04-4-2020

 

 

Luanda Lisboa Paraíso, de Djaimília Pereira de Almeida

 

 

 

 

NOTA DE LEITURA



Li no Kindle o livro Luanda Lisboa Paraíso de Djaimília Pereira de Almeida, editado pela Companhia das Letras. Infelizmente faltou a quem preparou a edição no Kindle, um software adaptado a português, para as divisões silábicas no fim da linha, do que resultaram erros como

trapal-hão

vizin-has

mul-heres

mo-rrer

calcan-har

mo-rreu

doe-nça

e muitos mais.

À atenção da editora!

A escrita da autora é realmente bonita com descrições detalhadas, tanto as relativas a Angola, como a Portugal.

Já a história em si penso que falha por falta de lógica em muitos pontos. Mas é sobretudo o aspecto financeiro que me faz confusão. Cartola de Sousa e seu filho Aquiles vêm para Lisboa para o rapaz ser operado ao tendão defeituoso com que tinha nascido. Quem pagou a viagem? Incógnita. Os tratamentos são longos, as operações sucedem-se, até que o rapaz fica, se não completamente curado, pelo menos mais ou menos apto para se movimentar.

Mais tarde vêm de Angola para os visitar a filha de Cartola, Justina e a Neusa. Ficam uns tempos e depois regressam a Angola. Quem financiou as viagens? Também aqui nada nos é dito pela Autora.

As descrições são excelentes mas a história não se tem em pé.

 

 

 

   
   
 
   

 

Uma implosiva geografia exílica

O que escreve Djaimilia Pereira de Almeida pode entender-se como poderosa ferramenta de transformação da visão da paisagem humana portuguesa.

Inocência Mata 

 

14 de Dezembro de 2018,

 

Li Esse Cabelo (2015), o primeiro romance de Djaimilia Pereira de Almeida  — essa “inusitada história de um cabelo crespo” — após uma colega brasileira, professora de literatura, me ter abordado indagando o que eu pensava do romance pois estaria a ponderar a possibilidade de fazer um pós-doutoramento sobre uma (possível) literatura portuguesa de autoria negra, em que, através de um viés comparatista (com a escrita negra brasileira), buscaria problematizar os processos de produção e circulação dessa literatura em ambos os países.

Li-o e disse-lhe, evitando referir a questão primordial da sua abordagem, que talvez estivéssemos perante uma escrita ensaística em que a veia do romance prevalece pelo modo como a autora narrativiza as suas reflexões e, no caso do livro em questão, a sua experiência de vida a braços com um cabelo “aspero e intratável” — estaríamos, porventura, perante um romance de projecção autobiográfica.

Pois em Luanda, Lisboa, Paraíso (2018) a autora regressa a — (sua?) mesmo que (re)inventada — uma história de vida: um pai (não já o “avó Castro”, mas Cartola de Sousa) viaja de Luanda a Lisboa em 1984 com o intuito de acompanhar o tratamento do calcanhar esquerdo malformado do filho mais novo, Aquiles, e hospedam-se — tal como o “avó Castro” e seu filho — na Pensão Covilhã, em Lisboa. 

Tornando-os paradigma da simultânea condição de exilados, imigrantes e minoritários, as personagens, pai e filho, encetam um percurso pelos meandros dessa tripla condição, rastreando os efeitos de uma realidade desigual e as consequências de uma visão monolítica e teleológica de identidade, sempre na contramão da teoria huntingtoniana do “choque de civilizações” e do que se considera serem “valores universais”.

Interessante, neste contexto, é a relação de Pepe, o galego, com Cartola, duas almas que, no limiar da perifericidade, seja ela cultural ou étnica, de âmbito nacionalizante (angolana, portuguesa ou galega/espanhola) — não faltando uma sugestão de homossexualidade por que Aquiles manifestaria uma vergonhosa tristeza ao perceber (ou pensando ter percebido) que os dois homens “[h]aviam cruzado uma fronteira”.

Interessante é também o facto de o ponto de viragem da vida de pai e filho em Lisboa (sobretudo do pai, o foco narrativo privilegiado) ser marcado por dois incêndios: o primeiro, “que asfixiou Mizé da Assunção e o seu filho de nove meses”, obrigou-os a mudarem-se da Pensão Covilhã para um casebre “num pátio no fim da estrada velha de Paraíso a caminho de Caneças”, onde Pepe entra em suas vidas e começariam a dura vida de imigrantes negros “protegidos pela bruma que era a sua existência sem documentos” e que, para sobreviverem, têm de trabalhar nas obras de construção, sejam quais forem as suas habilitações académicas ou a sua profissão no seu país de origem; o segundo, quando o casebre da Quinta do Paraíso se incendeia e pai e filho perdem tudo, mudando-se para o barracão de Pepe, nas traseiras da taberna — Pepe, o único ser com quem podiam contar na terra que se tornara um deserto de afectos, sobretudo entre os dois: “Apenas esse zé-ninguém sem qualidades redentoras, pisado e comido pelo veneno da guerra, pôde testemunhar o seu rosto alumiado pela amizade quando deles se aproximava e os acordava porque era dia”. 

Parece que é então que os dois se apresentam — são-nos apresentados — como exilados da sua própria existência: “[S]em entender[em] por que se tinham tornado incapazes de chorar, por que tinha a memória da sua terra desaparecido do seu coração, porque não se decidiam a regressar e por que não se queixavam”.

Porém, já antes, os dois tinham começado um processo de metamorfose exílica — dois momentos dessa transição notam-se em Cartola, Aquiles ainda numa cama do hospital: “O pai de Aquiles queria vomitar Luanda, mas ainda não conseguia; queria livrar-se da primeira vida, mas ela fazia-lhe frente; passar à próxima etapa, mas era ainda o mesmo homem”, enquanto “ainda no hospital, Aquiles [tinha] deixado de se sentir angolano”.

Nesse sentido, ocorre-me o termo exiliência, tradução do neologismo proposto por Alexis Nouss em La Condition de l’Exilé (2015) para designar “o núcleo existencial comum a todas as experiências de sujeitos migrantes”, e que refere processos de subjectividade e do trabalho da memória como elementos que interferem nas construções identitárias dos sujeitos, atravessando gerações e grupos socioculturais.

Estas questões — desveladas pela exiliência, que se constrói sobre dois pilares, a condição concreta e a consciência — ajudam a explicar espacialidades e temporalidades singulares (individuais, pois o processo exílico de Cartola não é semelhante ao de Aquiles), ao mesmo tempo em que gera uma dinâmica de múltiplos pertencimentos — que não se enquadram nas grelhas de qualquer análise socio-económica a que normalmente são reduzidas as abordagens referentes a estrangeiros pobres negros em Portugal, ditos invariavelmente imigrantes (a contrastar com o termo expatriado atribuído a europeus, brancos, em Africa, onde se encontram igualmente por razões económicas).

São estas questões que constituem trilhos para que o Futuro seja sempre redimensionado e reescrito a partir de novas perspectivas: tanto do ponto de vista político-ideológico (como o binómio colonial/pós-colonial), quanto do sócio-psico-cultural, em que uma “identidade exílica” (Julie Lussier) se vai processando, como atrás se viu, “identidade exílica” que foi sendo cultivada no bojo de uma precária alteridade (negros indocumentados, trabalhadores braçais à jorna).

Com efeito, “Da aldeia de Quinzau a Lisboa, com residência clandestina em Paraíso, passando por Luanda”, poderia ser o resumo deste novo romance de Djaimilia Pereira de Almeida. Então, em 2015, como agora (2018), o que a autora nos apresenta é a corporificação das contradições históricas, a partir da encenação de um Passado constantemente a assombrar o Presente — no sentido literal do termo: a constituir-se como fantasma num jogo entre ausências e emergências memorialistas que se vão  interseccionando com/em os eventos e questionando as interpretações que deles se fazem.

E isso desde a infância de Cartola na aldeia do Quinzau, a relação com o pai, a viagem até Luanda há 50 anos, o casamento com Glória, o trabalho de enfermeiro como ajudante do Dr. Barbosa da Cunha em Moçâmedes, o nascimento dos filhos, a doença de Glória, a viagem a Lisboa: é um Passado dialéctico, que interfere nas perspectivas do Presente, tornando-se elemento fundamental no desenvolvimento da história — o que é reforçado pela estrutura dinâmica da narrativa, num vaivém temporal, em que se cruzam flash-backs e antecipações (como nesse início do Capítulo VI: “A primeira operação de Aquiles correu tão mal quanto as três que se seguiram”), e em que se desenvolvem sequências narrativas encadeadas.

E se pensarmos que a literatura — e sobretudo o romance, pela sua dimensão de “género do devir” e de reflexão sobre a condição social do homem (Georg Lukács) — ganha sentido estabelecendo-se, no processo de leitura, como possibilidade de interpretar e questionar o mundo, escrever sobre uma existência silenciosa — como são os negros em Portugal, sejam imigrantes ou portugueses negros (normalmente “creditados” como africanos de segunda geração) —, o que escreve Djaimilia Pereira de Almeida pode entender-se como poderosa ferramenta de transformação da visão da paisagem humana portuguesa, não se rasurando — antes reunindo-os um curativa convivência — os fragmentos dolorosos de uma história feita de frustrações e desilusões (como a que provoca o desafecto do Dr. Barbosa da Cunha), de fracturas e distanciamentos (como o afastamento entre pai e filho) e de ambíguos sentimentos (como o que Cartola nutria pela mulher doente).

E de total desesperança: “De Portugal, a cidadania dos mortos foi o seu [de Cartola] único visto de residência. Da cidade de onde tinha vindo, e que em tempos se chamara Luanda, pouco restava depois do grande incêndio e, além disso, continuava a ser muito longe”. A história de Cartola, de Aquiles, de Pepe, de Glória e de Iuri surge como veículo para a compreensão da experiência dos marginalizados (negros, pobres e imigrantes despossuídos) em toda sua extensão como vidas sem sentido, repletas de silenciamentos, que se apropriam do espaço que está historicamente construído por e para as vozes do centro).

São essas essas vozes resilientes (embora vencidas, como Iuri, Pepe e Cartola, que, em diferentes níveis, sucumbem) que a pena de Djaimilia Pereira de Almeida faz invadir o espaço privilegiado da literatura, fazendo dialogar política, ética e estética e compondo, desta forma, a sinfonia da resistência, para além da intensificação das diferenças, corolários da ideologia colonial e neoliberal.

Na resposta à colega brasileira, fait-divers com que abri esta recensão, porque a questão me foi posta dessa forma tão binária, respondi que podia tratar-se de literatura portuguesa, sim. Porém, porque não literatura africana, angolana no caso, da diáspora? Este seria, no entanto, tema para uma (outra) discussão. E ainda que estejamos muito, muito longe da “nação arco-íris” — ideia tão euforicamente celebrada, porventura mais pela autoria do que pela substância —, Portugal caminha, inexoravelmente, para o reconhecimento (e a aceitação) de uma diversidade étnico-racial da sua nação.

Neste contexto, este romance, que se lê bem (sem ser de um só fôlego) transita também nesses produtivos entrelugares nacionais e diaspóricos, sem a exclusão da lógica do esforço de integração numa sociedade muito complexa em que a lógica da exclusão pela diferença se naturalizou.

 

PÚBLICO 

 

Balanço 2018

Djaimila Pereira de Almeida: não é só raça, nem só género, é querer participar na grande conversa da literatura.

 

Há três anos, com Esse cabelo, apresentaram-na como representante de uma literatura acerca da raça, género, identidade.  Voltou agora com Luanda, Lisboa, Paraíso, e diz que quer apenas participar na longa e antiga conversa sobre literatura. Enquanto procura escrever o seu livro ideal, totalmente inventado, uma mancha de texto sem capítulos que resista a discussões acerca do presente.

Isabel Lucas, 20 de Dezembro de 2018

O nome de Djaimilia Pereira de Almeida apareceu na literatura há três anos quando publicou Esse Cabelo (Teorema, 2015), ficção autobiográfica, situada num sub-género que recebeu o nome de auto-ficção. É uma espécie de romance-ensaio que despertou a atenção de leitores e da crítica para a que parecia uma voz inovadora de uma geração que falava de raça, identidade, género, questionando clichés associados à condição de negritude ou do que é viver num mundo de estranheza seja no lugar onde nasceu, Angola, como naquele onde cresceu e vive, Portugal. Djaimilia foi então  comparada a outras escritoras femininas que surgiram nos EUA, Inglaterra, em países de África como a Nigéria ou a Etiópia; mulheres que escrevem desafiando o que se espera delas.

Aos 36 anos, regressa, confirmando que aquele livro não foi um acto solitário numa obra que quer construir, assume aqui, distanciando-se desse eu narrativo inicial e autobiográfico, para se aproximar da invenção mais pura. Está a descobrir o que isso é. Luanda, Lisboa Paraíso (Companhia das Letras) é um passo nessa direcção. Em pano de fundo há a guerra, a pobreza, os retornados, os que ficaram, os que sobrevivem em território estranho, a doença, a exclusão... Mas há, entre tudo isto, dois homens como protagonistas, um pai e um filho, e a memória de cada um; um passado que se quer esquecer, alguém que decide que não será mais angolano. É uma construção de identidades condicionada por um presente que nunca se compadece dessa memória, que não a respeita. Esquece-se para se sobreviver no novo livro de Djaimilia Pereira de Almeida, escritora que acaba também de ganhar uma bolsa de criação literária.  

Esse Cabelo foi um livro muito bem recebido que a conotou, enquanto autora, com as questões de raça, feminismo, identidade, a partir da escrita autobiográfica. Como se vê no modo como a situaram na literatura?
Não se pode controlar a maneira como se é recebido nem o que os leitores fazem com o que nós escrevemos. Portanto, lido com todas essas categorias, rótulos de leituras, o que for, com enorme curiosidade e também alguma surpresa. Não aconteceu, até agora, ter sentido que não me estivessem a fazer justiça. Se calhar não utilizaria todas essas categorias para descrever o que fiz, mas recebo-as com grande serenidade. 

Imaginemos que lhe seriam dadas a escolher categorias que a identificassem.
Preferia não escolher. Há muitos aspectos da história da literatura portuguesa que são importantes para mim. É a tradição que conheço melhor e a que está na minha cabeça quando estou a escrever. A literatura portuguesa, a língua portuguesa. Mas a literatura portuguesa é uma coisa muito vasta e todos esses rótulos são leituras a posteriori. Além disso, os livros surgem num certo momento e a recepção que têm é percepcionada pelos momentos históricos que estamos a viver. Esse Cabelo surgiu num momento muito particular em que fez sentido ser abraçado por uma série de causas.

Veio num tempo que o recebeu bem.
Exactamente. 

Nessa vastidão histórica e geográfica da literatura portuguesa há espaços e temas que estão, no entanto, menos explorados, periféricos. A sua escrita traz essa experiência.
Sim, reconheço-me nessa descrição de que o género de histórias que tenho contado até agora é o de história periférica, mas não me sinto periférica em relação à literatura portuguesa em geral, sobretudo como leitora. É verdade que tenho um percurso de vida parecido com o de muitas pessoas que vieram de África; algumas até nasceram cá; pertenço a esse conjunto de pessoas. Mas tive um acesso privilegiado à tradição literária que muitas dessas pessoas não têm. É natural que quando começo a contar histórias, elas venham de um lugar de onde até agora têm vindo poucas histórias, mas nunca premedito fazer isso. E também não sei se vou continuar a fazer sempre isso, porque interessa-me explorar também o atrevimento de que uma pessoa que venha de uma posição mais periférica possa contar histórias que não se cinjam à periferia. É trazer para a conversa pessoas que se calhar nem sequer chegariam a ler os livros. Interessa-me também, porventura, falar de outras coisas de um ponto de vista menos periférico. Há três anos, quando falámos, já dizia isto, que é preciso que comecemos a ouvir as histórias de pessoas de várias periferias. Tenho muita curiosidade por muitas histórias. Não só pelas de afrodescendentes, mas pelas de outras comunidades que vivem em Portugal. Por exemplo, anseio pelo momento em que comecemos a ouvir as histórias dos asiáticos que vivem em Portugal, ou das comunidades indianas. Não encaro isto como se de repente pudéssemos aceder a todas essas identidades, mas que todos possamos participar numa conversa, que é uma conversa muito antiga, a que se chama literatura portuguesa. 

De que nomes, dessa tradição, se sente mais próxima e a fazem ter esse sentido de pertença?
Não me cinjo à literatura portuguesa, porque pude ler muitas outras coisas. Aliás, os autores a que volto mais vezes são, sobretudo, franceses. Mas na literatura portuguesa interessa-me muita coisa que vai desde Sá de Miranda até... nem sei por onde começar [risos], mas Raul Brandão, Fernando Pessoa, muitos poetas. Aos 18 anos, quando comecei a pensar que gostaria de escrever, de fazer isso na minha vida, andava a ler Manuel Gusmão. Sou uma pessoa de livros mais do que de autores; portanto, mais do que dizer autores, sei os livros que me marcaram. O livro do Manuel de Gusmão chama-se Teatros do Tempo [Caminho, 2001] e foi muito importante para mim. Durante certa altura o Álvaro de Campos. Noutra fase, ainda muito jovem, li muito Herberto Helder. Entretanto comecei a alargar as leituras. Mas há livros muito marcantes, Os Pescadores, do Raul Brandão, foi muito importante num certo período e acompanhou-me ao longo de muitos anos. Neste momento, no presente, volta ser muito importante para o que vou fazer a seguir.  

Há pouco dizia que já não se lembra do que está no seu novo livro. Acaba de sair. Como é que essa memória se apaga assim?
Não sei. Mas depois do livro estar feito e publicado, normalmente não o volto a ler. Custa-me bastante, e vou-me esquecendo. No momento em que o livro está pronto sei-o todo de cor. Depois fecho e esqueço. Lendo agora o Esse Cabelo é uma surpresa ver o que lá está porque já me esqueci. 

Voltou a esse livro?
Não. Mas quando vou, quando calha a ir por qualquer razão, já não me lembro de nada. Apagou-se. 

É um mecanismo de defesa, medo de encarar o texto?
Não. Acho que preciso de esvaziar o espaço para o ocupar com outras coisas. Quando publico um livro estou sempre nervosa e começo logo a pensar noutras coisas.

Já começou?
Sim. Quando estou mais ansiosa, escrever ajuda-me muito. Nos momentos de maior tensão ponho-me a escrever. Normalmente, ponho-me a escrever outra coisa e vou esquecendo o que ficou para trás.

Este novo livro traz uma grande oralidade à escrita, uma oralidade quase antiga. Concorda?
Nunca tinha pensado nisso. Mas sim, não fiz nenhuma pesquisa. Se calhar são coisas que não sabia que sabia e emergem à medida que vou escrevendo, aparecendo naturalmente; modos de falar, pronúncias... Estão num subterrâneo qualquer e a imaginação abre uma caixa. Esta semana estava a pensar nisto, de como é esta coisa de fazer um livro. Agora que estou dedicada a um texto que é passado num outro período, noutro século, e estava a pensar que é como agarrar num prato de vidro ou um jarro de vidro, atirá-lo ao chão e ele partir-se em mil bocadinhos. O momento da escrita é como se os muitos, muitos bocadinhos de vidro vindos de muitos lugares se constituíssem num mosaico reconhecível. Há coisas que não sabia que sei, ou já não me lembro que sabia, que passei por elas. Pode ser um olhar visto não sei onde, o aspecto de uma casa que vi em qualquer lado. São vários bocadinhos que depois formam... 

Um sentido?
Sim.

Vem de um livro-ensaio, onde há um eu assumidamente autobiográfico, para um romance com alguma coisa de autobiografia. Os dois situam-se mais ou menos na mesma época, em comunidades mais ou menos semelhantes, onde sai do eu ficcional. Como é que isso aconteceu?
Sim. O que se passou entre um livro e o outro foi que percebi que o conseguia fazer. Só não escrevi Esse Cabelo na terceira pessoa porque acho que ainda não sabia como é que se fazia isso. Passei três anos a tentar perceber como se fazia porque só me interessava fazer isso. 

Sair do eu?
Sim. Completamente. Agora cada vez tenho menos interesse, ou já não tenho nenhum interesse, em escrever do ponto de vista do eu. Interessa-me afastar-me do meu próprio ponto de vista e virar-me para fora, para o ponto de vista dos outros e aproximar-me de outras figuras que não eu. Eu e a minha particularidade deixaram de me interessar. O que interessa é pensar em como é que se conta uma história, como é que se faz um livro e, de projecto em projecto, trabalhar isso. É como se fosse um vector que antes estava apontado para mim e agora passa a estar apontado em direcção contrária, no sentido do mundo lá fora. 

Há pouco tempo Zadie Smith contava a dificuldade de fazer o percurso inverso, deixar a terceira pessoa e escrever na primeira, o que só aconteceu no último livro dela.
Sim, lembro-me de entrevistas antigas de Zadie Smith em que ela dizia que achava fútil estar a escrever na primeira pessoa. Para mim foi o contrário, porque eu gostava de escrever livros como os que gosto de ler e o género de histórias que gosto de ler é de aventureiros e marinheiros.

Que resultam da imaginação.
Sim. Homens em mar alto, piratas. Há um sentido de aventura que o ponto de vista da primeira pessoa, acabando por se centrar nas nossas próprias angústias, não permite muito. Sobretudo, interessa-me contar histórias e interessa-me contá-las do ponto de vista do número mais variado de pessoas que eu ainda não sei quem são.

Como foi essa aprendizagem, por exemplo, a de construir personagens?
À custa de muitas tentativas; tentativa e erro. O livro não é muito longo, mas houve muito desperdício... Para mim nunca é desperdício porque em todo esse caminho não deito nada fora, vou sempre buscar coisas; acaba sempre por ter um uso, tal como na costura se usa o desperdício para fazer outras coisas. Mas houve muito, muito desperdício. Sobretudo porque neste caso também tentei procurar uma forma clara, mais clara; uma frase mais clara; procurar um certo ritmo, um modo menos reflexivo de expressão.

Sair mais do ensaio?
Exactamente. E tentar encontrar a forma de contar adequada à natureza das vidas que eu estava a falar. Interessava-me uma escrita mais terra a terra. Talvez isso tenha sido mais difícil do que propriamente construir as personagens. Talvez a coisa mais difícil tenha sido o processo de desaprendizagem necessário para dizer as coisas de uma maneira simples. Na minha cabeça o livro teve sempre o aspecto de um balanço e, a partir de certo ponto, escrevi-o como se estivesse a contar às personagens como tinha sido a vida delas, como se elas me perguntassem: "então como foi a nossa vida?". Interessava-me contar-lhes de maneira a que elas conseguissem entender. Foi muito difícil porque tinha toda uma série de vícios e de tiques

Académicos?
Académicos e não só, que me interessava mandar fora. É preciso muita paciência para isso – paciência para comigo – para chegar aí. 

O território de Luanda, Lisboa, Paraíso, no entanto, é-lhe familiar. Não foi para um universo imaginário.

Ainda não. Até um certo ponto este é um mundo que eu conheço, mas também só até um certo ponto. Não houve grande pesquisa. Houve uma grande recolha de objectos e as personagens foram construídas a partir dos seus objectos. 

Há a história de uma mala encontrada numa feira de velharias.
Sim, está ali [aponta para outro canto da casa]. São objectos que apanho em feiras de velharias. Vou todos os domingos a essas feiras. Levo muito pouco dinheiro e vou à procura de coisas. 

O que lhe interessa nessa procura? Histórias?
Sim, histórias, mas sobretudo gosto de velharias, mas não são coisas valiosas. Faço colecções de algumas coisas e aquilo mexe com a minha imaginação como mais nada mexe. Começo a pensar: está aqui um copo, de quem foi este copo. Dá-me muitas ideias. Faço isto há muitos anos e nunca pensei em histórias a partir daí. Foi acontecendo naturalmente. A certa altura dei conta de que estava a comprar objectos sem nexo, coisas de que não precisava para nada, lixo autêntico, tralha, e depois comecei a olhar para aquilo tudo e a pensar: isto podia ser tudo da mesma pessoa, podiam ser objectos de uma pessoa. Era como se fosse um enxoval de uma pessoa que eu não conhecia.

E começou a atribuir um dono àquele enxoval.
Exactamente. Tudo coisas de homens. Um cinto, uns óculos escuros... Foi assim que eles nasceram. Depois comecei a desenhar, uns desenhos sem interesse, uns homens; no início de tudo foi assim. Depois ganharam nome e foram nascendo. Houve também muitas imagens. Fotografas importantes da história da fotografia, que também me dão muitas ideias; ver livros de fotografia ajuda-me muito, a perceber nuances, princípios de personagens e princípios de histórias. Isso tudo, junto com leituras que estava a fazer, ajudou a chegar a este livro. 

Um livro em que, como referiu, os protagonistas são homens...
Foi totalmente espontâneo. Nunca me apareceram como mulheres e, não sei porquê, mas ultimamente sempre que escrevo, escrevo sobre homens, e como não contrario...

Como chegou à estrutura deste livro que se divide em duas partes?
Essa divisão é muito tardia. Gostava de ser capaz de escrever um livro que fosse, da primeira à última linha, sem capítulos, sem interrupções, um texto contínuo. Dou muita importância à mancha; não conseguindo ainda fazer isso, divido-os por capítulos.

O livro saiu há pouco tempo, as reacções estão ainda a sair. Como gere este momento?
Desta vez, como não houve lançamento, fiquei menos nervosa.

Opção sua?
Sim. 

Porquê?
Nunca vou a lançamentos [risos]. Não faz muito o meu género e, então, podendo não o fazer, não fiz. Ao mesmo tempo isso também foi um bocadinho estranho. Não houve nada a marcar, e de um dia para o outro o livro estava nas livrarias; ainda não o vi em nenhuma livraria não vou ver nada.

Lê as críticas?
Sim, algumas leio. Mas também não leio integralmente. Isso não me interessa. O que sinto é que o que eu tinha de fazer já fiz.

Mas interessa-lhe ser lida.
Interessa-me, sim. Se houvesse um lançamento se calhar teria ficado ansiosa. Mas agora sinto-me feliz porque concluí. A maneira como giro esta fase é pôr-me a escrever. Este é um período muito produtivo, em que escrevo muito. É uma espécie de casaco com que me visto. 

O seu nome numa altura em que há uma curiosidade global acerca de uma escrita feita por mulheres negras e pelo que traz de novidade à literatura. É uma curiosidade que ultrapassa a literatura e é social e política. 
Sou leitora de algumas dessas pessoas e acho esse contributo importante. Mas quando se fala de escritores com um percurso como o meu às tantas já não se está a falar de literatura. Já só se está a falar de todo esse lado, social, político... Acho importante nunca perder de vista também o aspecto literário. O contributo social e político é tão mais forte e perene quanto se misturar com esta conversa; a conversa: essa conversa antiga, a conversa do que se passa nos livros. Interessa-me participar nessa conversa. É tão mais subversivo o contributo de todas essas pessoas quanto mais ele se inscrever nesta conversa e continuar para lá do momento em que as discussões fora da literatura estavam a ser tidas. Os livros preservam o sentido da discussão e mantêm entre si uma discussão própria, que nos ultrapassa, que se prolonga para lá de nós e para lá do momento que estamos a viver. 

Não se sente representante de algum tipo de literatura.
Não. Talvez sinta uma grande responsabilidade. Mas é, antes de mais nada, uma responsabilidade em relação próprio trabalho que estou a fazer e de respeito para com as personagens de que estou a falar. Presto contas às personagens. Mas não me sinto representante de uma literatura. Sinto que estou a contribuir para uma conversa, que também é essa conversa política, social, etc., mas quando escrevo não estou a pensar nisso. Estou a perceber como é que se faz o que eu gostava de saber fazer. E preservando um certo gozo em fazer isso. Escrever é a coisa que me dá mais alegria. É uma coisa associada à felicidade. Se ainda por cima os livros contribuírem para uma discussão, se chamarem a atenção para coisas, se forem lidos com benefício para pessoas, fico ainda mais feliz. Mas não premeditei isso, porque se me concentrar apenas nisso tenho medo que os livros se tornem maus.