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ADÍLIA LOPES
(n. 1960)
“Excess of sorrow laughs. Excess of joy weeps”
“The cut worm forgives the plow”.
WILLIAM BLAKE, “Proverbs of Hell”
1. Talvez a poesia una na terra o que está separado no céu.
Dê uma solução não prevista ao que parecia um impossível – impasse ou aporia – na ordem dos factos (não digo do real) ou dos signos.
Bataille, contudo, já o dera a entender com clareza: “La poésie n’est pas la connaissance de soi-même, encore moins l’expérience d’un lointain possible (de ce qui auparavant n’était pas) mais la simple évocation par des mots de possibilités inaccessibles (L’Impossible).
2. Veja-se o caso de Adília Lopes.
Os seus leitores mais atentos (Américo Lindeza Diogo, Osvaldo Silvestre) têm chamado a atenção para os aspectos mais meta-poéticos da sua escrita: leia-se do primeiro o Posfácio redigido para a Obra (Mariposa Azul, 2000) e do segundo “As Lenga-lengas da menina Adília” que acompanham Florbela Espanca espanca (Black Sun, 1999).
Queria, no entanto, chamar a atenção para como, na sua obra, o “meta” é já po(i)ético.
Ao tocar a sua poesia, os nossos olhos são confrontados com um lirismo elementar e mutacional que, no seu (re)fazer, enquanto “crítica da linguagem” (=S, 37), desmonta e decompõe as reificações e “clichés” da Literatura para, desligando e dissolvendo essas formações – que ela trabalha como matéria, lixo, adubo - , por meio da produção (laboratorial, doméstica) de híbridos de “pathos” (real) e linguagem (Burroughs + Cronenberg), reatar com e produzir um novo real e uma outra ordem de elementaridade.
Uma nova criação, portanto.
Estamos assim perante uma prática mais po(i)ética do que literária. Mais engrenagem, fazer, do que estratificação da linguagem.
Uma poesia, se se quiser, pobre, defectiva – no sentido em que Bataille escreve “ Je m’approche de la poésie: mais pour la manquer” - , mas levada aos seus limites e que, na forma como prescinde de todos os seus adornos ( o seu “look” é Maringela), mantém constantemente presentes as ideias de ascese (subida) e de sacrifício.
E isto desde a “Arte Poética” do seu primeiro livro: “Um jogo bastante perigoso” (Edição da autora, 1985).
Perigosa a poesia?,ou apenas mais um jogo de linguagem?
“A acrobata deu mal um salto mortal”, advertia em O Decote da Dama de Espadas.
Sim, mas já em 1833, no Prefácio de Les Jeunes France de Théophile Gautier, se escrevia: “En fait d’artistes, je n’aime que les acrobates”.
E quem em Outubro de 1874 pegasse no terceiro número de La Dernière Mode, revista dirigida e quase exclusivamente escrita por Mallarmé, podia também ler: “En fait de corde raide je n’aime que la véritable corde raide des danseuses et des funambules”.
Na “Arte Poética” de 1985, o poema era entendido como um híbrido (talvez pisciforme) de linguagem (plano da representação: dos signos) e real (plano de referente). Lembram-se de eXistenZ de Cronenberg? Aí têm um análogo formal deste tipo de poesia.
No entanto, no espaço virtual, metamórfico e interactivo do poema, não só o real é linguagem (a palavra “peixe”) como a linguagem é real (“escrever um poema é como apanhar um peixe”), pelo que os dois planos se interpenetram e confundem: tudo o que vem à rede é peixe, ou, se linguagem, poema.
Encontramo-nos, é certo, no quadro de uma “restrição epistémica” (OS, 38) em que o “devir apoemático” do poema nos transporta para “universos dessublimados” (40): mas esse “parti-pris” essencial (e minimal) mão anunciará também um outro realismo?
Tautologia ou significação?
A poesia enquanto representação, livra do real – “pescar o peixe” (no poema) para se livrar dele (no real) – ou é o real – apanhar um peixe e embrulhá-lo numa folha de palavras – que salva da linguagem?
A poesia, sempre “uma questão de vida ou de morte”, é o lugar pobremente semântico, sintacticamente disléxico dessa experiência limite (“luto corpo a corpo”: “ou morremos os dois/ ou nos salvamos os dois”) que responsabiliza perante o real.
“Quando o poema / está / em vez / da foda / incomoda / torna-se coisa / de circo”, isto é, Literatura.
É então, recorde-se, que o acrobata – distraindo-se com a fatalidade (segundo a “doxa”) de ser “artista” – falha no poema o salto mortal que é a escrita.
Como o dá a imaginar (ver: ler por imagens) o dispositivo (instalação por palavras) interseccionista Marat-Psycho, na poesia de Adília Lopes as imagens (“podia responder assim: / Me gusta ver la sangre!” [136] sangram verdadeiramente. É essa a sua profana (mas não menos viva) Eucaristia.
As imagens estão lá, na sua intersecção anacrónica (segundo a dinâmica metafórmica e impura de uma ana-prolepse catacrética), para que o real, instrumentalizado por um oficiante mascarado (talvez o que Mallarmé pensou para operador do Livro), ainda que só por momentos, se instale e tenha de novo lugar. Seja (re)introduzido no mundo pela poesia.
No acto de escrever de Adília processa-se, assim, o duplo sacrifício do sujeito e da linguagem – mas um sacrifício sem pompa, leve e desprendido, em que, como também o refere Osvaldo Silvestre, pelo “non-sens” (o não-sentido e o sentido-Não) (Bataille: “ «la poésie qui ne s’élève pas au non-sens de la poésie n’est que le vide de la poésie, que la belle poésie”), se reactiva e renegocia a “cena primitiva do contrato linguístico” (OS, 45).
Linguagem original – e dos fins que propiciam, anunciam princípios (Nodier) - , a poesia é sacrificial num sentido não só antropológico mas ritual, muito antigo.
“Para quê sacrificar mais uma página em branco? / se ainda escrevesse em peles de bezerros recém-nascidos / atrevia-me a sacrificar bezerros recém-nascidos?”, interroga-se a talhante, face à ideia de sagração: “acho que sim”, é a sua natural resposta.
Na sua dimensão litúrgica, de intersecção entre o real (a paixão) e as palavras, ou deus e os homens, ela permite um tempo e um espaço de abertura em que real e signos – matéria e símbolo – se misturam e regeneram para criar uma outra realidade.
Se a Beleza merece ser espancada – e era essa a lição de Rimbaud: “Un soir, j’ai assis la Beauté sur mes genoux. – Et je l’ai trouvé amère. – Et je l’ai injuriée” (Une saison en Enfer) – é para que ela renasça alterada – menos “humana”, talvez mais forte e desfigurada – da sua carne e feridas.
Nesta poesia (-canto) é a mutilação que cria o órgão e o canto mais belo (selvagem) desta Filomela urbana é o da língua amputada que não aceita o seu destino de ser muda.
“Cantaste sem saber / que cantar custa uma língua / agora vou-te cortar a língua / para aprenderes a cantar / a minha Musa é cruel / mas eu não conheço outra” – corrige a autora.
3. É nesse sentido que lemos “Dois ciprestes” como um poema do fim do mundo (e da poesia) mas também como o lugar extremo feliz – na aporia – de um possível reinício.
O seu problema (enunciado) é o do mistério do Símbolo.
Como do 2 – plano da representação e do signo, de um real e de um mundo empobrecidos, sujeitos ao regime do Sim e do Não, do atado e do desatado, da vida e da morte : dois ciprestes – passar ao 3, o número do símbolo resolvido.
No entanto, o 2 apresenta-se já como uma unidade (lugar: espaço) desunida: entre os seus dois termos (1+1) existe um intervalo (espaço vago, nada a ocupar: “o que não chegou / a ser atado na Terra?”) que é o espaço virtual da operação, um vazio-cheio (potencial) de possibilidades e sentidos (“O deserto está perto. Sempre. Mas o deserto é fértil”).
Lugar (possível) de um Ser a haver. Ou de um discurso que seja o de uma Ficção científica doméstica que explore as potencialidades entreabertas e eufóricas de um real empobrecido (“a vida não era isto / nós sabíamos”).
Um (não) espaço criador (de palavras ou bebés): criacionista.
Assim, a dupla negação, (“não… não”, “nem na vida nem na morte”) resolve-se, com transposição de plano – e é isso a poesia - , num enunciado afirmativo.
A confirmar de cada vez, dando realidade ao carácter metamórfico e testemunhal do processo performativo, já que o autor subscreve – porque se constitui com ele (“Este livro foi escrito por mim”) – caso a caso o poema.
A Negação resolve-se mas não como sublimação da contradição e dos seus termos distintos e irredutíveis: a superação – por salto e descontínua, poética e milagrosa – faz-se com manutenção (até por respeito) desses termos (“porque uma coisa [can be a fake gun and a piece of soap]”).
Esse é também o momento em que o Sujeito dividido das máscaras e dos heterónimos da Patronymica Romanica se reúne (“Eu sou a luva / e a mão / Adília e eu / quero coincidir / comigo mesma”) e em que o convocado objecto do desejo (ser simultaneamente de palavras, afectos e coisas) se (re)apresenta: “Mas Chamilly chega / e fica comigo”.
A questão é como entrar vivo, em carne, com todos os seus gadgets e acessórios – e esse pode bem ser o sublime do kitsch (!) – no paraíso (tanto o do real como o da escrita que são um mesmo).
É aí que reside também o poder ressurreicional, poiético, da obra de Adília Lopes.
Como ela escreve: “acredito na Ressurreição / dos livros / e acredito que no Céu / haja bibliotecas / e se possa ler e escrever”.
A sua poesia é uma poesia alegre, dos loucos de deus (e da vida), de caridade pela criação (mundo).
Extensão metamórfica de um Sujeito-Pop, o que quer dizer popular e poroso ao real (às suas falhas, arestas e aberturas), e não mais uma triste reposição de um Orfeu sempre mais interessado em confirmar o carácter mórbido (morto) do seu fantasma do que em reconfigurar, reanimar, como se fosse a primeira (última) vez, a matéria viva do mundo.
Assim, o que foi (se)parado no céu, ultrapassado o portal dos dois ciprestes – fim de um mundo mas também boca de outro – pode de novo ser junto como real, pela poesia, em vida.
Fernando Guerreiro
De: "Século de Ouro - Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX", organizada por Osvaldo Silvestre e Pedro Serra, Angelus & Cotovia, ISBN: 9-727950-45-0
Entrevista com Adília Lopes - INIMIGO RUMOR
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17 de Junho de 2005 |
Entrevista de Adília Lopes
conduzida por Carlos Vaz Marques
Esta entrevista tem uma notícia: anuncia um adeus, Adília Lopes confessa que está a deixar de escrever poesia. Uma retirada que acontece na altura em que se completam vinte anos desde que publicou o primeiro livro (Um Jogo Bastante Perigoso, edição da autora, 1985). Aos 44 anos, Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira já não precisa tanto dos versos como precisou no momento em que escrever poemas se tornou para ela uma questão de vida ou de morte (é ela própria que o diz), depois de uma descida aos infernos (outra vez uma expressão da própria Adília) da depressão e da perda de sanidade mental. Adília Lopes é um caso na poesia portuguesa. Há a poetisa (ela não quer que se diga poeta) e a personagem. Uma e outra desconcertantes. Encontro-me com ela nos jardins da Gulbenkian para tentar desvendar o mistério Adília; na expectativa de descobrir se entre a personagem, aparentemente ingénua, e os versos, frequentemente perversos, há coincidência possível. O resultado desta dúvida está nas páginas que se seguem. Não sei se lá estará também a resposta. Cada qual que julgue por si. Tirar conclusões é “um jogo bastante perigoso”.
O que é que espera da poesia?
- Para dizer a verdade, não sei. Estou numa época de dúvidas.
Ser artista ainda é para si, como escreveu uma vez, “um escudo invisível”?
- É. É um escudo invisível que eu acho que nos protege de uma certa relação com o exterior. É um escudo. É um filtro. É um véu.
Contra que ameaça: o exterior é uma ameaça?
- O exterior tem muitas ameaças. Ameaças de intromissão naquilo que nos é mais querido, naquilo que temos que defender. Naquilo que faz parte de nós mesmos. Naquilo que faz a nossa integridade.
E como é que esse escudo actua?
- Actua no dia-a-dia, no quotidiano. Por exemplo (eu gosto muito de exemplos e de ilustrar tudo com exemplos), o Roland Barthes, que era um escritor e professor de literatura francês, dizia: “il faut toujours défendre cette chose en nous dont on se mocque” (temos que proteger sempre aquilo de que os outros fazem troça em nós). A arte, ser artista, protege-nos em relação à opinião comum, àquilo que é muito apenas a circunstância.
Antes de mais proteger o seu nome. Porque é que adoptou o pseudónimo de Adília Lopes?
- Eu dava-me mal com o meu nome. Tinha problemas com os meus pais e o meu verdadeiro nome, o do bilhete de identidade, era o dos meus pais: Silva Viana da minha mãe, Fidalgo de Oliveira do meu pai. E Maria José por causa dos pais, dos avós, de não sei o quê.
Maria José não foi escolha sua. Precisava de um nome escolhido por si?
- Precisava de um nome escolhido por mim e queria que tudo, na capa do meu livro, fosse escolha minha. É claro que é uma pretensão. Na vida não escolhemos tudo. Aliás, eu tenho ideia de que na vida escolhemos muito pouco.
O que é que escolhemos?
- Escolhemos continuar, prosseguir.
E o que é que não escolhemos?
- Não sei muito bem.
Eduardo Prado Coelho considera, já o escreveu, que esse seu pseudónimo é “ostensivamente não-poético”. Revê-se nesta afirmação?
- Bem, eu acho que é poético. Não me revejo totalmente. Não é um nome de intelectual, talvez. Isso talvez não seja.
O que é que seria um nome de intelectual?
- Não sei muito bem. Estou a brincar. Eu ligo muito aos nomes. Mas estou a inventar. Não posso dizer o que seja um nome de intelectual. Não sei.
O seu nome literário, Adília Lopes, foi escolhido por alguma razão em especial, nalguma circunstância particular ou não tem história, pura e simplesmente?
- Tem, tem história. Eu não tinha nada publicado (só coisas da adolescência), queria publicar as coisas novas que tinha escrito e concorri a um concurso de textos literários - era de prosa - da Associação Portuguesa de Escritores e fazia parte do regulamento usar um pseudónimo. Então pedi a um amigo que me inventasse um pseudónimo e ele inventou este.
Surgiu assim, sem mais nem menos, sem nenhuma razão?
- Surgiu sem razão nenhuma. Não sei qual é a razão. Surgiu este nome e então eu adoptei-o. Ficou com um nome.
E sente-se hoje mais Adília ou mais Maria José?
- Sinto-me mais Adília porque tinha poucos amigos e fui fazendo vários amigos, a partir daí. As pessoas conheciam-me primeiro pelos poemas e depois é que conheciam a pessoa. Então, tratam-me naturalmente por Adília e não por Maria José. Portanto, acabo por ser mais Adília do que Maria José, hoje em dia.
Já escreveu uma vez que “Adília Lopes é água no estado gasoso e a Maria José a mesma água em estado sólido”. Quer explicar isto um bocadinho melhor?
- Isto é coisa do meu passado na Física. Naturalmente, é água no estado líquido, no estado gasoso, no estado sólido, em neve, tudo isso...
A Adília, água em estado gasoso, tem uma maior capacidade de ascensão, é mais volátil que a Maria José, em estado sólido?
- Há uma pessoa em mim que é muito feliz, muito infantil, que anda sempre aos saltos.
A Adília?
- Não sei se é a Adília se é a Maria José. Deve ser mais a Adília. E há outra que se preocupa muito com o preenchimento do IRS, com as contas do banco, com o cano roto na casa de banho, essas coisas assim. Há uma muito t preocupada e outra muito feliz, pronto. Balanço entre as duas.
Na sua poesia é frequente o gosto peles jogos de linguagem. Tem, por exemplo, uma antologia intitulada “Caras baratas”. É isto é só um trocadilho ou algo mais do que isso?
-É algo mais do que isso. Por um lado, os bichos – e eu gosto muito de bichos - serão queridas baratas. Mas não há rostos baratos. Não há caras caras e caras baratas. Vivemos num momento em que as pessoas fazem muitas operações plásticas ou gastam muito dinheiro com a aparência e eu acho isso um logro.
Portanto, “caras baratas” não é só uma referência às baratas, os pequenos animais rastejantes. As caras-faces também estão neste título.
- Sim, são as faces e os animais, sim.
As baratas do título são a metáfora de alguma coisa ou são para ser tomadas à letra?
- Eu não posso dizer tudo, porque se digo tudo estou aqui a falar durante muito tempo. As baratas, animais, são-me queridas. Gosto da Metamorfose do Kafka mas na Metamorfose do Kafka não se sabe ao certo de que animal se trata: se é ou não uma barata.
Gosta muito de baratas?
- Muito, muito não posso dizer que goste. Se é uma ou duas é engraçado. Agora, muitas baratas causam-me repugnância.
Pergunto-lhe isto porque já no ano 2000 tinha editado um livro chamado Irmã batata, Irmã barata. O que é que as baratas têm para si de especial para estarem assim tão presentes na sua poesia?
- Bem, elas estão presentes em m a casa. Na minha casa há baratas. Não ponho remédio para as baratas porque tenho gatos e não quero que os gatos comam o remédio das baratas. Quando eu era pequena tinha muito medo de baratas. Lembro-me de uma barata que pôs ovos na cama das bonecas.
Perdeu esse medo, entretanto?
- Perdi. Também tinha medo das aranhas mas, de certo modo, elas também me fascinavam porque eu gostava de as observar.
Escreveu, inclusive, numa crónica de Jornal que “as pessoas deviam imitar as baratas”. Escreveu isto aqui há uns anos. Em que é que devíamos ser como as baratas?
- Eu acho que as baratas se divertem. As baratas andam pela casa toda. Correm muito. Alimentam-se do que lhes aparece pela frente. Vivem do que surge, do momento. Não sei se é assim, a minha cabeça não é a de uma barata. Não sei.
Mas acha que os seres humanos deviam comportar-se assim, como aquilo que imagina que é o comportamento das baratas?
- Não posso dizer isso.
Escreveu-o, não é?
- Talvez eu tenha escrito isso mas a linguagem também mascara muito o que a pessoa diz. Eu posso ter escrito isso mas era num certo contexto, a explicar determinada coisa. O que eu acho é que a pessoa tem de ser fiel a si mesma. Quanto à relação com as baratas é uma relação de empatia.
Há muita gente a quem as baratas causam uma enorme repugnância e, há pouco, dizia que quando são muitas também a si lhe repugnam...
- Sim, repugnam. Quando são muitas, repugnam. Fazem um barulho. Aliás, quando se entra numa casa onde há baratas sente-se aquele grunhido, não é bem um grunhido, aquele barulho característico. Por exemplo, pisar uma barata é repugnante.
Apesar disso fala da “irmã barata”.
— Sim, porque são seres vivos. São seres que convivem connosco, que estão no nosso quotidiano. Eu sou cristã -sei que as pessoas não percebem isto muito bem, quando o digo - e as baratas estão neste mundo. Por algum motivo estão. Não sei explicar muito bem porquê. Não sei se na Bíblia há alguma referência a uma barata mas por algum motivo elas estão neste mundo.
Tenho a sensação que há-de haver muita gente a achar esta conversa um bocadinho estranha.
— Sim.
Há algum propósito humorístico também naquilo que diz e naquilo que escreve, por exemplo quando escreve sobre baratas?
- Há. Também há sentido de humor. Mas não há só isso. Não é uma procura só de sentido de humor. Isso nunca faço. Nas coisas que escrevo nunca o faço.
Pergunto-lhe isto porque, com certeza, para muita gente, um livro chamado Irmã batata, Irmã barata ou um livro intitulado Caras baratas são livros cujo título, à primeira leitura, é lido de forma humorística. Fazem soltar imediatamente uma gargalhada ou pelo menos um sorriso.
- Ah, mas eu acho que isso é bom. Ë bom as pessoas rirem-se.
Gosta que se riam com os seus poemas?
- Sim. Gosto que se riam. Mesmo que façam troça. Quer dizer, eu não gosto que façam troça mas mesmo assim gosto que se riam. Acho que isso é espicaçar as pessoas. Ë chamar-lhes a atenção para certas coisas.
É a tal parte de nós que temos de preservar de que falava o Roland Barthes na frase que citou há bocado?
- Sim. Aquilo de que os outros fazem troça em nós é aquilo que temos que proteger mais.
O que é que protege mais em si?
- A integridade. Uma integridade emocional, psíquica. Quer dizer, ser séria. Ser séria comigo e com os outros. O que às vezes põe problemas. Sei lá, uma pessoa que me vem pedir um favor ou se sou eu que preciso de um favor… Esse género de coisas causa sempre problemas.
A Adília Lopes também se ri com aquilo que escreve ou leva a sua poesia mais a sério do que esses leitores que encontram um propósito humorístico nos seus títulos e nos seus versos?
- Eu levo a minha poesia muito a sério. Para mim é uma questão de vida ou de morte.
De vida ou de morte?
- De vida ou de morte, sim. É uma questão de sobrevivência. Se eu não escrevesse poesia não sei o que seria de mim. Seria muito difícil sobreviver emocionalmente, mentalmente.
É o tal escudo de que falava no início?
- É o escudo, sim. Mas neste momento penso estar a deixar de escrever poesia. Talvez já não precise tanto de escrever poesia. Quero dar aulas de poesia. Quero escrever prosa e dar aulas de poesia já é, um pouco, escrever prosa porque é falar sobre a poesia dos outros. Isso é outra fase da minha vida, penso eu.
Quer dizer, que escrevia poesia mais por uma necessidade de equilíbrio do que por outra razão qualquer?
- Sim, escrevia por necessidade. Quer dizer, quando comecei a escrever eu achava que já não precisava de escrever. Mas havia uma necessidade muito grande. E ainda hoje tenho essa necessidade, sim.
Ainda voltando aos seus propósitos humorísticos maiores ou menores, já houve quem lhe chamasse “um Luis Pacheco de saias”. Como é que recebe um epíteto destes?
- Ah, eu acho que isso é um piropo. É um elogio. Gosto imenso da prosa do Luís Pacheco. E ando sempre de saias.
É pelo lado literário ou pelo lado satírico, às vezes quase escatológico, que encontra razão de ser neste ‘piropo”, como lhe chama?
- Eu acho que é por um lado de sanidade, de ter uma relação sã com a vida, com o sexo, com a comida, com o dia-a-dia. As pessoas, às vezes, ligam demasiado à aparência. Ligam demasiado à imagem que dão de si. Ao que os outros pensam. Ao que os outros dizem. São pouco fiéis a si mesmas e àquilo que lhes dá mais felicidade.
Essa atitude que está a defender passa por provocatória, muitas vezes.
- Passa por provocatória porque há um fazer comum que não é assim. Mas há coisas que mudam.
Mas há também intuitos provocatórios nessa sua atitude?
- Não, não há. Não há nisto intuitos provocatórios. O Luís Pacheco é bastante mais velho (não lhe estou a chamar velho mas é mais velho) do que eu. Penso que quando ele escreveu aquelas coisas seria muito mais difícil escrevê-las do que para mim, hoje.
Ainda se define como poetisa pop, como num dos seus versos?
- Eu não sou poetisa pop. Eu sou poetisa. Não gosto muito que me chamem poeta. Sou uma mulher, não sou um homem. E se há as palavras poetisa e poeta... Há palavras que não têm feminino e masculino mas esta tem.
E quanto ao adjectivo pop?
- Pop. Pois, também podia ser clássica ou barroca.
Podiam chamar-lhe poetisa clássica?
- Podiam. Podia ser clássica.
Mas não há muito de clássico nos seus versos.
- Ai há, há. Há muito. Eu gosto muito de poetas clássicos.
Uma coisa é gostar de poetas clássicos, outra coisa é eles estarem nos seus versos e isso estar na sua poesia.
- Mas eles estão, estão. Aliás, eu comecei a escrever poesia quando comecei a ler autores clássicos. Quando voltei a ler os clássicos portugueses. A certa altura da minha vida mudei de curso (estava em Física e passei para Letras), tive de voltar ao liceu e no liceu tive de estudar latim e tive que voltar a ler os clássicos.
A poesia até essa altura estava arredada da sua vida?
- Não, não estava arredada mas houve esse mergulho na poesia clássica: no Camões e depois mesmo nos latinos, que eu estudava. Acho que isso foi fundamental. Às vezes as pessoas fazem uma ideia dos clássicos que não é bem o que eles são. São tesouros a descobrir.
A Adília Lopes, já o contou, nasceu em 1983.
- Sim, a Adília Lopes, sim.
Subitamente ou depois de uma gestação demorada?
- Houve uma gestação demorada de que eu não tive consciência.
Foram as leituras que ficaram para trás?
- As leituras e práticas de escrita durante muito tempo, desde muito nova. Desde sempre. A minha mãe possibilitou-me, por exemplo, desenhar, pintar e eu acho que a minha poesia vem já desse desenhar e desse pintar.
E depois, de repente, surgiu Adília Lopes.
- Sim. A Adília Lopes surgiu com um poema que escrevi no meu diário quando uma gata minha, a Farrouque, desapareceu. Não sabia dela, andava muito preocupada com a gata e comecei a escrever sobre a gata.
Ainda se lembra desse poema?
— Não, não me lembro do poema e deitei fora o caderno. Tenho muita pena disso. Mas foi exactamente o meu primeiro poema. Depois, a gata apareceu, por isso eu achei que era feliz e a partir daí comecei a escrever ininterruptamente.
De que modo é que esse aparecimento da Adília Lopes é fruto daquilo a que já chamou a sua “temporada no inferno”?
- Bem, isso sim, foi bastante terrível. Tinha um ambiente muito pesado em casa. Com pessoas muito velhas, doentes, com problemas. Era muito complicado. A entrada para a Faculdade também não foi nada fácil porque eu tinha de estudar muito mais do que no liceu. Custava-me e eu não conseguia concentrar-me. Tinha dificuldades de concentração, depois não dormia, depois tinha problemas e fui-me muito abaixo.
Isso na Primavera de 81. Ficaram marcas dessa Primavera?
- Ah, sim, ficaram. Ficaram marcas terríveis para mim, sim. Tive que tomar medicamentos, tive que me tratar no psiquiatra. Foi muito complicado. Eu era magra, hoje estou gorda. Isso tudo pesa.
O que é que lhe aconteceu?
- Tive uma depressão muito grande.
Foi qualquer coisa de súbito como uma trovoada ou foi progressivo?
- Foi progressivo. Eu estava muito isolada, tinha poucos amigos... Não tinha amigos. A minha família estava muita isolada, eram pessoas muito velhas, doentes. Os meus pais também eram pessoas multo isoladas. E eu senti-me, de repente, na Faculdade, muito desamparada. Muito só. Também havia o clima no pais, que era de quase guerra civil, Isso atingiu-me muito.
A Maria José era uma aluna brilhante, tinha óptimas notas.
- Tinha muito boas notas mas não era propriamente brilhante. Era uma boa aluna mas havia alunos muito melhores do que eu.
Mas sentia o stress do desempenho escolar?
- Sim, sentia-o muito. Sentia isso e sentia que não conseguia estudar. Aliás, o psiquiatra que consultei, o Dr. Coimbra de Matos, disse-me: “agora não estude” e isso foi muito bom para mim.
Foi um alivio?
- Em relação aos meus pais foi um alívio. Eu tinha que parar de estudar e não podia dizer aos meus pais: agora vou parar de estudar. Tinha que estar doente.
A sua mudança de Ciências para Letras teve alguma coisa a ver com essa circunstância, com essa depressão?
- Teve, sim. Porque eu ainda tentei continuar a estudar Ciências mas a cabeça já não trabalhava. Quer dizer, eu precisava de ter parado por mais tempo, penso eu. Tenho muita pena de não ter concluído o curso de Física. Gostava muito de Física. Ainda hoje gosto de Física e sinto-me muito feliz por a Gazeta de Física publicar poemas meus e artigos meus. Fico muito contente com isso.
Ainda se sente uma cientista?
- Isso sabia que nunca seria. Mas que gostava muito de Física, gostava.
Normalmente, a maior parte das pessoas costuma ser bastante reservada a respeito destas questões de problemas psicológicos, depressões. Porque é que, no seu caso, fala delas publicamente e escreve sobre elas com tanta frequência?
- São questões muito importantes para mim e fazem parte de mim. Eu tenho a possibilidade de falar deles sem muitos problemas. Acho que muita gente sofre com esses problemas. Sofre em silêncio e com amargura.
Foi por isso que já uma vez escreveu, também numa crónica, que “há um preconceito em relação à doença mental que não há em relação às outras doenças”. Sentiu muito esse preconceito?
- Sim, senti. Senti-o por parte das pessoas que me estavam mais próximas. Às vezes agrediam-me mesmo. Verbalmente, mas agrediam. Porque há muita ignorância. E há 20 anos atrás, quase 25 já, havia ainda muito mais ignorância.
Era o caso daquelas suas amigas de infância que são personagens constantes da suas crónicas?
- Sim. Mas pronto, isso são coisas passadas. Já passou muito tempo sobre isso. Eu não lhes tenho rancor. Mas há coisas que ferem. Há coisas que magoam. Hoje em dia, quando vejo outra pessoa que está com problemas mentais que eu reconheço - ou alguém a gritar à janela ou a fazer disparates ou assim - e em que os outros são maldosos para ela, ou que vão ser, eu sinto que tenho de intervir. Não sei muito bem como mas tenho. O doente mental está muito desprotegido. Primeiro, está desprotegido já em relação a si mesmo. Em Portugal a situação é difícil para o doente mental.
A certa altura, quando foi publicada a sua poesia completa, A Obra, a Adília Lopes tornou-se uma figura pública, de um momento para o outro. Foi a vários programas de televisão, nessa altura. Quem é que lhe parecia que convidavam: a escritora ou uma personagem capaz de dizer em público coisas que a maior parte das pessoas não dizem e de falar, na primeira pessoa, de assuntos como este de que temos estado a falar?
- Eu penso que era mais a pessoa que dizia essas coisas do que propriamente a escritora. Porque para ler os meus poemas para entender a minha poesia, acho que é preciso ter uma certa cultura. Não estou a chamar incultas às pessoas ou a dizer que não são cultas. Todas as pessoas têm... Às vezes não valorizam aquilo que é mais culto nelas.
Alguma vez se sentiu usada?
- Não. Não me sentia usada. Eu acho que às vezes as pessoas convidavam-me, faziam-me perguntas e era caso para dizer que não sabiam aquilo que estavam a fazer. Porque as pessoas pensam, às vezes, que eu sou muito ingénua ou pateta ou assim mas eu não queria era ser uma sabichona.
Isso quer dizer que cultiva essa ingenuidade?
- Não cultivo a ingenuidade. Não sou é calculista. Mas também não sou uma tonta.
Sentiu alguma vez que queriam fazê-la passar por tonta, nessas suas aparições públicas?
- Não, acho que... Quer dizer, tenho ideia que sentia uma certa estranheza.
Tornou-se uma figura pública, nessa altura.
- Sim, tornei-me. Mas penso que isso já passou.
Gostou, na altura, dessa personagem Adília Lopes?
- Era estranho, para mim. Não era muito confortável. Depois o telefone estava sempre a tocar, estavam sempre a convidar-me para programas e a certa altura eu pus um termo nisso. Não era vida para mim, estar sempre a aparecer. Não gosto disso.
Voltemos então aos seus poemas. A sua poesia, já houve quem o sublinhasse, “dá a estranha sensação de ser autobiográfica quase em primeiro grau”. Conta-se a si própria nos seus poemas?
- Uso a minha experiência mas com recuo, com distância.
Com máscara, também?
- Com máscara. A linguagem é sempre uma máscara.
O que é que é confessionário o que é que é jogo naquilo que escreve?
- Em princípio nada é confessional.
Mas usando partes da sua biografia, usando histórias e casos pessoais, há qualquer coisa de confessional...
- Claro, aí sim. Mas isso levanta problemas. Por exemplo, eu tenho um poema que se chama “A Aurinha” e tenho uma vizinha que se chama Aurinha.
Não foi coincidência!
- Quer dizer, é difícil... Eu hoje preferia que o poema se chamasse a Zezinha, que é como me chamam a mim. Ao princípio eu pensava: pronto, nada disto é confessional. Mas, a partir de certa altura, a pessoa sente que fere amigos...
Quando os outros começaram a ler os seus versos e a descobrir-se neles percebeu que havia ali qualquer coisa de confessional?
- Senti que podia haver. É muito difícil quando eu escolho um nome para uma personagem... Na melhor das hipóteses escolheria um número, porque nos nomes qualquer pessoa se pode sentir retratada, ao fim e ao cabo. Uma pessoa, como eu, com 44 anos, já conheceu tanta gente. Se eu escrevo Maria do Céu, conheço muitas; Maria do Carmo, conheço muitas... Uma pode ler e sentir-se retratada.
Mas isto não é só uma questão de nome.
- Sim, também é uma questão do que escrevo para esses nomes mas isso, ai, é a nossa vida: vivemos uns com os outros. Eu não quero ferir ninguém mas, involuntariamente, acho que firo as pessoas.
Também se fere a si própria, também se sente ferida ao reler alguns dos seus poemas?
- Não, isso não. Isso aconteceria se o poema fosse mal escrito. Se fosse literariamente mal feito. Ë isso que eu sinto nos poemas que faço hoje em dia: é que estão a perder a força e estão a ficar mal construídos. Por isso, prefiro parar.
Isso é o anúncio de uma retirada de cena?
- Durante algum tempo, sim. Ainda hoje estive a reler uma massa grande de poemas que estive a trabalhar estive a passá-los à máquina; eu escrevo num caderno, à mão, e depois passo à máquina) e desses todos muito poucos sobrevivem. Sinto dúvidas.
É a sua qualidade poética que está a decrescer ou o seu espírito crítico que está a aumentar?
- Acho que é uma fase nova. Não me aflige. Por exemplo, quando eu leio poemas de um grande poeta como Rimbaud, um poeta francês do século XIX, não gosto muito. Eu já gostei muito daquele poeta. Aos dezasseis, dezassete anos lia Rimbaud e estudava francês para o ler...
E hoje de que é que deixou de gostar em Rimbaud?
- Eu percebo a revolta dele mas é demasiado anti-católico, demasiado violento. É demasiado agressivo. Eu não gosto dessa agressividade.
O seu primeiro livro chamava-se Um Jogo Bastante Perigoso. Qual é o perigo?
- Há sempre perigo. Eu acho que viver é perigoso.
Escrever poesia também?
- Escrever poesia também é perigoso. Custou a cabeça a muita gente.
Qual é o risco que corre com a poesia que tem publicado?
. Eu penso que tudo é perigoso. Fazer seja o que for. Ser jornalista é perigoso, ser empregado de escritório é perigoso. Até mesmo para quem estava a passar umas óptimas férias na Tailândia, veio o tsunami... Viver é perigoso, pronto. Corremos esse risco.
Quem são os seus poetas de referência?
- Assim de repente é difícil. Mas de repente, de repente, dizia três nomes: Verlaine, a Sophia de Melo Breyner Andresen e o Cesário Verde.
Já estava à espera que referisse a Sophia que refere frequentemente embora, pelo menos aparentemente, não haja nada de mais nos antípodas da sua poesia que a poesia dela.
- Não concordo. Acho que as nossas poesias - é pretensioso dizer uma coisa destas mas a poesia da Sophia e a minha poesia... Aprendi muito com ela e aprendi que cada palavra tem o seu lugar, cada palavra tem muito peso e não se escreve para embonecar. Não se escreve para fazer bonito. Quando usamos um adjectivo pensamos sempre muito se se põe o adjectivo ou não. A poesia é substantiva, tem a ver com a substância.
Mas nos poemas de Sophia digamos que há uma aspiração ao sublime enquanto que os seus poemas, já houve quem o escrevesse, têm um efeito de “des-sublimação”. Vê neles isso?
-Não, não vejo.
Fala de baratas e de batatas e conta anedotas e faz jogos de linguagem...
- Sim, mas pode chegar-se ao sublime por aí.
São ínvios os caminhos do Senhor?
-São.
E os caminhos da poesia?
- Sim, mas de maneira nenhuma se pense que eu gosto de porcarias, de coisas sujas. Há poetas (não estou a dizer mal deles) para quem há o lado “flores do mal”, o Baudelaire, essas coisas... Eu não gosto disso. Não gosto disso, não.
Mas há muito de escatológico também, na sua poesia.
- Mas não é isso.
Há os palavrões, o sexo.
- Mas isso pode ter um lado sadio que não é o lado mórbido. Há um lado mórbido, por exemplo, em Baudelaire, outro grande poeta, que não me atrai.
Já uma vez escreveu a respeito da poesia que escreve: “o que eu escrevo não se diz”. Porquê?
- Bem, isso é um jogo: está escrito, está gravado no papel; é diferente ser uma imagem gráfica, uma letra escrita num papel ou ser dito em voz alta. A voz é sempre diferente.
É esse o jogo?
- É.
Não tem a ver com a ideia de que não se pode dizer em voz alta aquilo que se confessa ao papel?
- Não. Não tem a ver com isso.
Eu interpretei isto a partir de uma linguagem que a Adília usa, por vezes, na sua poesia e que não é exactamente uma linguagem de salão.
- Eu gosto muito de usar o sentido literal que depois uso no outro sentido, também.
Porque é que o sexo está tão presente e tão frequentemente nos seus poemas?
- Acho que está presente para toda a gente, só que as pessoas não dizem isso. Não é aquela ideia (eu acho que hoje já não se pensa isso!) de que é só na adolescência... As crianças estão sempre a dizer coisas nesse sentido, é sempre isso que está presente.
E escrever sobre isso é uma forma de sublimação?
- É. É a forma de sublimação.
De sublimação também no sentido de ascender ao sublime?
- Há um poema de Luisa Neto Jorge que faz a brincadeira com sublime acção, sublimação. A passagem do estado sólido ao estado gasoso também é isso.
Adília, Maria José..,
- A Física, sim.
Já se sentiu mal lida, mal interpretada, alguma vez? -
- Sim. Mas isso, o Rimbaud, o Baudelaire, o Camões, todos se devem ter sentido. Não é para dizer que sou uma grande poetisa. Qualquer pessoa se sente mal interpretada na vida. Não é só um escritor.
Qual é o seu verso de que gosta mais?
- Não sei.
Carlos Vaz Marques é o autor do programa” Pessoal e... transmissível”, na TSF, diariamente, depois das 19h00.
DNa / 17 DE JUNHO DE 2005