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My CD's of CECILIA BARTOL

Year     Name

 

1991     Rossini Recital                                 Charles Spencer - Piano

1991     Mozar Arias                                      András Chiff - Piano

1992     Arie Antiche - Se tu m'ami                 György Fischer - Piano

1992     Rossini Heroines                               Orchestra and Chorus T. La Fenice - Iom Marin

1993     Italian Songs                                    András Schiff - Piano

1994     Mozart Portraits                                Kammer Orchester Wiener- György Fischer

1995     Cecilia Bartoli - A Portrait            

1995     La Cenerentola- Highlights                 Teatro Comunale di Bologna - Riccardo Chaily

1996     Chant d'amour-Mélodies françaises    Myung Whun Chung - Piano

1997     An italian songbook                           James Levine - Piano

1998     Live in Italy                                       Jean Yves Thibaudet - Piano

1999     Cecilia & Bryn - Duets                       Myung Whun Chung - Piano

1999     The Vivaldi Album                              Il Giardino Armonico - Arnold Schönberg

2001     Gluck Italian Arias-Dreams & Fables
2002     Art of Cecilia Bartoli

2003     The Salieri Album

2005     Opera Proibita (Handel-Scarlatti-Caldara)-Les Musiciens du Louvre · Minkowski

 

 

 

Bartoli, a feiticeira

 

 

Juntar uma das melhores mezzo-sopranos com o seu maestro preferido, numa das melhores salas de concertos de todo o mundo, é sucesso garantido. O «pretexto» foi «Armida», de Haydn, num espectáculo protagonizado por Cecilia Bartoli, que decorreu no Musikverein de Viena

O que é hoje um nome na casa das artes? É um produto bem embalado. O pacote é atraente mas ao desembrulhá-lo verifica-se as mais das vezes que o produto é de fancaria ou ultrapassou há muito o prazo de validade. Exemplos abundam no mundo da ópera. A mezzo-soprano italiana Cecilia Bartoli é a excepção. Lançada com estrondo há uma dúzia de anos, foi gravando discos, foi videofilmada em ambientes especiais, impôs-se na América (o continente que conta), racionou as suas aparições. Novinha em folha (tinha vinte e poucos anos), viçosa, com personalidade ebuliente, olhos que parecem dois tições, cabeleira farta e desarrumada (ingrediente essencial de sucesso na América), o «marketing» faria o resto.

Salvou-a uma independência genuína e uma voz rara (embora relativamente pequena) de mezzo de coloratura, à qual nenhum prodígio de imaginação parece estar vedado. Podia dar-se ao luxo de passear pelo mundo a repetir os seus sucessos em Rossini, Mozart ou no que está na moda. Mas não se corrompeu nem se deixou embalar pelos «cross-overs». Hoje. a Bartoli faz o que quer e com quem lhe apetece. E o que faz é sempre inteligente e interessante.

O último projecto foi a «Armida» de Haydn com Nikolaus Harnoncourt, naquela que é talvez a mais requintada sala de concertos do mundo: o Musikverein de Viena. Segue-se a gravação para a TELDEC, a aparecer em Outubro. Pela amostra, é um objecto a não perder. Harnoncourt é um grande senhor da música e também o maestro favorito da Bartoli.  Separados pelas respectivas editoras, estavam condenados a não deixar rasto das suas frequentes colaborações (excepção feita a uma gravação do Lucio Silla de Mozart em 1990). Agora quebrou-se o enguiço legal e já se anuncia também um disco de árias e cantatas de Haydn.

 

 

 

«Armidas» há muitas, e a de Haydn não seria a primeira a vir à lembrança. Os amores impossíveis de Armida e de Rinaldo remontam à «Gerusalemme Liberata» de Torquato Tasso (1544-95) e foram postos em música por uma mancheia de compositores, de Monteverdi a Dvorak, passando por Lully, Handel, Gluck, Jommelli, Traetta, Gazzaniga, Salieri, Cherubini, Rossini e até Brahms. Em conversa em Viena entre concertos, Harnoncourt convenceu-nos a todos de que a de Haydn é, de longe, a mais interessante e actual, até em termos de «realpolitik». Quem diria? No que toca a Haydn, a opinião corrente é que a música pode ser excelente mas quanto a drama, estamos conversados (ao contrário do que acontece com Handel, cujas óperas são sempre brilhante música e ainda melhor teatro).


Como Harnoncourt explicou, os casos de Handel e Haydn são, no que respeita à ópera, completamente diferentes. «Handel não tinha concorrentes à sua altura. Bach não escreveu óperas, estava em Leipzig, 'cantor' na Escola de S. Tomé. Haydn tinha um concorrente que muito admirava, Mozart. Quando lhe pediram para compor uma ópera para Praga, disse logo que não e recomendou Mozart. Há duas veias em Mozart: uma de 'Singspiel', com o 'Entführung' e a 'Zauberflöte', e outra que vem da ópera italiana, com personagens bem caracterizados, e que acaba no 'Così'. O 'Così' é o fim, não podia ir mais longe: papéis importantes para todos os cantores, um diálogo a várias vozes.


As últimas óperas, 'Zauberflöte' e 'Tito', são a maneira como Mozart antecipa o século XIX, e apontam para obras como o 'Fidelio' ou o 'Freischütz', uma espécie de floresta aos encontrões com todas as árvores... Haydn pertence à segunda metade do século XVIII, extremamente inventivo - vê-se isso na música instrumental e nas óperas. Haydn tinha ao seu dispor (em Eszterháza) a melhor orquestra do mundo. Era também um bom comerciante, no que respeita a salários e direitos. Pelo menos cinco das maiores óperas de todos os tempos são de Haydn. O problema é que é muito difícil encená-las convincentemente. Mas, como compositor de ópera, Haydn era mais famoso do que Mozart.» Harnoncourt, bonecreiro profissional quando jovem, acabaria por confessar que gostaria de produzir as óperas de Haydn com marionetas.


Como o título indica, a «Gerusalemme Liberata» de Tasso trata da reconquista épica de Jerusalem pelos cruzados, sob o comando de Godofredo de Bulhão. Pelo meio há a trama amorosa entre o cruzado Rinaldo d'Este e a feiticeira pagã Armida, bem treinada nas artes de sedução. Armida, sobrinha do Rei sarraceno, Idreno, é enviada pelo Príncipe das Trevas para derrotar os cristãos, e comete o erro de se apaixonar por Rinaldo. Mas a «Armida» de Haydn não se fica por aqui: Zelmira, filha do sultão do Egipto, toma à sua conta os cavaleiros Clotarco e Ubaldo, para experimentar qual vale mais - o poder das armas ou o do sexo. Amor e dever em confronto. É outro caso de encontro entre o Ocidente e o Oriente, com as consequências habituais de mistura de culturas. «Armida» foi a última das 12 óperas compostas por Haydn para Eszterháza (1784), e é também a melhor e mais complexa. Harnoncourt acha que o poema épico de Tasso, tal como o «Orlando Furioso» de Ariosto (1472-1533), são pináculos da literatura ocidental, ao nível da «Ilíada». «São grandes espelhos. Enquanto houver humanidade, gente viva, olharemos para estas obras e reconhecer-nos-emos, como num espelho: sou eu! Por isso, em cada geração há artistas que vão às origens reinterpretar estas fontes. Daí a profusão de 'Armidas'.»


Para o maestro Harnoncourt, o nosso entendimento das óperas de Haydn anda completamente errado, a começar pelos títulos. Por exemplo, «L'Anima del Filosofo» (1791) é conhecida erroneamente por «Orfeo». Dizem que está incompleta; não está. São também politicamente relevantes e muito modernas, cheias de sublinhados freudianos. «Sim, são amáveis à superfície, mas de repente dão-nos um murro no estômago. A 'Armida', por exemplo, mostra-nos toda a crueldade das Cruzadas, bem como a magia que são o coração e a alma humanas. Mostra-nos que não somos apenas um mero resultado do darwinismo.


Há dois níveis de leitura possível para muitas destas óperas. O primeiro é o contraste Oriente-Ocidente. Há, no pensamento clássico romano, uma ânsia explícita pelo fantástico, por uma nova ideia de beleza, por um mundo mágico representado pelo Médio Oriente ou pela Ásia, que se aproxima da filosofia duma agência de viagens (!). O 'Giulio Cesare in Egitto' de Handel é um bom exemplo. Os personagens não obedecem às leis romanas, quando dizem uma coisa querem dizer outra, não sabem o que é o sim e o não. O mesmo acontece na 'Armida'. O segundo nível de leitura é a transformação que o amor opera nas pessoas. Como cruzado, Rinaldo não podia apaixonar-se por uma rapariga oriental; mas apesar disso ultrapassa os seus limites, abandona os padrões de vida ocidental e torna-se um amante fantástico. Da mesma maneira, Armida é uma feiticeira capaz de devorar homens; no entanto, perde-se de amores por Rinaldo e tudo muda.»


A «Armida» de Haydn não é totalmente desconhecida do público. Fez parte da série de gravações das óperas de Eszterházy empreendidas por Antal Dorati nos anos 1970 (com Jessye Norman na protagonista), mas esta é a primeira gravação com instrumentos da época - o célebre Concentus musicus Wien, fundado em 1953 por Harnoncourt e sua mulher, Alice. Há dois anos, em Graz, fora uma espécie de ensaio geral. Agora, em Viena, com quase o mesmo elenco (Michael Schade substituído pelo ímpar Christoph Prégardien), a «Armida» foi uma sublime revelação. A relação Bartoli-Harnoncourt é, de facto, extraordinária. Comunicam instintivamente no mesmo comprimento de onda. Mas ouçamos o maestro: «É uma das poucas cantoras capaz de fazer aquilo que imagina. Juntos somos uma espécie de cozinheiros a preparar uma refeição muito requintada. Nunca discutimos as receitas, mas o resultado é magnífico.» Foi com Harnoncourt que a Bartoli cantou as suas primeiras Susanna, Donna Elvira, Euridice (em «L'Anima del Filosofo»).


Foi bom verificar que a gravação era ao vivo (duas récitas, mais ensaios) na grande sala do Musikverein (que o público da televisão conhece dos concertos do Ano Novo). Não há outra melhor. Inaugurada em 1870, é um paralelepípedo esplendoroso de ouro e cor (o que muito irritou o crítico Eduard Hanslick!), modulado ao ritmo das cariátides ou das nove musas que, na companhia de Apolo, enfeitam o tecto. Uma sucessão de janelas altas em arco deixa entrar o sol poente (outra versão de Apolo), que nesta altura do ano os concertos começam em plena luz do dia. A apoteose decorativa tem algo de musical, lembrando até a «Sinfonia Júpiter» de Mozart. A acústica é um milagre de sedosidade e brilho áureo, dando a sensação de estarmos dentro da caixa dum violino (o que não admira, já que o sobrado de madeira assenta num espaço oco, e o tecto, igualmente de madeira, está suspenso do nada). Bruno Walter declarou que antes de ali dirigir não sabia quão bela podia soar a música!


Tal como se esperava, Bartoli é sensacional na protagonista, e não só nas árias de bravura como nas passagens mais doces e amorosas (a gama vai duma ponta à outra). A voz emagreceu e pode agora vestir-se de soprano. Tal como Fischer-Dieskau, sabe espremer o valor das palavras, por exemplo o lancinante «Morir, mi sento» seguido dum determinado «Vadasi a trattener» (tenho de me controlar). Mesmo assim, atira-se e arrisca, sem medo do difícil ou do feio (lembra a Callas, animal do palco; não, animal da música!).


No «Odio, furor, dispetto» do II acto, que dá conta da amante desprezada, foi o delírio. Prégardien, em total harmonia com a Bartoli, é não menos notável, nomeadamente nos recitativos. A harmonia estende-se aos executantes da orquestra e ao diálogo entre o instrumento (por exemplo, oboé) e a voz. É pingue-pongue do melhor e deixa-nos arrepiados de prazer. Os outros papéis - para soprano, barítono, mais dois tenores - não são simples complementos, mas verdadeiros agentes do drama. A caracterização de Zelmira (a excelente Patricia Petibon) é curiosa: Harnoncourt vê-a como «uma aristocrata que acha que não é de bom tom assassinar generais na cama, até para não estragar o vestido Idreno é o diplomata por excelência, muito subtil e melífluo nos seus confrontos com os ocidentais fanfarrões. Ambos têm a bomba atómica, mas as estratégias são diferentes. Um pouco como a América e a China, ou mesmo Saddam. Ouçam a cena de Idreno com Clotarco e depois com Ubaldo. Está tudo na partitura».


A complexidade da ópera cresce de acto para acto: o I acaba com um dueto de amor, o II com o inflamatório trio da separação (instigada por Ubaldo), e o III termina com um final inconclusivo, com a participação de todos os cantores. Tal como outras suas contemporâneas, «Armida» é uma ópera aberta. Harnoncourt explica: «Depois da grande cena da floresta mágica e duma marcha serena, aparece Rinaldo a vangloriar-se, como um pavão - Ganhei! O Oriente foi esmagado e pode agora funcionar como um bom mercado para os produtos da cristandade. Mas Haydn deixa entender que Rinaldo nunca regressará à companhia da mulher e ao seu castelo em Trier ou onde lá que ele era. Acabará por juntar-se à Armida, daí o Finale musicalmente ambíguo, a despachar.» Que a música alimenta o amor, já o dizia Shakespeare. O que não sabíamos é que a ópera também pode ser um caso político muito sério.

 

Do EXPRESSO, de 1-7-2000                  

Texto de JORGE CALADO

 

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