantidade como S. Miguel; tem abundância de bois, cabras, ovelhas e porcos e grande quantidade de codornizes. Aqui ainda se vêem vestígios de materiais convertidos em pedra, que correram dos montes, e há muitos montes furados como em S. Miguel; mas, desde que foi habitada, isto é, segundo dizem, há 140 anos, aqui não se viu nenhum fogo. Esta ilha tem muito movimento, por ser mais cómoda para os navegantes que as outras; e assim as naves que vêm das Índias, tanto orientais como ocidentais, do Brasil, de S. Tomé, da Mina e de Cabo Verde, todas vêm aqui reabastecer-se de mantimentos, de modo que parece que Deus por milagre pôs estas ilhas a meio do Oceano para a salvação dos pobres navegantes, que muitas vezes aqui chegam já sem mastros e sem velas ou já sem mantimentos; e aqui chegados, abastecem-se de tudo aquilo que lhes faz mister. Esta ilha está dividida em duas capitanias, uma chamada Angra e a outra Praia, que são também morgadios de dois gentis homens deste Reino. A receita do Rei nesta ilha é, segundo dizem, de 7 a 8 mil ducados, e a povoação principal é a cidade de Angra, que é Bispado e capital de todas as outras ilhas; aí reside o Corregedor do Rei, que governa. Esta cidade é muito povoada; segundo dizem, poderá ter de oito a nove mil almas; o resto da ilha não tem tantas; é muito bela, com boas casas e estradas muito largas e direitas; e aqui se fazem belas escrivaninhas, de excelente madeira.

Encontrando-nos nós nesta ilha, na Vila da Praia, a 9 de Agosto, recebemos a notícia de que haviam chegado três naus da Índia, e que a armada do Rei, que se encontrava no porto de Angra e era composta de um galeão e duas caravelas, devia, depois de as naus terem recebido mantimentos, acompanhá-las para as defender dos piratas, que neste mar são em tal abundância, que o Rei é obrigado a enviar todos os anos a estas ilhas uma armada para a segurança delas e acompanhar as referidas naus. Decidindo então nós, se tal fosse possível, regressar naquela amada, logo nos despedimos daquele lugar e fomos para a cidade de Angra, dali distante quatro léguas; aí no mesmo dia nos embarcámos numa pequena caravela para irmos às ilhas de S. Jorge e do Faial, que tínhamos de ver por ordem de Sua Majestade, esperando, pois que soprava então vento de leste a nosso favor e contrário às naus da Índia, regressar antes que estas partissem da ilha, que andavam costeando e carregando mantimentos, não podendo ancorar no porto, porque o Rei manda que, chegando as naus depois do primeiro de Agosto, não ancorem, porque o porto nesta altura não é muito seguro; e já lá se perderam algumas que deram à costa. 

Mas voltando a nós, devo dizer que navegámos todo aquele dia e toda a noite e de manhã, ao nascer do dia, estávamos na ilha de S. Jorge, no porto chamado Porto das Velas, onde, tendo desembarcado e visto o que era preciso, no mesmo dia nos embarcámos num pequeno batel para o Faial.  Esta ilha de S. Jorge dista da Terceira de terra a terra, dez léguas, e de porto a porto, dezoito. O seu tamanho é de dez léguas de comprimento e somente duas de largura; é muito montanhosa e estéril, pois apenas os habitantes que lá estão recolhem cereal suficiente; tem abundância de madeiras e lá se fazem os melhores vinhos de todas estas ilhas, mas que, porém, não se igualam aos da ilha da Madeira. O seu comprimento é quase de sul para norte;  e tem diante de si, do lado do oriente, à distância de cinco ou seis léguas, uma ilha do mesmo comprimento e largura, ou pouco diferente, que fazem um canal. Esta ilha é chamada ilha do Pico, por causa de um monte altíssimo e aguçado, que lá existe, e que os homens destas ilhas chamam Pico; e dizem que no ano anterior ao fogo de S. Miguel, se deu um grande terramoto que não só fez tremer toda aquela ilha, mas fez também tremer a de S. Jorge, distante cinco ou seis léguas; de modo que, no centro do mar, parece que as duas ilhas estejam ligadas. Depois daquele terramoto, a parte mais alta do referido Pico abriu-se com um grandíssimo estrondo e começou a deitar grande quantidade de fogo, que continuou até ao ano de 1565, mas agora já não deita, e daquela abertura saíram sete rios a ferver da mesma espécie de material da ilha de S. Miguel, que correram até ao mar e agora estão convertidos em pedra. Esta ilha é toda muito montanhosa e selvática, e a sua madeira é considerada a melhor de todas as ilhas; é habitada somente por pastores, que vivem quase como homens selvagens, dos animais que matam na floresta, que se criam na ilha em quantidade infinita; isto é, vacas, cabras, ovelhas, porcos e coelhos; pois nestas ilhas não se encontram outras carnes de quadrúpedes boas para comer.

Prosseguindo a navegação, ora à vela, ora a remos, conforme o vento que havia, chegámos à ilha do Faial, às quatro horas da noite, onde estivemos o melhor que pudemos até de dia; e aí, visto o que havia mister, embarcámos ainda no mesmo dia, depois de almoçar, para voltar a S. Jorge, tal era o desejo que tínhamos de alcançar a armada. Esta ilha do Faial está situada do lado do sul na direcção do canal entre S. Jorge e o Pico; é quase de forma redonda; dista do Porto das Velas oito léguas. Não tem capitão, porque, tendo falecido o que ali havia, sem herdeiros, recaiu na posse da Coroa. Nesta ilha, como em todas as outras, ainda se vêem vestígios de fogo: de modo que algumas pessoas afirmam que não só S. Jorge e o Pico, mas todas as ilhas estejam ligadas; dado que todas em geral arderam e que o fogo provém de uma mesma matéria. Esta ilha é bastante povoada e dizem que dá cada ano de receita ao Rei, cerca de sete mil ducados. As outras ilhazitas que nós não vimos, isto é, a Graciosa, Flores e Corvo, não têm em si nada de notável e são pequenas e de pouca utilidade, pois, todas juntas, não dão de receita ao Rei dois mil ducados por ano.

Tendo partido do Faial, viemos de regresso de S. Jorge, a remos, por nos ser contrário o vento; e tendo chegado ao anoitecer ao meio do canal, o vento que era contrário, começou de tal modo a aumentar que nos vimos em grande perigo, não conseguindo os marinheiros cansados avançar contra o vento; mas no fim, com a graça de Deus, depois de um grande pedaço, o vento parou; e assim prosseguindo, chegámos quatro horas antes do nascer do dia ao Porto das Velas, onde dormimos aquele pouco de noite que restava. No dia seguinte, depois de almoçar, fizemos com que nos dessem um barco um pouco maior para ir mais seguros para a Terceira, e remando todo o dia e toda a noite seguinte pelo canal, ao longo da costa da ilha, de manhã cedo estávamos na ponta da ilha num lugar chamado o Topo, distante oito léguas do Porto das Velas, onde mandámos para trás o barco em que tínhamos vindo, pois metia muita água, pensando, quando o vento fosse favorável, partir num barco grande, que ali estava carregado com destino à Terceira. Mas continuando o vento a soprar de leste, o que nos era contrário, ali ficámos três dias sem pão e sem vinho, não havendo levado alimentos connosco, pois não pensávamos parar ali, e porque, ainda que parássemos, pensávamos conseguir encontrá-los. Mas não tendo a pobre gente daquele lugar nada que nos dar, se queríamos comer, éramos obrigados a ir com facas à beira mar, apanhando umas coisitas que estão nas pedras, como se fossem caracóis, que aqui se chamam lapas e com estas, cozidas em água, nos mantínhamos. Mas Deus socorreu-nos a tempo, fazendo aparecer aí um nosso amigo com um barco muito ágil a remos, no qual embarcámos no sábado ao meio dia e remando todo aquele dia e noite de regresso à Terceira, com a graça de Deus, de manhã, à hora do desjejum, sendo um domingo, desembarcámos no porto da cidade de Angra.

No dia seguinte, dia 18 de Agosto, abastecidos das coisas necessárias para a viagem para o Reino, embarcámos numa caravela que ia ter com a armada, que, tendo cessado o vento de leste, que tanto a havia retido, e soprando um pouco de vento do norte, partira já de regresso a Portugal. Mas, não se tendo afastado muito, nós que estávamos em madeira mais ágil, encontrámo-la quarta-feira, à vista de S. Miguel e assim, agradecendo a Deus tão boa sorte, subimos para o galeão, onde fomos muito bem instalados pelo capitão; e assim, reforçando-se o vento, começámos a navegar alegremente, exibindo uma grande armada, já que, para além das três naus da Índia e os outros três navios da armada, vinham connosco sob protecção, para fugir aos piratas, outros vinte e cinco navios de mercadores. E assim com esta bela vista, navegámos cinco dias, desde que partimos da Terceira, sempre com vento do norte, tendo a proa a levante; mas no sexto dia, que foi a 23 do mês, virando o vento outra vez para leste, não podendo já ter a proa a levante, fomos obrigados a virá-la para o scirocco, de modo que, durando este vento dois dias, medindo a altura, vimos que tínhamos recuado quase um grau; e assim navegámos com diversos ventos, ora à proa, ora à popa, até 30 de Agosto, sempre com mar calmo. Mas, no último dia do mês, que foi um domingo, de manhã, ao nascer do dia, começou a soprar um vento de poente, de princípio não muito furioso, mas pouco a pouco veio aumentando, e fomos forçados a baixar as velas de gávea, e todavia, tornando-se mais furioso, de noite, amainámos todas as velas, e virámos a proa ao vento, com receio de ir para a terra, que o piloto dizia estar muito perto. No primeiro dia de Setembro, que foi uma segunda-feira, caiu uma enorme chuvada, que durou três horas com muita escuridão, fazendo o vento ainda mais terrível o mar, com ondas tão altas que não víamos as naus da Índia, ainda que estivessem ao pé de nós; porque, se o mar nos tivesse feito naufragar, como faz o nosso (Mediterrâneo), estávamos em perigo de perecer todos. Esta tempestade durou todo aquele dia e a noite; mas no dia seguinte, que foi uma terça-feira, o vento abrandou e passou para mestral (de sul), pelo que, não tendo já receio de ir para terra com este vento, içámos de novo os mastros e demos ao vento as velas, que tinham estado amainadas um dia e duas noites; e depois de comer, tendo-se aclarado de novo o tempo, vimos com muita alegria terra firme, a sete léguas de nós, e às três horas da noite aí chegámos e ancorámos no porto de uma terra chamada Cascais, distante seis léguas de Lisboa.

De manhã, que foi quarta-feira, 3 de Setembro, à hora da maré, provistas as naus da Índia de pilotos da terra para entrar com mais segurança no porto de Lisboa, que é muito perigoso por causa de um penedo que está no meio da entrada, entrámos finalmente na barra, manifestando muita alegria, agradecendo a Deus nosso Senhor ter-nos conduzido a bom porto.