Camille Paglia tem sido considerada por alguns como a maior traidora do movimento feminista e por outros como a heroína que denunciou o carácter extremista, irracional e perigoso desse mesmo movimento. "Vampes & Vadias", o seu ultimo livro, chega agora a Portugal

 

No século XVIII houve Mary Woolstonecraft que, entusiasmada com os ideais da Revolução Francesa, exigiu direitos para as mulheres, como já o fizera a sua congénere Olympe de Gouges que, em 1791, elaborou a "Declaração dos Direitos das Mulheres", sendo guilhotinada por isso. Em pleno século XIX, Margaret Fuller utilizou os seus escritos para veicular teorias revolucionárias feministas. O vitorianismo, ao fomentar a regressão ao sistema patriarcal tradicional, mais não fez do que provocar uma reacção forte por parte de espíritos determinados como os de Elizabeth C. Stanton, Lucretia Mott e Susan B. Anthony , fundadoras do movimento sufragista e organizadoras do célebre encontro de Seneca Falls nos Estados Unidos (1848). Já no século XX, Virgínia Woolf empenhou-se em desmascarar a hipocrisia da sua época e exigiu para cada mulher independência material e um "quarto (que fosse) seu". Em Portugal, Adelaide Cabete, médica, maçon e feminista, ajudou a implantar a República, um esforço pouco recompensado em anos subsequentes. As duas Grandes Guerras deram a hipótese às mulheres de ocuparem muitos postos anteriormente dominados pela população masculina. Mas, foi a partir dos anos sessenta que os grupos feministas, galvanizados pela Revolução Sexual e pela descoberta da pílula anti-concepcional, ganharam cada vez mais terreno. Simone de Beauvoir, Marilyn French, Germaine Greer, Susan Sontag, Kate Millett, Betty Friedan tornaram-se nomes referenciais numa luta que tomou proporções de guerra aberta. Nos anos setenta e oitenta, com o extremar de posições, a introdução de códigos restritos e a imposição cada vez mais feroz do "politicamente correcto", aquilo que parecia um percurso para a igualdade de oportunidades, degenerou numa guerrilha que contribuiu para alargar o fosso entre os sexos. Os "casos" Anita Hill e Lorena Bobbit, bem como certas histórias de supostas violações nas cidades universitárias americanas, reacenderam os ânimos e contribuíram para colocar o homem como o grande inimigo e a mulher como a vítima de uma tirania ancestral. No início dos anos noventa, Susan Faludi, Gloria Steinem e Naomi Wolf, alertaram para o retrocesso dos ideais feministas devido aos erros em que o "feminismo duro" se estava a embrenhar, mas a maré fundamentalista parecia não poder ser contida, reformulando ataques e reacendendo polémicas. Foi quando, na arena, surgiu Camille Paglia.

Desde a publicação, em 1990, de "Sexual Personae: Art and Decadence from Nefertiti to Emily Dickinson", ( houve quem exigisse o dinheiro de volta por achar o livro "ideologicamente herético"), que ela tem criado problemas onde quer que se encontre. Este volumoso ensaio, que ela demorou dez anos a escrever, é uma história muito subjectiva das artes aliadas ao sexo e inclui, entre outros, temas como o paganismo, a cultura POP, a androginia e os conflitos sexuais.

Camille nasceu em Nova Iorque a 2 de Abril de 1947 e, como tem um fraco por astrologia, nunca se esquece de mencionar que tem o Sol em Carneiro e a Lua em Virgem. Filha de um professor universitário italo-americano que a encorajou a quebrar todos os tabus mas que cedo se apercebeu de que "tinha criado um monstro", vestia-se à homem no Dia das Bruxas e aos dez anos já contrariava o pai em tudo. Desenvolveu uma paixão por mulheres como a aviadora Amélia Earhart e a actriz Katherine Hepburn, tinha uma colecção de 599 fotografias de Elizabeth Taylor e devorava tudo sobre o Egipto Antigo e Hollywood que lhe pareciam ser mundos perfeitamente semelhantes. A sua carreira académica foi brilhante, pontuada de amizades por homens (homossexuais) e de amores (heterossexuais) até 1993 quando conheceu Alison Maddex, uma "art-curator" com quem passou a viver. Diz que "não se considera nem homo nem heterossexual, nem macho nem fêmea, nem humana nem animal" o que quer dizer que se vê como um ser híbrido que gostaria de ter a vida de " um homossexual, que fosse (ao mesmo tempo) uma lésbica bissexual monástica, celibatária, pervertida e voyeur"

"Nasci com o instinto do assassino e tenho todas as qualidades de um fora-da-lei.", diz esta professora que inclui no seu curriculum vários graus universitários e é considerada uma intelectual de grande mérito. No entanto, qual é a intelectual que anda sempre com uma navalha de ponta e mola no bolso, que agride fisicamente os seus opositores, que lança insultos e impropérios na imprensa e na televisão e se apresenta em seminários e conferências ladeada de dois guarda-costas vestidos de cabedal e de físico imponente? É claro que Paglia se transformou em mais um ícone dos desesperados, conturbados e apocalípticos anos noventa, ao ser catapultada da Arts University de Filadélfia para as capas das revistas e para os "talk-shows", onde as suas opiniões expressas em moldes propositadamente "inconvenientes", fizeram dela uma figura de culto. Camille é uma força da Natureza, uma espécie de tornado que arrasta tudo, o bom e o mau, o desprezível e o maravilhoso. O seu discurso é torrencial, agressivo, por vezes incoerente . Chamam-lhe a "ovelha negra do feminismo" , a " feminista mais machista de todos os tempos", a "mulher que as feministas adoram detestar".

As suas intervenções nunca deixam ninguém indiferente e provocam reacções que vão do mais cego entusiasmo ao ódio mais violento. No entanto, a mensagem que ela articula é simples: os homens tiveram um papel essencial no processo civilizacional e quem o negar está a obliterar uma verdade universal. A importância das mulheres reside no facto de elas estarem estreitamente ligadas às forças da natureza. A cultura ocidental é o campo de batalha onde se defrontam o desejo de ordem apolíneo e as forças dionisíacas das trevas. O macho, desejoso de lei e ordem, mantém uma luta constante contra a força pagã e brutal da natureza feminina. (No entanto, há homens que possuem essa energia como é o caso dos decadentes William Blake, Sade e Oscar Wilde). O sexo nunca poderá ser ordenado e civilizado, será sempre violento, selvagem e indisciplinado, apesar dos esforços das feministas e de outros movimentos semelhantes. A religião e a instituição do casamento fazem parte das tentativas para dominar o caos, mas este é necessário para o progresso das ideias. Nesse sentido, Paglia advoga uma educação baseada nos clássicos, posta de lado para dar lugar à "escumalha" que, para ela são os intelectuais franceses da moda, como Foucault e Lacan. O sexo existe, está em todo o lado, é preciso acentuar a sexualização e não escondê-la. Por isso a pornografia e a prostituição prestam um serviço à sociedade, canalizando os impulsos. As mulheres possuem uma força extraordinária e devem utilizar todos os truques da sua feminilidade e não agir como os homens, aceitando no entanto os padrões de actuação masculinos e mostrando-se à altura dos mesmos. As mulheres só são medíocres e fracas quando escolhem o papel de vítima. Têm tendência para terem compaixão, para desejarem o que é confortável, pelo o que não podem, depois, queixar-se.

Na altura em que se falou muito dos "date rapes" nos "campus" universitários, Paglia fez o seguinte comentário : "Evidentemente que sou contra os violadores específicos e até ajudo a castrá-los se for preciso, mas detesto a ideia das feministas de que se devem criar regras para tudo, incluindo para os encontros entre rapazes e raparigas. Estas têm de aprender a responsabilizar-se pelos seus actos. Se bebem dez "tequillas", vestem-se como a Madona e vão para o quarto de um rapaz, de que é que estão à espera? Quando as mulheres se queixam de que um homem as apalpou ou lhes disse que tinham umas boas mamas e se põem a choramingar, dão-me vontade de vomitar. É tão fácil desarmar os homens, arrasá-los, fazê-los sentir minúsculos! Hoje em dia, nos locais de trabalho, eles já não têm autorização para fazerem comentários, mesmo que as mulheres andem de saias travadas, a mostrarem as coxas e com blusas de seda desabotoadas. É tudo um disparate. Os homens devem ter direito à sua masculinidade, senão o que acontece é que as mulheres começam a queixar-se de que já não há homens, nem sexo como deve ser." As feministas pioneiras como Germaine Greer e Susan Sontag acabam por estragar tudo, foram diminuídas e destruídas pela sua própria vaidade e falta de visão interior ,ao colocarem homens e mulheres em dois campos distintos e antagónicos. Segundo Paglia, "…as feministas académicas não têm qualquer sentido de humor, são miserabilistas, reprimidas, desprezam e têm medo dos homens, arranjam maridos que são autênticos ratos de bibliotecas e uns perfeitos idiotas, e julgam que aquilo é que são homens."

Para Paglia o dever de qualquer intelectual é o de desafiar tabus e fazer com que tudo seja posto em causa. Nas suas aulas não tem matéria definida e limita-se a provocar os alunos, a insultá-los e a levantar-lhes o punho para eles reagirem e lhe pagarem da mesma moeda. É adorada pela a sua agressividade teatral, pela forma como arrasa o "politicamente correcto" e a "hipócrita irmandade das mulheres" que, segundo ela, se entretém a descobrir figuras femininas de categoria duvidosa para substituir os génios da humanidade, como Sócrates, Shakespeare ou Miguel Ângelo. Para Paglia, nunca houve nenhum equivalente feminino destes homens, com excepção de Sapho e Emily Dickinson. (Virginia Woolf e Jane Austen limitaram-se a continuar o que já tinha sido descoberto). Camille insurge-se contra as acusações de misoginia impostas a Wagner, Beethoven e Picasso. (Vem a propósito lembrar que vale a pena olhar de perto a exposição deste último que se encontra em Lisboa no Museu do Chiado até 2 de Fevereiro de 1998, para constatar como a virilidade de um homem, mesmo com uma idade avançada, se pode reflectir genialmente na sua obra.)

 

"Vampes & Vadias", a última colecção de textos multimédia de Camille Paglia, tal como o anterior "Sex, Art and the American Culture", ( 1992), inclui ensaios, transcrições de "talk-shows", guiões de cinema e televisão, memórias e confissões, críticas e apreciações a personagens tão díspares como Madonna, Hilary Clinton, Lewis Carroll, Diana, Jaqueline Onassis, D.H. Lawrence e Susan Sontag. Paglia fala da anorexia, da pedofilia, do aborto, da prostituição, da Sida, dos movimentos "gay", num estilo muito próprio que ela diz ter sido inspirado pelo futebol americano, "a sua única religião".

Há quem acuse Paglia de conservadora mas ele própria explica que isso é um disparate: "Sou um produto dos anos sessenta, uma fanática do rock´n roll e da cultura popular. Nos anos setenta e oitenta houve um nivelamento de sexos e agora é preciso reinstalar o direito à diferença, não só biológica como todas as outras. Não quero mandar as mulheres de volta para a cozinha, mas por que razão devem ser os homens a instalarem-se lá? Eu própria interesso-me mais por ideias, mas se há mulheres que gostam de estar em casa a tratar das crianças, ninguém tem nada a ver com isso. As que têm filhos e uma carreira estão carregadas de complexos de culpa, sentem-se frustradas e não são felizes. As feministas tratam-nas com um desprezo que engloba também os homossexuais, os veteranos do Vietname e outros grupos. Defendo as prostitutas, a pornografia, o direito ao aborto, a legalização das drogas, os travestis, os homossexuais. Não há nada de conservador no meu discurso"

Hoje em dia, Camille Paglia já não é a única a pôr em causa o "establishment" feminista que ela afirma ter como único alvo viável os países subdesenvolvidos. E embora ironicamente, de certa forma, se possam enumerar a seu respeito os mesmos defeitos que ela cola à pele das feministas, ou seja, um certo histerismo que anda muito perto do fanatismo e uma ferocidade que ela justifica como defesa pelos ataques de que tem sido alvo, a verdade é que os seus escritos, depois de convenientemente depurados de uma linguagem torrencial e de certos excessos, dão-nos uma visão suficientemente nova e original para merecerem uma leitura atenta. Os seus livros são como "machados sobre as nossas cabeças" e transmitem o seu "grito de guerra" que deveria servir para abanar as consciências, imersas num mar de conformismo: " Odeiem o dogma! Amem a aprendizagem, amem a Arte!" Camille Paglia dixit.

 

 

ALGUMAS DEFINIÇÕES DE CAMILLE PAGLIA:

A RUA E O LOCAL DE TRABALHO : "O andar e a fala das ruas, espaçosos e atrevidos, próprios das vampes e das vadias, são opostos polares da linguagem reservada e comprimida do corpo e das vozes humildes e subjugadas requeridas pelo mundo profissional e os seus espaços contidos." (pág.15)

A EDUCAÇÃO : "Os meus mais elevados ideais são a liberdade de pensamento e de expressão. Ciência e arte, intelecto e imaginação devem ser reintegrados no ensino em nome de uma visão completa do universo" (pág.20)

A UNIVERSIDADE : O seu fracasso em se reformar a si mesma a partir de dentro deveu-se a uma combinação de negligência e inércia…das elites corruptas, arrogantes no seu poder, (que) precisam de ser expostas e levadas perante a justiça em toda a parte, estejam elas nos departamentos de Letras de Harvard e Princeton ou nos quartéis generais da National Organization for Women. Aqueles que envenenaram a atmosfera cultural da América ou que galgaram escalões por meios antiéticos têm de ser responsabilizados. É a hora de Nuremberga." (pág.20)

O SEXO : "É animalidade e artifício, uma interacção dinâmica entre natureza e cultura." (pág. 55)

A PROSTITUTA : " É uma analista soberba, não somente na arte de burlar a lei, mas na intuição da constelação única de convenção e fantasia que produz um orgasmo num estranho. É psicóloga, actriz e dançarina, uma artista performática…É uma empreendedora e sagaz mulher de negócios: as madames dos bordéis e as abadessas medievais foram as primeiras mulheres administradoras." (pág. 102)

O MODERNISMO : "É uma vergonha (porque) os intelectuais abandonaram o povo" "(pág.25)

 

ALGUMAS FRASES LAPIDARES DE CAMILLE PAGLIA:

"Se o mundo tivesse sido sempre governado por mulheres, ainda estaríamos a viver em cabanas de colmo".

"Quando um homem se torna homossexual acrescenta 20 pontos ao seu Q.I;

quando a mulher se torna lésbica perde esses mesmos 20 pontos."

. "Uma erecção é um pensamento e um orgasmo é um acto de imaginação".

 

VAMPES & VADIAS DE CAMILLE PAGLIA, EDIÇÕES RELÓGIO D´ÁGUA, 533 PÁGINAS,

 

                                       Helena Vasconcelos