24-10-2007

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VIAGEM do CONGO

do Missionário Fr. Raphael de Castello de Vide,

Hoje Bispo de S. Tomé (cont.)

 

 

 / p. 106 / Segunda Relação

 

N. Caríssimo Ir. Provincial, a sua Santa bênção.

 

Prostrado aos pés do Ir. Provincial, vai a receber a bênção o mais indigno súbdito, a quem a causa do Senhor trouxe a este Reino do Congo; e ainda que não sei quem de presente governa a nossa Província, eu creio ser o mais digno, segundo o seu costume nas eleições, e me sujeito à sua obediência, ainda que indigno súbdito; remeto ao Irmão Provincial a segunda relação da minha Missão, que faço com os fins nela mencionados; e porque também foram outras para o Ex.mo Senhor Bispo, e Senhor General, quero igualmente fazer outra, para animar os meus Irmãos, se alguém quiser ocupar-se em tão meritório fim: ali verá o Ir. Provincial quanto lhe posso dizer, e peço ao Ir. Provincial abençoe esta minha Missão, para que seja agradável ao Senhor: eu bem desejo já o retiro do meu claustro, e já principio a rogar  / p. 107 / ao Snr. Bispo me queira aliviar do cargo de Vigário Geral deste Reino, e mandar outros Missionários com tempo, porque já vamos no terceiro ano de Missão, e me desejo recolher para a Santa Província, a não determinar o Senhor outra coisa, eu amanhã, se Deus quiser, vou para a Missão, e asseguro ao Irmão Provincial que o ministério é santo, e bom; e o que desejo é que se animem todos a vir. Eu sempre uso do burel da Santa Província, e, se houver ocasião, peço ao Ir. Provincial me mande algum hábito velho, ou ao menos alguma pouca de soria para me vestir , pelo amor de Deus. Aqui também se dão alguns escravos aos Padres, eu os aceito para servirem nas missões, e não para algum negócio, e parece-me que poderão servir a outros Padres, que vierem. Desejo que o meu sobrinho proceda como bom Religioso, para assim merecer os agrados de Deus, e dos Prelados, eu como súbdito indigno pedirei sempre ao Senhor guarde o Ir. Provincial com feliz saúde na divina graça. Eu fico bem graças a Deus, e, prostrado aos pés do Ir. Provincial, peço a sua Sagrada bênção, como súbdito do Ir. Provincial, o mais humilde.

Fr. Rafael de Castello de Vide

PS. Dos companheiros que foram para o sertão de Benguela, não tive ainda notícia.

 

 

 / p. 108 / Continua-se a relação dos serviços que fazem ao Senhor em o Reino do Congo os Padres Missionários: o Padre Fr. João Gualberto de Miranda, da Terceira Ordem de N.P. S. Francisco, e o P.e Dr. André de Couto Godinho, Presbítero do hábito de S. Pedro, e Fr. Rafael de Castelo de Vide, da Reformada Província da Piedade, da Ordem de N.P. S. Francisco, e Vigário Geral da mesma Missão, que a escreve particularmente fundado só na glória de Deus, e para animar a seus irmãos, e por outros semelhantes fins, que refere na primeira relação. Aqui se faz memória de alguns dos seus trabalhos; muitos destes se deixam, porque estes não devem entibiar a quem sacrifica a sua vida pelo bem das almas e glória do Senhor.

 

Este Senhor, verdadeiro Deus, que se veio a fazer homem por amor dos homens, e tendo trabalhado por eles até o fim da sua vida, e deixando-os resgatados com o preço infinito do seu sangue, quando estava para se partir par seu eterno Pai, então mandando os seus Apóstolos a toda a terra a anunciar a sua Santíssima Lei, logo lhes advertiu, que eles deviam padecer muitos trabalhos, perseguições, ódios, e a mesma morte,  / p. 109 / mas ele logo os anima com o seu evangelho; porque, sendo eles perseguidos, ele primeiro o foi, aborrecendo-os o mundo, primeiro o mundo lhe teve ódio a Ele, e que não era o servo maior  que seu Senhor, nem o discípulo maior que seu Mestre. Assim, que fossem por todo o mundo, a ensinar todas as gentes, baptizá-los, e ensinar-lhes a guardar tudo o que Ele lhes mandava. Ora nós, ainda que de muito inferior merecimento, ao dos Santos Apóstolos, e muito menos eu, Fr. Rafael de Castelo de Vide, que escrevo estas coisas, seguimos em grande parte o destino do Senhor neste dilatado Reino do Congo, baptizando todas as gentes, e ensinando-lhes a guardar e Lei de Deus. Trabalhos não faltam, mas não temos sentido oposição à doutrina do Evangelho, porque este Reino tem um santo apego à Igreja Católica, ainda que esta se acha aqui bem desfalecida pela falta de Missionários há tantos anos: ódios e perseguições contra nossas Pessoas, por lhe anunciarmos o Santo Evangelho, e os tirarmos de seus erros, e superstições, não temos claramente experimentado. Eles se dão por convencidos, eles de / p. 110 / sejam ouvir de nós a Santa palavra, eles nos recebem com amor, mas, em outras sortes de trabalhos, não nos tem faltado que sofrer, e, posto que este Reino do Congo não pretende fazer-nos mártires da fé, bem nos faz da paciência: de tudo farei menção em seus próprios lugares, seguindo a ordem da primeira relação.

Depois da retirada do nosso condutor, que por ordem do Ex.mo Sr. General nos havia conduzido a este Reino, que foi no dia 23 de Julho do ano de 1781, em cujo tempo dei fim à primeira relação, fomos continuando sempre os serviços em a Banza de Micomembanda, onde estávamos com o Rei, concorrendo muitos de distantes partes com os seus filhos para os baptizarem, outros para receberem o Sacramento do Matrimónio, e da Penitência, e Eucaristia, os mais capazes. Aqui, já pela nossa mais contínua assistência, se via o Povo com outros mais santos costumes do que antes; e tendo-nos ornado uma casa, a melhor que ali se achava para ser a Santa Igreja, com o asseio possível, que só servisse para nela  / p. 111 / se celebrar o Santo Sacrifício da Missa e se fazerem outros exercícios de Religião, o Povo concorria ali ainda longe a ouvir a Santa Missa, ainda nos dias de semana, principalmente nos sábados, em que esta gente sempre tem conservado o santo costume de se ajuntar nas Igrejas a rezar o Rosário da Mãe Deus em algumas Banzas, mais do que em outras, conforma a educação que os Senhores delas, mais ou menos lhes dão, ou de algum Mestre, ou Intérprete,  que nelas assiste, que sempre procura mais do que os outros o ensino da doutrina Cristã, e destas devoções. Ainda que temos achado alguns dos ditos Mestres mais negligentes, de que os temos sempre repreendido, porque os Padres os têm ensinado, para eles ensinarem o povo. Ora, a estes santos exercícios dos sábados, assistíamos nós para mais animar o Povo, e eu os fazia sair em procissão pela Banza, cantando a Ladainha da Senhora, levando diante um estandarte da mesma Senhora, que eu tinha formado de seda, e levando eu nas minhas mãos a imagem da mesma Senhora, para mais os afervorar, e tanto chegou, que de longe  / p. 112 / concorria muita gente àquele santo exercício, aonde eu não perdia a ocasião de ter povo junto para lhe pregar a Santa Fé, e o cumprimento da Lei de Deus, e a deixação das suas superstições, que era o mais principal, sem o que a sua devoção lhe não aproveitaria muito, ainda que julgamos, que pela devoção do Rosário da Mãe de Deus, este Povo se tem conservado tal e qual Cristão em falta tanta de Padres, pois ainda que tenha alguns vícios, jamais tem deixado o culto do verdadeiro Deus, e as suas superstições mais se podem atribuir à sua rusticidade, do que a erro na Santa Fé, como muitos nos têm confessado, e dão a sua escusa, de que havia muitos anos não viam um sacerdote, que os ensinasse; e que, se nós não viéssemos, tudo se acabava, que na verdade o demónio, na falta de padres, como lobo carniceiro pretendia lacerar estas ovelhas de Jesus Cristo errantes sem Pastores. Considerem bem isto os senhores Sacerdotes do Reino, quanto serviço fariam ao Senhor vindo para as Missões. Além desta devoção dos  / p. 113 / sábados, eu fazia conhecer ao Povo, que aquela era devoção, mas nos domingos e dias Santos, era obrigação assistir à Santa Missa, e Catecismos que se faziam nove dias; pelo que o Povo em multidão vinham à Santa Missa, que, sem se acabarem todas, não se retirava; eu lhe perguntava nesses dias, ou pela mesma obrigação, para ver se tirando o pecador dos maus caminhos, salvava a minha alma, segundo a promessa do Senhor. Muitas [vezes] lhe falava com um Santo Crucifixo nas mãos, de que o Povo alguma coisa parecia mover-se, quando lhe explicava o grande mistério da nossa Redenção, e que pelo preciosíssimo sangue do nosso  Redentor, tínhamos sido resgatados do inferno, e do pecado, e que em Jesus Cristo havíamos por tidas nossas esperanças, e não em alguma coisa supersticiosa da terra, e coisas vãs do mundo, e que pelo respeito daquele Senhor, havíamos vindo acudir às suas almas, e que não vínhamos a procurar as suas riquezas, mas a sua salvação; e que não tínhamos algum interesse se não salvá-los. Ora isto não parava só em palavras, mas  / p. 114 / em obras, estando prontos para todos, sem querermos nada do seu, e só confiávamos em Deus, que não nos faltaria com o necessário, como temos experimentado, ainda que nisto temos tido algum trabalho, mas o Senhor assim tem sido servido para nosso proveito.

O maior trabalho foi que, tendo nós mandado a Luanda buscar só o necessário para o Santo Sacrifício da Missa, porque nos achávamos muito faltos de vinho e cera, e desta mais, porque havia três meses, que usávamos de um certo azeite de amêndoas ou Gubá, como aqui se chamam os amendoins em Angola, fruta que nasce debaixo da terra, e isto pelo descuido que havia tido o Síndico de Luanda de mandar cera, que lhe havia mandado pedir em outra ocasião, como disse na primeira relação. Chegando os ditos portadores, que desta segunda vez havíamos mandado, apenas vieram dois; os mais ficaram doentes e os dois apenas trouxeram alguma coisa pouco necessária, ficando o vinho e cera em Luanda, e no caminho; e vindo os tais já no fim de Setembro  / p. 115 / sem nada do que necessitávamos; nos afligiu bastantemente, porque era tempo de chuvas, em que não se podia fazer uma jornada tão comprida, por causa dos muitos Rios, e lagoas, e não tínhamos quem fosse buscar-nos, o que tanto necessitávamos, mas Deus permitiu que nesse tempo chegasse um preto do Bengo, e se retirava para sua casa, que fica perto de Luanda. Este já nos havia servido de outra vez; por este escrevemos ao Ex.mo Sr. General de Angola, em quem temos sempre achado muita piedade, e grande protecção, e lhe mandámos representar o estado em que estávamos, e juntamente ao Ex.mo Senhor Bispo, esperando certamente se remediariam nossas faltas, por meio da gente da sua jurisdição, porque esperar na deste Reino, que nos fosse buscar o necessário, era impossível, porque têm medo de ir a Luanda, e na verdade o caminho mete medo, e ao menos sempre serão duzentas ou mais léguas, e Luanda terra muito doentia, e dos que lá vão apenas deixa de morrer algum ou virem doentes, e pelo caminho muitos que lhe façam mal.

Partiu o dito  / p. 116 / portador para Luanda no dia 18 de Setembro do ano de 1781, e vendo nós que de ordinário gastaria muito tempo no caminho na ida, e vinda, e achando-nos com pouco mais de um quartilho de vinho para as missas, as alternámos logo entre nós só nos Domingos, e Santos, como já nos havia sucedido, e disse na relação primeira, e principiámos de novo a deitar mil contas, gastando muito pouco vinho nas missas para ver se nos chegava até tal, ou qual tempo que nós imaginávamos, mas enganámo-nos, porque assim estivemos por dois meses e por mais de um sem haver missa alguma pela sobredita falta, como diremos.

Isto foi o que mais nos afligiu, sem falar em outras faltas, como de azeite, pão e outras muitas, passando muitos dias bem miseravelmente, principalmente nos dias de abstinência, e vindo nesse tempo o Advento, só Deus sabe o quanto pouco havia para nosso sustento, mas graças a Deus nunca morremos de fome; outros muitos trabalhos padecemos da parte desta gente, porque, como andava o Reino em parcialidade, sobre [a] quem perten / p. 117 / cia o Reino, e aquele que pretendia ser Rei nos tinha em sua companhia, porque para ali nos haviam levado, era tão zeloso de nós, que nos não deixava passar do seu quilombo para fora, nem ainda a fazer missão, porque logo imaginava, que nós lhe fugíamos, e íamos para os outros, e em nós tinha umas grandes esperanças, e propondo-lhe eu que era preciso fazermos missão e acudir  às outras almas, jamais o pude conseguir. Assim, aí nos tinha como presos, e outros trabalhos, que daqui se seguiam, mas nunca nos faltava ao respeito, antes sempre mostrava que nos estimava, os da outra parte nos afligiam com cartas, dizendo que a outro pertencia o Reino, mas nós de tudo nos escusávamos, e lhe respondíamos que não éramos juízes nestas causas e que só vínhamos para bem das almas e não a julgar de Reinos;  uns e outros estavam desconfiados, e nós de todo temíamos ser tidos por parciais. Finalmente, nos afligiu ver todos determinados à guerra, ainda que nós lhe aconselhávamos a paz, mas aquele em cujo arraial estávamos, aclamado já antes  / p. 118 / Rei, ajuntou a sua guerra de muitas partes, que fariam perto ou mais de trinta mil homens armados de pólvora e bala, prontos todos no dia 28 de Setembro de 1781 para no seguinte acometerem a Corte, e lançarem fora os levantados. Nesse dia 28, pediu o Rei, que um Padre dissesse Missa para ele ouvir, e grande parte do seu exército, que estava com ele para abençoarmos o exército,  o que fizemos, dizendo-se uma missa, e nós fizemos as preces da Igreja pro tempore belli,  e quis o Rei que eu fizesse uma prática à sua gente, que toda consistiu em os mover para a paz, e que, visto terem-se determinado à guerra, não procurassem matar pessoa alguma, mas defender a sua Pátria. Isto tudo nos afligia, ver tantos levantamentos de guerra, e que Nosso Senhor nos trouxesse a este Reino em tempo tão calamitoso.

Mas, como por muito que disséssemos era ponto de honra para eles o pelejar no dia seguinte, 29, acometeram a Corte. Na noite antecedente, todo o exército partiu por todas as partes a pôr cerco à Corte, e o mais foi que o Rei também nos obrigou a ir com ele, não à guerra, mas para mais perto da Corte, ainda que  queria fôssemos todos,  / p. 119 / de que nos escusámos, por não deixarmos tudo o que tínhamos ao desamparo, e em tempo  de guerra; mas o bom concerto quis que eu, e o P.e Dr. André, o não desamparássemos  porque era Rei Católico, e não tinha ídolos, e só confiava em Deus e nos seus Padres, era a sua expressão. Com efeito, eu e o sobredito Padre partimos na mesma noite em companhia do Rei, e fomos todos descansar em uma Banza, que ficava defronte da Corte, e no seguinte dia da batalha ficámos com o Rei. Entretanto, os soldados pelejavam; começou a guerra seriam oito horas da manhã, a cujo tempo, principiei a dizer Missa, aonde pedi ao Senhor pelo bem do Reino, e até ao meio dia se acabou a guerra, ficando vencedor o dito Rei, que estava connosco, destruindo os da sua parte todos os inimigos, e não pouco nos custou ver o destroço, e crueldade dos vencedores, porque cada um queria trazer da guerra cabeças dos inimigos cortadas, pernas, braços […] tudo, eram danças de alegria, gritarias, e nós no meio destes desassossegos, custando-nos ver tanta mortandade, e muito mais no dia 30 seguinte, que em companhia do Rei fomos para a Corte, e vimos, ou para melhor dizer fechava os olhos por não ver tantos cadáveres pelo mato.   / p. 120 / Considere bem quem ler estas coisas quanto custaria ver tais espectáculos, com a consideração de tantas almas, talvez perdidas, porque estas nunca as deixaram vir a nós a confessar-se, nem nos permitiam ir nós a eles a administrar-lhes os Santos Sacramentos, pois eram Cristãos, e muitos Príncipes e Fidalgos grandes.

Entrámos na dita Corte, antes seria vistosa; mas hoje tudo coberto de palhas; e tudo abrasado; eu e o P.e Dr. nos encaminhámos logo à Santa Sé, que ainda que caída por terra, quisemos antes ir adorar aquelas santas paredes. O Rei nos seguiu, e um numeroso exército, que ainda ali se achava na Sé. Cantámos alguns louvores de Deus e logo procurámos algumas casas para nos acomodarmos, mas tudo estava abrasado, e apenas achámos uma cabana de uma preta velha, aonde nos hospedámos, enquanto não fizemos outra melhor casa de palha, e paus, segundo o costume, e possibilidade do Reino; e nesse dia apenas à noite, pudemos tomar algum sustento, que nos mandou o outro Padre companheiro, que havia ficado em Micondambanda; porque na Corte, todos se queixavam de fome, porque tudo ficou destroçado, e nós não experimentámos me / p. 121 / lhor fortuna.

Nos dias seguintes eu,  com o Padre Dr. André, que só então nos achávamos na Corte, vendo na Praça desta e em outros lugares algumas cabeças cortadas, braços, pernas, e alguns corpos inteiros, e um meio queimado, e diziam ser do seu maior inimigo, um grande Príncipe do Reino, mas teimoso, procurámos dar a todos sepultura, para o que não custou pouco alcançar licença do Rei, porque é contra o seu costume fazerem, nem permitirem tal obséquio a seus inimigos, que morrem na guerra e que deixam os seus cadáveres  expostos ás feras. Mas o Rei se moveu a algumas fortes razões, que se lhe deram. Talvez porque imaginava que nós não teríamos quem nos ajudasse, porque os seus não haviam [de] tal fazer, e nós apenas tínhamos connosco alguns pequenos pretos, que o não podiam, nem tínhamos instrumentos para abrir covas. Mas Deus, por cujo amor obrávamos, nos fez vir no mesmo dia às nossas mãos duas enxadas, que havíamos deixado em Micondambanda, e logo no mesmo dia principiámos este acto de caridade, fazendo nós mesmos as covas e pegando naqueles restos já nada sãos, ainda que com horror, e asco, já da parte da mesma natureza; mas como por  / p. 122 / Deus obrávamos, este Senhor nos deu esforço para continuarmos por dois dias este santo ministério: ainda que algum nos via, ninguém se chegava, porque também lhe parecia se contaminavam  e lhe inspirava a sua superstição, que eles morreriam em outra guerra, se faziam este obséquio de enterrar aqueles corpos dos seus inimigos, que para eles só eram matéria de ludíbrio. Mas nós considerávamos que eles eram corpos de Cristãos, e que aqueles restos em algum tempo tinham sido templo do Espírito Santo, e não eram nossos inimigos, e ainda que o fossem, a caridade fraternal nos obrigava, e o amor de Deus nos constrangia, a obrigação do nosso ministério e a edificação do Povo, ainda que este como rústico não sabia ponderar estas coisas.

Depois de alguns dias se veio a ajuntar connosco o nosso Padre companheiro Fr. João, que havia ficado em Micondambanda, e vendo nós que não havia aonde celebrar o Santo Sacrifício da Missa, porque a Igreja da Sé só tinha as paredes levantadas, o mais tudo coberto, eu me determinei ir ao sitio chamado de Mapinda, não muito longe desta Corte para fazer conduzir algumas madeiras, que ali as havia  boas, a fim de cobrirmos uma capela da Sé para se dizer Missa com decência e fui pela  / p. 123 / ocasião de se acharem aqui uns grandes Fidalgos daquelas partes, que prometiam concorrer com os seus escravos para isto. Na companhia dos quais fui mas também com o intuito de aproveitar àqueles Povos que muito o necessitavam: fui levado pelos Fidalgos com tanta alegria, como quem levava uma coisa do Céu para as suas terras; de sorte que eles não consentiam que eu pusesse um pé no chão, e me levavam sobre seus ombros; e na passagem do Rio se empenhavam todos, nem que eu molhasse um só fio. Dos serviços de Deus que ali fiz, dos aplausos e alegrias com que fui recebido em todos os Povos dos pretos, etc., darei notícia quando falar das missões, e esta foi a primeira, e só para acudir àquelas miseráveis almas houve tempo, que de madeiras nada trouxe; mas logo breve mas trouxeram à Corte, porque também só me detive por doze dias, porque o Rei me mandou chamar. Contudo, destas, e outras partes vieram madeiras, com que temos coberto a sobredita capela, e ornado com possível decência aonde celebrámos os ofícios divinos. Além desta Capela, eu cobri a Sacristia, e mandei fechar a entrada da Igreja e duas portas colaterais, e tudo se acha hoje fechado, o que antes não tinha, e servia a Igreja de estrada, e as ervas  / p. 124 / que em ela nasciam, de pasto aos brutos; mas hoje se acha em melhor, e decente estado, e procuramos cobrir a Capela-mor, e para o diante toda a Igreja. Do estado desta, e de outras, que aqui houve, darei notícia mais adiante.

Como já temos Igreja com alguma decência, não faltamos de fazer tudo quanto podemos para glória de Deus celebrando as Festas com a possível solenidade, cantando alguns dias particulares a Missa, e fazendo outros exercícios como pelo Natal, Semana Santa, Ascensão etc., ainda que muitas vezes se acha um só de nós na Corte, porque é preciso sair às Missões para partes remotas, mas sempre aqui fica um Padre, que acuda às necessidades, que ocorrem de baptismos, de confissões, casamentos, enterros, etc.; eu, ainda que o Senhor Bispo me tem feito Vigário Geral, não deixo de sair também às Missões, enquanto algum Padre descansa, porque quero também trabalhar mais pelas almas, e ir recolher as ovelhas dispersas do Senhor. Enquanto estou na Corte, todos os Domingos faço prática, e Catecismos ao Povo, e alguns dias particulares, já ensinando-lhe os principais mistérios da nossa Santa Fé; já instruindo-os nas suas obrigações de Cristãos, tirando-lhe as suas supers / p. 125 / tições e outros vícios, ensinando-os a guardar a Santa Lei de Deus, fazendo-os ajuntar nos Domingos de tarde para cantarem em procissão pela Corte o Rosário da Mãe de Deus, e no fim ensinando-lhes a doutrina, assistindo com eles neste exercício, e nos sábados de manhã, rezando o Terço na Igreja, segundo o seu antigo costume, no fim dizendo Missa, e cantando com eles a Ladainha, inspirando-lhe a devoção, e cultos da Imaculada Conceição, no fim ensinando-lhe a Santa doutrina […]. Enfim, desejo em tudo cumprir bem com o meu ministério, e agradar ao Senhor.  Com isto os Povos se fazem melhores, e eu lhes falo como a filhos, e eles me olham como a Pai: eu procuro dar-lhe bom exemplo e procuro viver conforme a minha Santa Província, para o que peço a graça do Senhor, e as orações de meus Irmãos.

Trabalhos não faltam, sem falar em baptizar, confessar, catequizar, etc., que isto é o que nós buscamos, mas outros que eu calo: eles são próprios de Missionários: o maior foi o já referido do vinho para as Missas, só para estas, que nós não o gastamos, como nem o mais que no Reino é mais usual, como pão, azeite, etc., farinha de pau, e esta nem sempre a há, frutas assadas  / p. 126 / por pão, e outras semelhantes viandas, que ainda das da terra muitas vezes nos faltam; mas seja Deus bendito que sempre nos acode: a falta de vinho para as Missas durou muito tempo: de sorte que desde Setembro ao princípio de Novembro só dizíamos Missa nos Domingos, e dias santos, alternando os Padres para termos todos a consolação de celebrar, e os mais ouvirem, pois nos tais dias só se podia dizer uma só missa, e desde o tal tempo até o dia 15 de Dezembro, tendo-se acabado de todo o vinho, não houve alguma Missa, o que me custou algumas lágrimas, principalmente no dia da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, mas nesse dia principalmente, e nos mais dias santos, não deixava de chamar o Povo à Igreja, e fazer-lhe algumas práticas, catecismos, e para rezarem o Rosário, a fim deste modo santificarmos aqueles santos dias. No dia, porém, assinado de 15 de Dezembro, nos chegaram os portadores de Luanda, mandados pelo Senhor General, em que segunda vez, pela sua grande piedade, nos mandava pela gente da sua jurisdição tudo o que havíamos pedido de provimento, a expensas da côngrua, com que a Rainha Nossa Senhora nos assiste, e  / p. 127 / demais o Ex.mo Sr. Bispo me mandou um grande presente de vinho clarificado, cera para as Missas, ornamentos e outras coisas necessárias, e um meu grande amigo me mandou outro de pão e vinho, etc. , com que ficámos bem providos, ainda que algumas coisas nos roubaram no caminho.

Temos padecido outros trabalhos porque esta gente parece que quer que nós sejamos da parcialidade, como eles; porque é de saber que este Reino se compõe de três grandes parcialidades, que são donde se elegem os Reis, e os desta parcialidade, donde é o presente Rei, não querem que vamos para as terras das outras parcialidades a fazer missão, o que nos custa muito, porque viemos para todos, pelo que temos pugnado por que aquelas almas custaram o mesmo preciosíssimo sangue, e nós não somos de parcialidades, mas de Jesus Cristo, e pela vontade da Nossa Soberana viemos para bem de todo este Reino. Enfim, depois de muito fortes, e ponderáveis razões que demos ao Rei, e grandes do Reino, em que concluíamos que, se nos impediam a nossa liberdade nas missões das outras parcialidades, que havia muito tempo não tinham visto Padres, nem podiam vir a nós, porque não os deixavam os desta, nós, ou nos retirá / p. 128 / vamos para Luanda, ou iríamos para onde quiséssemos servir ao Senhor; mas o Rei nos mandou dar uma grande satisfação, pelo seu Mordomo Mor, e que ele era Rei Católico, e não vingativo, e que não nos impediam o fazermos Missão em todo o Reino, mas que agora queria que fosse o P.e Dr. André para as terras donde ele havia saído, que ficavam distantes da Corte, e tinham muita necessidade, e o P.e Fr. João fosse para as terras do Monte Quibango, donde haviam pedido Missionário, e estavam com igual necessidade, e que eu ficasse na Corte para acudir às muitas necessidades que aqui ocorrem de contínuo, e que, recolhendo-se os Padres, podíamos ir para onde quiséssemos, o que nos satisfez, e sempre estamos pelo mesmo de acudirmos a todo o Reino.

Os sobreditos Padres partiram logo para as suas missões pelos princípios de Janeiro, e recolhendo-se pela quaresma, é indizível o que trabalharam em todo este tempo, baptizando, confessando, administrando o Matrimónio, e livrando milhares de almas do cativeiro do Demónio.

Entretanto que os Padres estavam nas suas missões, a mim não me faltava que fazer em o Santo Ministério, e  / p. 129 / juntamente ocupando-me em algumas obras exteriores do serviço de Deus, porque no mesmo tempo, procurei assear a Capela, que havíamos coberto, fechar as portas todas da Sé, pelas quais antes se fazia caminho, entravam até os brutos a pastar. Mandei cortar os arvoredos, que já haviam nascido, e eram árvores grandes pelas paredes, cobri a Sacristia, e nela formei o Baptistério, de algumas quindas de pau, porque mais não havia, nem outro mais cómodo lugar, e ali guardo o óleo sagrado em uma frasqueira para o decurso do ano, principiando desde o sábado santo de 1782, o que antes não havia e principiei a fazer tudo com o asseio, e dignidade possível dos sacramentos, sendo que isto para esta gente é novo, pois havia muitos anos, ainda no tempo de outros Padres tal se não fazia, e ainda nós antes baptizávamos nos campos, e só vindo para a Corte, na Igreja, mas não podíamos fazer tudo, porque às vezes baptizávamos mais de duzentos de uma vez, o que ainda hoje sucede nas Missões; nem também havia Pia Baptismal; mas sempre era por infusão, e às vezes com tanto labirinto de gente, que era um trabalho indizível; hoje, porém, como já vem menos gente aqui à Corte, se podem fazer os Baptismos com mais descanso e asseio.

 / p. 130 / Aqui mesmo darei notícia desta Corte do Reino do Congo, que algum dia seria muito florente, hoje se acha muito descaída. O Reino todo é um grande Império, com quem não tem comparação qualquer da Europa na grandeza. Esta cidade de Bemba, ou S. Salvador, aonde temos o nosso assento, é a Corte e o assento dos Reis e dos Padres. Só quando há muitos Padres, que pouca vez sucede, é que algum tem vivido no Ducado de Bamba e no de Sunde. No Condado de Sonho de ordinário estavam alguns, mas agora só nós nos achamos em todo o Reino. Esta Corte teve algum dia doze Igrejas, das quais só achámos os vestígios. Assim, a Santa Sé, que teve aqui de assento três ou quatro Bispos, e Cónegos, era um grande Templo, pelo que ainda mostra, hoje tem apenas as paredes laterais levantadas, e a Capela Mor, e a de S. Domingos, que é a que cobrimos, e uma pequena Sacristia. Segunda, a Igreja de Santiago que tem ainda algumas paredes; terceira, a de S. Miguel, da mesma sorte, quarta, a de S. Inácio, dos Padres da Companhia, que apenas tem um pedaço de parede; quinta, a dos Padres Barbadinhos Italianos, quase da mesma sorte, e foi a última que as guerras arruinaram com as casas dos Padres, e dos Escravos ,  / p. 131 / sexta, a Igreja de Santo António, que é jazigo dos Reis; sétima, Santo Amaro, oitava, Nossa Senhora dos Remédios, nona, Nossa Senhora da Conceição, Décima, a Misericórdia, undécima, S. João Baptista; duodécima, a Vera Cruz. E, além destas, mais duas, que estavam no Palácio dos Reis: a de S. José, e a do Espírito Santo. Todas estas apenas têm algumas pedras, sendo antes todas de pedra e cal: a Santa Sé tem o título de S. Salvador; e a Igreja dos Padres Barbadinhos, o título de Santo António, e S. Francisco; as mais, as dos Santos já mencionados.

Aqui não achámos alfaia alguma das Igrejas, tudo se tinha perdido, e muitas coisas furtado; santos, só apareceu um crucifixo, que eu consertei e lavei, pois estava indecente, uma Imagem de S. Vicente ou S. Estêvão no Monte Quibango, e são do Hospício  dos Barbadinhos, desta Corte, e um sino quebrado, e mais não há. As vestimentas e mais coisas da Igreja tem dado a nossa Rainha, e algumas Imagens, que eu trazia de devoção ornam a Igreja, e um altar portátil que eu também trazia é que me serve nas Missões. Fora destas notícias da Igreja, dou outras deste Reino. Em todo ele, não há Igreja fora da Corte, apenas algum Infante tem uma casa  / p. 132 / de palha, aonde o Padre diz Missa, e em algumas partes alguns vestígios de algumas, aonde houve algum dia Padres. Os grandes do Reino, se vêm a enterrar nas Igrejas desta Corte, porque, ainda que caídas, sempre cada um ali olha a sua sepultura; houve também neste Reino no princípio uma coisa memorável, de que há tradição, virem os anjos em defesa do Rei, em uma guerra que lhe faziam seus inimigos, aparecendo no ar cinco braços, que em um instante mataram todos seus inimigos, pelo que os Reis conservam as suas armas com cinco braços com espadas nas mãos, e Coroa real em cima. O motivo da guerra foi porque o Rei então chamado D. Afonso mandou enterrar viva a sua própria mãe, por não querer abraçar a fé Católica, e os parentes vinham por isto fazer guerra ao Rei; pelo que todos morreram; e como eu não faço crónica do Reino, mais não me demoro, e deixo de referir, de que aqui havia nesta Corte muitos Palácios de pedra e cal, como o dos Senhores Bispos, que hoje só têm os alicerces, e algumas paredes, cujo terreno nós ocupamos, e compete aos Vigários  / p. 133 / Gerais, e tem bastante terra para cultivar. Tiveram também o Rei, Rainha, Príncipe, os seus Palácios de pedra e cal; hoje só há algumas pedras e todos vivem em casas de palha, como nós. De longe, faz esta Corte admirável vista, pelas muitas palmeiras e altíssimas árvores; está em um altíssimo monte largo e comprido, mas eu deixo isto e passo a discorrer das missões.

 

Das Missões

 

É este Reino do Congo, como já disse, um grande Império e três Missionários, que aqui nos achamos, são muito poucos para onde se necessitavam trezentos, ou três mil; ainda tem muitas, e muitas povoações de gentios, que ficam separados para algumas Províncias mais remotas. A mim não me faltam desejos de entrar por esses Povos, mas primeiro vamos repartindo o pão aos de casa, para ao depois, querendo o Senhor, ir buscar os de fora; mas ainda estes, que eu chamo de casa, ou que já têm recebido a fé, e entrado na Igreja, eles pouco se distinguem dos gentios, sem falar em muitos, que entre eles ainda não receberam o bap / p. 134 / tismo: aqueles mesmos apenas têm o nome de Cristãos, e sendo de todos estes a seara tão dilatada, apenas temos algum descanso na Corte, que não saiamos logo a cultivá-la, com o desejo de abranger a toda; e sem falar em treze meses que tivemos de viagem, que foram outros tantos de missão. Só depois que chegámos a esta Corte, não há ainda um ano, temos feito oito missões, e nos preparamos para outras maiores, um Padre para o Ducado de Bamba, outro para o de Sunde; e eu, querendo Deus, me determino ir para as partes de Lemba, junto do Rio Zaire, para onde há bastante necessidade, e mais serão os gentios que Cristãos, e de todos uma total ignorância da verdadeira fé. Os meus Padres companheiros têm feito as suas missões com grande fruto nas partes mencionadas do Monte Quibango, Entuco, alquilombo do Príncipe, aonde têm ganhado muitas almas para Deus. Eu aqui farei menção das que eu tenho feito mais em particular, para animar os meus Irmãos os Religiosos.

Em Outubro de 1781.

A primeira missão foi a de  / p. 135 / Mapinda, em que já falei e fui juntamente com o intuito de conduzir algumas madeiras para a Igreja: a primeira povoação onde entrei desta Província me saíram a receber os pretos com procissão, e achando-se ali um intérprete, ele era o director de tudo, e trazia um estandarte que era um Cristo, que haviam alcançado posto em pau, cantando a Ladainha, e outras orações, dando todos saltos de alegria, e assim me levaram para o seu Povo, para o terreiro, onde tinham uma Cruz. Acabaram ali a sua procissão e eu os animei, e lhe falei com muita alegria, e logo todos se prostravam por terra, e me tomavam a bênção de joelhos: baptizei alguns, e confessei, mas como continuava a jornada com os mesmos que me haviam vindo buscar, pouco me detive, porque havia de tornar pela mesma parte, como fiz. Nos povos seguintes, fui recebido com igual alegria, e em um deles fiquei essa noite, sempre exercitando o meu ministério. No dia seguinte, continuei a minha jornada até ao povo de um grande Marquês, que  / p. 136 / me levava com a sua gente para sua casa. Chegando à vista do seu Povo, ainda distante, a gente que me viu correu toda ao caminho, mulheres, homens e meninos, com tal alvoroço e alegria, como se recebessem o mesmo Deus, todos cantando louvores a Deus, outros me esperavam, tocando muitos instrumentos, com que fazem as  suas Festas, outros de joelhos, outros de roda de mim a olhar-me muito bem pasmados, e todos cantando as suas orações, que sabiam, e depois de não terem mais que cantar principiaram todos a gritar alleluia, alleluia: não consentiam que eu pusesse os pés no chão, à porfia me tomavam sobre os seus ombros, ora uns, ora outros, e me levavam com tanta velocidade que parecia que voavam. Ora tudo isto que se fazia a este miserável pecador, como se fosse um Santo, ou alguma coisa do Céu, me enternecia tanto, que me fez rebentar as lágrimas já de alegria, já de confusão, e dizer ao Senhor que eu não merecia tanto, mas Deus mesmo assim, quer que estes Povos nos recebam com tanta devoção, e eles mesmos bem conhecem a sua necessidade de Padres  / p. 137 / pelo desejo que têm de ser Cristãos, e viam que havia muito tempo não tinham vindo a este Reino, sendo que só alguns sabiam, que coisa eram Padres, que os mais nunca os tinham visto. Com estes aplausos me levaram ao Povo a uma casa de palha, que eles diziam era a Igreja, e aonde eles se costumavam ajuntar a rezar o seu Rosário nos Sábados e Domingos: ali lhe preguei, e os animei; e logo fizeram as suas costumadas danças de alegria, que eles chamam sangamentos, que são como exercícios de guerra, e diziam que era contra os Demónios, que lhe haviam impedido virem padres ao seu Reino, e isto costumam fazer todos em obséquio do Padre, tanto que chega aos seus povos, e um como sinal de honra.

Logo o Senhor da Banza chamado D. Rafael Marques de Cazimba, e um dos grandes Príncipes deste Reino, que já se tratava comigo com grande amizade, e me havia vindo buscar com os seus filhos à Corte, me preparou a Casa de hospedagem para mim, e outra para alguns que me acompanhavam, e é costume logo trazer  / p. 138 / um frasco de vinho de palmeira ao Padre, que é o seu vinho, de que eles usam, e no outro dia algum porco bom, e dizem que é para o prato: este Marquês o fez, e todos o costumam quando os Padres vão às suas casas, e ali nunca falta o sustento, porque costumam os que vêm baptizar os seus filhos, ou confessar-se, trazer a galinha, as frutas, e zimbro, que é o dinheiro da terra para o Padre se sustentar, de que há bastante para o sustento, e mandar para casa aos outros Padres que ficam, como todos três costumávamos; pois vivemos todos os Padres em comum, e na mesma casa, e mesa. Ora tudo isto, que aqui sucedeu na primeira missão, é o mesmo que fazem todos os Senhores dos Povos, e os Fiéis onde vamos missionar, sempre nos recebem com amor, nos vêm buscar ao caminho; e até estes nos preparam, como se faz em Portugal, às pessoas Reais; mas isto é junto aos seus Povos, que pelos desertos que passamos, não nos falta que padecer pelo agreste deles, como direi adiante, agora só falo dos serviços de Deus.

 / p. 139 / Neste povo, e nos mais de Mapinda, foram inumeráveis os Baptismos, Confissões e Matrimónios, e não se podem contar por centos, se não por milhares. De todas as partes, costumam correr onde está o Padre, e nas missões não há tempo de descanso: é preciso todo o dia estar ocupado no santo ministério; nem para comer há tempo, pouco para dormir, ora confessando, logo baptizando, que de ordinário são cem, duzentos, ou pouco menos de cada vez; já ensinando a doutrina, e fazendo catecismo, instruindo os adultos nos mistérios da nossa Santa Fé, ensinando a todos guardar a Lei de Deus, e tirando-lhe as suas superstições, e pregando no meio deles, repreendendo-os às vezes com aspereza, e isto sem temor; e parece que o Senhor nos dá fortaleza, e nos enche do seu espírito. Com efeito, um Missionário, só,  metido no meio de mais de trezentos  pretos armados de espingardas, alfanges, arcos, e setas, sem mais quem olhe por ele do que Deus, pregando, repreendendo as suas mancebias, superstições e mais vícios, sem temor, que eles se rebelem, todos ali prostrados por terra,  / p. 140 / metidos no meio de matos, e montes, sem mais auxílio, que o do Céu, com um santo Crucifixo ao peito, ou nas mãos? este mesmo espectáculo a mim mesmo me enternece, ver a humildade com que assim nos ouvem, e considerar mesmo a liberdade com que muitas vezes lhe falo para os converter, e isto só pode vir de uma fortaleza divina. Ainda mais, nós não duvidamos entregar-nos nas mãos deles e com eles atravessar bosques espessos, serras, montes, sem temor algum, e isto um missionário com gente desconhecida, dormir só em uma casa de palha, no meio de um povo de pretos sem temor. Deus é quem fortalece; e a confiança que o mesmo Deus nos dá para com eles, e o respeito deles para nós;  e tanto que até aqui ainda nenhum tem feito a menor acção de irreverência, antes nos temem, nos amam, e nos respeitam; ora isto é comum em todas as missões, e ainda também em outros povos os mais rústicos, e indómitos do que estes de Mapinda.

Aqui nesta missão me detive só por doze dias, porque o Rei me chamava, e não era ainda  / p. 141 / tempo cómodo de missões, por causa das chuvas, que vinham chegando, pelo que me recolhi para a Corte, aonde não falta nunca que trabalhar em o Santo ministério.

A segunda missão foi na Quaresma do ano de 1782, porque, recolhendo-se da sua missão o P.e Fr. João Guaberto, tive ocasião de sair da Corte, em que havia ficado só, e não pode estar esta Igreja sem algum Padre, porque de ordinário aqui acodem todos os Povos pela certeza, de que sempre há Padre, e como Corte do Reino, e cabeça de toda esta missão.  Para ir a esta missão, me mandou buscar uma Rainha Velha, que havia sido mulher de um Rei defunto daquele Reino, e morava para as partes de Quizandula, um dia de viagem desta Corte. Ali fui recebido com igual alegria experimentando a mesma devoção, que fica dita; concorreram ali inumeráveis a receber os Santos Sacramentos, não só daquelas, mas de outras mais remotas, da contrária parcialidade, porque não os deixavam chegar à Corte, como já fica dito; porque persuadi a sobredita Rainha  / p. 142 / que deixasse vir a todos, e publicava que nós Missionários éramos Pais de todos, e não tínhamos parcialidade, se não a de Jesus Cristo, e que não temessem, que eu os defenderia, pelo que vieram muitos de Pamgo, Sumpi, e Manga, todas partes da contrária parcialidade do Rei; e o mesmo foi em outra povoação para onde passei chamada Hiva, aonde foram inumeráveis os Baptismos, Confissões e muitos Matrimónios, como ou mais que em Mapinda. Mas como neste tempo vinha chegando a Semana Santa, em que me queria achar com os mais Padres na Corte para na Santa Sé fazermos os ofícios divinos, me recolhi para a Corte no sábado de Ramos, e, estando já todos juntos, os celebrámos com a possível solenidade, prometendo àqueles povos, que, acabadas as chuvas, que já principiavam, tornaria outra vez a acudir às suas almas.

Pelo que pouco tempo descansei na Corte, e saí logo no mês de Maio para a terceira Missão, para a qual tomei outro caminho, para vir acabar na Hiva, donde havia vindo na segunda Missão: corri várias povoações e em todas fui recebido com os costumados aplausos e alegria dos pretos: de ordinário, fazia assento em alguma povoação maior  / p. 143 / de algum Grande, aonde concorriam de outras partes a receber os Santos Sacramentos, vim até um Povo onde assistia um grande Marquês chamado de Guisa, ou Miniquira na sua língua, o qual me recebeu com maiores demonstrações de agrado, mandando alimpar os caminhos, e brindando a todos, que me levavam, e já antes me havia visitado; veio esperar-me ao caminho com toda a sua gente armada, e com os seus instrumentos músicos, e assim com todo o acompanhamento me levou à sua Povoação com grandes festas, até um grande terreiro, aonde tinha arvorado uma altíssima Cruz, e dali formou a sua procissão até uma Capelinha de palha aonde ele dizia era a Igreja, aonde se cantavam algumas orações; e logo me foi acompanhar até à casa da minha hospedagem com os costumados presentes. Nos outros dias me vinha visitar, e me convidava para ir a sua casa, coisa que nem todos costumam, para sua mulher legítima me tomar a bênção, e dizia ele para abendiçoar  (sic) a sua casa, porque era homem casado; a que eu correspondia com agrado, e santa doutrina, e lhe dei algumas coisas de devoção, coisas que eles estimam muito receber das mãos dos Padres. Ali fiz muitos serviços a Deus, baptizando, confessando, e administrando o matrimónio, como também havia feito muito  / p. 144 / até ali pelo caminho. Aqui, a esta Banza, que assim se chamam as Povoações grandes, me veio visitar outro Infante, ou Fidalgo Grande, que procede dos Reis antigos, já com seu presente, e me vinha rogar para ir à sua Banza, para onde fui; e tendo-se ele recolhido primeiro, me veio receber ao caminho com todo o seu Povo, e com as costumadas alegrias. Aqui foi ainda mais o que trabalhei, porque havia muitos anos, que não entrava ali Padre; e talvez haveria trinta ou mais anos. Baptizei muitos, e muitos; e administrei os mais Sacramentos. À dita Banza veio outro Infante demais longe a rogar-me também para ir à sua Povoação; e ainda que os Intérpretes que me acompanhavam tinham nisto alguma repugnância, eu, considerando que podia ali fazer muitos serviços a Deus, me determinei a ir com o mesmo Infante, e com todos os mais, que me acompanhavam, que não iam de muito boa vontade; porque, diziam eles, que a gente daquelas partes não era boa; e que havia lá muitos feiticeiros, mas eu confiado em Deus, nada temia. Com efeito, fomos, e só pelo caminho padeci alguma coisa, porque são caminhos terríveis de montes, serras, e feras, e por meio de bosques terribilíssimos, e a mesma Banza fica no meio de bosques: aqui nesta Banza chamada Quinsungue, para onde fui, e já parte de Lemba,  / p. 145 / foram inumeráveis os Baptismos, porque havia já mais tempo, que não viam Padres, e aqui foram mais os adultos, que baptizei, do que os meninos, porque vinham de ordinário homens de quarenta, e mais anos, de ordinário vinte e trinta, etc. Um homem baptizei de mais de cinquenta anos, fora de outros; e mulheres da mesma, ou pouco menos idade; mas aquele homem, vendo que ele trazia também seus filhos ao baptismo, lhe perguntei pela sua mulher, e sucedeu ela estar ali; mas já era baptizada e os fiz logo casar, porque não tinha senão aquela mulher e seria impossível tornar a encontrar-se com padres, de que ele ficou muito contente, e os deixei remediados. Ali, muitas e muitas mulheres com os seus filhos nos braços a baptizarem-se elas, e os filhos; e sendo assim tantos adultos, não era pequeno trabalho ter primeiro que os catequizar nos principais mistérios da Santa Fé de que por ali há muita ignorância; e ainda que esta gente é rudíssima e agreste, muitas vezes olhamos para o seu grande desejo de se fazerem Cristãos; vindo muitos de dois dias, e mais de viagem, padecendo fomes e perigos, só por virem receber os Santos Sacramentos, me parece que deve haver deles compaixão; e é muito distinto escreverem os Teólogos na sua cela, e lerem os livros, do que ver por experi / p. 146 / ência, o que há pelo mundo, e tomara eu aqui muitos que escrevam, que talvez fariam outra coisa; e fariam também mais serviço a Deus, mas não se lhe faltava a sua instrução.

Desta Povoação onde fui, de Quinzungue, fui também recebido com as mesmas alegrias, sem que me sucedesse algum mal, como os Intérpretes temiam. Desci e tornei pela mesma parte até outra grande Povoação chamada Metombe, onde havia outro grande Marquês que me recebeu com muita alegria: aqui também foram muitos [os] baptismos, e mais serviços do Senhor, porque todos estes Povos se achavam em muita necessidade; assim porque havia muitos anos que não viam Padres, como também porque não concorriam à Corte, porque, ainda que eram parentes, a da parte do Rei, tinham para com ele algum crime de se não assentarem para as suas guerras; e ainda que eu julgava, que o dito Rei não gostaria muito que eu fosse para aquelas partes, eu só olhava fazer a vontade de Jesus Cristo sem temor do Rei, e acudir à maior necessidade. Nestas Povoações todas não se podem julgar os Baptismos, quanto ao número, assim de adultos, que também aqui concorreram muitos, como dos infantes. Às vezes os mandava cantar, e de ordinário se achavam cem, e duzentos e só em um pedaço da tarde, que che / p. 147 / guei a uma Povoação, contando-se, acharam que mais de duzentos tinham recebido o Santo Baptismo. Daqui se pode julgar, quantos seriam em trinta e sete dias, que me detive nesta missão; ainda que em as partes mais distantes da Corte há mais número de Baptismos, do que em as mais próximas, porque costumam aqui correr. Pela mesma Banza da Hiva, já mencionada, me vim recolhendo, baptizando sempre pelos caminhos, e me recolhi mais cedo, do que queria, porque me avisou o Padre que ficou na Corte, que vinham chegando os portadores de Luanda com o provimento pelos quais havia de escrever ao Ex.mo Senhor General e Senhor Bispo; mas quando cheguei me deu o Padre a notícia, que a notícia que lhe haviam dado os portadores havia sido falsa, de que tive algum descontentamento por deixar de acabar de acudir àquelas almas; mas brevemente, querendo Deus, torno outra vez para a mesma parte; porque me têm já vindo pedir.

Como os portadores de Luanda não chegavam, nem havia notícia verdadeira deles, tornei outra vez a fazer segunda missão, e quarta em número a Mapinda, também com o fim de acudir a alguma necessidade do nosso Hospício da Corte. Fui, e só me detive por doze dias, pelas mesmas Povoações, aonde antes tinha feito missões da primeira vez, experimentando a mesma devoção das gentes, e quando ia  / p. 148 / chegando à sobredita Banza do Marquês de Carimba, sendo o caminho por um aspérrimo bosque de mui altíssimas subidas, e descidas, veio o Marquês com os seus filhos a tomar-me nos ombros com grande trabalho seu, mas de nenhuma sorte queriam que eu pusesse os pés no chão, por não ter trabalho; nesta missão ainda trabalhei muito, baptizando, confessando e administrando o Santo Matrimónio, e me tornei logo para a Corte.

Ainda bem não tinha descansado, quando me mandaram pedir uns escravos dos Padres Barbadinhos Italianos, que assistiam no seu Hospício de Ensuco, dois dias de jornada desta Corte, que fosse acudir, porque não estando aqui os seus Padres, os queriam apanhar para os venderem; pelo que fui com o intuito de fazer também Missão por aquelas partes, aonde trabalhei também muito no meu Santo Ministério, e depois de me deter só por oito dias, deixei tudo em paz, e me recolhi para a Corte, e esta foi a última Missão, e quinta em número, e a última que até aqui tenho feito.

Quanto aos trabalhos que se padecem pelas missões, não são pequenos; e esta nossa vida sendo uma contínua missão não deixa de ser trabalhosa, mas como olhamos a Deus, que nos recompensará algum dia, pela sua misericórdia  / p. 149 / com o descanso eterno, sofremos pelo seu amor. Nas missões, a vida do missionário é não ter um instante de seu: sempre é preciso estar ocupado no santo ministério, confessando muitas vezes até alta noite; as mais das vezes sobre a tarde,  é que se toma alguma refeição, por acudir a muitos que vêm de longe, já com os Baptismos, já com as Confissões. O alimento, sim, é alguma galinha, mas simples, e frutas da terra, nem mais pão, azeite, etc.  mas nos caminhos é o maior trabalho, porque toda esta terra do Congo é montuosa, pode ter comparação toda a terra com as serras do Algarve, mas estas ainda são piores, pelos caminhos: de ordinário, se encontram terríveis lagos, bosques fechados, montes altíssimos, Rios grandes, as povoações distantes, e todo o mais caminho deserto. É verdade que fazemos estas jornadas em redes, e os pretos nos levam, e de outra sorte parece impossível, ainda que algumas vezes procuro andar a pé, nunca posso aturar muito pelos caminhos custosos, e o Sol ardentíssimo, que ainda nas redes nos abrasa: de ordinário, quando se faz jornada, só à noite é que se pode tomar alguma refeição em o povo onde vamos pernoitar, e esta é preciso muitas vezes pedi-la de esmola; enfim, em todos estes trabalhos sem dúvida Deus nos assiste, e parece que nos faz de outra natu / p. 150 / reza mais forte para os sofrermos, porque de outra sorte parece impossível em um clima totalmente distinto da Europa, ainda assim tenhamos saúde vigorosa, como, graças a Deus, agora possuímos, ainda que nos não faltam algumas moléstias.

Enquanto estamos na Corte, ainda que sempre há que trabalhar, se faz mais suave, ou porque estamos todos os três Padres ou também porque estamos como em nossa casa estabelecida; ainda que este estabelecimento não é tão certo, que não deixemos de ter muitas faltas. A nossa vida, e parece que o nosso Instituto aqui é viver à divina providência, porque não temos nada certo, se não o que Deus nos manda por meio dos Fiéis, quando nós fazemos algum exercício da Igreja, como esmolas que trazem quando vem ao Baptismo, confissão, enterro, etc. e mais não há: algumas vezes passamos bem miseravelmente, principalmente nos dias de abstinência; e quando temos alguma coisa nas missões, é preciso mandar para casa para o sustento de todos; foi o Senhor servido de nos ajuntarmos três Padres, ainda que distintos na profissão, e Ordem; mas também unidos, que vivemos como em um convento, e com uma vida comum, de que ainda os mesmos pretos se admiram, e é esta a consolação grande que nos mitiga muitos trabalhos, e temos uns dos outros um grande  / p. 151 / cuidado; e, se não fora esta vida comum, eu sentiria ainda mais a ausência da minha Província, ainda que suspiro por ela, como filho por sua Mãe.

Aqui há outros trabalhos que sofrer, e que nos custam muito, e vem a ser, que esta gente, quase sempre andam em guerra uns com os outros; a esta Corte de ordinário vêm muitas por causa de quem há-de ser o Rei, porque os Reis não seguem aquela ordem de sucessão, como em Portugal, mas, como há três gerações Reais  donde se elegem os Reis, de ordinário para isto há guerras: até aqui, depois da guerra, que já vai mencionada, não tem vindo alguma; mas os parentes dos que estão, morreram, falam agora em se vingarem. Outros dizem que vem o outro Rei, que aqui estava, e tinha fugido sem querer vir para a Corte, pelo que elegeram este presente Rei. Aquele outro quer vir com guerra deitar este fora, mas nós os Padres não nos embaraçamos com isto, e não esperamos nos façam alguns, algum mal, porque eles bem sabem que nós somos Pais Espirituais de todos, e seja o Rei quem quiser, que nós só olhamos o bem espiritual; e não nos metemos no temporal.

O Rei que agora aqui reina nos respeita muito, e nós tratamos com ele com muita familiaridade, o mesmo são os grandes Fidalgos, e todos os Povos, e nós não fazemos excepção de pessoas, e com liberdade lhe falamos sobre o seu bem espiritual  / p. 152 / e repreendemos os seus erros, e temos conhecido o grande serviço, que se faz a Deus em haver Missionários neste Reino; no que muitas vezes me tem falado para eu propor a minha Província, que com o beneplácito da Nossa Soberana provesse este Reino de Missionários, para o que podia fazer-se aqui Hospício, como houve o dos Padres Jesuítas que acabaram, e o dos Padres Barbadinhos Italianos, que há muitos anos não tem algum Padre; o que todo este Reino havia de estimar muito; e com efeito, o Rei, e mais Povo tem algumas esperanças de que lhe venham Missionários, e considerarem que estes não vieram é para eles de grande desconsolação. Eu a todos devo muita paixão; mas em nada disto falo, e só digo a meus companheiros, que, se Deus for assim servido, moverá as vontades da nossa Soberana, e meus Prelados; porém, não deixo de conhecer que, se viessem Religiosos da nossa Província desinteressados, cheios de espírito, e desejo só do bem das almas, podiam fazer muitos serviços, e haviam de ser bem recebidos; mas é preciso que os Religiosos sejam escolhidos dos de bom espírito, o mais não serve aqui; Religiosos só movidos do amor de Deus, e das almas: ora destes, tem a nossa Província muitos, aos quais eu sou de muito inferior merecimento; não é isto tão mau, como represen / p. 153 / ta, trabalhos sim, mas isto nada faz, sendo sofridos por amor do nosso Deus; doenças, sim, também no Reino as há; morrer, o que há-de suceder a todos, no Reino também se morre; quem olhar a estas dificuldades, não é bom para vir. Ainda que o clima deste Reino não é o pior, é melhor que Angola; mas aquele Deus por cujo temor servem, é quem dá saúde à vida, e a morte, como lhe agrada. Não haja medo de padecer, e morrer, porque Ele por nós padeceu e deu a vida. O caminho é santo; estas almas custaram o mesmo preciosíssimo sangue, ganhamos a nossa alma, com tirar o pecador do seu caminho péssimo, como diz o Senhor. Eu também desejava estar em sossego, em a nossa cela, e bem o desejo; mas hei-de deixar os pequeninos pedindo pão, sem haver quem lho parte! não haverá coração que tal faça; mas ainda que eu fique só, não sou eterno: Deus disponha, o que for sua vontade: Ele é Senhor, a causa é sua, fará o que agradar a seus divinos olhos: eu sempre estou pelo mesmo, trabalhar até morrer.

Deus, como é fiel a quem o serve, ainda que algumas vezes permite que  / p. 154 / padeçamos algumas faltas, mas não permite que a aflição dure muito tempo. Sim, porque já nos afligia algum tanto a falta que tínhamos de hóstias para o Santo Sacrifício da Missa, sem falar em outras faltas, que não podemos facilmente remediar, porque a distância até Angola é muita, nem todo o tempo é apto para as conduções, nem temos quem vá buscar o necessário, porque apenas há alguns servos pequenos, que nos têm dado, que só podem servir em casa, e para o diante, só poderão servir a outros Padres no mais, mas o Senhor nos remediou, porquanto no dia cinco de Setembro nos chegaram os condutores com o necessário, que nos mandava o Ex.mo Senhor General de Angola, da côngrua que nos dá a Nossa Soberana, em provimento pela gente do Libongo, e outra da sua jurisidição. O Ex.mo Senhor Bispo de Angola me mandou também outro presente, e mimo da sua liberalidade, vinho para as Missas e ornatos para a Igreja, e os Santos Óleos. Eu não me descuido de pedir a Deus por todos estes Senhores, que tanto nos protegem, e muito mais pela saúde da Nossa Soberana, que o Senhor felicite no seu Reinado para honra, e glória da Nação, e bem destas miseráveis almas para que continue a sua beneficência, em lhe mandar missionários  / p. 155 / como o Rei, e o Povo espera, e para protecção nossa, e de todos os que vierem a estes Reinos. Igualmente peço pelos meus Prelados, e minha Santa Província, de quem espero o mesmo, para que eu seja sempre filho fiel da minha Santa Mãe.

 

Esta é a Relação segunda da minha missão, escrita com toda a verdade, com os fins já referidos; e juntamente com o Ex.mo Senhor Bispo, e o Ex.mo Senhor General nos têm encomendado de fazermos relação de tudo para cada um dos sobreditos Senhores a sua, e julgamos que eles se vão apresentara Magestade; quis também fazer esta para a minha Santa Província, para animar a meus Irmãos no caso que algum dia sejam chamados para este santo fim, porque o motivo por que se pedem estas relações nós não sabemos; só sabemos que uma que foi para o Senhor Bispo, já foi remetida à Rainha Nossa Senhora, o que daqui se seguirá Deus o há-de dispor, conforme a Sua Santíssima vontade, e inescrutáveis Juízos, seja tudo para a Glória do mesmo Deus e salvação das almas, principalmente deste pecador, que humilde e reverente, beija os pés de seus Prelados, como súbdito o mais indigno.

Fr. Rafael de Castello de Vide.

Dada  / p. 156 / nesta Cidade de S. Salvador, Corte do Reino do Congo, aos 25 de Setembro do ano de mil setecentos oitenta e dois.

 

 

Continua aqui                        

INDICE

 

1.ª parte

 

2.ª parte

 

4.ª parte

 

Última parte