2-9-2018
MINISTROS DO DIABO, de Carlos A. Moreira Azevedo
Os seis sermões de Autos da Fé (1586 - 1595) de Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra
Temas e Debates - Círculo de Leitores - 2018
O Senhor Bispo D. Carlos A. Moreira Azevedo, em serviço no Vaticano, descobriu ali um manuscrito com seis sermões de Autos-da-Fé de Coimbra do Bispo Afonso de Castelo Branco que se deu ao trabalho de pregar nos autos que se celebraram de 1586 a 1595 quando ali era Bispo. Os sermões dos Autos-da-Fé tinham essencialmente a finalidade de acirrar os ânimos contra os paroquianos de sangue judeu. O que lá se dizia pouco tinha a ver com a realidade, tal como o ódio aos cristãos novos tinha pouco a ver com a crença deles.
Ao publicar o texto dos Sermões, o Autor tinha de se preocupar com o funcionamento da Inquisição, tinha de se pronunciar sobre essa instituição. Mas, em vez de ir estudar os processos limitou-se a consultar os autores que se supõe terem estudado o assunto. Assim cita especialmente José Pedro Paiva, Marcocci, Ana Isabel Lopez Salazar-Codes (estropiando o nome-Cides por Codes) e Elvira Mea. Não acho que o resultado seja brilhante.
Diz o Autor (pag. 64): “O criptojudaísmo proliferou entre 1497 e 1536 pelas conversões forçadas. Os mais abastados emigraram para Veneza, Livorno, Amsterdão, Hamburgo, Londres, Bordéus, Baiona. Os de classe mais baixa ficaram e procuram terras mais recônditas, como a região transmontana. Integraram-se na sociedade , mas continuavam a judaizar em segredo rigoroso. Simulavam a conversão sincera para sobreviver, embora praticassem clandestinamente os ritos judaicos. Mantinham esse comportamento duplo, continuando judeus no coração.”
Como é evidente, os Judeus vindos de Espanha fixaram-se em Trás os Montes e Beira Baixa, por virem de Espanha e assim ficaram mais perto de casa, não andaram à procura de terras recônditas. Mas nem o Autor nem os autores que ele cita apresentam provas de que continuavam a judaizar ou a praticar os ritos judaicos. Pelo contrário, o estudo dos processos da Inquisição demonstra exactamente o contrário.
Esta palavra “judaizar” é de utilização sistemática dos nossos historiadores, mas nunca definem o que entendem por tal. Vamos por partes: se “judaizar” corresponde a uma heresia em face da religião católica, então poderiam ser condenados como hereges. Caso contrário, não! As tradições judaicas que não implicam a heresia eram perfeitamente legítimas.
Não comer carne de porco, não significa a heresia. Não trabalhar ao sábado, não é heresia nenhuma. Vestir camisa lavada na sexta-feira à noite também não. Varrer a casa de fora para dentro também não.
Talvez demonstre já a heresia o jejum ritual judaico e eventualmente o pão ázimo. Aliás a Inquisição dava suma importância ao controle dos jejuns nos cárceres através de espias que espreitavam os presos durante noites inteiras. Aceito assim que eram hereges os cristãos novos que faziam jejuns com ritual judaico, ou comiam o pão ázimo.
Muito depressa a inquisição abandonou a preocupação com hábitos ou ementas dos cristãos novos e substituiu-a com declarações falsas de vinculação à chamada Lei de Moisés.
Basta desfolhar meia dúzia de processos para descobrir os métodos da Inquisição. Quem é preso, tem de confessar que se declarou crente na Lei de Moisés, com Fulano e Sicrano, que foram os que o denunciaram. E depois tem de denunciar outros tantos para conseguir a liberdade. A fórmula era esta: “… disse que haverá três anos pouco mais ou menos, em Lamego, foi a casa dela confitente, Diogo Rebelo que tem um quarto de cristão novo, filho de Afonso Homem, e estando com ele ambos sós, se deram conta e declararam que criam e viviam na Lei de Moisés, e nela esperavam salvar-se, e se fiavam por serem amigos e da mesma Nação e do costume disse nada”. (Processo n.º 3389, de Diogo Rebelo – Lisboa).
Quais ritos judaicos, qual carapuça! Eram estas declarações em forma de vinculação à lei de Moisés que tinham de ser confessadas (ainda que falsas) e também depois denunciadas para familiares e conhecidos. Era assim que se condenavam os cristãos novos e não com os ritos judaicos.
Instituída a Inquisição, abandonaram o Reino todos os cristãos novos que para isso tinham possibilidade. Os que ficaram não tinham outra solução senão praticar as obrigações da religião católica, nomeadamente a missa dominical e a desobriga anual.
Mas a inquisição tinha de estar ocupada, tinha de prender e julgar e os presos não tinham outra safa que não fosse confessar e acusar para salvarem a vida.
Os Inquisidores não eram burros, sabiam muito bem que a acusação de ritos e costumes não pegava, tinham de fazer acusações mais substanciais ainda que falsas. E sabiam muito bem que a grande maioria dos cristãos novos tinha desistido do judaísmo a partir do momento em que não se ausentaram de Portugal. Além disso muitos cristãos novos casaram com cristãos ou cristãs, abandonando assim qualquer continuidade de judaísmo. Mas os Inquisidores queriam manter a Inquisição e por isso tinham de os prender e condenar, o que era muito fácil, porque o processo da Inquisição não tinha defesa possível. Valia-lhes o anti-semitismo de toda a população portuguesa que odiava os cristãos novos pelo maior sucesso destes na vida (na Universidade, nos negócios, na exploração da terra).
Como único fim em vista a Inquisição tinha o poder, nada mais do que o poder.
O Autor não se deu ao trabalho de ver os processos e limitou-se a confiar nos autores que consultou. Destes, Elvira Mea não merece qualquer confiança, depois da invenção que fez das freiras judias numa brochura de 1987 com muitos lapsos e omissões, incluindo a de uma freira que nessa altura foi relaxada (Processo n.º 1880, de Coimbra – Leonor da Silva). E quer ela que as freiras recebessem as visitas dos parentes para discutir sobre a Lei de Moisés!... José Pedro Paiva e Marcocci mantiveram o tratamento tradicional da Inquisição, mas não tiveram a preocupação de estudar convenientemente os processos. Ana Isabel Salazar fez um estudo válido pois concluiu e bem que o que interessava à Inquisição era o poder, mas manteve a falácia de que os cristãos novos judaizavam, seja lá o que se pretende dizer com isso.
Nesta falsidade sobre as actividades dos cristãos novos, acreditam ainda hoje os próprios meios judaicos, tal como a direita católica. Não vêem que os cristãos novos queriam era integrar-se o mais possível na população portuguesa e esquecer rapidamente os ensinamentos dos seus antepassados. Esta crença mútua, de católicos e judeus, representa no meu entender uma aliança contra-natura, sem qualquer sentido. Não vêem que os cristãos novos tinham todo o interesse em passar despercebidos, em abandonar os ritos judaicos mais evidentes como os jejuns, e não se salientarem no meio da população portuguesa.
Estas são as minhas conclusões após estudar processos da Inquisição durante uma boa dúzia de anos.