ALEXANDRE O'NEILL
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TOMAI LÁ, DO O’NEILL...
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Isto de morrer não pode fazer
parte do programa de ninguém. Ainda menos dos poetas, sejam ou não
surrealistas. Durante anos, Alexandre O' Neill fez caretas à morte, abrindo a
boca num sorriso de escárnio, deitando a língua de fora, enfrentando-a. Em
1976, ela respondeu com uma pontada fulminante, quase fatal, no coração, e a
panne provocou umas tréguas, uma rendição temporária, uma obediência
cega às ordens médicas. Não pode... não pode... não pode. O poeta que
sempre tropeçou de ternura estava proibido até de sentir o vento no rosto. O
clínico impediu-o de caminhar contra o vento, forma categórica de dizer que
era melhor conformar-se, tomar cuidado, ou então...
"Quando se está com uma
panne cardíaca, o universo míngua e um sujeito desliga. Passa para a categoria
do bom doente para salvar o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem
medo que se enganem nos remédios e lhes enfiem os que são para algum
vizinho... De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta para casa, se
sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à
normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Até que um dia se sente
de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras."
A citação é retirada de uma
entrevista dada, em 1982, ao Jornal de Letras. Uma extensa e sabora
conversa em que o entrevistador, Fernando Assis Pacheco, descreve O'Neill como
um tipo que, "por ser vítima de nervos miudinhos, sempre se gastou à
velocidade de um fósforo", e acabou por se "(en)fartar na
Unidade de Cuidados Intensivos de Santa Maria a reparar avarias cardíacas".
Depois da panne,
Alexandre deixou de correr atrás de miragens porque – como dizia usando a
ironia e o sarcasmo tão seus característicos – nem sequer podia correr:
"Tenho uma ligeira oscilação quando ando, até uso uma bengala".
O novo artefacto obrigava-o a olhar para o chão em vez de enfrentar os olhares
femininos de frente, olhos-nos-óculos, como sempre fizera, à procura delas, à
espera do amor delas. Não se tornara conformista, isso nunca, pois continuava a
luta de sempre contra a mediocridade, a vulgaridade e a santa vidinha de todos
os dias.
Nos últimos anos perdera-se das
vidas. "Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja, / que
o absurdo, mesmo em curtas doses, / defende da melancolia e nós somos tão
propensos a ela!". Não ia a lançamentos de livros nem a declamações
públicas, esquivava-se a tertúlias e a serões que não fossem caseiros, não
aparecia em festas, recusava escrever em jornais e desistira de aparecer na
televisão. Continuava a "fazer poesia", alheando-se das "coisas
inutilmente cansativas". Voluntariamente, remetera-se para a segunda
linha dos intelectuais portugueses sem, no entanto, se opor ao "establishment
literário". O poder quis, inclusive, homenageá-lo com a Ordem de
Santiago e Espada. Por escrito, Alexandre declinou tão honrosa oferta,
desculpou-se, dizendo que se havia uma dívida entre ele e o país, era ele quem
devia. "Sou contra. Foi a forma mais simpática de dizer não",
acabou por confessar anos depois, numa entrevista, que revela um homem
desiludido com a vida, "esses raros bons momentos intercalados na
chatice diária".
Tudo lhe era proibido. Só podia
beber um copo de vinho por dia (branco ou tinto era indiferente), coisa custosa
de aceitar para uma pessoa que, em outros tempos, "bebia normalmente",
ou seja, antes, durante e depois das refeições. E os cigarros, Doutor? Dentro
dos maços, à venda nas tabacaria foi a insensível resposta clínica, o diagnóstico
impedioso de quem, por certo, não passou anos a fumar milhares de
cigarrinhos até ao filtro. Para se acalmar.
Alexandre passou a dedicar os
dias ao vício da escrita, entregue a uma solidão melancólica, um estado que
misturava revolta e indiferença porque sentia a morte infiltrar-se "muito
antes da chegada do caixão": "Estou a morrer devagarinho, eu
que sempre fiz as coisas depressa".
Ele, a quem chamaram pessoa da
noite, ele que gostava de petiscos a desoras e de ir ao bacalhau com grão na
Ribeira lisboeta de madrugada, confessava ser "mais a fama do que outra
coisa". Ele, a quem apelidaram de boémio e de quem José Cardoso Pires
disse "ser capaz de estar catorze dias e catorze noites sentado a um café",
reconhecia não sacrificar um jantar com um amigo à urgência de um soneto.
Sophia de Mello Breyner Andresen leu o manuscrito de Contos Exemplares na
sua sala-de-estar, esperando ansiosa a opinião do crítico feroz, do leitor
atento, sempre pronto a recomendar este ou aquele autor, este ou aquele título.
Herberto Helder sujeitou-se a igual exame com Os Passos em Volta. Outros,
escritores-pintores-poetas, iam lá a casa – Rua da Escola Politécnica,
n.º 48 – 2.º andar – só para o ouvirem dizer, com a dicção de um
diseur profissional, versos de Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto
(O' Neill gravou dois discos e insurgiu-se, repetidamente, contra aqueles que,
na televisão, tratavam os versos como epitáfios e os liam em tom fúnebre,
associando a poesia portuguesa aos velórios e assassinando sem piedade os
poetas nacionais).
Nos últimos anos perdeu-se
deles, dos amigos, – zangou-se, entre outros, com Cardoso Pires, Manuel da
Fonseca e Alexandre Pinheiro Torres. Restaram-lhe apenas um ou dois, os únicos
que cortavam a solidão da casa do Príncipe Real, que antes partilhara com a
sua última companheira, a professora universitária Laurinda Bom. "Às
vezes está-se sozinho porque se quer e isso pode dar um bom monólogo, uma
meditação. O chato de viver só é que, às vezes, vou até ao barbeiro da
esquina só para falar com alguém", confessou Alexandre, que conhecia
os "cuidados" a tomar para adiar o envelhecimento. Mas às
precauções preferiu o conhaque (ou as célebres "velhinhas",
como chamava à tão especial aguardente velha).
Não parecia arrependido, ele
que, aos 30 anos, "despachou" o seu epitáfio: "Aqui
jaz Alexandre O'Neill/ Um homem que dormiu muito pouco/ Bem merecia isto".
A morte, "a fuga definitiva a todas as chatices", não lhe
metia medo, antes curiosidade, desejo de saber como "vai tudo isto
desfechar". Deus, "esse chato que ressona", era apenas
um nome, pois graças às doses excessivas de catequese, O' Neill era incapaz até
de se declarar ateu, de se definir perante qualquer crença religiosa. Fezadas,
sim, hipocrisias, não.
"Se não fui eu quem
veio no jornal,/ foi uma tosse a menos na cidade... (...) Um crocitar de
corvo fica bem/ neste anúncio de morte para alguém/ que não vê n'alheia
sorte a própria sorte". A 9 de Abril de 1986 entra pela urgência do
Hospital de Santa Cruz, com sérios problemas cardiovasculares. Confrontado com
a "morte, esse lugar-comum", desata num frémito enlouquecedor,
escrevendo gatafunhos para mais tarde alguém decifrar, tentando através do
papel dizer tudo o que a voz calara. "Muito desgosto te espreita/ ao
longo da tua vida,/ mas a vara está direita: tua missão foi cumprida".
Agostinho Gericota, João Pulido Valente e António Alçada Baptista são os únicos
amigos cuja presença reclama. A 19 de Julho é transferido para o Hospital Egas
Moniz, devido a um surrealista surto de salmonelas na enfermaria da unidade de
Carnaxide onde se encontrava.
"Quem? O infinito?/ Diz-lhe que entre./ Faz bem ao infinito/ estar entre gente". Morre, no dia 21 de Agosto, ao fim de cinco meses de internamento. O funeral, civil, depositou na manhã seguinte o corpo no Cemitério de Benfica. "Olha, Alexandre, a noite passada a tua mosca Albertina veio masquetear-me o ouvido: que tinhas ido desta para pior; o que não é de admirar vais ler a 'costumeira nacional' está descansado. Agora, é só seguir o cherne (*), meu amigo. De ti pouco se sabia e ainda bem". Palavras do poeta Luís Pignatelli num bilhete postal publicado na imprensa. "Às duas por três nascemos/ às duas por três morremos/ E a vida? Não a vivemos./ Querer viver (deixai-nos rir)/ seria muito exigir".
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MARINHEIRO, COM OS PÉS NO AR
A filha, Maria da Graça, a típica
aristocrata rural de dote elevado, maneiras delicadas e severo carácter, teve o
seu segundo filho, Alexandre, aos 19 anos, depois de, no ano anterior, ter
nascido Maria Amélia ----– os dois únicos descendentes de um fidalgote
lisboeta que se dizia descendente de Santo António. "Continuo a
aguentar a lenda e a afirmar que, devido ao Bulhões, sou parente do Santinho, o
que me dá uma certa audiência junto das devotas (...) Houve um
especialista em halografia, e em particular em Sto. António, que me contou,
para grande desgosto meu, que essa do santo se chamar Bulhões era uma grande
lenda".
Em criança, "era um
chato, uma tristeza". Filho de gente que não o deixava sair à rua,
Alexandre era um miúdo fechado que passava muito tempo à janela, na casa que
dividia com os pais. "É curioso porque morava na Rua da Alegria, o que
me provocava um enorme sentimento de tristeza, quando via subir as carroças,
com os trabalhadores de aspecto cansado...". O espectáculo das
pessoas interessou-lhe desde sempre e as rugas vincadas que tinha na testa
comprovam anos a tentar focar os pequenos olhos míopes em tudo o que à sua
volta mexia.
Mais tarde havia de descrever a
infância, que não conseguia chamar feliz nem rotular de infeliz, como um tempo
cinzento, sem relevo, que se escondia por detrás de outros tempos, mais
coloridos de emoções. Jogou berlinde, jogou pião e entre os seis e os 17 anos
passou os Verões em Amarante, terra natal da mãe e de um tio-advogado, José
Vahia, que o acompanhará em grandes passeios pela região do Douro e lhe lerá
a poesia de Guerra Junqueiro.
"Aos 12 anos, o
Xana andava de calção, com uma espingarda de pressão de ar na mão e íamos
juntos aos pardais". O escritor Alexandre Pinheiro Torres vivia na Póvoa
de Varzim e voltava à terra natal, só no tempo do calor, para encontrar o
amigo que conhecera em 1937, um ano depois de Alexandre ter sido obrigado a
inscrever-se na Mocidade Portuguesa. Por volta de 1942/3, tinha 18 ou 19 anos, o
projecto de poeta conheceu um poeta com projecto: Teixeira de Pascoaes.
Sentou-se numa roda de ouvintes passivos no Café Central (conhecido como o café
do Belchior), em pleno centro da vila, e seguia-lhe os passos de volta ao Solar
do Gatão, que Pascoaes ocupava. "Tentando cuspir como ele,
macaqueando-lhe os maneirismos", contará Pinheiro Torres no seu estilo
habitual, divertido, numa crónica escrita no Jornal de Letras, onde
recordava que, anos mais tarde, quando já era aluno da Universidade do Porto,
introduziu o amigo na literatura italiana: leu-lhe "Il fuoco",
de Gabriele D' Annunzio. Por seu lado, Xana introduziu-o noutras artes. Na da
sedução feminina, por exemplo.
O afastamento entre os dois
inseparáveis amigos de infância, dá-se anos mais tarde e é provocado pela crítica
severa que o autor de Espingardas e Música Clássica escreverá na
revista Seara Nova a propósito de um prefácio que O'Neill dedicou à
obra completa de Nicolau Tolentino. "Ele ficou doido, ficou furiosíssimo
e disse-me: 'Tu agora não falas comigo durante cinco anos'. E eu: 'Não, ó
Alexandre, estás enganado, hão-de ser dez'. E ele: 'Também está bem'. Pois
olhe foram quinze". Alexandre e Xana encontrar-se-iam, por acaso, na
Rua da Escola Politécnica, já o segundo estava "próximo de ir desta
para melhor".
Aos 15 anos, O' Neill começa a
ler Júlio Verne, a escrever versos e... chumba a Matemática (após aulas
particulares passará o exame final do no 3.º ano liceal com 19 valores).
Aos 18, publica no jornal de Amarante, A Flor do Tâmega – onde também
escreveram Pascoaes e Agustina Bessa-Luís –, os seus primeiros três poemas.
"A minha mãe quando apanhava um poema meu – melhor será dizer
versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer
de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico,
como se dizia lá por casa". Um dos seus professores, António Dias
Miguel, relembra um rapaz alegre, com alguns períodos de introspecção, um
instável emocional: "Tinha uma tendência enorme para zombar de tudo,
para pôr tudo em xeque".
Após novo chumbo no liceu vai
para a Escola Náutica, com aspirações a piloto, por achar "um modo
simpático de vida". Pediram que nadasse, ele nadou. Não lhe pediram
mais nada e ele entrou na sala de aulas. Durante as férias do 1.º ano
dirige-se à Capitania do Porto de Lisboa para requerer a cédula marítima de
praticante de piloto e acaba-se logo ali a vocação. "Eles disseram-me:
nem pense nisso, você tem uma miopia desgraçada”.
"Eu nasci para marinheiro/ mas pus óculos e fiquei em terra", escreveu o reconhecido "caixadóclos", imagem que o marcou desde sempre e o obrigou a andar em terra sempre com os pés no ar (outros dirão que era apenas distraído). Regressou então à escola para fazer, como aluno externo, o Curso Complementar de Letras. Embora já frequentasse os meandros literários lisboetas, com presença certa nos famosos "Jantares Dos Dias 13", organizados na Esplanada do Rato, na Rua de S. Filipe Nery, onde, entre outros, conheceu Adolfo Casais Monteiro, Rui Cinaty (seu amigo de muitos anos) e Almada Negreiros. Aos 18 anos trocou as aulas pelas leitarias e as tertúlias substituem as teorias dos encartados professores.
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OSSOS DO OFÍCIO
Coleccionava ossos como outros
coleccionam selos. Amontoava-os no quarto, no meio de outros objectos igualmente
insólitos, provocando a indignação familiar, que já não queria um poeta em
casa, muito menos um poeta surrealista. Na foto oficial da criação do Grupo
Surrealista de Lisboa – tirada num jardim de Campo de Ourique, em 1947
–, Alexandre pegou num dos alvos da ira maternal, colocou-o dentro da manga
direita do casaco e, sorridente, mostrou à objectiva... um fémur (seria?).
Tinha apenas 23 anos quando
fundou – em conjunto com Mário Cesariny de Vasconcellos, António Pedro, José-Augusto
França, Vespeira, Moniz Pereira, António Domingues e Fernando de Azevedo –
um movimento inspirado no lançado, em 1924, pelo francês André Breton.
Alexandre e Cesariny conheceram-se, dois anos antes, no Café A Cubana, em plena
Avenida da República. O maestro Fernando Lopes Graça, que tinha um grupo coral
chamado Amizade, ligado aos movimentos juvenis, apresenta-os e os dois começam
de imediato a andar pelas colectividades do Barreiro, cantando ideais proibidos
pela lei e pela ordem: "Politicamente, claro que era do contra: MUD
juvenil".
Poucos meses depois da morte de
O'Neill, Cesariny haveria de recordar "o companheiro inesquecível dos
anos 45 e seguintes", tempos em que ambos procuraram libertar-se de um
"pesadelo chamado realismo-socialista, entre nós denominado
neo-realismo". "Foi, aliás, o O'Neill", escreveu no
Semanário, "que um dia pôs em cima da mesa, com visível cara de
caso, mas sem dizer uma palavra, a História do Surrealismo, de Maurice
Nadeau. Já a lera e passava-me a mecha, a ver o que sucederia. O que sucedeu
foi o início de uma gritaria tal que ainda hoje se ouve". O encontro
aconteceu na Pastelaria Mexicana e inciciava a "infausta, mas à data
parecendo maravilhosa, formação do Grupo Surrealista de Lisboa",
movimento que Cesariny abandonará logo no ano seguinte, "por conflitos
estéticos-ideológicos", juntando-se a António Maria Lisboa e Pedro
Oom num grupo dissidente. O poeta e pintor admitiu, nesse depoimento, que, sem
O'Neill, não teria havido surrealismo. E relembrou o rapaz, "afável,
cordato, fraterno", que, no dia em que se conheceram, entrou numa
livraria, percorreu as prateleiras e ofereceu-lhe um livro. Do dramaturgo (Eugene)
O'Neill.
Fossem os ossos, as sopas ou a
falta de descanso, é um facto que Alexandre já saíra de casa quando se mete
nas (atrasadas) aventuras surrealistas portuguesas. Uma manhã tem uma das
habituais (e sempre iguais) trocas de palavras com o pai, o emproado empregado
bancário José António Pereira d'Eça Infante de Lacerda O'Neill de Bulhões:
— Alexandre, leva o chapéu de
chuva.
— Não é preciso, pai. Não
chove.
— Chove. Leva o chapéu de
chuva.
— Não é preciso, Pai.
— Já te disse para levares o
guarda-chuva.
— Não levo o guarda-chuva e
nunca mais cá apareço...
Esteve 16 anos sem ver o pai e
passou a dividir um atelier numas águas-furtadas de um prédio antigo, na
Avenida da Liberdade, com Cesariny e António Domingues. Aí se fizeram, de
acordo com o amigo/visitante Cardoso Pires, múltiplas colagens colectivas,
algumas das quais foram apresentadas nas primeiras exposições lisboetas dos
surrealistas. "Tenho-me dedicado ao desenho automático (...) e
vou iniciar a minha fase do escultor... em barro", escreveu a 1 de
Outubro de 1947, este jovem tão fraco que o médico receou tuberculoso –
"Entre uma refeição e outra penso na próxima", desculpava-se
para enganar a fome que passou após abandonar a casa de seus pais.
A estreia literária (se
esquecermos os versos publicados no jornal amarantino Flor do Tâmega)
acontece nesse mesmo ano, no Mundo Literário, com um poema dedicado à
realizadora, Noémia Delgado, sua primeira mulher. Em 1948, aos 24, publica A
Ampola Miraculosa, poema gráfico, história contada em poucas páginas e
construída à volta de gravuras de antigos manuais de Física.
"O nosso surrealismo era
reacção ao neo-realismo da época, uma chateza", afirmou, nos anos
80, o poeta que, logo no primeiro livro –Tempo de Fantasmas (1951) –
se demarca de uma aventura "reduzida às alegres actividades de dois ou
três incorrigíveis pequenos aventureiros". Por ser um dos
protagonistas, Alexandre tinha dificuldade em definir o movimento que ajudara a
criar e chamava-lhe "tardo-romantismo".
"Eu, talvez nunca tenha sido um poeta surrealista (...) prefiro o dizer ao imaginar e isso talvez explique tudo. Suponho que hoje, em dia, não tenho nada a ver com um movimento que está gloriosamente empalhado", confessou, admitindo, no entanto, uma certa tendência para o absurdo e uma desarticulação do discurso. Alexandre até gostava do neo-realista João Cochofel, mas ao falar dele a conversa não terminava sem uma piada. "Na altura dizia-se que quando chegasse a revolução, ele mandava chamar a criada e gritava 'Maria traz a bomba' e esta ataviada em rendas, pegava na bandeja de prata e aprontava-se a obedecer ao seu senhor".
Casamento com Teresa Patrício Gouveia em 4-8-71. Testemunha, António Tabucchi. |
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SIGAMOS O CHERNE
"O adjectivo/ dá-me de
comer./ Se não fora ele/ o que houvera de ser? Vivo de acrescentar às coisas/
o que elas não são./ Mas é por cálculo,/ não por ilusão". Os
leitores e os críticos – "uns chatos" – achavam-no um
poeta engraçado. Alexandre estava consciente que era preciso dessacralizar a
poesia (e o país), porque, como insistia, "a sisudez é muito chata?".
Naturalmente odiava a catalogação, não gostava que lhe chamassem poeta satírico
e irritava-se ao ponto de ficar colérico quando se ouvia definido como um
"blagueur", um tipo com graça: "As pessoas tendem a
ver em mim um fabricante de piadas, mesmo quando alguns dos meus poemas são
profundamente sérios", desabafava, consciente que a sua graça era
amarga, era a tristeza contentinha daqueles que, apesar de "funcionarem
no reino do riso, do humor, são todos muito tristes".
Embora ele próprio, às vezes,
se sentisse um "perfilhado do medo" e soubesse que "a
vida sem viver é mais segura", jamais deixou de apontar o dedo à
feira cabisbaixa que era o Portugal salazarento, essa patriazinha iletrada, esse
país todo o ano engravatado, a embezerrar que bem o merecia: "Sempre
sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar como no de o
amar-sem-esperança", disse já na década de 80.
Na de 60, recusou render-se ao
medo ("Penso no que o medo vai ter e tenho medo/ que é justamente/ o
que o medo quer"). Inquietou-se com este Portugal, remorso de sempre,
questão permanente consigo mesmo. Mesmo depois da euforia da Revolução:
"O 25 de Abril libertou-nos da mediocridade do fascismo e do bota-de-elástico
do Salazar. O que não quer dizer que não estejamos a cair noutro erro. O 25 de
Novembro foi o regresso a um certo bom senso. Aliás, suponho que os comunistas
pensam o mesmo. Eu cá não gosto é de atropelos, sejam à esquerda ou à
direita".
Homem de "fezadas",
O'Neill inclinou-se para o PS, "com todos os seus defeitos", e
até fez um "slogan" de campanha, elucidativa das suas dúvidas:
"Ele não merece, mas vota no PS". Comunismo? Na prática,
durante umas férias passadas na Jugoslávia, achou-o uma desilusão: "Sou
contra as sociedades fechadas como a União Soviética. Sou abertamente contra
esse sistema concentracionário. Antes quero morrer em situação de miséria,
numa escada de um prédio em Nova Iorque, do que morrer num hospital psiquiátrico
na União Soviética. Não tenho pejo nenhum em o dizer."
Uma declaração polémica,
proferida numa altura em que a maioria dos intelectuais portugueses militava no
Partido Comunista. O' Neill apoiou a recandidatura de Ramalho Eanes, mas também
assinou com 300 outros escritores, em 1985, um manifesto contra uma candidatura
militar. Desmentiu um eventual (e anunciado) voto em Salgado Zenha e votou Mário
Soares, nas eleições de Janeiro de 1986. Confiava no político, não no
partido que representava: "Já não vou nessa do... mal menor".
Frontal na conversa quotidiana,
O'Neill estava sempre a fazer jogos de palavras e a inventar associações de
ideias, como se quisesse aliciar os ouvintes com truques de linguagem, os mesmos
que usava na publicidade e espalhou em alguns dos seus poemas. "A vida não
é de abrolhos./ É de abr'olhos./ A vida não é de escolhos./ É de escolhas".
Escrevia esporadicamente, mas de vez em quando dava-lhe uma febre (os detalhes
seguintes impedem que se use o termo inspiração) e desatava a arrumar a secretária
(sempre um caos), a despejar cinzeiros, desesperado para se sentar na Olivetti,
a companheira máquina de escrever de teclado nacional – "a vida em
HCESAR é mais rica de sentido do que a vida em AZERT" era uma convicção.
Trabalhar, precisava de
trabalhar, dizia, enquanto se mexia sem rumo, num nervoso inexplicável, que
terminava geralmente numa desistência: "Olha, vamos ali beber uma
mosca. Descíamos umas escadinhas e eram ovos cozidos, ginginhas, aguardentes e
pastéis de bacalhau", contou Alexandre Pinheiro Torres, num perfil
feito pelo Público, para assinalar o décimo aniversário da morte de
O'Neill que, num poema dedicado ao amigo, confessou: "Muito deve a
literatura ao absinto/ Em qualidade, muito mais do que ao tinto... Ó Alexandre,
manda-me absinto na volta do correio, que eu já sinto, com tanto vinho,
estancar-se-me o veio".
O vício da escrita obrigava-o a
ter consciência da dificuldade do ofício. A gestação era rápida, fazia um
poema em 2 ou 3 dias, escrevia-os em papelinhos que guardava na pasta das
reservas poéticas, a que só voltava de longe a longe para ver "se
aguentaram ou não". "Remancha, poeta, Remancha e desmancha/ O
teu belo plano/ De escrever p'la certa./ Não há "p'la certa", poeta!".
Com o passar dos anos refinou a
exigência, a minúcia do trabalho, o "desatavio voluntário"
para tentar criar os tais poemas privilegiados, aqueles "que correm bem
e emocionam": "É um processo lento dizer uma coisa. Primeiro
faço na cabeça e então é que escrevo". Não tinha método ou
disciplina, era fazer, guardar e esquecer. "Só depois do pousio, faço
as modificações, o tal ofício de marceneiro para usar uma imagem gasta".
As ideias surgiam-lhe até a dormir: "Às vezes levanto-me a meio da
noite para ir ao papel, com medo de me esquecer no dia seguinte".
"Vamos lá a ser
modestos. A grande, a boa poesia, percebe-se logo", afirmou "o
grande poeta menor" – a definição é do próprio –, consciente
que, entre a "meia-dúzia" dos bons, dos mesmos bons, estavam
versos que "nem para atacadores" davam. "Acaba mal o
teu verso/ mas fá-lo com um desígnio:/ é um mal que não é um mal,/ é lutar
contra o bonito". "Cão", "Portugal"
e "A Vazia Sandália de S. Francisco" eram os favoritos; "Adeus
Português", sabia, "o melhor de todos".
Portugal, um país de poetas? A
frase-feita nunca fez sentido para Alexandre, que só a considerava correcta se
se identificassem os poetas com os distraídos: "Lá que somos um país
de lunáticos somos". A mesma pergunta mereceu resposta diferente
noutra entrevista: "Não acredito que exista uma poesia portuguesa, há
é poetas portugueses". Para ele, Cesariny era o maior dos vivos,
"mas ele nunca foi surrealista: foi sempre só-realista".
Preferia o "grande" Cesário Verde ao "chato"
Pessoa ("que nem sequer sabia que a alface se deve comer com coentros")
e admitia a sua dependência dos brasileiros Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira. Camilo Castelo Branco era uma paixão permanentemente rejuvenescida
– pelo menos para ele que, por preguiça, ou insegurança, jamais publicou o
romance que só tentou. "Escrever é... uma mania. A não ser aqueles
escritores com banca montada há muitíssimos anos e que têm de fazer a obra
deles. Aí, já passa a negócio de papelaria. A pessoa escreve sem saber porquê.
Uns, dizem que sentem um formigueiro na mão ou na alma. Não interessa. É
sempre uma necessidade quase física".
Em 1982, desafiado por Vasco Graça
Moura, condensa 30 anos de escrita dispersa em nove livros – do Tempo de
Fantasmas (1951) a As Horas Já de Números Vestidas (1981) – no
volume Poesias Completas. "Para dizer a verdade estava farto de
tudo o que tinha escrito, farto de conviver com que o vinham fazendo",
afirmou antes de ser distinguido, ex-aqueo, com o Prémio do Clube Português da
Associação Internacional de Críticos Literários desse ano. Dividiu os cem
contos com Mário Dionísio, que acabara de publicar Terceira Idade”.
Embora nunca tenha sido um poeta na moda e de modas (edições reduzidas para leitores seleccionados), os três mil exemplares da edição esgotaram-se num ápice. "Iam à procura das piadas. Lamento: são capazes de terem tido uma desilusão". A 2ª edição sai em Agosto de 1984 e acrescenta 19 poemas. Foram os últimos que escreveu e viu editados. Morreu antes do Círculo de Leitores lançar Tomai Lá do O'Neill – Uma Antologia, título escolhido pelo próprio na cama do hospital. "Não sei se a minha poesia ultrapassará este século, é uma poesia de curto prazo (...) Mas, de um modo geral, o balanço é positivo. Acho que valeu a pena". Escrever bem, disse, é escrever de tal forma que o que fica escrito se torna independente da biografia do autor. Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?. Alexandre O' Neill - Poesias Completas, com a chancela da Assírio & Alvim, ajuda a tirar hipotéticas dúvidas sobre a qualidade deste poeta. Maior.
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O MODO FUNCIONÁRIO DE VIVER
A demissão compulsiva da Função
Pública, aliada ao facto de José Cardoso Pires – autor da frase "A
camisa do homem que a mulher prefere" – o ter apresentado ao então
director da Cinédia altera-lhe o destino burocrático. "Alexandre
O'Neill, o maior poeta português vivo" era assim que, orgulhoso, o
patrão, Galveia Rodrigues, apresentava aos clientes o seu novo empregado. Na década
de 60 começa uma carreira de mais de 30 anos, com passagem por quase todas as
grandes empresas de publicidade, da Publicis à McCann Erickson, acabando na
Publinter. De resto, O' Neill que sempre se descreveu como um autodidacta da
poesia, orgulhava-se de ter criado slogans que se tornaram provérbios e
cuja autoria muitos atribuem à sabedoria popular.
O célebre "Há Mar e
Mar, Há Ir e Voltar" consta até de um dicionário de provérbios
portugueses, mas foi criado, por ele, no início dos anos 50, para uma campanha
do Instituto de Socorros a Náufragos: "Devia ter ganho uma fortuna. Não
ganhei... porque nunca o registei. Mais uma prova de que nunca penso nas consequências,
a não ser quando escrevo".
Fazer slogans dava-lhe
tanto gozo como fazer versos. "Só é chato quando o cliente não
percebe as nossas intenções. O jeito para o jogo de palavras, para o
trocadilho, vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na
poesia, embora agora já esteja melhorzinho", confessou, em 1982, a
Assis Pacheco, o autor de frases como "Parker preenche em silêncio o
seu papel" e "A Segurança Volta Sempre". Duas das
aprovadas. Uma vez, "por brincadeira", propôs que o novo
slogan do Metropolitano de Lisboa fosse: "Vai de Metro, Satanás!".
O chumbo quase lhe custou o emprego, como aconteceu com o conhecido "Bosh
é bom", cujo original – recusado – era "Brosh é Bom".
Igual sorte teve o provocador: "No colchão Lusospuma não se dá só
uma". O realizador José Fonseca e Costa, que conheceu O'Neill na década
de 50, e que deveria filmar o anúncio, assegura que a frase era outra: "No
colchão Lusospuma, você dá duas que parecem uma". E contraria uma
ideia generalizada: "Ele só trabalhou na publicidade porque precisava
dela". Ou seja, necessitava de dinheiro para aguentar a vida de família,
"com as contas a pagar os filhos a fazer/ ou a evitar".
Embora recusasse o modo funcionário
de viver foi empregado da companhia de seguros Metrópole (secção de Sinistros
de Automóveis), um cargo de que se demitiu um ano depois da admissão, alegando
um "estado de saúde muito precário" e a "necessidade
urgente de repouso absoluto". Mudou-se para a divisão agro-química da
Sandoz (de novo) como escriturário (e por lá terá tido um escaldante caso que
acabou em escândalo e desacato com o marido traído). "É preciso dizer
que o O'Neill nunca tinha dinheiro, gastava o que ganhava na Sandoz em poucos
dias", conta Alexandre Pinheiro Torres, lembrando a história de Ruben
A. a quem o poeta, seu amigo e vizinho, ajudou a confeccionar Torre da
Barbela.
"O livro [do Ruben
A.] tinha andado de editora em editora, sem que ninguém o quisesse. Era um
livro de cerca de 800 páginas dactilografadas. Só a massa das páginas
assustava os editores. Começavam a ler e aquilo nunca mais acabava. O Ruben foi
com o original ao O'Neill, à Rua do Jasmim, ao Princípe Real (...) e
pediu-lhe que lhe revisse o livro, que estivesse à vontade, ele pagava-lhe o
que fosse preciso. Passaram várias noites por semana a trabalhar e o Ruben
pagava realmente bem".
As 800 páginas acabaram por se
transformar em 300 e o livro assinado e editado por Ruben A., tinha, na
realidade, sido escrito por Alexandre O'Neill. A história, surpreendente, foi
corroborada pelo próprio José Cardoso Pires – que, em troca de uns cobres,
também deu uma ajuda nos cortes.
"O mesmo veio de resto a
acontecer com a autobiografia de Ruben A., O Mundo À Minha Procura. O
O'Neill trabalhou nela uns dois ou três anos. O Ruben agradece-lhe no prefácio
alguma intervenção. Era o que podia fazer sem dar escândalo. Mais tarde, o
O'Neill desinteressou-se e o Ruben ficou descalço", contou à revista
Ler, no Outono de 1995, o desbocado Alexandre Pinheiro Torres, através de
quem se sabem a maioria das histórias que o poeta queria secretas.
Para assegurar o rendimento mínimo
garantido, O'Neill escreveu em quase todos os jornais e revistas, inclusive em
alguns números da revista Almanaque, cuja redacção, coordenada por
Cardoso Pires, era constituída por Luís Sttau Monteiro, Augusto Abelaira,
Vasco Pulido Valente e Baptista-Bastos. O grafismo estava a cargo de João Abel
Manta. O primeiro número saiu em Outubro de 1959, com o preço de 15 escudos, e
Cardoso Pires definiu assim a nova publicação: "A minha ideia era
fazer uma revista que não respeitasse ninguém e fosse o mais sacana possível
(...) Foi a única publicação em Portugal que atacou a Amália. Fartou-se
de dar porrada numa data de bonzos." Mal sabia Alexandre que, a pedido
da própria fadista, haveria de escrever Gaivota, tema cantado no tom da
pequena dor à portuguesa, a eterna lamúria a que outros chamam destino ou
fatalidade: "Se uma gaivota viesse/ trazer-me o céu de Lisboa / no
desenho que fizesse, /nesse céu onde o olhar / é uma asa que não voa,
/esmorece e cai ao mar." Para se distrair do estéril quotidiano, o
poeta começou a colaborar em diversos programas da RTP e, mesmo "sem
grande engodo pela TV", tornou-se, no início da década de 80, popular
como jurado no concurso Prata da Casa. Programa incómodo, "contínua
pedra no sapato" da televisão pública, esta espécie de jogos sem
fronteiras regionais, apresentada pela dupla Fialho Gouveia-Raul Solnado, nas
noites de sábado, acabou por ser cancelada pela administração presidida por
Proença de Carvalho. Sem grande explicações, através da leitura de um
comunicado no final de um Telejornal. "Não são maneiras que se tenham,
numa sociedade que se quer democrática", havia de comentar Alexandre,
que antes experimentara o cinema como argumentista e intérprete, e, a seguir,
se dedicaria ao teatro. Para o espectáculo Ninguém – que Ricardo Pais
encenou no Teatro da Trindade em Janeiro de 1979 – criou as falas de D.
Sebastião, um discurso sonâmbulo e sibilante, uma fala em "ss",
para uma personagem que quis grotesca, enfiada numa fatiota ridícula, incapaz
de se salvar a si própria quanto mais uma pátria envolta ainda no fumo de
certos nevoeiros políticos.
No ano seguinte é chamado a repuxar "pés-de-galinha” e remover "flacidezes" à tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa, espectáculo inspirado na peça de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, que Carlos Wallenstein e Norberto Barroca encenaram no Teatro de São Luiz. Foi, segundo o então-crítico de teatro, Vítor Pavão dos Santos, actual director do Museu do Teatro, uma mistura de "poeta com cirurgião-plástico" e com "muita leviandade, desenrascou-se, semeando o texto de graças, gracinhas e graçolas". "Não podias ficar nesta cadeira/onde passo o dia burocrático/o dia-a-dia da miséria/que sobe aos olhos vem às mãos/aos sorrisos/ao amor mal soletrado/à estupidez ao desespero/ao medo perfilhado/à alegria sonâmbula à vírgula maníaca/do modo funcionário de viver".
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BIOGRAFIA DO AMOR
O célebre "Há Mar e Mar, Há Ir e Voltar" até consta de um dicionário de provérbios portugueses, mas foi criado, por Alexandre O'Neill, no início dos anos 50, para uma campanha do Instituto de Socorros a Náufragos: "Devia ter ganho uma fortuna. Não ganhei... porque nunca o registei". "Parker preenche em silêncio o seu papel" e "A Segurança Volta Sempre" são dois dos slogans aprovados numa carreira de mais de 30 anos como ‘copywriter’. "Vai de Metro, Satanás!", "Brosh é Bom" e "No colchão Lusospuma não se dá só uma" três exemplos das (reprovadas) irreverências.
"Andei em colégios
particulares, lembro-me quando fui para o Liceu, a partir do 2.º ano, começou
a segregação dos sexos, meninos de um lado, meninas do outro. Uma chatice!".
Típico homem português – moreno, cabelo asa de corvo, olhar triste
acompanhado de uma certa angústia no rosto tão ao agrado das meninas —, cedo
O'Neill começou a conquistar corações, deslumbrando-as com piadas
fulminantes. "Amigas teve ele e muitas. E muitas delas as compartilhámos,
a duas, pelo menos, prometemos ambos casamento, o que era condição sine
qua non para operações militares no terreno", admitiu o indiscreto
Alexandre Pinheiro Torres, que se lembra do rapaz bonito, do brilhante
conversador, vivo e divertido, de quem as raparigas andavam atrás como loucas.
Aos 26 anos, levava ele quatro
anos de aventura surrealista, conhece Nora Mitrani, três anos mais velha. A 12
de Janeiro de 1950, numa conferência organizada pelo Jardim Universitário de
Belas Artes, na Casa das Beiras, apresentam-lhe uma escritora judia de ascendência
búlgara, que subscrevera todos os manifestos do movimento nas décadas de 40 e
50 e assinara colaborações nas várias publicações dirigidas por André
Breton. Alexandre ouve atentamente aquela mulher, de olhos grandes e cabelos
negros curtos, falar sobre A Razão Ardente (do Romantismo ao Surrealismo),
palestra que acabaria por traduzir e ser publicada nos Cadernos Surrealistas.
Entre Nora e Alexandre nasce de
imediato um "amor desmesurado". "Vens, ficas cá e
depois se vê", escreveu-lhe ela de Paris, pedindo-lhe que fosse
continuar a história. "Estava a sofrer pressões inacreditáveis por
parte de alguém da minha família, para não ir atrás da francesa. (...)
A pressão (ou melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma
cunha à polícia política para que o meu passaporte me fosse negado, o que
aconteceu, não sem eu ter sido convocado para a própria sede da polícia e
interrogado pelo sub-inspector Seixas. Perguntou-me o que ia eu fazer a Paris.
Respondi: Turismo", revelou, em 1984, numa crónica do Jornal de
Letras, a que chamou História de um Poema.
O inspector Seixas insistiu,
quis saber se Alexandre conhecia a senhora Nora Mitrani. Afirmativo. O agente da
PIDE retorquiu: "Se calhar você quer ir porque essa gaja lhe meteu
alguma coisa na cachola". Com a serenidade possível, o poeta faz-lhe
saber que se enganava, porque nem Nora era uma gaja nem ele tinha cachola. Uma década
sem passaporte e o mito do amor puro, do amor louco – nunca confundível com o
"sórdido amor mesa-de-família-cama-de-casal" – são o
resultado do embate entre dois especialistas em jogos de palavras.
"A paixão pela Nora era
verdadeira. Mais do que isso: essa foi a verdadeira iniciação sexual do
O'Neill. Ele com ela descobre o sexo e fica doido. Nunca mais parou até morrer.
E em todas as outras mulheres procurou sempre a Nora". Em 1995, no seu
tão característico tom pícaro, o sempre polémico Pinheiro Torres, recordava
um tipo engraçado, um inventor de palavras e piadas eléctricas: "Onde
chegava conseguia pôr toda a gente a rir. Teve, aliás, a possibilidade de um
casamento riquíssimo na província, e recusou".
Antes de casar com a realizadora
Noémia Delgado – quando tinha 33 anos – , O'Neill ficou noivo de uma prima
que vivia em Marco de Canaveses. "Muitíssimo rica, esta mulher
adorava-o", revelou também Pinheiro Torres, mas ao jornal Público,
em 1996: "Um dia, o Xana vira-se para mim e disse 'Esta menina não
sabe quem eu sou. Pensa que sou um Vahia de Castro, do solar dos Vahia de Castro
e, se me casar com ela, me estendo no solar e nunca mais faço nada. Mas não
nasci para isso'". Pensou e resolveu a questão em poucos dias. Telefonou
à noiva, convidou-a a visitar Lisboa e mostrou-lhe os sítios que aqui
frequentava, "tudo quanto havia de bar mais baixo..."
Acabou-se o compromisso,
desentenderam-se as famílias e Alexandre foi à sua vida: passeou meninas pelas
Avenidas, comeu petiscos nas tascas, bebeu uns copos para comemorar e continuou
a escrever poemas.
Mais de 40 anos depois,
Alexandre contou que Um Adeus Português, com o qual pela primeira vez
conseguiu alguma notoriedade, não surgiu apenas do amor por Nora Mitrani, mas
serviu também para criticar a vivência no Estado que se dizia Novo: "Era
uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e
mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou
certos, não interessa) (...) Durante algum tempo fiquei conhecido como o
poeta de Um Adeus Português (...) Mas o poema, ingénuo como é, tem
realmente a força do nojo e do desespero combinados com uma contenção
sentimental que nunca mais igualei".
Embora seja, em geral, lido como
um manifesto de resistência ao fascismo, Um Adeus Português – título
usado pelo cineasta João Botelho no filme que realizou em 1985 – é,
simultaneamente, uma declaração de amor à mulher de "olhos altamente
perigosos", vinda da "cidade aventureira", por quem,
como um adolescente, tropeçou de ternura.
Alexandre não voltou a ver Nora
(quando a foi procurar já ela tinha morrido — suicidou-se, em 1961, com 40
anos), porém ela, em carta, mostrara-se "atrozmente comovida"
com o poema. Um ano depois, O'Neill escreve Seis Poemas Confinados à Memória
de Nora Mitrani: "Para ti o tempo já não urge,/ Amiga/ Agora és
Morta (Suicida?) Se eu pudesse dizer-te: —Senta-te aqui/ nos meus joelhos,
deixa-me alisar-te,/ Ó amável bichinho, o pêlo fino".
Nessa altura, em 1961, já
acabara o matrimónio com Noémia Delgado, assistente de montagem de Manoel de
Oliveira em O Passado e o Presente, e em Mudar de Vida, de Paulo
Rocha. Casaram a 27 de Dezembro de 1957 e foram morar para a Rua do Jasmim –
"Rua do Jasmim, anda, diz que sim!/ —É o do terceiro, nunca tem
dinheiro..." –, rompendo-se de vez as idas e vindas de O'Neill a casa
dos pais. Dois anos depois, a 23 de Dezembro de 59, nasce o filho do casal,
Alexandre Delgado O'Neill, que morreu pouco depois do pai.
Noémia e Alexandre só se
divorciam a 15 de Janeiro de 1971 mas, durante a década de 60, ele mantém uma
ligação com Pamela Einichen Pinheiro. O que não o impede de, em Novembro
de 1962, pedir ao amigo Pires (Cardoso Pires), em forma de verso, "uma
miúda/ com toque de Chiado ou de Grandella/ Às nove e duas pernas da manhã,/
que, como o peixe, tesa de frescura, tenha perdido a escama de donzela/ mas não
venha falar-me do Vailland..." [Roger Vailland, escritor francês].
A 4 de Agosto de 1971 (tem ele
48 anos), casa com Teresa Gouveia (de 25 anos), na presença de Antonio
Tabucchi, testemunha e padrinho da deslocação ao registo civil. No início da
década, o escritor italiano vem a Lisboa encontrar-se com intelectuais
portugueses, bate à porta de Alexandre e ele, com o seu à-vontade de sempre, não
quer saber quem é nem ao que vem, limita-se a convidá-lo a entrar para comer
umas sardinhas em conserva. Durante anos, tal como sempre fizera com outros
amigos, correram juntos as ruas de Lisboa, "a desnalgar as fêmeas
("Vist'? Viii!)".
Alexandre, que definia a
libertinagem como a "liberdade com garagem", considerava a cabeça
a zona mais erótica da mulher e o sexo uma coisa que se "devia
usar, mas que, normalmente, se abusa". "No amor? No amor crê
(ou não fosse ele O'Neill!)/ e tem a veleidade de o saber fazer/ (pois amor não
há feito) das maneiras mil/ que são a semovente estátua do prazer".
Conta-se que, no dia em que conheceu uma das suas mulheres, após um jantar de
grupo, lhe terá dito: "Ó prima, quer vir comer uns queijinhos frescos
a minha casa?". A resposta foi afirmativa. Casaram meses depois, sem
direito a copo-de-água.
O segundo divórcio é assinado
a 20 de Fevereiro de 1981. O segundo filho, Afonso, nasce a 28 de Maio de 1976.
"O amor é o amor – e depois? Vamos ficar os dois/ a imaginar, a
imaginar?... O meu peito contra o teu peito/ cortando o mar, cortando o ar./ Num
leito há todo o espaço para amar! Na nossa carne estamos sem destino, sem
medo, sem pudor, e trocamos – somos um? somos dois? – espírito e calor! O
amor é o amor – e depois?".
Entre 1980-86 O'Neill viveu mais uma paixão, a última, com a professora Laurinda Bom, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. "Está só?", perguntou-lhe na década de 80 o encenador checo Jorge Listopad. "Nunca. Sempre", respondeu, para prosseguir num jeito moralista, próprio de alguém que reflectiu sobre um assunto durante décadas e pôde, finalmente, chegar a uma conclusão: "Compreendi que com as mulheres não se pode viver sempre, amando-as todos os dias. Duas vezes por semana. Só assim dá certo". "Sabedoria?", provocou o interlocutor. "Prática", sentenciou este "diabo à solta", um homem que escrevia melhor entre amores, gostava de ovos cozidos, passarinhos e, quando lhe dava para rir, batia com os pés no chão compassadamente. Precisava de pouco para ser feliz: dormir, ler, estar com os amigos e sentar-se ao sol na sua casa de Constância, o seu último grande amor.
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Textos recolhidos de www.ajanela.com (ao cuidado de Anabela Mota Ribeiro), onde não tinham indicação de autor.
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(*) 23-3-2002 - Nos últimos dias, esta página teve mais de 240 clicks, à procura de "Sigamos o cherne". Por isso, aqui fica a poesia:
SIGAMOS O CHERNE
(Depois de ver o filme “O Mundo do Silêncio”, de
Jacques-Yves Cousteau)
Sigamos o cherne, minha Amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria..."
Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa do passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado…
Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa…
No Reino da Dinamarca, 1958