01-10-2011

 

"JUSTIÇA" em PORTUGAL - II

 

 

A TRIBUTAÇÃO DOS IMÓVEIS EM PORTUGAL

 

Há países onde não são tributados os imóveis para habitação própria. Não é o caso de Portugal, onde todos os prédios urbanos são tributados, pelo menos desde 1929.

Até ao início de 1989, os prédios urbanos eram tributados, aplicando uma percentagem ao rendimento colectável inscrito na matriz. O valor matricial era igual a 20 vezes o rendimento colectável.

O Decreto-Lei n.º 442-C/88, de 30 de Novembro, introduziu a Contribuição Autárquica, lançada através de uma permilagem sobre o valor patrimonial dos imóveis. Este era calculado aplicando o factor 15 ao rendimento colectável constante da matriz naquela altura. Desapareceu depois o conceito de rendimento colectável. Para avaliar o desleixo dos legisladores deste País, basta ver que o conceito de rendimento colectável figura ainda no n.º 3 do art.º 1434.º do Código Civil.

Mas regressemos ao Código da Contribuição Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 45104, de 1 de Julho de 1963. O rendimento colectável era determinado por avaliação directa pela Comissão de louvados.  Estimava-se o rendimento normal do imóvel, por comparação com a renda possível de auferir por ele. Na realidade, porém, o rendimento colectável ilíquido era sempre muito inferior às rendas.  Quando, porém, o imóvel estava arrendado, a renda era “levada” à matriz e o proprietário passava a ser tributado com base no valor da renda. Esta tributação era relativamente pesada, tanto assim que a Fazenda reduzia-a a zero, sempre que o prédio ficasse devoluto e não fosse ocupado pelo proprietário. Se o proprietário o ocupasse, ficaria a pagar Contribuição Predial sobre o rendimento colectável originado pela renda.

A Contribuição Predial era assim um tributo híbrido, simultaneamente, imposto sobre o património e imposto sobre o rendimento. Isso acabou quando foi introduzido o IRS, que incluiu na tributação do rendimento o valor das rendas. Para tributar os imóveis foi criada na altura a Contribuição Autárquica sobre o valor patrimonial dos imóveis. Como acima referi, este foi calculado na altura pela aplicação do factor 15 ao rendimento colectável constante da matriz. Foi logo um agravamento para os prédios arrendados, que viram os seus prédios avaliados bastante mais por cima do que os não arrendados.

Em 2004, a Contribuição Autárquica foi substituída pelo Imposto Municipal sobre Imóveis. Foi mais uma calinada dos nossos legisladores, entregar toda a receita da tributação dos imóveis às autarquias. O Estado não deve ter impostos consignados. Tributa o cidadão e distribui depois o dinheiro conforme as necessidades.

Mas, em face da desvalorização da moeda, era preciso reavaliar os imóveis. Isso foi feito de por dois cálculos diferentes: um para os prédios arrendados e outro para os não arrendados.

Aqui começaram os problemas e as asneiras. Para efeitos do diploma (Decreto-Lei  n.º 287/2003, de 12 de Dezembro) era uma unidade a considerar, cada prédio ou fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal. Mas a verdade é que o antigo Código da Contribuição Predial previa a tributação como imóvel arrendado de uma parte arrendada de prédio não dividido em propriedade horizontal!... O que é que se podia fazer nestes casos? Eu acho que o contribuinte teria direito ao regime que lhe fosse mais favorável, pois, nem sequer se podia aplicar a norma dos arrendados à parte arrendada e a dos não arrendados à ocupada pelo proprietário, porque o Direito Fiscal não permite a aplicação das normas por analogia. Mais um bico de obra e um descuido do legislador.

Neste texto quero tratar um caso pessoal, de que já falei aqui, de um prédio que esteve arrendado até 31 de Janeiro de 1995 e que, portanto, era considerado não arrendado para efeitos  do diploma referido. É um prédio único de dois pisos, tendo sido arrendado o rés do chão e o 1.º andar ocupado pelo proprietário – o tal caso de arrendamento de parte de casa. A renda tinha sido levada à matriz em 1987, e, por isso, o rés do chão tinha um rendimento colectável  e, portanto, um valor relativamente elevado.

Nestes casos, o legislador poderia de facto ter optado por ir buscar o valor resultante do rendimento colectável corrigido pela renda, mas isso seria pesado para o proprietário, pois agora já não havia declarações de prédios devolutos para reduzir a tributação. Por isso ou por outra razão, não o fez.

Vejamos a norma legal (art.º 16.º do Decreto-Lei n.º 287/2003):

Artigo 16.º
Actualização do valor patrimonial tributário

1- Enquanto não se proceder à avaliação geral, o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos, para efeitos de IMI, é actualizado com base em coeficientes de desvalorização da moeda ajustados pela variação temporal dos preços no mercado imobiliário nas diferentes zonas do País. (Red. da Lei 6/2006-27/02)
2 - Os coeficientes referidos no n.º 1 são estabelecidos, entre um máximo de 44,21 e um mínimo de
1, e constam de portaria do Ministro das Finanças.
3 - Aos valores dos prédios inscritos nas matrizes até ao ano de 1970, inclusive, é aplicado o coeficiente que lhe corresponder nesse ano e, aos dos prédios inscritos posteriormente, aquele que corresponder ao ano da inscrição matricial.
4 - Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o coeficiente é sempre aplicado aos referidos valores já expurgados de quaisquer correcções efectuadas posteriormente ao ano de 1970 e aos anos da respectiva inscrição matricial.
5 - No caso de prédios urbanos arrendados que o deixaram de estar até 31 de Dezembro de 1988, é aplicado ao valor patrimonial resultante da renda o coeficiente correspondente ao ano a que respeita a última actualização da renda.

 

O prédio em causa foi inscrito na matriz predial em 1950.

O n.º 5 não se aplica, porque o prédio (o rés-do-chão) esteve arrendado até Janeiro de 1995.  Logo, aplicar-se-á o n.º 3, sem quaisquer dúvidas e para determinação do valor aplica-se o factor do ano de 1970 – 44,21 - ao produto por 15 do rendimento colectável dessa altura. O problema da parte de casa arrendada e não arrendada fica por si resolvido, porquanto o facto é o mesmo nos dois casos – o de 1970.

O n.º 3 da norma diz também que os valores dos prédios são “expurgados de quaisquer correcções efectuadas posteriormente ao ano da inscrição”.

Porém, entre os funcionários das Finanças, houve algum ou alguns iluminados que acharam que a Lei estava mal feita e resolveram interpretá-la à maneira deles. E então disseram:

 

1)    Quando o rendimento colectável foi corrigido pela renda, foi como se houvesse uma nova inscrição matricial;

2)    As correcções a expurgar nos termos do n.º 3 não são todas as correcções, mas apenas as efectuadas a partir de factores nos anos de 1976, 1988 e 1995.

 

Esta interpretação é uma sucessão de barbaridades de um tamanho enorme. “Levar” a renda à matriz como se dizia na gíria dos Impostos é corrigir o rendimento colectável em função da renda e nada tem a ver com a inscrição do prédio na matriz (embora o tal prédio me apareça agora na Internet como inscrito… em 1987!). E sendo uma correcção, está excluída de novo no n.º 4.

Há uma regra fundamental de Direito que diz : “Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus”.  Se o legislador excluiu as correcções, são todas as correcções e não apenas aquelas que o funcionário queria considerar.

O procedimento dos serviços é ainda distorcivo por outro motivo já que, em vez do procedimento referido (aplicar o factor 44,21),  aplicou o factor de 2,44 (de 1987) a todo o rendimento do prédio, subavaliando o 1.º andar, que tinha o rendimento de 1970.

Esta interpretação facciosa da Administração Fiscal não apareceu em documentos vindos a público, mas foi suficiente e eficazmente difundida de maneira a chegar a todas as repartições de finanças do País. Foi colocada também na Intranet dos serviços.

Mas impugnei judicialmente o caso e… ainda estou à espera.

1-1-2015 - Depois de o processo estar pendente de decisão uma dezena de anos, a Juiza deitou abaixo a impugnação invocando a excepção de inimpugnabilidade antes de se esgotarem os meios graciosos. Para isso, inventou um princípio ("princípio da exaustão dos meios graciosos"), mas esqueceu um princípio básico da lógica jurídica: o de que a norma especial afasta a aplicação da norma geral.