2-6-2014

 

1600-1605 – A Inquisição em guerra com o Papa Clemente VIII

 

 

O processo n.º 14409, da Inquisição de Lisboa contra Ana de Milão, é interessante a muitos títulos:

1-É o primeiro processo que encontro em que todas as testemunhas falam verdade. As criadas que depuseram contra a sua patroa só disseram a verdade, não há dúvidas

2-Constata-se à evidência o poder da Inquisição e também que esta não era uma instituição da Igreja, tal a guerra que desencadeou contra o Papa.

3-Salienta-se o poder da Inquisição, que só cedeu porque neste caso tinha contra si, de um lado o Papa, do outro o Rei que queria o dinheiro dos cristãos novos.

4-Vê-se também como é estudada a Inquisição entre nós. Estudam-se as disputas dos poderes da Inquisição, do Papa e do poder real, mas ninguém liga à pobre Ré que padeceu no cárcere. A Prof. Ana Isabel Codes cita 26 documentos (pags. 45 a 49) que estudou sobre o assunto e o Prof. Giuseppe Marcocci ainda junta mais alguns. Mas do processo pouco ou nada falam.

 

No final do séc. XVI, alguns capitalistas cristãos novos quiseram fazer diminuir a pressão da perseguição que lhes era feita pela Inquisição e pela população cristã velha em geral.  Para isso, propunham-se oferecer ao Rei de Espanha e de Portugal uma choruda quantia. Queriam um perdão geral para todos os que estivessem presos e que ninguém pudesse ser acusado por acções do passado.

Estavam a tratar do assunto em Espanha três procuradores dos cristãos novos, entre os quais, Rodrigo de Andrade, que foi para Espanha tratar do assunto em 1600. A proposta teve acolhimento junto do Rei, em face do depauperamento das finanças reais.

As reacções em Portugal não se fizeram esperar e foram ingentes seja nos meios inquisitoriais, seja nos quadros eclesiásticos e no povo em geral, cujo ódio à raça hebreia parecia não ter limites.

A esposa de Rodrigo de Andrade, Ana de Milão, de 58 anos, tinha ficado em Lisboa, com os seus seis filhos, alguns bem novos.  Era senhora de posição, com muitos serviçais, que geria a casa com mão férrea. Por vezes até era bastante dura com as empregadas.

Lembrou-se então alguém da Inquisição de um golpe que se revelou bem estúpido: fazer depor na Inquisição as criadas da senhora, para encontrar motivos para a prender. Deverão ter tido informação que a senhora mandava as criadas confessar-se ao mesmo Padre que ela. Este, quando elas lhe falavam de coisas estranhas em casa da patroa que pareciam de judeus, dizia-lhes que se preocupassem com os pecados delas e não com os dos outros.  Mas em 1601, uma das criadas foi confessar-se a outro Padre que lhe disse que deveria ir contar aquilo à Mesa da Inquisição. E foi assim que três criadas vieram a depor contra ela.

O Prof. Marcocci diz claramente que “A actividade de Andrade tinha causado a prisão da sua mulher, Ana de Milão, pela Inquisição de Lisboa” embora depois acrescente “por culpas de cripto-judaísmo”. Quanto às culpas, é que já não estou tanto de acordo.

Que disseram as criadas? Que a senhora não comia carne de porco, coelho e lebre, nem peixe que não fosse de escama; que mandava lavar e tirar toda a gordura e sebo à carne; que à noite e de manhã rezava olhando para o céu; que as suas contas não tinham a cruz.

Ora, nada disto provava a heresia da senhora, ainda que estes fossem costumes de Judeus. Se o cristão novo dizia que não comia carne de porco, por a sua religião lho impedir e a querer respeitar, poderia ser crime de heresia. Se não o disser, não é, pode ter muitos outros motivos para não a comer. Pode presumir-se que seja herege? Pode, mas a presunção não dá crime. O processo, tal como está, não tem provas de heresia.

Uma distinção a fazer é entre rituais e cerimónias por um lado e costumes por outro. Como povos diferentes que eram, os judeus tinham tradições que não eram nem cerimónias nem rituais, mas apenas, costumes. Isto é, estavam ligados ao seu modo de ser e não propriamente à religião judaica. Entendo que as suas dietas alimentares eram isso mesmo, costumes, e não rituais ou cerimónias.  Assim, o processo não se refere a cerimónia nenhuma judaica, ao contrário do que dizem os Inquisidores.

Rezar olhando para o Céu, é uma cerimónia? Entendo que não. Rezar, olhando o nascer do sol, uma cerimónia? Também me parece que não. É um costume.

Aliás, os Assentos da Mesa nunca apontaram como culpas a dieta alimentar dos cristãos novos, quiseram sempre declarações em forma, ainda que fossem de facto apenas formais, pois eram puras aldrabices.

Foi presa Ana de Milão em 5 de Fevereiro de 1602. O marido usou da sua influência em Roma, de tal modo que o Papa Clemente VIII pediu para Portugal que lhe mandassem o processo e a prisioneira. Os Inquisidores não estavam dispostos a isso. Foram queixar-se ao Rei, que também não estava muito aberto às suas queixas, pois queria receber o dinheiro dos cristãos novos.

Como é evidente, Rodrigo de Andrade viu na prisão da esposa, um incitamento muito forte a conseguir o perdão geral para que fosse libertada., pois de outro modo os Inquisidores arranjariam modo de a levar ao cadafalso como negativa.

Enquanto os Inquisidores e Bispos amigos deles se guerreavam com o Papa, Ana de Milão jazia na masmorra e o processo esteve um ano e meio parado (Junho de 1602 a Fevereiro de 1604).

Em meados de 1604, foi enviado ao Papa um resumo do processo com as culpas, quando se sabia já que seria aprovado o perdão geral. De facto, no início de Agosto de 1604, Ana de Milão disse a uma presa sua conhecida, Ana de Abrunhosa,  que já fora assinado o perdão geral (ver, abaixo, transcrição do proc. n.º 11610).

Ana de Milão foi solta a 25 de Janeiro de 1605. Seu marido morreu nesse ano. No Outono de 1606, partiu ela para o estrangeiro, com a maior parte dos filhos. O seu filho Manuel ficou em Portugal e foi parar à Inquisição de Coimbra. Ela faleceu em 1613.

Uma nota interessante é que a redacção do termo de soltura de Ana de Milão trata o perdão geral como se fosse uma acção individual do Inquisidor Geral D. Pedro de Castilho (é o executor) e não da Inquisição propriamente dita. Esta atitude revela a raiva contida com que foi acolhida a notícia do perdão geral. Haja em vista o que aconteceu em Coimbra.

Logo em 1606, vingou-se a Inquisição e prendeu os parentes chegados de Ana de Milão: sua irmã e seu cunhado Henrique Dias Milão, já com 78 anos, que foi relaxado, e mais seis filhos de ambos.

Apesar de ele ter morrido em 1605, ainda em 5-9-1638, estava a Inquisição a fazer um Auto da Fé para queimar Rodrigo de Andrade em estátua (Proc. n.º 12212), certamente para lhe apanhar alguns bens que ele ainda teria por cá.

Este episódio mostra também que o Vaticano tinha algumas razões para a convicção do Papa de que a Inquisição Portuguesa funcionava como uma instituição do poder real. Tanto assim que, mais tarde,  o Papa Inocêncio XI ficou convencido que tinha posto os Inquisidores no seu lugar (de obediência ao Papa), com o Breve  Romanus Pontifex  de 22-8-1681. Pura ilusão. Pouco ligaram ao que o Papa lhes mandava fazer nesse documento.  A Inquisição não era do Rei nem do Papa; era um poder à parte que ora se apoiava num ora noutro, para continuar a existir.

 

 

GENEALOGIA

 

Gomes Dias, médico da Covilhã que depois veio para Lisboa, casou com Serena Lopes e tiveram:

1-Diogo Gomes, já defunto que foi casado com Guiomar de Solis e tiveram:

                          A - Francisca Gomes, casada com Luis Rodrigues de Paiva

                          B - Brites Gomes, casada com André Faleiro (Pr. n.º 13013)

2-Fernão Lopes

3-Ana Gomes

4-Brites Gomes, que casou com Francisco Rodrigues Milão e tiveram:

                          A - Gomes Rodrigues Milão, casado com Ana Dias de Leão, moradores em Lisboa

                          B- Gaspar de Milão

                          C- Guiomar Gomes (Proc. n.º 6671) casada com Henrique Dias Milão (Pr. n.º 6677, RELAXADO), que tiveram

                                                                  Beatriz Henriques (Pr. n.º 10758, RELAXADA em estátua), casada com Álvaro Dinis, ausentes em Hamburgo

                                                                  Manuel Cardoso de Milão, emigrado em Pernambuco

                                                                  Gomes Rodrigues Milão (Pr. n.º 2499), de 33 anos, casado com Beatriz Rodrigues, preso em 1606

                                                                  Fernão Lopes Milão (Pr. n.º 2523), solteiro, preso em 1606

                                                                  Ana de Milão (pr. n.º 279), que casou com Manuel Nunes de Matos, presa em 1606

                                                                  Paulo de Milão (Pr. n.º 3338), solteiro, preso em 1606

                                                                  Isabel Henriques (Pr. n.º 6984), de 15 anos, presa em 1606

                                                                  Leonor Henriques (Pr. n.º 9389), de 29 anos – presa em 1606

                                                                  António Dias Milão (n. 1585), ausente no Brasil

                                                                                                                               Escrava - Victória Dias (Pr. n.º 3331)

                                                                                                                                                                   Criado - António Barbosa (Pr. n.º 286, RELAXADO)

 

                          D-Ana de Milão (Proc. n.º 14409), que casou com Rodrigo de Andrade (Pr. n.º 12212), que está em Valladolid e tiveram

                                                                 -Francisco de Andrade, casado com Branca Jorge, mora em S. Mamede (1585-1621)

                                                                 -Manuel de Andrade, solteiro, de 19 anos – Proc. n.º 8970, de Coimbra – preso em 17-9-1618

                                                                 -Jorge de Andrade, solteiro, de 17 anos   -    (1584-1638) 

                                                                 -André Rodrigues, solteiro, de 14 anos – (1587 – 1641)

                                                                 -Beatriz de Andrade, de 16 anos, casada com António da Veiga, filho de Rui Lopes, de Évora primo co-irmão de seu pai Rodrigo de Andrade- moram em Lisboa no Terreiro do Ximenes

                                                                 -Branca de Andrade, solteira, de 15 anos (1588-1622)

 

                                                                  Nota: Diversos elementos desta genealogia, em especial as datas, provêm da Tese de doutoramento da Doutora Florbela Veiga Frade.

 

Ana de Milão, casada com Rodrigo de Andrade – processo n.º 14409, da Inquisição de Lisboa – presa em 5 de Fevereiro de 1602.

CULPAS:

fls. 1 img. 1 – 16-1-1601 – Depoimento de Francisca da Costa, de 21 anos. Foi há quatro anos como criada para casa da Ré às Pedras Negras, freguesia de S. Mamede, da cidade de Lisboa,  e aí serviu “de portas a dentro” durante três anos. O texto diz que foi depor sem ser chamada; foi o seu confessor que lhe disse que era obrigada a denunciar. Disse que a Ré mandava cozer em panela nova carne de vaca, carneiro e galinha e algumas vezes juntava azeite frito com cebola ou com grãos; comprava carne de porco para o pessoal que era cozida à parte. Nem a Ré nem suas filhas comiam carne de porco. Só os filhos rapazes e o pai Rodrigo de Andrade é que às vezes comiam carne de porco. A Ré e as filhas vestiam roupa lavada aos sábados de manhã e às vezes às sextas-feiras à tarde.
Ana de Milão mandava sempre tirar toda a gordura e sebo à carne, dizendo que dava mau sabor na panela.

Nesse tempo estava em casa, além dela, uma Juliana, escrava índia, uma Luzia Ferreira, japonesa forra, que agora está noutra patroa.

Perguntada por que não veio mais cedo denunciar estas coisas à Mesa, disse que não sabia que era obrigada a denunciá-las embora lhe parecessem mal, um Padre da Companhia é que lhe disse que o devia fazer. Antes confessava-se a outro Padre que não lhe dizia nada disso.

fls. 3 v img. 6 – 21-1-1602 – Depoimento de Margarida Antunes, de 27 anos, natural de Vila Longa que foi chamada para depor; é casada com Baltasar de Freitas, alfaiate. Disse que há um ano e sete ou oito meses foi servir, de portas a dentro e de “almofada”,  para casa de Rodrigo de Andrade, “que  ora está em Castela requerendo pelo perdão geral que pedem os cristãos novos”, na qual casa serviu sete meses mais ou menos. Foi depois para casa de Felício de Matos, onde esteve até há quatro meses. Disse a Felício e mulher de uns escrúpulos  que tinha de coisas que vira fazer em casa da Ré; disse-lhe depois o Felício que tinha contado a um Inquisidor e que este dissera que ela deveria vir à Mesa contar isso, e por descuido não o tinha feito mais cedo.

Repetiu o depoimento de Francisca da Costa.  Disse mais: “E outrossim no dito tempo viu ordinariamente todos os dias pela manhã, logo quando a dita Ana de Milão se levantava da cama e se acabava de vestir, chegava à janela ou da câmara em que dormia ou da sala e abria um postigo (os quais postigos estão para a banda do mar) e com o postigo mal aberto ou aberto de todo, se punha a dita Ana de Milão junto dele, olhando para fora em pé a rezar por suas contas, e no rezar se detinha quase espaço de uma hora; e também muitos dias à noite viu ela denunciante, depois de o dito Rodrigo de Andrade e seus filhos e filhas estarem recolhidos, ficando a dita Ana de Milão no seu estrado, abria a dita Ana de Milão um postigo na janela, que estava junto do seu estrado, sendo dez e onze horas da noite e olhando pelo dito postigo para fora, se punha a rezar também espaço de hora, dos quais postigos todos donde ela estava, se vê o céu. E disse mais que em todo o tempo nunca na dita casa viu trazer de fora, nem comer coelho, nem lebre, nem perdiz, nem lampreia, cação, raia, nem peixe de coiro, e nunca na dita casa viu estas coisas, nem viu comer toucinho nem porco. Somente uma vez viu que, trazendo-lhe de fora uma marrã frescal e muito boa, fizeram uma panela dela apartada, para os servidores da casa, mas da dita panela da marrã, não comeram na mesa os ditos Rodrigo de Andrade nem sua mulher nem filhos”.

Disse mais que a filha Branca de Andrade, aos sábados, depois de se vestir, passeava pela casa a rezar sem coser nem tomar “almofada” até ao jantar, ao contrário dos outros dias em que se punha logo de manhã à “almofada”.  Disse ainda que mãe e filhas, quando ao domingo iam à Missa à Igreja de S. Mamede se punham na Capela velha de Jesus, donde não viam o altar mor onde se celebrava a Missa.  “Disse mais que, quando se fez o Auto da Fé (3 de Setembro de 1600), este próximo passado, disse a dita Ana de Milão a ela denunciante, estando ambas sós na quinta da Palma junto a Alvalade, que havia muita razão para chorarem todos os trabalhos daqueles que iam ao cadafalso, porque se eles ofendiam a Deus, havia razão de chorar pela ofensa de Deus e também se eles não ofendiam a Deus e os queimavam sem culpa, era para chorar ver queimar os homens sem culpa.

fls. 7 img. 13 – 5-2-1602 – Depoimento de Luzia Ferreira, japonesa forra, de 30 anos - Disse que é natural do Japão e está em Portugal há 19 anos, e livrou-se do cativeiro de João Ferreira de Malaca, por ser japonesa e não poder ser cativa. Depõe por ter sido chamada, por se saber que tinha coisas para depor na Mesa.  Foi servir a Ré em Maio de 1595 e esteve lá dois anos e meio. A seguir foi para casa da filha Beatriz de Andrade quando esta casou e esteve lá dois anos.

Denunciou:

- tiravam toda a gordura e sebo à carne

- as mulheres da casa nunca comiam carne de porco, de lebre e de coelho. O pai e os filhos comiam-na por vezes.  Também não comiam marisco, lagostas e ostras.

- A Ré rezava à janela e olhando o céu.  Acrescentou que as contas da Ré não tinham a cruz.

Disse que Beatriz de Andrade lia por um papel que ela deu a um rapaz chamado Araújo e este mostrou a um Padre que disse serem os Salmos em linguagem (em português).

fls 9 img. 17 – 5-2-1602 – O Promotor requer a prisão da Ré com base nos depoimentos anteriores

fls. 9 v img. 18 – 5-2-1602 – Assento da Mesa decretando a prisão da Ré. Justificam dizendo que as testemunhas  “lhe viram dessangrar a carne e na panela dela deitar azeite cru e frito com cebola e não comer carne de porco e rezar olhando o céu pela janela, e para o sol quando nascia, o que tudo é cerimónia judaica e outras considerações que se tiveram que as ditas culpas são bastantes para prisão”. Foi presa com sequestro de bens.

fls. 10 img. 19 – 31-3-1602 – Novo depoimento de Margarida Antunes.

Disse que no dia 29 de Março último passou por sua casa um António Viegas, viúvo, cristão novo e lhe perguntou se ela tinha ido à mesa da Inquisição denunciar sua antiga patroa, Ana de Milão. Ela negou.  Disse que no dia anterior, foram a sua casa alguns filhos da Ré e saíram depois, ficando só com Francisco de Andrade o qual lhe disse que ela fora à Mesa da Inquisição denunciar sua mãe. Ela negou. Disse que nem a seu marido tinha dito que viera depor à Inquisição.

fls. 11 img. 21 – 24-7-1602 – Depoimento de Luzia Ferreira, a japonesa forra.

Disse que, depois de ser presa Ana de Milão, foi a casa dela fazer serviço e Francisco de Andrade lhe perguntara se ela tinha vindo depor à Inquisição e o que dissera. Ela disse que tinha vindo depor, mas não disse mais nada.  E em casa de António da Veiga, genro da Ré, ele, sua mulher Beatriz de Andrade, e Leonor Rodrigues mãe de António da Veiga a acusaram de ter feito prender a Ana de Milão. Ela agastou-se e saiu dali.

Disse ainda que Diogo Lopes da Rocha, que tem sua mulher presa na Inquisição (Maria da Rocha: proc. n.º 7005), dissera a sua empregada Maria Monteiro para lhe dizer a ela que viesse à Mesa desdizer o que tinha dito.

fls. 12 v img. 24 – 22-9-1603 - Outro depoimento de Luzia Ferreira, japonesa forra.

Vem referir uma conversa que teve com Francisca da Costa em que disseram uma à outra que ambas tinham vindo à Mesa denunciar Ana de Milão.

Disse que o filho da Ré, Francisco de Andrade, lhe dissera que ela havia de vir dizer à Mesa que sua mãe não comia carne de porco por ser mal disposta.

Disse que Ana de Milão lhe está devendo 20 000 réis. que aliás deixou na mão dela para serem investidos.

fls. 17 img. 33 – 22-9-1603 – Depoimento de Francisca da Costa, também conhecida por Oliveira, de 25 anos. É solteira mas teve um filho de Francisco de Andrade, filho de Rodrigo de Andrade, que se deu a criar, mas morreu quando tinha três meses.  Disse saber que a japonesa Luzia Ferreira viera denunciar à Mesa Ana de Milão por ela lho dizer.  Confessou também a Francisco de Andrade que viera à Mesa denunciar a mãe dele. Disse-lhe ele então para ela vir à Mesa dizer que Ana de Milão não comia carne de porco por ser mimosa e por nojo que dela tinha e não com má tenção. Mandou-a falar com o P.e Francisco de Gouveia da Companhia de Jesus e até a mandou acompanhar por um moço. Reconhece que Ana de Milão lhe dava bom tratamento e que nunca pelejou com ela. Perguntou-lhe o Inquisidor qual a razão por que saíra da casa de Ana de Milão. Respondeu “que a causa por que saiu foi por andar prenhe e se não saber do que lhe havia sucedido, o que fez por ordem do dito Francisco de Andrade que lhe disse que depois de parir, tornaria para sua casa, como de feito tornou”. Repetiu que veio denunciar Ana de Milão apenas porque isso lhe mandou o seu confessor.

fls. 21 img. 41 – 22-9-1603 – Depoimento de Margarida Antunes, de 27 anos, casada com Baltasar de Freitas.  Também esta testemunha disse que fora denunciar Ana de Milão mandada pelo seu confessor.  Tal como no interrogatório anterior, também aqui pergunta o Inquisidor “como é possível ver ela testemunha fazer as coisas que diz em seu testemunho a Ana de Milão sendo coisas contra a fé, e que se fazem com muito segredo, porque não é de crer que se fiasse dela?”

fls. 24 v img. 48 – 10-10-1603 – Depoimento de Isabel Tavares, de 45 anos, casada com António Soares – Foi vizinha de Margarida Antunes. Esta pediu que um filho dela a acompanhasse à Inquisição e depois confidenciou que tinha ido denunciar Ana de Milão.

fls. 27 img. 53 – 3-3-1604 – Nota de que todos os documentos dos processo até aqui são cópias dos originais que adiante aparecem.

fls. 29 img. 57 – Documento original, já transcrito a fls 3 v img. 6. Está truncado. Começa com a palavra “ordinariamente”, na cópia a fls. 4 img. 7.

fls. 32 img. 63 – Documento original, já transcrito a fls. 7 img. 13 

fls. 35 img. 69 – Documento original, já transcrito a fls. 9 img. 17.

fls. 35 v img. 70 – Documento original, já transcrito a fls. 9 v img. 18

fls. 37 img. 73  - Documento original, já transcrito a fls. 10 img. 19.

fls. 39 img. 77 - Documento original, já transcrito a fls. 11 img. 21

fls. 41 img. 81 - Documento original, já transcrito a fls. 12 v img. 24

fls. 49 img. 97 - Documento original, já transcrito a fls. 17 img. 33.

fls. 55 img. 109 - Documento original, já transcrito a fls. 21 img. 41.

fls. 61 img. 121 - Documento original, já transcrito a fls. 24 v img. 48.

fls. 65 img. 129 – 21-2-1602 – “1.ª sessão com Genealogia. Nega

Disse chamar-se Ana de Milão, tem 58 anos de idade, foi filha de Francisco Rodrigues de Milão, que faleceu na Índia de Portugal e de Brites ou Beatriz Gomes, que faleceu em Torres Novas. Não conheceu seus avós nem sabe como se chamavam, só Gomes Dias, seu avô materno que viveu em Lisboa. Da parte de seu pai, não tem tios nem tias; da parte de sua mãe, conheceu um tio chamado Diogo Gomes que foi casado com Guiomar de Solis; ela ainda é viva, ele defunto. Duas filhas deles estão casadas: Francisca Gomes com Luis Rodrigues e Brites Gomes, casada com André Faleiro, moradores em Valverde.

Ela tem dois irmãos: um irmão, Gomes Rodrigues Milão casado com Ana Dias de Milão, que vivem de uma fazenda que têm em Cabo Verde, e Guiomar Gomes, casada com Henrique Dias Milão, tratante em coisas do Brasil. Teve mais dois irmãos, que morreram solteiros sem filhos, um em Medina del Campo e outro na Índia de Portugal.

É casada com Rodrigo de Andrade, que está em Valladolid e trata das coisas da Flandres e dele tem seis filhos: Francisco de Andrade, casado com Branca Jorge, Manuel de Andrade, de 19 anos, Jorge de Andrade, de 17 e André Rodrigues, de 14, todos solteiros, e Beatriz de Andrade, casada com António da Veiga, filho de Rui Lopes de Évora, primo co-irmão de seu marido, que tem trato na Flandres e mora no terreiro do Ximenes; e Branca de Andrade, solteira, de 14 ou 15 anos.  

Soube dizer o “Padre nosso e Ave Maria, Creio em Deus padre, os mandamentos da Lei de Deus, os pecados mortais e as virtudes contra eles, os sacramentos da Igreja e os artigos da fé”.

fls. 68 img. 135 – 28-6-1602 – Sessão in genere

Disse que é boa cristã e nunca se apartou da fé católica. Nunca guardou os sábados de trabalho, nunca fez jejuns judaicos. Respondeu negativamente a todas as questões.

fls. 70 img. 139 – 18-2-1604 – Sessão in specie

A Ré disse que ela e seu marido não comiam carne de porco, nem peixes sem escama por razões de saúde e por ordem dos médicos. e não por “cerimónia” da lei de Moisés. Que é boa cristã e cumpridora. Que, se às vezes as suas contas não tinham a cruz, era porque se tinha quebrado.

fls. 73 v img. 146 – 21-2-1604 – Admoestação antes do libelo. Libelo. Algumas das culpas apontadas: “que por honra e cerimónia da dita Lei de Moisés, ela Ré não comia carne de porco, lebre, coelho, perdiz, nem peixe sem escama” e  “que a dita Ré por cerimónia da dita lei mandava dessangrar e tirar o sebo à carne que havia de comer, lançando-a em água e sal e tirava e mandava tirar a gordura e sebo à carne, como costumam os Judeus fazer” e “que a dita Ré, como observante da Lei dos Judeus, quando rezava, olhava para o Céu diferentemente do que costumam os Cristãos, o que é cerimónia que os Judeus costumam fazer quando rezam, e oferecem suas orações a Deus”.

Ouvida a leitura, a Ré negou que alguma vez tivesse guardado os sábados ou que tivesse a preocupação de vestir roupa lavada só aos sábados. Disse que não tem culpas que confessar na Mesa. Que se queria defender e estar com procurador.

fls. 76 v img. 152 – 24-2-1604 – Aceitação da procuração pelo L.do Miguel Nuno. A Ré esteve com ele na mesma data.

fls. 77 img. 153 – Traslado do libelo, devolvido pelo procurador.

fls. 78 v img. 156 – Defesa. Contestação por negação. Nomeia testemunhas.

fls. 81 img. 161 – sem data – Despacho recebendo a defesa.

fls. 82 img. 163 – 28-2-1604 - Inquirição das testemunhas de defesa

- Padre Manuel Correia, da Companhia de Jesus – É confessor da Ré há dez anos e sempre a considerou boa cristã.

- Duarte Lopes, sapateiro, de 55 anos  Tem a Ré por boa cristã e cumpridora das suas obrigações

- Pero Duarte, calceteiro, de 30 anos – como o anterior

- Aleixo da Rocha, alfaiate, de 35 anos, como os anteriores

- Ambrósio de Aguiar, servidor da misericórdia, de 60 anos – como os anteriores

- Maria Simões, viúva, de 80 anos – como os anteriores

6-3-1604

- Francisco Jorge, correeiro, de 38 anos – como os anteriores

- Maria de Araújo, casada, de 40 anos – Disse que não conhecia a Ré.

10-3-1604

- Helena Dias, parteira, de 50 anos – Tem a Ré por boa cristã e sabe que ela é caridosa para com os pobres.

fls. 91 v img. 182 – folha riscada

fls. 92 img. 183 – 1-3-1604 - Admoestação antes da publicação da prova da justiça. Publicação da prova da justiça. Ouvida a leitura, a Ré disse que queria arguir contraditas e para isso, estar com o seu procurador.

fls. 96 img. 191 – Traslado devolvido pelo procurador

fls. 98 img. 195 – Arguição de contraditas contra a japonesa Luzia Ferreira, Margarida Antunes, Francisca da Costa, Maria Monteiro, também japonesa, Leonor Fernandes, Violante Rodrigues.

fls. 102 img. 203 – 5-3-1604 – Nomeação de testemunhas às contraditas

fls. 106 img. 211 – Despacho recebendo as contraditas primeira à décima; as outras não respeitavam a testemunhas do processo e não foram recebidas.

fls. 107 img. 213 – Papel anónimo denunciando alguém cuja identificação se não conhece.

fls. 108 img. 215 – 9-3-1604 – Audição das testemunhas

- Belchior Mendes, de 50 anos – É caixeiro de Rui Lopes de Évora, pai do genro de Ana de Milão. Não sabia que houvesse “diferenças” entre a japonesa Luzia Ferreira e a Ré.

- P.e Frei António Pereira, Religioso de S. Domingos, de 45 para 46 anos – É cunhado de Belchior Mendes. Conhece a Ré há cinco anos. Não conheceu, porém, nenhuma das criadas da Ré.

- Luísa de Abreu, de 40 anos, casada com António Jorge, carpinteiro – Criou ao peito o filho da Ré, de nome André, e serviu a Ré 10 anos. Não sabe de “diferenças”  da Ré com as suas criadas mas sabe que ela por vezes as repreendia.  A Ré disse-lhe que Francisca da Costa ou Oliveira parira de seu filho Francisco e que Margarida Antunes lhe roubara um fato.

10-3-1604 -

- Helena Dias, parteira, de 50 anos – Disse nada saber do contido nas contraditas.

11-3-1604 – Francisca da Costa ou “Oliveira”, de 27 anos – Disse que Luzia Ferreira não gostava muito de trabalhar para Ana de Milão, que era muito severa.

- Brásia Antunes, casada, de 33 anos – Nada sabe sobre o contido nas contraditas.

15-3-1604 – Margarida Francisca, casada, de 29 anos – Como a anterior.

16-3-1604 – Mateus da Veiga, solteiro, de 25 anos, filho de Vasco Martins da Veiga – Disse que Ana de Milão era muito forte de condição e poderia ter algumas diferenças com o pessoal da casa.

- Isabel de Mendonça, de 50 anos, casada com Francisco de Vila Lobos, Comendador do Hábito de Cristo – Conhece bem Luzia Ferreira, a japonesa, mas que esta ora lhe dizia que estava contente com a Ré, sua patroa, ora se queixava disto e daquilo. Pensa que não havia “diferenças” entre elas. E nada sabe do contido nas contraditas.

18-3-1604

- João Gonçalves, que agora se chama João Rodrigues, de 30 anos,  natural de Vila do Conde e agora residente em Lisboa, casado com Maria Jorge – É criado de João Ximenes, mas antes foi de Rui Lopes de Évora e depois de António da Veiga. Disse que Luzia Ferreira anda em demanda com Francisco de Andrade, por não lhe quererem pagar as soldadas em dívida.

23-3-1604

- Guiomar Fernandes, de 60 anos, viúva que ficou de Francisco Rodrigues – Conhece a Ré, por, muitos anos atrás, ter sido ama de leite da irmã dela, Guiomar Gomes. Nada sabe do referido nas contraditas.

- Inês Gonçalves, de mais de 60 anos, viúva de Gaspar Rodrigues, homem do mar- Conhece Ana de Milão há 5 anos, quando começou a servir D. Joana da Veiga, já defunta, que era prima direita do marido da Ré, Rodrigo de Andrade. Ouviu a Ré repreender asperamente a sua criada Oliveira (Francisca da Costa) e acusá-la de lhe roubar coisas. Mas, depois de deixar de frequenta a casa de Ana de Milão, a criada Oliveira ainda lá esteve muito tempo.

5-4-1604

- Maria Monteiro, japonesa, de 35 anos, casada com Francisco Fernandes, que serve a Diogo Lopes da Rocha – A certa altura tratou com Ana de Milão de ver se arranjava um marido para a japonesa Luzia Ferreira, que tinha algum dinheiro – 20 000 reis a que Ana de Milão juntaria outros 20 000. Havia um certo João Ribeiro como candidato, mas depois desistiu.

fls. 131 img. 261 – 25-1-1605 – Termo de que consta ser Ana de Milão solta por mandado do Senhor Inquisidor Geral e do Conselho.

O Notário António Dias Cardoso elabora um termo “de como Bartolomeu Fernandes, Secretário do Conselho Geral, lhe dera hoje recado do Senhor Bispo D. Pedro de Castilho, Inquisidor Geral, Executor da Bula do perdão geral, que mandassem soltar Ana de Milão, contida nestes autos, e eles por virtude do dito recado do dito Senhor Inquisidor Geral, a mandaram soltar e pôr em sua liberdade.”

fls. 131 v img. 232 – 25-1-1605 

Sendo presente Ana de Milão, lhe foi dito, que Sua Santidade o Papa emitiu uma bula, que o Senhor Inquisidor Geral aceitou “pela qual Sua Santidade há por bem de conceder perdão geral às pessoas da nação hebreia, naturais destes Reinos, no qual ela Ana de Milão, é ao presente, e o Senhor Inquisidor Geral manda que se cumpra como nela se contém, como consta da dita Bula e mandado, que estão no secreto desta Inquisição e para ela gozar do dito perdão, os Senhores Inquisidores mandaram que fosse solta dos ditos cárceres, na forma da dita Bula e mandado, em cumprimento do qual a dita Ana de Milão foi solta dos ditos cárcere e posta em sua liberdade (…)”, jurando guardar segredo do que disse e ouviu.

fls. 133 img. 265 – Conta de custas: 4$773 réis (Inclui 1$600 réis do traslado que se mandou a Roma).

 

 

Proc. n.º 11610, da Inquisição de Lisboa contra Ana de Abrunhosa, ou Ana da Cruz, solteira, de 27 anos, filha de Jácome Vaz e de Maria de Abrunhosa:

fls. 24 img. 47 – 14-7-1604 – O Padre D. Luis de Torres de la Cueva (Pr. n.º 4278), preso no cárcere com Alexandre de Abrunhosa (Pr. n.º 13174) veio denunciar que este falava alto com presos de outras celas e também pelo sistema do A,B,C.   E que em Janeiro de 1604, sua tia Ana de Abrunhosa ou Ana da Cruz, tinha dito ao mesmo Alexandre que o perdão geral estava já despachado. Que era usual os presos todos falarem uns com os outros nos cárceres.

fls. 25 img. 49 – 13-8-1604 - O mesmo Padre veio dizer que, cerca de 10 dias antes, a mesma Ana da Cruz dissera em alta voz “que passassem palavra, que soubessem todos os presos que a mulher de Rodrigo de Andrade que está na décima casa do dito corredor décimo lhe mandava dizer que já o perdão geral para a gente da nação estava negociado e que o dito Rodrigo de Andrade viera de Roma e estava já em Madrid, e que viera o perdão dirigido ao Sr. Bispo de Leiria, para vir soltar os presos, e que já não havia de tardar muito, porque somente esperavam em Madrid que fosse o Gabriel Ribeiro levar as letras do dinheiro que davam a Sua Majestade pelo dito perdão (…)”

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

António Borges Coelho, Política, dinheiro e fé. Colecção: Questionar a história, volume V. Editorial Caminho, Lisboa, 2001

 

Florbela C. Veiga Frade, As relações Económicas e Sociais das Comunidades Sefarditas Portuguesas. O Trato e a Família (1532-1632). ed. 1, 1 vol.. Lisboa, Tese de doutoramento em História Moderna na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, defendida em 8 de Janeiro de 2007.

 

João Manuel Andrade, Confraria de S. Diogo – Judeus secretos na Coimbra do Séc. XVII, Nova Arrancada, Lisboa, 1999

 

Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición portuguesa y Monarquía Hispánica en tiempos del perdón general de 1605, Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS/UE, 2010, ISBN 978-989-689-039-1.

 

Giuseppe Marcocci, A Inquisição portuguesa sob acusação: o protesto internacional de Gastão Abrunhosa, in Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 7, 2007, pp. 31-81.

Online:   http://www.catedra-alberto-benveniste.org/_fich/15/Giuseppe_Marcocci.pdf

 

Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição Portuguesa - 1536-1821, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013,

 

Florbela C. Veiga Frade, O ilustre humanista Fernão Lopes Milão e as tentativas de fuga da sua família para Hamburgo, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, 10 Tomo I (2010) 195-218. ISSN: 1645-2259

Online: http://www.uc.pt/en/chsc/rhsc/rhsc_10/rhsc101_195-218_fvf.pdf