AMÁLIA RODRIGUES
A CARREIRA Uma das figuras mais emblemáticas da cultura portuguesa do século XX, Amália Rodrigues é um farol que baliza toda a evolução do meio musical português. Iniciada numa altura em que era através do palco que a reputação se ganhava e retirando-se em pleno domínio televisivo, a carreira daquela que foi durante muitos anos a embaixadora cultural de Portugal acabou por atravessar todas as grandes alterações do mercado cultural e comercial em que se inseria. |
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Os mais de cinquenta anos de carreira contínua de Amália são habitualmente divididos em décadas que correspondem, grosso modo, a estágios no seu desenvolvimento artístico. Embora essa divisão tenha inicialmente sido pensada para a sua carreira discográfica, é igualmente transponível para a evolução cronológica da sua actividade artística, com cada década a marcar fases específicas.
A segunda metade dos anos 30 corresponde aos seus tímidos primeiros passos. Uma Amália adolescente (nascera em Julho de 1920) começa a chamar a atenção em concursos amadores dos quais sai invariavelmente convidada para actuações regulares. Contudo, só em 1939 se estreia profissionalmente como fadista, no Retiro da Severa, no ponto inicial da bola de neve que se seguiria.
A década de 40 abrange a sua ascensão a vedeta multidisciplinar. Logo em 1940 Amália é já artista exclusiva do Solar da Alegria e pouco depois estreia-se na revista, onde marcará presença com grande sucesso durante a década, embora sem aí criar muitos dos seus grandes êxitos -- será antes no género irmão, a opereta, que Amália introduzirá clássicos como "Fado do Ciúme" ou "Sabe-se Lá". Os palcos do teatro musicado marcam o seu encontro com Frederico Valério, o primeiro compositor a compreender o alcance da sua voz e a escrever-lhe sob medida melodias que a valorizavam, não se limitando à rigidez do fado.
É também nos anos 40 que Amália sai de Portugal pela primeira vez, a Madrid em primeiro lugar e depois para o Brasil, onde em 1944 e 1945 repete o triunfo português e grava os seus primeiros discos; e que se estreia no cinema, com "Capas Negras" (durante muitos anos o filme português de maior sucesso de sempre) e "Fado -- História de uma Cantadeira".
A década de 50 partilha duas vertentes que de algum modo se alimentam mutuamente: por um lado, começa em 1952 a gravar regularmente, factor importante no alargamento da sua popularidade; por outro, começa a viajar e a actuar um pouco por todo o mundo, atingindo grandes êxitos nas suas passagens por França e pelos EUA, para o que muito contribui a sua presença no filme francês "Os Amantes do Tejo", onde cria "Barco Negro" e "Solidão (Canção do Mar)". É uma década passada quase sempre fora de portas, marcada pelo seu primeiro encontro com David Mourão-Ferreira, poeta que começa a escrever para a sua voz ("Primavera" é a primeira letra, em 1953) e se encarregará de abrir novos horizontes à cantora. O cansaço acumulado levará a um ano sabático, entre 1960 e 1961, durante o qual se ausenta do olhar público.
Por contraste com a década de 50 passada "em viagem", os anos 60 são um período em que Amália se fixa em Portugal e se dedica à sua carreira discográfica. Embora continue a viajar e a actuar por todo o mundo, retorna sempre à base portuguesa e grava, ao longo da década, aqueles que são os seus discos mais marcantes e aclamados, com a ajuda preciosa de David Mourão-Ferreira e do compositor francês Alain Oulman -- que, depois de Frederico Valério e até ao seu repatriamento para Paris pelo governo de Salazar, será o outro melodista a saber explorar a voz de Amália e abrir-lhe novos horizontes. É a década da Amália trágica e amargurada de "Maria Lisboa", "Madrugada de Alfama", "Estranha Forma de Vida", "Abandono", "Povo que Lavas no Rio", "Fado Português", "Gaivota"? Mas também a confirmação de uma Amália alegre e descontraída, bairrista e simples, gravando folclore das Beiras, marchas de Lisboa ou "Vou Dar de Beber à Dor". Amália surge em controlo absoluto da sua voz, que atinge uma riqueza aveludada e um poder evocativo ganho com as décadas anteriores, tornando-se numa intérprete de recursos inesgotáveis.
"Com Que Voz" é a charneira. Este álbum gravado em 1969 e editado em 1970, composto de melodias de Alain Oulman sobre poemas de autores como Camões, Pedro Homem de Mello, Ary dos Santos, David Mourão-Ferreira ou Alexandre O'Neill, é para muitos o ponto mais alto da sua carreira. E não sem razão: encerra uma década de ouro ao mesmo tempo que relança internacionalmente o seu nome.
Forçosamente, os anos 70 são um período de reflexão, em que Amália regressa aos grandes concertos no estrangeiro enquanto, em Portugal e apesar dos êxitos de "Oiça Lá ó Senhor Vinho" ou de mais dois álbuns de folclore, os acontecimentos do 25 de Abril e a revolução nos gostos do público a votam a um fugaz esquecimento. Amália permitira-se antes da Revolução gravar com um saxofonista de jazz -- Don Byas, em "Encontro" -- ou apadrinhar poetas -- editando discos com Vinícius de Moraes, Natália Correia e Ary dos Santos; mas essas "revoluções" estéticas são esquecidas por um Portugal efervescente de liberdade e que identificava o fado com o antigo regime.
Depois do ensaio com "Cantigas numa Língua Antiga", o verdadeiro grande regresso dá-se em 1980 com "Gostava de Ser Quem Era", uma colecção de fados originais com letras da própria cantora. Os anos 80 serão assim os anos da redescoberta da obra de Amália, coincidindo com a edição dos seus últimos discos de material original gravados em estúdio -- "Fado" e "Lágrima" -- e as primeiras afecções das cordas vocais que a obrigam a tratamentos no estrangeiro. Miguel Esteves Cardoso, então o mais ousado e influente crítico musical nacional, elogia Amália nas suas crónicas e, em 1985, duas colecções de êxitos monopolizam as tabelas de venda, quase que forçando um retorno a palco em 1987, com o seu primeiro grande concerto no Coliseu de Lisboa.
Finalmente, os anos 90 serão a década da celebração. Amália surge ainda esporadicamente ao vivo, mas é constantemente requisitada para entrevistas, homenagens, apresentações na televisão, fruindo do seu estatuto de verdadeira lenda viva da música nacional. A sua obra gravada é sistematicamente relançada e antologizada, mas os dois discos de material novo lançados na década -- "Obsessão" e "Segredo" -- recolhem gravações de arquivo até aí inéditas.
Amália deixou-nos em Outubro de 1999, mas deixou connosco a sua música e a sua voz gravada em dezenas de discos que fazem já parte da herança cultural portuguesa.
OS DISCOS Amália era já uma estrela em solo português quando chega ao disco pela primeira vez. Durante a década de 40, as propostas de gravação feitas a Amália foram sendo recusadas pelo seu empresário da altura, José de Melo, temeroso que o disco de 78 RPM então em progressiva divulgação viesse prejudicar a carreira de palco da artista. Os dezasseis temas que Amália regista nos estúdios da companhia brasileira Continental, em 1945, durante uma estadia profissional de grande sucesso no Rio de Janeiro, apenas são gravados porque nunca ninguém pensou que os 78 RPM resultantes chegassem a Portugal |
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Resolvido o tabu com a evidência de que os discos eram um factor importante de divulgação e popularização (e, ao contrário do que se dizia, geravam um maior interesse do público nos seus concertos), os anos 50 trouxeram o verdadeiro arranque da Amália de estúdio. Na editora Melodia lança uma dúzia de discos de 78 RPM, gravados no período compreendido entre 1950 e 1952, alguns dos quais já com orquestra, registando para a posteridade os muitos temas que criara em palcos de revista e casas de fado; é um período de aprendizagem do formato e do estúdio.
Assina em 1952 pela Valentim de Carvalho, que envia logo a nova estrela do seu catálogo a gravar em Londres, nos estúdios de Abbey Road propriedade da multinacional EMI com quem a casa mantinha e manteria relações privilegiadas. Em Portugal e no Brasil, Amália é já uma estrela; inicia-se o processo de divulgação internacional, facilitado pelos laços com a EMI, que começa a editar os seus discos em Inglaterra, França ou EUA coincidindo com as primeiras e tentativas apresentações em palco nesses países. As cerca de 50 gravações editadas neste período dividem-se entre a canção de raíz popular muito aplaudida pelos estrangeiros ("Coimbra", "Uma Casa Portuguesa") e os fados mais trágicos e tradicionalistas, iniciando-se a colaboração com o poeta David Mourão-Ferreira em 1953 com "Primavera".
A verdadeira explosão internacional dá-se em 1955 com a gravação de "Barco Negro", uma estilização afadistada de um original brasileiro (com uma nova letra de David Mourão-Ferreira) que, interpretada por Amália no filme francês "Os Amantes do Tejo", dá a volta ao mundo. França torna-se no seu segundo mercado, prontificando a edição do célebre álbum ao vivo no Olympia (1957) e, em 1958, a sua contratação pela editora independente francesa Ducretet-Thomson, que a alicia para longe da Valentim de Carvalho alegadamente com uma soma mirabolante. É uma relação breve, prolongada até 1960, claramente virada para a exploração do exotismo da sua voz.
Se os anos 60 são unanimemente considerados a sua "década de ouro", isso não se deve apenas à sua voz, que se encontrava agora enriquecida por vinte anos de carreira e de vivências emocionais, possibilitando desvendar novas densidades interpretativas; mas também aos riscos (calculados mas nem por isso menos arriscados) que soube correr, com a ajuda de David Mourão-Ferreira e do compositor francês Alain Oulman, verdadeiros directores musicais da sua carreira durante os dez anos que se seguem.
Duas obras-primas absolutas balizam a década: o álbum do "Busto"
(1962), intitulado apenas "Amália Rodrigues" mas que ficou assim
conhecido pelo busto de Amália que surgia na capa, e "Com Que Voz"
(1970), onde as melodias de Oulman e as palavras de poetas portugueses, de Pedro
Homem de Mello a Camões passando por Alexandre O'Neill e David Mourão-Ferreira,
constroem algo que está já para lá do fado e ao qual só a voz de Amália
consegue dar significado e forma. É uma outra Amália, mais madura e mais
intensa, que se revela nestes discos ou ainda em "Fado Português"
(1965) ou "Maldição" (1967), sublinhando a componente dramática e o
poder interpretativo da sua voz.
Os anos 60, contudo, começam também já a revelar a dicotomia quase esquizofrénica
da sua carreira artística e que atingirá o seu cume nos anos 70: à tragédia
nocturna e sombria de "Maldição" ou "Com que Voz", Amália
faz corresponder a alegria solar e bairrista de "Vou Dar de Beber à
Dor" (1968), que se torna rapidamente no seu disco mais vendido de sempre,
ou a homenagem terna e experimental às suas raízes beirãs de "Amália
Canta Portugal" (1967), onde retoma temas folclóricos acompanhados por
orquestra. Entre a festa e a tragédia, Amália preferia não escolher.
Os anos 70 iniciam-se com a edição de "Com que Voz" (disco gravado ainda em 1969) e do duplo álbum com Vinícius de Moraes, e correspondem a um reviver do interesse internacional em Amália. Durante parte substancial dos anos 60 só França se mantivera fiel à artista, mas "Com Que Voz" reacende a chama internacional, e ei-la a percorrer o mundo em infindáveis digressões durante a década de 70, regravando inclusive muitos dos seus clássicos em versões em língua estrangeira. Este relançamento internacional coincide, aliás, com o 25 de Abril e o desinteresse de um público nacional virado para outro lado mas que, felizmente, dura pouco. No período compreendido entre 1974 e 1977 são editados sucessivamente "Encontro", gravado com o saxofonista Don Byas; "Amália no Luso", registo de uma actuação de 1955; várias recolhas de material perdido em EPs e singles; e, finalmente, o primeiro disco de estúdio desde "Com que Voz", "Cantigas numa Língua Antiga" (1977), composto por fados de Alain Oulman.
Regressa aos discos em 1980 com "Gostava de Ser Quem Era", uma colecção de fados originais com letras da própria cantora, dando início a uma década onde Amália se despede do estúdio e a sua obra gravada é finalmente redescoberta por Portugal. Em 1985, uma colecção de êxitos, "O Melhor de", monopoliza as tabelas de venda, ultrapassando os cem mil discos vendidos; mas Amália começa a sofrer de problemas nas cordas vocais. A "Gostava de Ser Quem Era" sucede "Amália Fado" (1982), um disco de homenagem ao compositor Frederico Valério, e "Lágrima" (1983), que ficará como o seu último disco de estúdio composto por material original. Continuará a cantar ao vivo -- o seu concerto de regresso aos palcos em 1987, depois de uma operação delicada, será inclusive lançado em disco -- e regressará a estúdio várias vezes, estendendo um longo adeus. Os últimos discos de inéditos publicados ainda em vida serão já, contudo, colecções de material de arquivo: "Obsessão", de 1990, com inéditos dos anos 80, e "Segredo", de 1997, com inéditos dos anos 60 e 70.
AMÁLIA E O CINEMA
Amália não se achava actriz; apenas uma cantora a quem as oportunidades de fazer outras coisas foram caindo do céu. Talvez por isso -- e pelo facto de os cineastas pretenderem mais moldar as personagens à figura e à presença de Amália do que desafiá-la a representar verdadeiramente -- foram apenas sete as longas-metragens em que surgiu. Amália disse a Vítor Pavão dos Santos que nem viu algumas delas, o que não as impediu de se tornarem êxitos de público. |
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A popularidade de Amália enquanto cantora nascera das suas actuações em casas de fado, mas também das suas presenças no teatro musicado popular (revista ou opereta), onde aliás criara alguns dos seus maiores sucessos. Num meio cultural e musical razoavelmente pequeno, seria uma questão de tempo até o cinema se interessar por esta voz que arrastava multidões. Tudo começaria por uma falsa partida: António Lopes Ribeiro convida Amália para entrar em "O Pátio das Cantigas" (1941). "Chumbada" pelo maquilhador do filme -- conforme Pavão dos Santos cita na sua biografia da cantora -- só em 1946 surgirá uma nova oportunidade.
Ao lado de Alberto Ribeiro, galã da canção popular dos anos 40, Amália surge
no melodrama de Armando de Miranda "Capas Negras" que, à sua estreia
em Maio de 1947, bate todos os recordes de bilheteira da altura, com cinco meses
consecutivos em cartaz.
"Fado -- História de uma Cantadeira" -- o pretexto de todo este
dossier, e que se aborda mais em profundidade aqui ao lado -- é o filme
seguinte na carreira de Amália, outro triunfo comercial do qual a
actriz-cantora não gostava especialmente, sobretudo devido àquilo que
considerava o artificialismo dos diálogos e situações, alegadamente
inspirados na sua própria vida (o que não passou de uma manobra publicitária).
Logo nestes filmes se cristalizou a Amália-actriz como uma vedeta à volta da qual se montavam os filmes, escolhida não pelo seu talento de actriz (que, aliás, os guiões nem sequer exploravam) mas pela sua popularidade e pelo seu valor de bilheteira. Essa imagem é confirmada pelas suas presenças em "Sangue Toureiro" (1958), de Augusto Fraga, e "Fado Corrido" (1964), de Jorge Brum do Canto -- filmes dos quais a própria Amália tinha má impressão e que fez em parte por amizade pelos realizadores, embora considerasse que em "Fado Corrido" conseguira criar "uma presença completamente diferente de mim" -- e "Os Amantes do Tejo" (1955), de Henri Verneuil, parcialmente rodado em Lisboa. O filme de Verneuil dava a Amália um papel secundário razoavelmente importante, mas a sua escolha por parte dos produtores franceses ficara a dever-se essencialmente aos seus dotes vocais e à sua crescente popularidade internacional.
As "anomalias" neste retrato de uma Amália-actriz limitada pelos papéis que lhe eram oferecidos são duas, ambas estrondosos insucessos comerciais. A primeira é "Vendaval Maravilhoso" (1949), ambiciosa co-produção luso-brasileira dirigida por Leitão de Barros onde se traçava o retrato de Castro Alves, poeta brasileiro dedicado à abolição da escravatura. Vedeta incontornável em ambos os países, Amália já não era aqui uma variação sobre a sua própria imagem pública mas uma figura histórica, Eugénia da Câmara, "modificada" o suficiente para lhe permitir criar o "Fado Eugénia da Câmara" que se tornaria num dos seus clássicos deste período. Mas o filme (invisível hoje por se ter perdido o negativo original, existindo apenas uma cópia de imagem) é um monumental fracasso que levaria Leitão de Barros a abandonar o cinema.
A segunda é o "adeus" de Amália ao cinema, já que depois de "As Ilhas Encantadas" (1965) não voltaria a filmar. Adaptando uma novela de Herman Melville, o filme de Carlos Vilardebó encaixaria hoje na definição de "arte e ensaio", mas na altura foi um insucesso de bilheteira, defrontando a perplexidade de um público que esperava reencontrar nele a Amália de todos os dias e descobria antes uma actriz dando corpo a uma personagem. Ironicamente, este filme valeria a Amália o Prémio do Secretariado Nacional de Informação (estrutura de propaganda do regime salazarista) para Melhor Actriz, prémio que a cantora bisava vinte anos depois de "Fado -- História duma Cantadeira"?
Amália participou ainda como convidada especial em "Sol e Touros" (1949), de José Buchs, para interpretar no ecrã o "Fado do Silêncio", e teve vários outros projectos cinematográficos que ficaram por concretizar. Alguns deles acabariam por ir para a frente com outras actrizes no papel destinado originalmente a Amália ("Eram Duzentos Irmãos" ou "Les Lavandiéres du Portugal") enquanto outros nunca passaram da intenção (a adaptação de "Bodas de Sangue", de Garcia Lorca, que Anthony Quinn desejava produzir propositadamente para Amália, gorada por questões de direitos).
AMÁLIA E FADO À altura da sua estreia, perpetuou-se a ideia de que "Fado -- História de uma Cantadeira" era uma biografia romanceada de Amália. Nada, contudo, mais longe da verdade neste melodrama folhetinesco que Perdigão Queiroga dirigira a partir de um guião original de Armando Vieira Pinto e que antecipava em quinze anos a célebre máxima de "O Homem que Matou Liberty Valance": "print the legend". |
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"Jogaram um bocadinho como sendo um filme que contava a minha vida. Eu não disse nada, para que não pensassem que eu não queria que se falasse nisto ou naquilo. Mas não tem nada a ver com a minha história, a não ser que casei com um guitarrista e que vendia fruta. De resto, a minha mãe nunca cantou o fado, não fui criada no bairro de Alfama, só fui criada pela minha avó, aquilo do empresário a dar-me as coisas todas não tem nada a ver comigo."
As palavras são de Amália, citadas por Vítor Pavão dos Santos na sua
biografia de 1980 da cantora, mas de pouco importa o desmentido, mesmo que
tardio. O sucesso que "Fado" obteve (estreado em Novembro de 1947 no
Coliseu do Porto, e Fevereiro de 1948 em Lisboa, no teatro da Trindade) veio
incrustar de modo irreversível na memória colectiva a ideia do guião ser
decalcado da vida de Amália. Em abono da verdade, essa colagem era
deliberadamente procurada pela produção: o par romântico de Amália e Virgílio
Teixeira (o guitarrista por quem a cantadeira se apaixonava mas cuja relação
era posta em perigo pelo sucesso crescente) estava demasiado próximo da vida
real, pois Amália fora realmente casada com um guitarrista amador e o casamento
acabaria por não resistir -- ao sucesso crescente e aos problemas de
relacionamento do casal. Além disso, alguns dos episódios do filme foram -- a
fazer fé no livro de Pavão dos Santos -- sugeridos pela própria Amália ao
argumentista Armando Vieira Pinto para encorpar e credibilizar a história
original; casos de uma conversa de bastidores ou da sequência de ensaio com
Virgílio Teixeira. Amália, aliás, não se mostrava especialmente entusiasmada
pelo filme (como nunca se mostrou por nenhum dos outros que fez, à excepção
de "As Ilhas Encantadas"), acusando os diálogos de excessivo
artificialismo. Esse seu descontentamento levá-la-ia mais tarde a recusar
entrar em "Eram Duzentos Irmãos", um guião de Vieira Pinto para cujo
elenco o seu nome chegou a estar confirmado.
Claro que o artificialismo é uma das regras do melodrama e "Fado"
explorava habilmente todos os rodriguinhos do género. Não foi por isso
surpreendente que o filme obtivesse tamanho sucesso comercial. Havia a presença
de Amália e do galã do momento, Virgílio Teixeira; havia um elenco de secundários
de luxo (Vasco Santana, António Silva, Raul de Carvalho, Eugénio Salvador,
Erico Braga); havia a música de Frederico de Freitas, com êxitos como
"Fado de Cada Um", "Zanguei-me com o Meu Amor" e o
"Fado da Saudade". Além do mais, Amália saía do triunfo absoluto de
"Capas Negras", que batera todos os recordes de bilheteira do cinema
português da altura.
A popularidade do filme seria recompensada pelo Secretariado Nacional da Informação, a estrutura de propaganda salazarista dirigida por António Ferro, que lhe atribuiria não apenas o Grande Prémio respeitante ao ano de 1948 como também o Prémio de Melhor Actriz. Coisa que Amália insistia em dizer que não era, apenas uma cantora popular que teve a sorte de entrar para o cinema como primeira figura por ser a Amália Rodrigues.
O facto é que é ainda hoje por "Fado" que a Amália-actriz é recordada, mais do que por qualquer um dos outros filmes que fez. "Capas Negras" teve mais sucesso, "Os Amantes do Tejo" abriu-lhe as portas do mundo, "As Ilhas Encantadas" era aquele com que se sentia mais realizada e no qual mais se empenhou. Mas foi "Fado", por muito datado, inverosímil ou inventado que seja, que contribuiu para fixar no imaginário colectivo da cultura portuguesa a imagem que associamos indelevelmente à Amália em início de carreira: uma cantadeira talentosa que veio do nada e subiu pelo seu próprio talento, sem nunca perder a "ligação à terra" que garantiria a sua longevidade num meio repleto de armadilhas. Essa imagem confundiu-se, miscigenou-se de modo inevitável com a verdadeira Amália -- de cuja essência, de qualquer modo, não estava assim tão longe, mesmo que os detalhes fossem muito diferentes. Mas não deixa por ser isso de ser a lenda. E, como dizia o outro no filme de John Ford, quando a lenda é maior que a realidade, escreva-se a lenda.
O FADO DE "FADO"
O nome do filme quase o exigia -- e claro que, para "Fado", Amália teve de se ater à "tradição". Para lá da partitura original de Jaime Mendes, Amália interpretava quatro composições inéditas com música de Frederico de Freitas e uma "síntese" de fados que já faziam parte do seu reportório. Mas a Amália de 1946 não era já a cantadeira que o filme dava a entender, de tal modo que raramente voltará a este reportório. |
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Sendo
"Fado" um filme montado à volta da figura e da personagem de Amália,
não deixa de ser irónico que a escolha de composições acabe por reflectir
muito mais aquilo que se esperava e que se queria de Amália do que aquilo que
ela já era. Apesar do êxito que as composições de Frederico Valério haviam
granjeado a Amália e da nova direcção que ele abrira à sua carreira, os
fados orquestrados de Valério eram considerados "ousadias" e
"Fado" era, afinal, a "história de uma cantadeira"?
Assim, para a autoria das canções originais foi convidado Frederico de
Freitas. Este compositor, que fizera parte durante a década de 30 de uma geração
que viera inovar o teatro musicado, estava já em 1946 retirado da composição
ligeira, mas foi sobre os seus ombros que caiu a responsabilidade de compor os
inéditos para Amália cantar. Fê-lo com o talento que lhe era reconhecido e os
quatro fados que escreveu tornaram-se grandes êxitos, embora dos quatro apenas
"Fado da Saudade" seja hoje recordado. Foi este o único dos quatro
que Amália mais tempo manteve no seu reportório. Aliás, ao longo dos anos 50
e 60 ela raramente voltaria a grande parte do reportório que criara na década
de 40, demasiado marcado pela sua época (as excepções mais notórias foram,
claro, as composições de Frederico Valério) e sabe-se que Amália não
gostava das letras de alguns dos seus maiores êxitos dessa altura, como
"Perseguição" ou "Fado do Ciúme".
Dos quatro inéditos, Silva Tavares escreveu os versos para "O Fado de Cada Um" e "És Tudo para Mim" (também conhecido por "Dá-me um Beijo (És Tudo para Mim)"), enquanto José Galhardo assinava as letras de "Fado Não Sei Quem És" e "Fado da Saudade".
O leque de composições apresentadas por inteiro completava-se com "No Me Quieras Tanto" e com o vivo "Zanguei-me com o Meu Amor", com versos de Linhares Barbosa. Estas seis canções eram completadas por uma "síntese" de fados, passando brevemente por algumas melodias clássicas que faziam parte do reportório de palco de Amália: "Ave Maria Fadista", "Desespero" e "Duas Luzes". Da "síntese" destacavam-se ainda duas criações próprias: "Alamares", de Linhares Barbosa e Jaime Santos, e "Só à Noitinha (Saudades de Ti)", adaptação de um fado de Amadeu do Vale e Raul Ferrão originalmente criado por Hermínia Silva mas para o qual Amália solicitou a Vale uma nova letra e a Frederico Valério um novo refrão.
Curiosamente, nunca existiu um disco com as canções de "Fado -- História de uma Cantadeira". É certo que em 1947 não havia ainda LPs, mas a razão é mais prosaica -- nessa altura, Amália não tinha ainda contrato de gravação. "Duas Luzes" e "Só à Noitinha" faziam parte dos discos que Amália gravara em 1945 no Brasil, mas das canções de "Fado" três -- "O Fado de Cada Um", tema principal do filme, "Desespero" e a "espanholada" "No Me Quieras Tanto" -- nunca foram gravadas em estúdio pela cantora, e as restantes foram gravadas desgarradamente durante a década de 50.
Jorge Mourinha
CRONOLOGIA Os anos que marcaram a vida de Amália. |
1920
- Amália da Piedade Rodrigues nasce em Lisboa.
Jorge
Mourinha |
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