ALEXANDRE O'NEILL

 

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    TOMAI LÁ, DO O’NEILL...

 

 

 

"A poesia é a vida? Pois claro! Conforme a vida que se tem o verso vem – e se a vida é vidinha, já não há poesia/ que resista (...) A poesia é a vida? Pois claro!/ Embora custe caro, muito caro, e a morte se meta de permeio".

 

Isto de morrer não pode fazer parte do programa de ninguém. Ainda menos dos poetas, sejam ou não surrealistas. Durante anos, Alexandre O' Neill fez caretas à morte, abrindo a boca num sorriso de escárnio, deitando a língua de fora, enfrentando-a. Em 1976, ela respondeu com uma pontada fulminante, quase fatal, no coração, e a panne provocou  umas tréguas, uma rendição temporária, uma obediência cega às ordens médicas. Não pode... não pode... não pode. O poeta que sempre tropeçou de ternura estava proibido até de sentir o vento no rosto. O clínico impediu-o de caminhar contra o vento, forma categórica de dizer que era melhor conformar-se, tomar cuidado, ou então...

"Quando se está com uma panne cardíaca, o universo míngua e um sujeito desliga. Passa para a categoria do bom doente para salvar o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhes enfiem os que são para algum vizinho... De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta para casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Até que um dia se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras."

A citação é retirada de uma entrevista dada, em 1982, ao Jornal de Letras. Uma extensa e sabora conversa em que o entrevistador, Fernando Assis Pacheco, descreve O'Neill como um tipo que, "por ser vítima de nervos miudinhos, sempre se gastou à velocidade de um fósforo", e acabou por se "(en)fartar na Unidade de Cuidados Intensivos de Santa Maria a reparar avarias cardíacas". 

Depois da panne, Alexandre deixou de correr atrás de miragens porque – como dizia usando a ironia e o sarcasmo tão seus característicos – nem sequer podia correr: "Tenho uma ligeira oscilação quando ando, até uso uma bengala". O novo artefacto obrigava-o a olhar para o chão em vez de enfrentar os olhares femininos de frente, olhos-nos-óculos, como sempre fizera, à procura delas, à espera do amor delas. Não se tornara conformista, isso nunca, pois continuava a luta de sempre contra a mediocridade, a vulgaridade e a santa vidinha de todos os dias.

Nos últimos anos perdera-se das vidas. "Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja, / que o absurdo, mesmo em curtas doses, / defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!". Não ia a lançamentos de livros nem a declamações públicas, esquivava-se a tertúlias e a serões que não fossem caseiros, não aparecia em festas, recusava escrever em jornais e desistira de aparecer na televisão. Continuava a "fazer poesia", alheando-se das "coisas inutilmente cansativas". Voluntariamente, remetera-se para a segunda linha dos intelectuais portugueses sem, no entanto, se opor ao "establishment literário". O poder quis, inclusive, homenageá-lo com a Ordem de Santiago e Espada. Por escrito, Alexandre declinou tão honrosa oferta, desculpou-se, dizendo que se havia uma dívida entre ele e o país, era ele quem devia. "Sou contra. Foi a forma mais simpática de dizer não", acabou por confessar anos depois, numa entrevista, que revela um homem desiludido com a vida, "esses raros bons momentos intercalados na chatice diária".

Tudo lhe era proibido. Só podia beber um copo de vinho por dia (branco ou tinto era indiferente), coisa custosa de aceitar para uma pessoa que, em outros tempos, "bebia normalmente", ou seja, antes, durante e depois das refeições. E os cigarros, Doutor? Dentro dos maços, à venda nas tabacaria foi a insensível resposta clínica, o diagnóstico impedioso de quem, por certo, não passou anos a fumar  milhares de cigarrinhos até ao filtro. Para se acalmar.

Alexandre passou a dedicar os dias ao vício da escrita, entregue a uma solidão melancólica, um estado que misturava revolta e indiferença porque sentia a morte infiltrar-se "muito antes da chegada do caixão": "Estou a morrer devagarinho, eu que sempre fiz as coisas depressa".

Ele, a quem chamaram pessoa da noite, ele que gostava de petiscos a desoras e de ir ao bacalhau com grão na Ribeira lisboeta de madrugada, confessava ser "mais a fama do que outra coisa". Ele, a quem apelidaram de boémio e de quem José Cardoso Pires disse "ser capaz de estar catorze dias e catorze noites sentado a um café", reconhecia não sacrificar um jantar com um amigo à urgência de um soneto. Sophia de Mello Breyner Andresen leu o manuscrito de Contos Exemplares na sua sala-de-estar, esperando ansiosa a opinião do crítico feroz, do leitor atento, sempre pronto a recomendar este ou aquele autor, este ou aquele título. Herberto Helder sujeitou-se a igual exame com Os Passos em Volta. Outros, escritores-pintores-poetas,  iam lá a casa – Rua da Escola Politécnica, n.º 48 – 2.º andar – só para o ouvirem dizer, com a dicção de um diseur profissional, versos de Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto (O' Neill gravou dois discos e insurgiu-se, repetidamente, contra aqueles que, na televisão, tratavam os versos como epitáfios e os liam em tom fúnebre, associando a poesia portuguesa aos velórios e assassinando sem piedade os poetas nacionais).

Nos últimos anos perdeu-se deles, dos amigos, – zangou-se, entre outros, com Cardoso Pires, Manuel da Fonseca e Alexandre Pinheiro Torres. Restaram-lhe apenas um ou dois, os únicos que cortavam a solidão da casa do Príncipe Real, que antes partilhara com a sua última companheira, a professora universitária Laurinda Bom. "Às vezes está-se sozinho porque se quer e isso pode dar um bom monólogo, uma meditação. O chato de viver só é que, às vezes, vou até ao barbeiro da esquina só para falar com alguém", confessou Alexandre, que conhecia os "cuidados" a tomar para adiar o envelhecimento. Mas às precauções preferiu o conhaque (ou as célebres "velhinhas", como chamava à tão especial aguardente velha).

Não parecia arrependido, ele que, aos 30 anos, "despachou" o seu epitáfio: "Aqui jaz Alexandre O'Neill/ Um homem que dormiu muito pouco/ Bem merecia isto". A morte, "a fuga definitiva a todas as chatices", não lhe metia medo, antes curiosidade, desejo de saber como "vai tudo isto desfechar". Deus, "esse chato que ressona", era apenas um nome, pois graças às doses excessivas de catequese, O' Neill era incapaz até de se declarar ateu, de se definir perante qualquer crença religiosa. Fezadas, sim, hipocrisias, não.

"Se não fui eu quem veio no jornal,/ foi uma tosse a menos na cidade... (...) Um crocitar de corvo fica bem/ neste anúncio de morte para alguém/ que não vê n'alheia sorte a própria sorte". A 9 de Abril de 1986 entra pela urgência do Hospital de Santa Cruz, com sérios problemas cardiovasculares. Confrontado com a "morte, esse lugar-comum", desata num frémito enlouquecedor, escrevendo gatafunhos para mais tarde alguém decifrar, tentando através do papel dizer tudo o que a voz calara. "Muito desgosto te espreita/ ao longo da tua vida,/ mas a vara está direita: tua missão foi cumprida". Agostinho Gericota, João Pulido Valente e António Alçada Baptista são os únicos amigos cuja presença reclama. A 19 de Julho é transferido para o Hospital Egas Moniz, devido a um surrealista surto de salmonelas na enfermaria da unidade de Carnaxide onde se encontrava.

"Quem? O infinito?/ Diz-lhe que entre./ Faz bem ao infinito/ estar entre gente". Morre, no dia 21 de Agosto, ao fim de cinco meses de internamento. O funeral, civil, depositou na manhã seguinte o corpo no Cemitério de Benfica. "Olha, Alexandre, a noite passada a tua mosca Albertina veio masquetear-me o ouvido: que tinhas ido desta para pior; o que não é de admirar vais ler a 'costumeira nacional' está descansado. Agora, é só seguir o cherne (*), meu amigo. De ti pouco se sabia e ainda bem". Palavras do poeta Luís Pignatelli num bilhete postal publicado na imprensa. "Às duas por três nascemos/ às duas por três morremos/ E a vida? Não a vivemos./ Querer viver (deixai-nos rir)/ seria muito exigir".

 

 

 

"Se não fui eu quem veio no jornal,/ foi uma tosse a menos na cidade... (...) Um crocitar de corvo fica bem/ neste anúncio de morte para alguém/ que não vê n'alheia sorte a própria sorte". Alexandre O'Neill morreu, no dia 21 de Agosto de 1986, ao fim de cinco meses de internamento. Durante anos fez caretas à morte, abrindo a boca num sorriso de escárnio, enfrentando-a. Em 1976, ela respondeu-lhe com uma pontada fulminante, quase fatal, no coração. Após uma década de trégua regressou para a estocada final: "Quem? O infinito?/ Diz-lhe que entre./ Faz bem ao infinito/ estar entre gente".

"Sei muito bem que a biografia/ explica muita coisa (até a azia!)".

 

MARINHEIRO, COM OS PÉS NO AR

  "A minha vida, lisa, aplastrada, chata como tem transcorrido, só pode ser inventada. E, seguramente, foi assim que eu passei a vida: a inventá-la". Lisboeta com nome de aristocrata irlandês, Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões nasceu a 19 de Dezembro de 1924, na Avenida Fontes Pereira de Melo. "Há prài 150 anos uns irlandeses fugiram para Portugal. Acho que eram católicos perseguidos...".  

Estava a falar verdade. Shane O'Neill chegou a Lisboa, em 1736, e por cá deixou uma ilustre descendência sempre ligada à monarquia, um grupo de aventureiros tal que, em 30 gerações de O'Neill's, nunca um único morreu de morte natural. Era pelo menos esta a história que Alexandre vendia a quem nela quisesse acreditar, uma versão que incluía a apresentação da avó materna, Maria – poetisa, republicana, sufragista, escritora de romances e livros infantis. Sucumbira, em 1933, em pleno Atlântico, próximo de Cabo Verde. De ataque cardíaco.

A filha, Maria da Graça, a típica aristocrata rural de dote elevado, maneiras delicadas e severo carácter, teve o seu segundo filho, Alexandre, aos 19 anos, depois de, no ano anterior, ter nascido Maria Amélia ----– os dois únicos descendentes de um fidalgote lisboeta que se dizia descendente de Santo António. "Continuo a aguentar a lenda e a afirmar que, devido ao Bulhões, sou parente do Santinho, o que me dá uma certa audiência junto das devotas (...) Houve um especialista em halografia, e em particular em Sto. António, que me contou, para grande desgosto meu, que essa do santo se chamar Bulhões era uma grande lenda".

Em criança, "era um chato, uma tristeza". Filho de gente que não o deixava sair à rua, Alexandre era um miúdo fechado que passava muito tempo à janela, na casa que dividia com os pais. "É curioso porque morava na Rua da Alegria, o que me provocava um enorme sentimento de tristeza, quando via subir as carroças, com os trabalhadores de aspecto cansado...".  O espectáculo das pessoas interessou-lhe desde sempre e as rugas vincadas que tinha na testa comprovam anos a tentar focar os pequenos olhos míopes em tudo o que à sua volta mexia.

Mais tarde havia de descrever a infância, que não conseguia chamar feliz nem rotular de infeliz, como um tempo cinzento, sem relevo, que se escondia por detrás de outros tempos, mais coloridos de emoções. Jogou berlinde, jogou pião e entre os seis e os 17 anos passou os Verões em Amarante, terra natal da mãe e de um tio-advogado, José Vahia, que o acompanhará em grandes passeios pela região do Douro e lhe lerá a poesia de Guerra Junqueiro.

 "Aos 12 anos, o Xana andava de calção, com uma espingarda de pressão de ar na mão e íamos juntos aos pardais". O escritor Alexandre Pinheiro Torres vivia na Póvoa de Varzim e voltava à terra natal, só no tempo do calor, para encontrar o amigo que conhecera em 1937, um ano depois de Alexandre ter sido obrigado a inscrever-se na Mocidade Portuguesa. Por volta de 1942/3, tinha 18 ou 19 anos, o projecto de poeta conheceu um poeta com projecto: Teixeira de Pascoaes. Sentou-se numa roda de ouvintes passivos no Café Central (conhecido como o café do Belchior), em pleno centro da vila, e seguia-lhe os passos de volta ao Solar do Gatão, que Pascoaes ocupava. "Tentando cuspir como ele, macaqueando-lhe os maneirismos", contará Pinheiro Torres no seu estilo habitual, divertido, numa crónica escrita no Jornal de Letras, onde recordava que, anos mais tarde, quando já era aluno da Universidade do Porto, introduziu o amigo na literatura italiana: leu-lhe "Il fuoco", de Gabriele D' Annunzio. Por seu lado, Xana introduziu-o noutras artes. Na da sedução feminina, por exemplo.

O afastamento entre os dois inseparáveis amigos de infância, dá-se anos mais tarde e é provocado pela crítica severa que o autor de Espingardas e Música Clássica escreverá na revista Seara Nova a propósito de um prefácio que O'Neill dedicou à obra completa de Nicolau Tolentino. "Ele ficou doido, ficou furiosíssimo e disse-me: 'Tu agora não falas comigo durante cinco anos'. E eu: 'Não, ó Alexandre, estás enganado, hão-de ser dez'. E ele: 'Também está bem'. Pois olhe foram quinze". Alexandre e Xana encontrar-se-iam, por acaso, na Rua da Escola Politécnica, já o segundo estava "próximo de ir desta para melhor".

Aos 15 anos, O' Neill começa a ler Júlio Verne, a escrever versos e... chumba a Matemática (após aulas particulares passará o exame final do  no 3.º ano liceal com 19 valores). Aos 18, publica no jornal de Amarante, A Flor do Tâmega – onde também escreveram Pascoaes e Agustina Bessa-Luís –, os seus primeiros três poemas. "A minha mãe quando apanhava um poema meu – melhor será dizer versinhos – rasgava-o logo. Provavelmente com a intenção caritativa de fazer de mim o oitavo advogado da família dela, de me transformar num causídico, como se dizia lá por casa". Um dos seus professores, António Dias Miguel, relembra um rapaz alegre, com alguns períodos de introspecção, um instável emocional: "Tinha uma tendência enorme para zombar de tudo, para pôr tudo em xeque".

Após novo chumbo no liceu vai para a Escola Náutica, com aspirações a piloto, por achar "um modo simpático de vida". Pediram que nadasse, ele nadou. Não lhe pediram mais nada e ele entrou na sala de aulas. Durante as férias do 1.º ano dirige-se à Capitania do Porto de Lisboa para requerer a cédula marítima de praticante de piloto e acaba-se logo ali a vocação. "Eles disseram-me: nem pense nisso, você tem uma miopia desgraçada”.

"Eu nasci para marinheiro/ mas pus óculos e fiquei em terra", escreveu o reconhecido "caixadóclos", imagem que o marcou desde sempre e o obrigou a andar em terra sempre com os pés no ar (outros dirão que era apenas distraído). Regressou então à escola para fazer, como aluno externo, o Curso Complementar de Letras. Embora já frequentasse os meandros literários lisboetas, com presença certa nos famosos "Jantares Dos Dias 13", organizados na Esplanada do Rato, na Rua de S. Filipe Nery, onde, entre outros, conheceu Adolfo Casais Monteiro, Rui Cinaty (seu amigo de muitos anos) e Almada Negreiros. Aos 18 anos trocou as aulas pelas leitarias e as tertúlias substituem as teorias dos encartados professores.

 

 

 

Lisboeta com nome de aristocrata irlandês, Alexandre dizia-se descendente de católicos perseguidos e de santos casamenteiros. Filho de gente que não o deixava sair à rua, era, em criança, "um chato, uma tristeza". Aos 12 anos, andava de calção, com uma espingarda de pressão de ar na mão a matar pardais nos arrabaldes de Amararante ou a imitar os trejeitos do poeta Teixeira de Pascoaes (seu vizinho nas longas férias de Verão). Mais tarde, quis ser marinheiro, mas obrigaram-no a usar óculos e a miopia deixa-o para sempre em terra. "A minha vida, lisa, aplastrada, chata como tem transcorrido, só pode ser inventada. E, seguramente, foi assim que eu passei a vida: a inventá-la".

  "A mosca Albertina, que ele domesticava. / Vem agora ao papel, como um insecto-insulto, / Mas fingindo que o poeta a esperava.../ Quase mulher e muito mosca, / Albertina quer o poeta para si, / Quer sem versos o poeta. / Por isso fica, mosca-mulher, por ali..."

   

OSSOS DO OFÍCIO

Coleccionava ossos como outros coleccionam selos. Amontoava-os no quarto, no meio de outros objectos igualmente insólitos, provocando a indignação familiar, que já não queria um poeta em casa, muito menos um poeta surrealista. Na foto oficial da criação do Grupo Surrealista de Lisboa – tirada num jardim de Campo de Ourique, em 1947 –, Alexandre pegou num dos alvos da ira maternal, colocou-o dentro da manga direita do casaco e, sorridente, mostrou à objectiva... um fémur (seria?).

Tinha apenas 23 anos quando fundou – em conjunto com Mário Cesariny de Vasconcellos, António Pedro, José-Augusto França, Vespeira, Moniz Pereira, António Domingues e Fernando de Azevedo – um movimento inspirado no lançado, em 1924, pelo francês André Breton. Alexandre e Cesariny conheceram-se, dois anos antes, no Café A Cubana, em plena Avenida da República. O maestro Fernando Lopes Graça, que tinha um grupo coral chamado Amizade, ligado aos movimentos juvenis, apresenta-os e os dois começam de imediato a andar pelas colectividades do Barreiro, cantando ideais proibidos pela lei e pela ordem: "Politicamente, claro que era do contra: MUD juvenil".

Poucos meses depois da morte de O'Neill, Cesariny haveria de recordar "o companheiro inesquecível dos anos 45 e seguintes", tempos em que ambos procuraram libertar-se de um "pesadelo chamado realismo-socialista, entre nós denominado neo-realismo". "Foi, aliás, o O'Neill", escreveu no Semanário, "que um dia pôs em cima da mesa, com visível cara de caso, mas sem dizer uma palavra, a História do Surrealismo, de Maurice Nadeau. Já a lera e passava-me a mecha, a ver o que sucederia. O que sucedeu foi o início de uma gritaria tal que ainda hoje se ouve". O encontro aconteceu na Pastelaria Mexicana e inciciava a "infausta, mas à data parecendo maravilhosa, formação do Grupo Surrealista de Lisboa", movimento que Cesariny abandonará logo no ano seguinte, "por conflitos estéticos-ideológicos", juntando-se a António Maria Lisboa e Pedro Oom num grupo dissidente. O poeta e pintor admitiu, nesse depoimento, que, sem O'Neill, não teria havido surrealismo. E relembrou o rapaz, "afável, cordato, fraterno", que, no dia em que se conheceram, entrou numa livraria, percorreu as prateleiras e ofereceu-lhe um livro. Do dramaturgo (Eugene) O'Neill.

Fossem os ossos, as sopas ou a falta de descanso, é um facto que Alexandre já saíra de casa quando se mete nas (atrasadas) aventuras surrealistas portuguesas. Uma manhã tem uma das habituais (e sempre iguais) trocas de palavras com o pai, o emproado empregado bancário José António Pereira d'Eça Infante de Lacerda O'Neill de Bulhões:

— Alexandre, leva o chapéu de chuva.

— Não é preciso, pai. Não chove.

— Chove. Leva o chapéu de chuva.

— Não é preciso, Pai.

— Já te disse para levares o guarda-chuva.

— Não levo o guarda-chuva e nunca mais cá apareço...

Esteve 16 anos sem ver o pai e passou a dividir um atelier numas águas-furtadas de um prédio antigo, na Avenida da Liberdade, com Cesariny e António Domingues. Aí se fizeram, de acordo com o amigo/visitante Cardoso Pires, múltiplas colagens colectivas, algumas das quais foram apresentadas nas primeiras exposições lisboetas dos surrealistas. "Tenho-me dedicado ao desenho automático (...) e vou iniciar a minha fase do escultor... em barro", escreveu a 1 de Outubro de 1947, este jovem tão fraco que o médico receou tuberculoso – "Entre uma refeição e outra penso na próxima", desculpava-se para enganar a fome que passou após abandonar a casa de seus pais.

A estreia literária (se esquecermos os versos publicados no jornal amarantino Flor do Tâmega) acontece nesse mesmo ano, no Mundo Literário, com um poema dedicado à realizadora, Noémia Delgado, sua primeira mulher. Em 1948, aos 24, publica A Ampola Miraculosa, poema gráfico, história contada em poucas páginas e construída à volta de gravuras de antigos manuais de Física.

"O nosso surrealismo era reacção ao neo-realismo da época, uma chateza", afirmou, nos anos 80, o poeta que, logo no primeiro livro –Tempo de Fantasmas (1951) – se demarca de uma aventura "reduzida às alegres actividades de dois ou três incorrigíveis pequenos aventureiros". Por ser um dos protagonistas, Alexandre tinha dificuldade em definir o movimento que ajudara a criar e chamava-lhe "tardo-romantismo".

"Eu, talvez nunca tenha sido um poeta surrealista (...) prefiro o dizer ao imaginar e isso talvez explique tudo. Suponho que hoje, em dia, não tenho nada a ver com um movimento que está gloriosamente empalhado", confessou, admitindo, no entanto, uma certa tendência para o absurdo e uma desarticulação do discurso. Alexandre até gostava do neo-realista João Cochofel, mas ao falar dele a conversa não terminava sem uma piada. "Na altura dizia-se que quando chegasse a revolução, ele mandava chamar a criada e gritava 'Maria traz a bomba' e esta ataviada em rendas, pegava na bandeja de prata e aprontava-se a obedecer ao seu senhor".

 

       Casamento com Teresa Patrício Gouveia em 4-8-71. Testemunha, António Tabucchi.

 

Tem apenas 23 anos quando com Mário Cesariny de Vasconcellos, António Pedro, José-Augusto França e Vespeira funda o Grupo Surrealista de Lisboa. "O nosso surrealismo era reacção ao neo-realismo da época, uma chateza", afirmou, nos anos 80, o poeta que, logo no primeiro livro - Tempo de Fantasmas (1951) - se demarca de uma aventura "reduzida às alegres actividades de dois ou três incorrigíveis pequenos aventureiros". Na foto oficial - tirada num jardim de Campo de Ourique, em 1947 -, Alexandre pegou num osso, colocou-o dentro da manga direita do casaco e, sorridente, mostrou-o à objectiva..

"Sigamos o cherne  (*), minha Amiga!/ Desçamos ao fundo do desejo/Atrás de muito mais que a fantasia/ E aceitemos, até, do cherne um beijo, Senão já com amor, com alegria..."

 

SIGAMOS O CHERNE

  Alexandre não sabia porque escrevia assim. Por que é que insistia na ironia, no sarcasmo, nos constantes jogos de palavras. Se calhar, disse um dia – provavelmente farto da persistência jornalística –, era para tornar as coisas menos importantes, mesmo as fundamentais: as da vida. Talvez por isso é que, sem qualquer pejo, nos mandava seguir o cherne – e sem ele o cherne não teria um gosto tão irreverente – para esquecermos que, no fundo, "não somos mais que solidão e mágoa".

"O adjectivo/ dá-me de comer./ Se não fora ele/ o que houvera de ser? Vivo de acrescentar às coisas/ o que elas não são./ Mas é por cálculo,/ não por ilusão". Os leitores e os críticos – "uns chatos" – achavam-no um poeta engraçado. Alexandre estava consciente que era preciso dessacralizar a poesia (e o país), porque, como insistia, "a sisudez é muito chata?". Naturalmente odiava a catalogação, não gostava que lhe chamassem poeta satírico e irritava-se ao ponto de ficar colérico quando se ouvia definido como um "blagueur", um tipo com graça: "As pessoas tendem a ver em mim um fabricante de piadas, mesmo quando alguns dos meus poemas são profundamente sérios", desabafava, consciente que a sua graça era amarga, era a tristeza contentinha daqueles que, apesar de "funcionarem no reino do riso, do humor, são todos muito tristes".

Embora ele próprio, às vezes, se sentisse um "perfilhado do medo" e soubesse que "a vida sem viver é mais segura", jamais deixou de apontar o dedo à feira cabisbaixa que era o Portugal salazarento, essa patriazinha iletrada, esse país todo o ano engravatado, a embezerrar que bem o merecia: "Sempre sofri Portugal, tanto no sentido de não o suportar como no de o amar-sem-esperança", disse já na década de 80.

Na de 60, recusou render-se ao medo ("Penso no que o medo vai ter e tenho medo/ que é justamente/ o que o medo quer"). Inquietou-se com este Portugal, remorso de sempre, questão permanente consigo mesmo. Mesmo depois da euforia da Revolução: "O 25 de Abril libertou-nos da mediocridade do fascismo e do bota-de-elástico do Salazar. O que não quer dizer que não estejamos a cair noutro erro. O 25 de Novembro foi o regresso a um certo bom senso. Aliás, suponho que os comunistas pensam o mesmo. Eu cá não gosto é de atropelos, sejam à esquerda ou à direita".

Homem de "fezadas", O'Neill inclinou-se para o PS, "com todos os seus defeitos", e até fez um "slogan" de campanha, elucidativa das suas dúvidas: "Ele não merece, mas vota no PS". Comunismo? Na prática, durante umas férias passadas na Jugoslávia, achou-o uma desilusão: "Sou contra as sociedades fechadas como a União Soviética. Sou abertamente contra esse sistema concentracionário. Antes quero morrer em situação de miséria, numa escada de um prédio em Nova Iorque, do que morrer num hospital psiquiátrico na União Soviética. Não tenho pejo nenhum em o dizer."

Uma declaração polémica, proferida numa altura em que a maioria dos intelectuais portugueses militava no Partido Comunista. O' Neill apoiou a recandidatura de Ramalho Eanes, mas também assinou com 300 outros escritores, em 1985, um manifesto contra uma candidatura militar. Desmentiu um eventual (e anunciado) voto em Salgado Zenha e votou Mário Soares, nas eleições de Janeiro de 1986. Confiava no político, não no partido que representava: "Já não vou nessa do... mal menor".

Frontal na conversa quotidiana, O'Neill estava sempre a fazer jogos de palavras e a inventar associações de ideias, como se quisesse aliciar os ouvintes com truques de linguagem, os mesmos que usava na publicidade e espalhou em alguns dos seus poemas. "A vida não é de abrolhos./ É de abr'olhos./ A vida não é de escolhos./ É de escolhas". Escrevia esporadicamente, mas de vez em quando dava-lhe uma febre (os detalhes seguintes impedem que se use o termo inspiração) e desatava a arrumar a secretária (sempre um caos), a despejar cinzeiros, desesperado para se sentar na Olivetti, a companheira máquina de escrever de teclado nacional – "a vida em HCESAR é mais rica de sentido do que a vida em AZERT" era uma convicção.

Trabalhar, precisava de trabalhar, dizia, enquanto se mexia sem rumo, num nervoso inexplicável, que terminava geralmente numa desistência: "Olha, vamos ali beber uma mosca. Descíamos umas escadinhas e eram ovos cozidos, ginginhas, aguardentes e pastéis de bacalhau", contou Alexandre Pinheiro Torres, num perfil feito pelo Público, para assinalar o décimo aniversário da morte de O'Neill que, num poema dedicado ao amigo, confessou: "Muito deve a literatura ao absinto/ Em qualidade, muito mais do que ao tinto... Ó Alexandre, manda-me absinto na volta do correio, que eu já sinto, com tanto vinho, estancar-se-me o veio".

O vício da escrita obrigava-o a ter consciência da dificuldade do ofício. A gestação era rápida, fazia um poema em 2 ou 3 dias, escrevia-os em papelinhos que guardava na pasta das reservas poéticas, a que só voltava de longe a longe para ver "se aguentaram ou não". "Remancha, poeta, Remancha e desmancha/ O teu belo plano/ De escrever p'la certa./ Não há "p'la certa", poeta!".

Com o passar dos anos refinou a exigência, a minúcia do trabalho, o "desatavio voluntário" para tentar criar os tais poemas privilegiados, aqueles "que correm bem e emocionam": "É um processo lento dizer uma coisa. Primeiro faço na cabeça e então é que escrevo". Não tinha método ou disciplina, era fazer, guardar e esquecer. "Só depois do pousio, faço as modificações, o tal ofício de marceneiro para usar uma imagem gasta". As ideias surgiam-lhe até a dormir: "Às vezes levanto-me a meio da noite para ir ao papel, com medo de me esquecer no dia seguinte".

"Vamos lá a ser modestos. A grande, a boa poesia, percebe-se logo", afirmou "o grande poeta menor" – a definição é do próprio –, consciente que, entre a "meia-dúzia" dos bons, dos mesmos bons, estavam versos que "nem para atacadores" davam. "Acaba mal o teu verso/ mas fá-lo com um desígnio:/ é um mal que não é um mal,/ é lutar contra o bonito". "Cão", "Portugal" e "A Vazia Sandália de S. Francisco" eram os favoritos; "Adeus Português", sabia, "o melhor de todos".

Portugal, um país de poetas? A frase-feita nunca fez sentido para Alexandre, que só a considerava correcta se se identificassem os poetas com os distraídos: "Lá que somos um país de lunáticos somos". A mesma pergunta mereceu resposta diferente noutra entrevista: "Não acredito que exista uma poesia portuguesa, há é poetas portugueses". Para ele, Cesariny era o maior dos vivos, "mas ele nunca foi surrealista: foi sempre só-realista". Preferia o "grande" Cesário Verde ao "chato" Pessoa ("que nem sequer sabia que a alface se deve comer com coentros") e admitia a sua dependência dos brasileiros Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Camilo Castelo Branco era uma paixão permanentemente rejuvenescida – pelo menos para ele que, por preguiça, ou insegurança, jamais publicou o romance que só tentou. "Escrever é... uma mania. A não ser aqueles escritores com banca montada há muitíssimos anos e que têm de fazer a obra deles. Aí, já passa a negócio de papelaria. A pessoa escreve sem saber porquê. Uns, dizem que sentem um formigueiro na mão ou na alma. Não interessa. É sempre uma necessidade quase física".

Em 1982, desafiado por Vasco Graça Moura, condensa 30 anos de escrita dispersa em nove livros – do Tempo de Fantasmas (1951) a As Horas Já de Números Vestidas (1981) – no volume Poesias Completas. "Para dizer a verdade estava farto de tudo o que tinha escrito, farto de conviver com que o vinham fazendo", afirmou antes de ser distinguido, ex-aqueo, com o Prémio do Clube Português da Associação Internacional de Críticos Literários desse ano. Dividiu os cem contos com Mário Dionísio, que acabara de publicar Terceira Idade”.

Embora nunca tenha sido um poeta na moda e de modas (edições reduzidas para leitores seleccionados), os três mil exemplares da edição esgotaram-se num ápice. "Iam à procura das piadas. Lamento: são capazes de terem tido uma desilusão". A 2ª edição sai em Agosto de 1984 e acrescenta 19 poemas. Foram os últimos que escreveu e viu editados. Morreu antes do Círculo de Leitores lançar Tomai Lá do O'Neill – Uma Antologia, título escolhido pelo próprio na cama do hospital. "Não sei se a minha poesia ultrapassará este século, é uma poesia de curto prazo (...) Mas, de um modo geral, o balanço é positivo. Acho que valeu a pena". Escrever bem, disse, é escrever de tal forma que o que fica escrito se torna independente da biografia do autor.  Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?. Alexandre O' Neill - Poesias Completas, com a chancela da Assírio & Alvim, ajuda a tirar hipotéticas dúvidas sobre a qualidade deste poeta. Maior.

 

 

Alexandre não sabia porque escrevia assim. Por que é que insistia na ironia, no sarcasmo, nos constantes jogos de palavras. Se calhar, disse um dia - provavelmente farto da persistência jornalística -, era para tornar as coisas menos importantes, mesmo as fundamentais: as da vida. "Vamos lá a ser modestos. A grande, a boa poesia, percebe-se logo", afirmou "o grande poeta menor" - a definição é do próprio -, consciente que, entre a "meia-dúzia" dos bons, dos mesmos bons, estavam versos que "nem para atacadores" davam. Cão, Portugal e A Vazia Sandália de S. Francisco eram os favoritos; Adeus Português, sabia, "o melhor de todos".   

O MODO FUNCIONÁRIO DE VIVER

  "Quando o burocrata trabalha é pior do que quando destrabalha/Antes quero esperar que discuta toda a bola ou pedal que tem para discutir/com os destrabalhadores dos seus colegas; /antes quero esperar pelo 'meu' burocrata/do que ter a desilusão de o ver trabalhar para mim mal eu chegue".

  Não conseguia explicar como fora parar à publicidade, fizera-se aprendiz de copywriter por ser uma maneira pouco trabalhosa de ganhar o sustento de cada dia. A verdade é que, em 1952, por se recusar a usar gravata preta no dia da morte do marechal Carmona é posto sob "vigilância especial" na secção de Arquivo e Expedição de Correspondência, da Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio. Nomes pomposos para enquadrar o jovem escriturário de 3ª classe, que, durante seis anos, sentado à secretária, a troco de 600 escudos mensais, assegurou o expediente, enquanto sonhava versos à espera da hora de ir picar o ponto para um lugar mais agradável.

A demissão compulsiva da Função Pública, aliada ao facto de José Cardoso Pires – autor da frase "A camisa do homem que a mulher prefere" – o ter apresentado ao então director da Cinédia altera-lhe o destino burocrático. "Alexandre O'Neill, o maior poeta português vivo" era assim que, orgulhoso, o patrão, Galveia Rodrigues, apresentava aos clientes o seu novo empregado. Na década de 60 começa uma carreira de mais de 30 anos, com passagem por quase todas as grandes empresas de publicidade, da Publicis à McCann Erickson, acabando na Publinter. De resto, O' Neill que sempre se descreveu como um autodidacta da poesia, orgulhava-se de ter criado slogans que se tornaram provérbios e cuja autoria muitos atribuem à sabedoria popular.

O célebre "Há Mar e Mar, Há Ir e Voltar" consta até de um dicionário de provérbios portugueses, mas foi criado, por ele, no início dos anos 50, para uma campanha do Instituto de Socorros a Náufragos: "Devia ter ganho uma fortuna. Não ganhei... porque nunca o registei. Mais uma prova de que nunca penso nas consequências, a não ser quando escrevo".

Fazer slogans dava-lhe tanto gozo como fazer versos. "Só é chato quando o cliente não percebe as nossas intenções. O jeito para o jogo de palavras, para o trocadilho, vive comigo há muito tempo e tem-me prejudicado razoavelmente na poesia, embora agora já esteja melhorzinho", confessou, em 1982, a Assis Pacheco, o autor de frases como "Parker preenche em silêncio o seu papel" e "A Segurança Volta Sempre". Duas das aprovadas. Uma vez, "por brincadeira", propôs que o novo slogan do Metropolitano de Lisboa fosse: "Vai de Metro, Satanás!". O chumbo quase lhe custou o emprego, como aconteceu com o conhecido "Bosh é bom", cujo original – recusado – era "Brosh é Bom". Igual sorte teve o provocador: "No colchão Lusospuma não se dá só uma". O realizador José Fonseca e Costa, que conheceu O'Neill na década de 50, e que deveria filmar o anúncio, assegura que a frase era outra: "No colchão Lusospuma, você dá duas que parecem uma". E contraria uma ideia generalizada: "Ele só trabalhou na publicidade porque precisava dela". Ou seja, necessitava de dinheiro para aguentar a vida de família, "com as contas a pagar os filhos a fazer/ ou a evitar".

Embora recusasse o modo funcionário de viver foi empregado da companhia de seguros Metrópole (secção de Sinistros de Automóveis), um cargo de que se demitiu um ano depois da admissão, alegando um "estado de saúde muito precário" e a "necessidade urgente de repouso absoluto". Mudou-se para a divisão agro-química da Sandoz (de novo) como escriturário (e por lá terá tido um escaldante caso que acabou em escândalo e desacato com o marido traído). "É preciso dizer que o O'Neill nunca tinha dinheiro, gastava o que ganhava na Sandoz em poucos dias", conta Alexandre Pinheiro Torres, lembrando a história de Ruben A. a quem o poeta, seu amigo e vizinho, ajudou a confeccionar Torre da Barbela.

"O livro [do Ruben A.] tinha andado de editora em editora, sem que ninguém o quisesse. Era um livro de cerca de 800 páginas dactilografadas. Só a massa das páginas assustava os editores. Começavam a ler e aquilo nunca mais acabava. O Ruben foi com o original ao O'Neill, à Rua do Jasmim, ao Princípe Real (...) e pediu-lhe que lhe revisse o livro, que estivesse à vontade, ele pagava-lhe o que fosse preciso. Passaram várias noites por semana a trabalhar e o Ruben pagava realmente bem".

As 800 páginas acabaram por se transformar em 300 e o livro assinado e editado por Ruben A., tinha, na realidade, sido escrito por Alexandre O'Neill. A história, surpreendente, foi corroborada pelo próprio José Cardoso Pires – que, em troca de uns cobres, também deu uma ajuda nos cortes.

"O mesmo veio de resto a acontecer com a autobiografia de Ruben A., O Mundo À Minha Procura. O O'Neill trabalhou nela uns dois ou três anos. O Ruben agradece-lhe no prefácio alguma intervenção. Era o que podia fazer sem dar escândalo. Mais tarde, o O'Neill desinteressou-se e o Ruben ficou descalço", contou à revista Ler, no Outono de 1995, o desbocado Alexandre Pinheiro Torres, através de quem se sabem a maioria das histórias que o poeta queria secretas.

Para assegurar o rendimento mínimo garantido, O'Neill escreveu em quase todos os jornais e revistas, inclusive em alguns números da revista Almanaque, cuja redacção, coordenada por Cardoso Pires, era constituída por Luís Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, Vasco Pulido Valente e Baptista-Bastos. O grafismo estava a cargo de João Abel Manta. O primeiro número saiu em Outubro de 1959, com o preço de 15 escudos, e Cardoso Pires definiu assim a nova publicação: "A minha ideia era fazer uma revista que não respeitasse ninguém e fosse o mais sacana possível (...) Foi a única publicação em Portugal que atacou a Amália. Fartou-se de dar porrada numa data de bonzos." Mal sabia Alexandre que, a pedido da própria fadista, haveria de escrever Gaivota, tema cantado no tom da pequena dor à portuguesa, a eterna lamúria a que outros chamam destino ou fatalidade: "Se uma gaivota viesse/ trazer-me o céu de Lisboa / no desenho que fizesse, /nesse céu onde o olhar / é uma asa que não voa, /esmorece e cai ao mar." Para se distrair do estéril quotidiano, o poeta começou a colaborar em diversos programas da RTP e, mesmo "sem grande engodo pela TV", tornou-se, no início da década de 80, popular como jurado no concurso Prata da Casa. Programa incómodo, "contínua pedra no sapato" da televisão pública, esta espécie de jogos sem fronteiras regionais, apresentada pela dupla Fialho Gouveia-Raul Solnado, nas noites de sábado, acabou por ser cancelada pela administração presidida por Proença de Carvalho. Sem grande explicações, através da leitura de um comunicado no final de um Telejornal. "Não são maneiras que se tenham, numa sociedade que se quer democrática", havia de comentar Alexandre, que antes experimentara o cinema como argumentista e intérprete, e, a seguir, se dedicaria ao teatro. Para o espectáculo Ninguém – que Ricardo Pais encenou no Teatro da Trindade em Janeiro de 1979 – criou as falas de D. Sebastião, um discurso sonâmbulo e sibilante, uma fala em "ss", para uma personagem que quis grotesca, enfiada numa fatiota ridícula, incapaz de se salvar a si própria quanto mais uma pátria envolta ainda no fumo de certos nevoeiros políticos.

No ano seguinte é chamado a repuxar "pés-de-galinha” e remover "flacidezes" à tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa, espectáculo inspirado na peça de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, que Carlos Wallenstein e Norberto Barroca encenaram no Teatro de São Luiz. Foi, segundo o então-crítico de teatro, Vítor Pavão dos Santos, actual director do Museu do Teatro, uma mistura de "poeta com cirurgião-plástico" e com "muita leviandade, desenrascou-se, semeando o texto de graças, gracinhas e graçolas". "Não podias ficar nesta cadeira/onde passo o dia burocrático/o dia-a-dia da miséria/que sobe aos olhos vem às mãos/aos sorrisos/ao amor mal soletrado/à estupidez ao desespero/ao medo perfilhado/à alegria sonâmbula à vírgula maníaca/do modo funcionário de viver".

 

 

 

"No amor? No amor cru (ou n‹o fosse ele O'Neill!)/ e tem a veleidade de o saber fazer/ (pois amor não há feito)".Típico homem português - moreno, cabelo asa de corvo, olhar triste acompanhado de uma certa angústia no rosto tão ao agrado das meninas, O'Neill começou cedo a conquistar corações. Aos 11 anos quase é expulso da escola por beijar, sem pudor nem remorso, a virginal Bertilde. "Compreendi que com as mulheres não se pode viver sempre, amando-as todos os dias. Duas vezes por semana. Só assim dá certo". "Sabedoria?", perguntaram ao homem a quem alguns chamaram mulherengo (casou com a realizadora Noémia Delgado e com a deputada Teresa Gouveia) . "Prática", respondeu o autor de Um Adeus Português, poema que revela uma (curta história) de amor, mas esconde uma rocambolesca 'estória' que implica uma visita à PIDE e a apreensão do passaporte.

 

 

BIOGRAFIA DO AMOR

   

O célebre "Há Mar e Mar, Há Ir e Voltar" até consta de um dicionário de provérbios portugueses, mas foi criado, por Alexandre O'Neill, no início dos anos 50, para uma campanha do Instituto de Socorros a Náufragos: "Devia ter ganho uma fortuna. Não ganhei... porque nunca o registei". "Parker preenche em silêncio o seu papel" e "A Segurança Volta Sempre" são dois dos slogans aprovados numa carreira de mais de 30 anos como ‘copywriter’. "Vai de Metro, Satanás!", "Brosh é Bom" e "No colchão Lusospuma não se dá só uma" três exemplos das (reprovadas) irreverências. 

  Diz-lhe que estás ocupado/ a entrevistar-te a ti mesmo/ mesmo porque se não/o pões desde já porta/ fora estás quilhado vai/ espiolhar-te apalpar-te/ meter-te o dedo no cu/querer saber a quantas/ quais mulheres ofereceste/ teu recortado coração (pelo picotado)/ em quantosquais sonetos meteste/ o quatorze e quantas quecas/ te saíram pela ejaculatra"

  Gostava tanto de Bertilde que a beijou. De repente. Zás! Sem consentimento paterno nem aviso prévio. Agarrou-a, colou os seus lábios aos dela e acabou com o recreio. Minutos depois, Alexandre estava fechado no gabinete do director do Colégio Português de Educação Feminina e a envergonhada Bertilde escondia, no bibe, a vermelhidão de um rosto ainda sem qualquer vestígio de pó-de-arroz. Por sua vez, a recatada e conservadora Dona Maria da Graça, tentava desculpar, por detrás de um falso rubor, o descaramento do menino que julgava igual à sua mãe, mas que, com apenas 11 anos, caia no pecado da luxúria. Por amor a Bertilde, naquele ano de 1935, Alexandre O'Neill quase é expulso da escola, acusado de algo a que muito mais tarde se haveria de chamar assédio sexual.

"Andei em colégios particulares, lembro-me quando fui para o Liceu, a partir do 2.º ano, começou a segregação dos sexos, meninos de um lado, meninas do outro. Uma chatice!". Típico homem português – moreno, cabelo asa de corvo, olhar triste acompanhado de uma certa angústia no rosto tão ao agrado das meninas —, cedo O'Neill começou a conquistar corações, deslumbrando-as com piadas fulminantes. "Amigas teve ele e muitas. E muitas delas as compartilhámos, a duas, pelo menos, prometemos ambos casamento, o que era condição sine qua non para operações militares no terreno", admitiu o indiscreto Alexandre Pinheiro Torres, que se lembra do rapaz bonito, do brilhante conversador, vivo e divertido, de quem as raparigas andavam atrás como loucas.

Aos 26 anos, levava ele quatro anos de aventura surrealista, conhece Nora Mitrani, três anos mais velha. A 12 de Janeiro de 1950, numa conferência organizada pelo Jardim Universitário de Belas Artes, na Casa das Beiras, apresentam-lhe uma escritora judia de ascendência búlgara, que subscrevera todos os manifestos do movimento nas décadas de 40 e 50 e assinara colaborações nas várias publicações dirigidas por André Breton. Alexandre ouve atentamente aquela mulher, de olhos grandes e cabelos negros curtos, falar sobre A Razão Ardente (do Romantismo ao Surrealismo), palestra que acabaria por traduzir e ser publicada nos Cadernos Surrealistas.

Entre Nora e Alexandre nasce de imediato um "amor desmesurado". "Vens, ficas cá e depois se vê", escreveu-lhe ela de Paris, pedindo-lhe que fosse continuar a história. "Estava a sofrer pressões inacreditáveis por parte de alguém da minha família, para não ir atrás da francesa. (...) A pressão (ou melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o meu passaporte me fosse negado, o que aconteceu, não sem eu ter sido convocado para a própria sede da polícia e interrogado pelo sub-inspector Seixas. Perguntou-me o que ia eu fazer a Paris. Respondi: Turismo", revelou, em 1984, numa crónica do Jornal de Letras, a que chamou História de um Poema.

O inspector Seixas insistiu, quis saber se Alexandre conhecia a senhora Nora Mitrani. Afirmativo. O agente da PIDE retorquiu: "Se calhar você quer ir porque essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola". Com a serenidade possível, o poeta faz-lhe saber que se enganava, porque nem Nora era uma gaja nem ele tinha cachola. Uma década sem passaporte e o mito do amor puro, do amor louco – nunca confundível com o "sórdido amor mesa-de-família-cama-de-casal" – são o resultado do embate entre dois especialistas em jogos de palavras.

"A paixão pela Nora era verdadeira. Mais do que isso: essa foi a verdadeira iniciação sexual do O'Neill. Ele com ela descobre o sexo e fica doido. Nunca mais parou até morrer. E em todas as outras mulheres procurou sempre a Nora". Em 1995, no seu tão característico tom pícaro, o sempre polémico Pinheiro Torres, recordava um tipo engraçado, um inventor de palavras e piadas eléctricas: "Onde chegava conseguia pôr toda a gente a rir. Teve, aliás, a possibilidade de um casamento riquíssimo na província, e recusou".

Antes de casar com a realizadora Noémia Delgado – quando tinha 33 anos – , O'Neill ficou noivo de uma prima que vivia em Marco de Canaveses. "Muitíssimo rica, esta mulher adorava-o", revelou também Pinheiro Torres, mas ao jornal Público, em 1996: "Um dia, o Xana vira-se para mim e disse 'Esta menina não sabe quem eu sou. Pensa que sou um Vahia de Castro, do solar dos Vahia de Castro e, se me casar com ela, me estendo no solar e nunca mais faço nada. Mas não nasci para isso'". Pensou e resolveu a questão em poucos dias. Telefonou à noiva, convidou-a a visitar Lisboa e mostrou-lhe os sítios que aqui frequentava, "tudo quanto havia de bar mais baixo..."

Acabou-se o compromisso, desentenderam-se as famílias e Alexandre foi à sua vida: passeou meninas pelas Avenidas, comeu petiscos nas tascas, bebeu uns copos para comemorar e continuou a escrever poemas. 

Mais de 40 anos depois, Alexandre contou que Um Adeus Português, com o qual pela primeira vez conseguiu alguma notoriedade, não surgiu apenas do amor por Nora Mitrani, mas serviu também para criticar a vivência no Estado que se dizia Novo: "Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não interessa) (...) Durante algum tempo fiquei conhecido como o poeta de Um Adeus Português (...) Mas o poema, ingénuo como é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com uma contenção sentimental que nunca mais igualei".

Embora seja, em geral, lido como um manifesto de resistência ao fascismo, Um Adeus Português – título usado pelo cineasta João Botelho no filme que realizou em 1985 – é, simultaneamente, uma declaração de amor à mulher de "olhos altamente perigosos", vinda da "cidade aventureira", por quem, como um adolescente, tropeçou de ternura.

Alexandre não voltou a ver Nora (quando a foi procurar já ela tinha morrido — suicidou-se, em 1961, com 40 anos), porém ela, em carta, mostrara-se "atrozmente comovida" com o poema. Um ano depois, O'Neill escreve Seis Poemas Confinados à Memória de Nora Mitrani: "Para ti o tempo já não urge,/ Amiga/ Agora és Morta (Suicida?) Se eu pudesse dizer-te: —Senta-te aqui/ nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,/ Ó amável bichinho, o pêlo fino".

Nessa altura, em 1961, já acabara o matrimónio com Noémia Delgado, assistente de montagem de Manoel de Oliveira em O Passado e o Presente, e em Mudar de Vida, de Paulo Rocha. Casaram a 27 de Dezembro de 1957 e foram morar para a Rua do Jasmim – "Rua do Jasmim, anda, diz que sim!/ —É o do terceiro, nunca tem dinheiro..." –, rompendo-se de vez as idas e vindas de O'Neill a casa dos pais. Dois anos depois, a 23 de Dezembro de 59, nasce o filho do casal, Alexandre Delgado O'Neill, que morreu pouco depois do pai.

Noémia e Alexandre só se divorciam a 15 de Janeiro de 1971 mas, durante a década de 60, ele mantém uma ligação com Pamela Einichen Pinheiro. O que não o impede de, em Novembro de 1962, pedir ao amigo Pires (Cardoso Pires), em forma de verso, "uma miúda/ com toque de Chiado ou de Grandella/ Às nove e duas pernas da manhã,/ que, como o peixe, tesa de frescura, tenha perdido a escama de donzela/ mas não venha falar-me do Vailland..." [Roger Vailland, escritor francês].

A 4 de Agosto de 1971 (tem ele 48 anos), casa com Teresa Gouveia (de 25 anos), na presença de Antonio Tabucchi, testemunha e padrinho da deslocação ao registo civil. No início da década, o escritor italiano vem a Lisboa encontrar-se com intelectuais portugueses, bate à porta de Alexandre e ele, com o seu à-vontade de sempre, não quer saber quem é nem ao que vem, limita-se a convidá-lo a entrar para comer umas sardinhas em conserva. Durante anos, tal como sempre fizera com outros amigos, correram juntos as ruas de Lisboa, "a desnalgar as fêmeas ("Vist'? Viii!)".

Alexandre, que definia a libertinagem como a "liberdade com garagem", considerava a cabeça a zona mais erótica da mulher e o sexo uma coisa que se "devia usar, mas que, normalmente, se abusa". "No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)/ e tem a veleidade de o saber fazer/ (pois amor não há feito) das maneiras mil/ que são a semovente estátua do prazer". Conta-se que, no dia em que conheceu uma das suas mulheres, após um jantar de grupo, lhe terá dito: "Ó prima, quer vir comer uns queijinhos frescos a minha casa?". A resposta foi afirmativa. Casaram meses depois, sem direito a copo-de-água.

O segundo divórcio é assinado a 20 de Fevereiro de 1981. O segundo filho, Afonso, nasce a 28 de Maio de 1976. "O amor é o amor – e depois? Vamos ficar os dois/ a imaginar, a imaginar?... O meu peito contra o teu peito/ cortando o mar, cortando o ar./ Num leito há todo o espaço para amar! Na nossa carne estamos sem destino, sem medo, sem pudor, e trocamos – somos um? somos dois? – espírito e calor! O amor é o amor – e depois?".

Entre 1980-86 O'Neill viveu mais uma paixão, a última, com a professora Laurinda Bom, licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. "Está só?", perguntou-lhe na década de 80 o encenador checo Jorge Listopad. "Nunca. Sempre", respondeu, para prosseguir num jeito moralista, próprio de alguém que reflectiu sobre um assunto durante décadas e pôde, finalmente, chegar a uma conclusão: "Compreendi que com as mulheres não se pode viver sempre, amando-as todos os dias. Duas vezes por semana. Só assim dá certo". "Sabedoria?", provocou o interlocutor. "Prática", sentenciou este "diabo à solta", um homem que escrevia melhor entre amores, gostava de ovos cozidos, passarinhos e, quando lhe dava para rir, batia com os pés no chão compassadamente. Precisava de pouco para ser feliz: dormir, ler, estar com os amigos e sentar-se ao sol na sua casa de Constância, o seu último grande amor.

 

 

 

OBRA:

POESIA
A Ampola Miraculosa (Poema Gráfico) – Cadernos Surrealistas, Lisboa, 1948
Tempo de Fantasmas
– Cadernos de Poesia, Lisboa, 1951
No Reino da Dinamarca – Poesia e Verdade
, Guimarães Editores, Lisboa, 1958
Abandono Vigiado – Poesia e Verdade
, Guimarães Editores, Lisboa, 1960
Poemas com Endereço – Círculo de Poesia
, Livraria Moraes Editora, Lisboa 1962
Feira Cabisbaixa – Poesia e Ensaio
, Ulisseia, Lisboa, 1965; 2ª edição, Sá da Costa Editora, Lisboa, 1979
Portugallo Mio Rimorso
– Col. di Poesia, Einaudi, Torino, 1966
No Reino da Dinamarca
– Obra Poética (1951-1965) – Poesia e Verdade, Guimarães Editores, Lisboa, 1969
De Ombro na Ombreira
Cadernos de Poesia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Abril, 1969; 2ª edição, Cadernos de Poesia, Publicações Dom Quixote, Lisboa, Setembro, 1969
Entre a Cortina e a Vidraça –Auditorium
, Estúdios Cor, Lisboa, 1972
No Reino da Dinamarca
– Obra Poética (1951-1969) – "Poesia e Verdade", Guimarães Editores, Lisboa, 1974
Made in Portugal –Quaderni della Fenice
, nº 29, Guanda, Milão, 1978
A Saca de Orelhas
– Sá da Costa Editora, Lisboa, 1979
Poesias Completas
, 1951-1981 –Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 1982
Poesias Completas
, 1951-1983 –  2ª ed. rev. aum. Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 1984
O Princípio da Utopia, o Princípio da Realidade seguidos de Ana Brites, Balada Tão Ao Gosto Português & Vários Outros Poemas
, 1986 – Círculo da Poesia, Moraes Editora, Lisboa, 1986
Poesias Completas
, 1951-1986 –  3ª ed. rev. aum. Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 1990
Poesias Completas
, 1951-1986 – Assírio & Alvim, Lisboa, 2000

PROSA
As Andorinhas não têm Restaurante
(crónicas) – Cadernos de Literatura, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1970
Uma Coisa em Forma de Assim
(crónicas) – Edic, Lisboa, 1980; Editorial Presença, lisboa, 1985

DISCOS
Alexandre O' Neill diz poemas da sua autoria
A Voz e o Texto, Discos Decca
Os Bichos também são gente
(Poemas dedicados aos bichos e ditos pelo autor) – A Voz e o Texto, Discos Decca

 

             Textos recolhidos de www.ajanela.com (ao cuidado de Anabela Mota Ribeiro), onde não tinham indicação de autor.

 

CRÓNICA

O’Neill, completamente

 

Não sei o que pensaria Alexandre O´Neill se lesse a introdução que Miguel Tamen faz às suas Poesias Completas, reeditadas pela Assírio e Alvim (excelente reedição, e oportuna).
É um texto escusado e arrogante, cheio de becos sem saída, que o mesmo é dizer, cheio de frases de uma «inteligente» inutilidade. Como esta, a abrir: «Poderá vir um dia a verificar-se que o máximo que fundam os poetas é a possibilidade prosaica de alguém, muito mais tarde, se vir a lembrar de algumas das sequências das palavras que escreveram. No melhor dos casos, usarão essas sequências de palavras a despropósito, noutras sequências de palavras; no pior, aplicá-las-ão com aquilo que julgarem ser um propósito».
Miguel Tamen fala pouco de O´Neill e muito de Miguel Tamen, do modo como Miguel Tamen leu e gostou da poesia de O´Neill, e que nestas palavras introdutórias, depreende-se, é o modo certo, único e inexcedível de ler e gostar de O´ Neill. O poeta, que não era dado ao egocentrismo académico, decerto se estaria nas tintas, expressão muito portuguesa, muito lisboeta e muito à O´Neill. E disto, como do «peru», «está tudo dito».
Passado o espinhoso começo, a Poesia de O´Neill segue lá dentro, espalhada por mais de 500 páginas, um trabalho poético que oculta alguns dos poemas perfeitos que se escreveram em língua portuguesa. Que é um poema perfeito, perguntar-se-á? E será um poema perfeito superior a um imperfeito? Os conceitos, perfeição e imperfeição, são subjectividades, e assim deixaremos ao leitor da poesia de O´Neill a liberdade de escolher os seus poemas perfeitos, aqueles que na repetição mental, ao ecoarem dentro das cabeças, rolaram as sílabas das palavras no sentido certo e se constituíram como uma memória. Afectiva ou literária, não interessa, servem ambas. No caso de Alexandre O´Neill, se constituíram como uma memória da língua portuguesa.
Alguém disse do poeta inglês Robert Graves quando ele morreu (creio ter sido Anthony Burgess) que o poeta «entrou na língua». Este poeta, português, entrou na nossa língua. Poderíamos ficar pelo adeus português, pela frase inteira do adeus português (a tal dor mansa, tão vegetal...) ou pelos versos de O´Neill que por aí andam, vivos e falados, reinventados, esfolados, sem que os que os dizem, saibam ou lembrem quem os escreveu a primeira vez. É um dos usos da posteridade, ou melhor, da duração, que é disso que trata a posteridade, mais do que de reputação.
A linguagem de O`Neill, a mistura de picardia, ironia e melancolia, um lirismo muito pouco sentimental, e um jogo de aliterações a mostrar o contorcionismo possível das palavras, servem uma poesia de mão cheia, quase sem erros nem desperdícios, cruelmente original, intacta, apesar da mudança dos tempos e dos costumes. O poeta começou a escrever num tempo sem liberdade, um tempo de estupidez de um lado, e de lucidez do outro. Havia quem visse o que se estava a passar, no pequeno país agrilhoado, cheio até acima de kitsch e de «perikitsch» na gaiola. Talvez seja essa a primeira característica desta poesia e desta linguagem, a sua lucidez, o modo desassombrado como olha os dias e lhes vai retendo o que para o observador comum é invisível. Os pequenos gestos, os vagares, os humores, os desalentos, as desatenções, os erros, os fracassos, as felicidades, as traquinices, as (in)existências. Como se diz no lugar-comum, nada do que era humano lhe era estranho, e O´Neill apreciava o lugar-comum, servia-se dele como matéria prima, tomava-lhe o peso, tomava-lhe o pulso. «Onde começa um poema?/ Quando começa um poema?»/ No espaço quadrado da folha de papel?/ No momento em que pegas na caneta?/ Ou no espaço redondo em que te moves?/ Ou quando, alheio a tudo, te pões de cócoras,/ a coçar, perplexo, a cabeça?».
No poema A um Poeta que Deixou de Comparecer nas Antologias, um poema sobre Bocage, a malícia de O´Neill descreve o que a famosa posteridade reserva aos poetas, aos bocages: sonetos esquecidos a meio e notas de rodapé.

Clara Ferreira Alves

 

 

 

 

 

 (*) 23-3-2002 - Nos últimos dias, esta página teve mais de 240 clicks, à procura de "Sigamos o cherne". Por isso, aqui fica a poesia:

SIGAMOS O CHERNE

(Depois de ver o filme “O Mundo do Silêncio”, de

Jacques-Yves Cousteau)

 

Sigamos o cherne, minha Amiga!

Desçamos ao fundo do desejo

Atrás de muito mais que a fantasia

E aceitemos, até, do cherne um beijo,

Senão já com amor, com alegria..."

 

Em cada um de nós circula o cherne,

Quase sempre mentido e olvidado.

Em água silenciosa do passado

Circula o cherne: traído

Peixe recalcado…

 

Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,

Já morto, boiar ao lume de água,

Nos olhos rasos de água,

Quando, mentido o cherne a vida inteira,

Não somos mais que solidão e mágoa…

 

No Reino da Dinamarca, 1958