24-5-2001

 

ANA LUÍSA AMARAL

(1956 -               )

  

 

 

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Nasceu em 1956, onde nasceram 90% dos lisboetas (na Maternidade Alfredo da Costa). Aos nove anos, mudou-se, por vontade alheia, de Sintra para terras do Norte (Leça da Palmeira), tendo sofrido na pele a estupidez da divisão Norte/Sul. Como era muito magrinha, estava em minoria e tinha acentuada pronúncia da capital, foi várias vezes atirada ao ar por colegas mais velhas da escola. Felizmente sempre apanhada a tempo, acabou por ficar amiga de algumas. Leituras que mais a marcaram: o Zorro (de que foi assinante desde os seis anos e de que possui ainda hoje todos os números); Oito Primos; a colecção completa de Os Cinco (nunca gostou de Os Sete); Ivanhoe; David Crockett; Os Contos de Alhambra. Como não havia as antologias que há hoje  de poesia pensada para um público infantil, nem os seus pais tinham livros de poemas em casa (esses que os poetas costumam dizer terem lido omnivoramente na infância), as suas influências literárias principais vieram-lhe das várias Selectas Literárias do liceu. Poema decorado aos seis anos e recitado na escola de Sintra: "O Passeio de Santo António". Andou, dos dez aos dezasseis anos, num colégio de freiras espanholas muito pouco canónico (aí, aprendeu a gostar de churros e a fazer rissóis de atum com tomate). Frequentou a Faculdade de Letras do Porto, tendo-se licenciado em Germânicas.

Deve ter gostado tanto da Faculdade que por lá se deixou ficar, como professora, até ao presente momento. Por necessidade de carreira, tinha que fazer doutoramento. E fez; sobre Emily Dickinson, cujos poemas a fascinam tanto como a fascinara o Zorro. Pelo caminho, foi publicando livros de poemas. Vive ainda em Leça da Palmeira, tem uma filha de doze anos chamada Rita, uma gata chamada Muffin e uma cadela chamada Lili (Marlene).  

Ana Luísa Amaral

1998  

 
Ana Luisa Amaral
   

 

 
   

 

 

ANIVERSÁRIO

 

Sentei-me com um copo em restos de

champanhe a olhar o nada.

Entre crianças e adultos sérios

Tive trinta em casa.

 

Será comovedor os quatro anos

e a festa colorida

as velas mal sopradas entre um rissol

no chão e os parabéns:

quatro anos de vida.

 

Serão comovedores os sumos de

laranja concentrados (proporções

por defeito) e os gostos tão

diversos, o bolo de ananás,

os pés inchados.

 

Será soberbamente comovente

toda a gente cantando,

o mau comportamento dos adultos

conversas-gelatinas e os anos

só pretexto.

 

Mas eu gostei. E contra mim gostei

mesmo no resto:

este prazer pequeno do silêncio

um sapato apertando descalçado

guardanapo e rissol por arrumar

no chão e um copo

 

olhando o nada

em restos de champanhe

   

 

 

   

COISAS DE LUZ ANTIGAS

Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos.

Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão.

Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:

um namorado sem falar
de amor

(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão
no mesmo corredor)

 

 

 

VISITAÇÕES, OU POEMA QUE SE DIZ MANSO

De mansinho ela entrou, a minha filha.

A madrugada entrava como ela, mas não
tão de mansinho. Os pés descalços,
de ruído menor que o do meu lápis
e um riso bem maior que o dos meus versos.

Sentou-se no meu colo, de mansinho.

O poema invadia como ela, mas não
tão mansamente, não com esta exigência
tão mansinha. Como um ladrão furtivo,
a minha filha roubou-me a inspiração,
versos quase chegados, quase meus.

E mansamente aqui adormeceu,
feliz pelo seu crime.

 

 

 

   

LUGARES COMUNS  

 

Entrei em Londres

num café manhoso (não é só entre nós

que há cafés manhosos, os ingleses também,

e eles até tiveram mais coisas, agora

é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas

ilhotazitas, mais adiante)

 

 

Entrei em Londres

num café manhoso, pior ainda que um nosso bar

de praia (isto é só para quem não sabe

fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era

mesmo muito manhoso,

não é que fosse mal intencionado, era manhoso

na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha

suja. Muito rasca.

 

Claro que os meus preconceitos todos

de mulher me vieram ao de cima, porque o café

só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate

(se fosse em Portugal era sandes de queijo),

mas pensei: Estou em Londres, estou

sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses

até nem se metem como os nossos,

e por aí fora...

 

E lá entrei no café manhoso, de árvore

de plástico ao canto.

Foi só depois de entrar que vi uma mulher

sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me

mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.

Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e

depois eu

 

Lá pedi o café, que não era nada mau

para café manhoso como aquele e o homem

que me serviu disse: There you are, love.

Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou

Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois

pensei: Já lhes está tão entranhado

nas culturas e a intenção não era má, e também

vou-me embora daqui a pouco, tenho avião

quero lá saber

 

E paguei o café, que não era nada mau,

e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta

a ver a tribo toda a comer ovos e presunto

e depois vi as horas e pensei que o táxi

estava a chegar e eu tinha que sair.

E quando me ia levantar, a mulher sorriu

Como quem diz: That’s it

 

e olhou assim à sua volta para o presunto

e os ovos e os homens todos a comer

e eu senti-me mais forte, não sei porquê,

mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,

que em toda a parte

as mesmas coisas são

 

 

  Ana Luísa Amaral é docente de Literatura Inglesa no Departamento de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras do Porto. É doutorada em Literatura Norte-Americana, com uma tese sobre Emily Dickinson. Tem publicações académicas (em Portugal e no estrangeiro) nas áreas de Literatura Inglesa, Literatura Norte-Americana, Literatura Portuguesa e Literatura Comparada. Passou dois anos (entre 1991 e 1993) na Universidade de Brown (E.U.A.) como Investigadora Convidada do Departamento de Inglês daquela Universidade. É Investigadora Associada do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. No âmbito de um projecto desse Centro, preparou, em colaboração com Ana Gabriela Macedo, um dicionário português de termos feministas.  

 

   

LIVROS PUBLICADOS

 

Poesia

Minha senhora de quê, Coimbra, Fora do Texto, 1990 

            Reed. Lisboa, Quetzal, 1999  ISBN 9725643968

Coisas de partir Coimbra, Fora do Texto, 1993 

            Reed. Lisboa, Gótica, 2001 ISBN 9727920195

Epopeias, Coimbra, Fora do Texto, 1994 

E muitos os caminhos, Porto, Poetas de Letras, 1995

Às vezes o paraíso, Lisboa, Quetzal, 1998 (2.ª Edição, 1998)  ISBN 9725643313

Imagens, Pau, Editions Vallongues, 2000

Imagens, Porto, Campo das Letras, 2000 ISBN 9726102774

Imagias, Lisboa, Gótica, 2002, ISBN 9727920454

A Arte de Ser Tigre, Lisboa, Gótica, 2003 ISBN 9727920969

A Génese do Amor, Porto, Campo das Letras, 2005 ISBN 972610937X

Poesia Reunida (1990-2005), Quasi Edições, ISBN 9895521529

Entre Dois Rios e Outras Noites, Campo das Letras, 2008, ISBN 9789896252687

Se fosse um intervalo, Publicações Dom Quixote, 2009, ISBN 978-972-20-3847-8

Inversos - Poesia 1990 - 2010, Publicações Dom Quixote, 2010, ISBN 9789722039826

Emily Dickinson, Cem poemas, Tradução, Posfácio e Organização de Ana Luísa Amaral, Editora Relógio d'Água, 2010, ISBN 9789896411732  (*)

Vozes, Lisboa, D. Quixote, 2011, ISBN 9789722047814

Próspero morreu,  Poemas em acto, Lisboa, Editorial Caminho, 2011,   ISBN 9789722124485

Escuro, Assírio & Alvim, 2014, ISBN 9789723717655

Ara,2014. ISBN, 978-989-676-071-7

E todavia, Assírio & Alvim, 2015, ISBN 9789723718263

The Art of being a Tiger, 2016, ISBN, 978-191-122-642-0

What's in a name, Assírio & Alvim, 2017, ISBN 9789723718836

Arder a palavra e outros incêndios, 2017, ISBN 978-989-641-794-9

 

Literatura para crianças e jovens

 

Gaspar, o Dedo Diferente e outras histórias, Porto, Campo das Letras, 1999

A História da Aranha Leopoldina, Porto, Campo das Letras, 2000

A Tempestade, QuidNovi, 2011, ISBN 9789896282295

Como tu, 2012, ISBN 978-989-554-934-4

 

Ensaio

Dicionário da Crítica Feminista, (com Ana Gabriela Macedo), Porto, Afrontamento,

                        2005, ISBN 9723607581

 

(*) Ver recensão de Eduardo Pitta no PÚBLICO de 27-9-2010 

 

 

          ALGUNS LINKS:

 

Emily Dickinson : uma poética de excesso - Tese de doutoramento

Rosa Maria Martelo - Recensão crítica de Entre Dois Rios e Outras Noites - Colóquio Letras

Mulheres Portuguesas do sec. XX

Imagens (d)e Bastidores
Ou as «labaredas calmas» do revisionismo de Ana Luísa Amaral

Osvaldo Manuel Silvestre (crítica de "Imagens")

Concertos/ Desconsertos:
Arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral

Isabel Pires de Lima - Portugal, Universidade do Porto

 

Ana Luísa Amaral: uma estratégia do avesso

Paula Oliveira Cruz

 

A aranha estranha e outras figurações da diferença nas histórias de Ana Luísa Amaral

Rosa Maria Martelo (crítica dos livros publicados em prosa)

 

Rosa Maria Martelo, “Ana Luísa Amaral – Entre dois rios e outras noites”, Colóquio/Letras, Fundação Calouste Gulbenkian, in Recensões Críticas, 18 Maio, http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/news?i=3

 

Joaquim Francisco Coelho, “Poesia no paraíso [crítica aÀs vezes o paraíso’, de Ana Luísa Amaral]” in Colóquio/Letras – Livros sobre a Mesa, n.º 155/156, Jan. 2000, p. 399.

 

Poema "A CHRISTMAS CAROL"

Pré-publicação de cinco poemas

Tradução de poemas de Emily Dickinson

 

 

 9 de Maio de 2015

E – A Revista do Expresso n.º 2219

 

 

E TODAVIA
Ana Luísa Amaral
Assírio & Alvim, 2015, 127 págs.

Poesia


Vinte e cinco anos após o inicial “Minha Senhora de Quê”, é interessante verificar como o novo livro de Ana Luísa Amaral funciona como síntese, talvez involuntária, da sua obra, ao revisitar temas centrais da poesia desta autora: a tensão entre escrita e observação do mundo (sejam os esplendores da natureza ou as evidências do recato doméstico); a memória afectiva, ligada umbilicalmente a lugares e pessoas; a atenção minuciosa a uma espécie de música das esferas, que sustenta os equilíbrios precários da vida comum; o fascínio perante as possibilidades ou limites da linguagem poética. Estamos diante de um livro de balancos e equações, de perspectivas e somas imperfeitas. “Nunca viveu a sintaxe/ de coisa outra/ que não fosse um caos/ ameaçado”, lemos logo na primeira estrofe do primeiro poema. E é nesta espécie de incerteza que ficamos a pairar. Uma incerteza que se manifesta na própria estrutura dos poemas. Muitos deles ficam suspensos, vacilam, debruçam-se sobre o que vem depois, criam uma rede, e um sistema de vasos comunicantes, ecoam uns nos outros, nascem uns dos outros. Os registos variam muito, do verso livre ao soneto, da fábula a cantiga de amigo (“Ay mar, ay mar tão escuro e fundo,/ se sabeis novas do meu amigo! ai mar, e u é?). Sem ser confessional, esta é uma poesia da intimidade. Por exemplo, quando espreita a filha “igual a girassol” (tantas vezes cantada noutros livros), desenhando-lhe um perfil esquivo “de amor/ e pura filigrana”. Ou quando deixa vir, solenes, ‘os meus mortos”, essas feridas reabertas (“E quanto mais a luz é sobre a ferida, mais eles aí estão”). Os poemas abrem-se igualmente ao canto dos pássaros, ao seu voo (“perplexo e belo), ao entusiasmado louvor do que é simples e quotidiano (a luz do sol, um sofá, uma “porta em vidro./ iluminada, em mais pura esquadria”. as “coisas todas que brilham na varanda”), a indefinição do que é “ser português”, aos desertos da noite e da solidão, aos cheiros (o refogado para o arroz de tomate ou para a dupla dose de ervilhas com ovos), as texturas (o veludo de um sapato, a sola de um pé descalço), aos sons (a gota de água da torneira mal fechada, como “prego mental/ dilacerando”). Mais do que afirmar, esta escrita sugere, toca ao de leve na orla do dizível (“e tudo faz sentido,/ mesmo sem eu saber/ como falar”).
É um ofício que exige “cuidadosos descuidos”, um baixar da guarda vigiado, um domínio daquilo que se aceita perder: “Cuidar na escolha: afiado lápis/ que o bico rombo rasga-me as palavras/ mas tão macio que eu as possa romper/ quando preciso”. /J.M.S.

 

Expresso – n.º 2168 - Atual

17 de Maio de 2014

 

Escuro

Ana Luísa Amaral

Assírio & Alvim, 67 pags.

 

José Mario Silva

 

Logo no primeiro poema deste livro, o sujeito poético evoca, em tom elegíaco, “a mais pura alegria” de uma memória de infância: o “sol como um incêndio largo” no céu, quando “a morte era tão longe”. Acontece que essa “alegria recordada” não encontra lugar num agora feito de notícias “brutais” sobre “a violência de ser / em cima desta terra sobre outros mortos/ mal lembrados ou nem sequer lembrados”. São tempos diferentes que “coabitam” e mesmo corredor dá-lhes espaço e lume”. Esta sobreposição leva a equívocos. Por vezes, o que sobra de um tempo é só a forma como foi reinventado pelos que vieram depois; ou seja, não a realidade mas o mito. Através de uma escrita de “vozes”, já ensaiada noutros livros, Ana Luísa Amaral avança então por este território incerto, procurando fixar, na ambiguidade do “claro-escuro”, retratos de figuras e momentos da nossa História, à mercê de uma “elipse de Luz”. Vemos assim de novo perfilarem-se os homens que desafiaram os mares nunca antes navegados, gesta sonhada por D. Dinis ainda antes das caravelas; D. Isabel “recortada em milagre”; o Infante D. Henrique preso à sua falsa imagem diante do oceano, no promontório de Sagres; o olhar de D. Pedro, enrouquecido pela loucura”; o nevoeiro sebastianista; o Adamastor. Os poemas, de feitura impecável, dialogam com a “Mensagem” pessoana, mas apenas para procurar o avesso do “nada que é tudo”. E em nenhum momento esse gesto é tao explícito como nos versos em que Ana Luísa Amaral assume a voz de Mariana Alcoforado: “Deixai-me o escuro, o meu. Porque ao lado da minha, a vossa ausência, essa que em mim plantastes, nada é.”

 

 

Palavras macias
Um livro representativo de algumas vias da poesia portuguesa actual

Às vezes o Paraíso

ANA LUÍSA AMARAL

Quetzal, 1998, 112 págs.

 

UMA ideia de excelência cobre, com o seu manto generoso, a poesia portuguesa das últimas décadas. Sabemos como uma generalização deste tipo, por muito boas razões que estejam na sua origem (e estão certamente), oferece-se tão facilmente à repetição quanto se subtrai a qualquer pensamento.

Sem nos querermos precipitar no exercício das sínteses epocais, é talvez altura de perceber que uma tal ideia já não tem hoje condições para ecoar da mesma maneira; e que o ritmo de renovação da nossa poesia é hoje muito mais lento do que foi até ao início da década anterior. Evitando embora um olhar definitivamente negativo sobre o presente, julgo no entanto que assistimos hoje ao triunfo de uma poesia complacente e plácida, fascinada pela sua própria «competência», capaz de atravessar incólume o nosso tempo para ir alimentar, com as suas astúcias, uma generalizada esteticização do real ( como manifestação, por excelência, do Kitsch).

De tudo isto, é este livro de Ana Luísa Amaral um lugar de confluência perfeito, até no modo como vem configurar um percurso cujos tropismos coincidem com os do contexto. Na verdade, este livro é um ponto de chegada no sentido do poema sem falhas nem rugosidades, feito de «palavras macias» (pág. 16 e 23) e de versos que transpiram ternura («Que ternura transpira este meu verso,/ coberto de suor.», pág 10). Acrescente-se, porém, para evitar equívocos: nenhuma palavra pode ser desqualificada por fazer apelo a um sentido táctil que tem, aliás, quase sempre uma conotação positiva, da mesma maneira que qualquer verso está no seu direito de exprimir a ternura ( uma palavra que não só ocorre muitas vezes como integra um campo semântico mais vasto). O problema não é esse: é o da frouxidão dos poemas, o facto de a «ternura» não conseguir ser mais do que um invólucro exterior, cristalizado numa «maneira» (um maneirismo) facilmente reconhecível que exibe o «poético» em estado de proliferação. Um bom exemplo é este poema que aparece reproduzido na contracapa: «Não, não deve ser nada este pulsar/ de dentro: só um lento desejo/ de dançar. E nem deve ter grande/ significado este vapor dourado,// e invisível a olhares alheios :/ só um pólen a meio, como de abelha/ à espera de voar. E não é com certeza/ relevante este brilhante aqui:// poeira de diamante que encontrei/ pelo verso e por acaso, poema/ muito breve e muito raso,/ que (aproveitando) trago para ti.» (Pág. 25).

Este poema traduz de maneira exemplar a situação da poesia de Ana Luísa Amaral, naquilo que ela tem de generalizável a um contexto de que falei no início: trata-se de uma poesia culta, a que não falta elaboração e consciência de si própria. E, no entanto, ela sucumbe a uma nova inocência: a do esteticismo, a da experiência «poética» que não se traduz numa experiência imanente à poesia. E que, por isso, é anestesiada por um segundo grau.

Trata-se, em suma, de uma poesia fascinada por si própria, atraindo tudo para a própria instância abstracta do poema: «De mansinho ela entrou, a minha filha.// A madrugada entrava como ela, mas não/ tão de mansinho. Os pés descalços,/ de ruído menor que o do meu lápis/ e um riso bem maior que o dos meus versos.// Sentou-se no meu colo, de mansinho.// O poema invadia como ela, mas não/ tão mansamente, não com esta exigência/ tão mansinha. Como um ladrão furtivo,/ a minha filha roubou-me inspiração,/ versos quase chegados, quase meus.» (Pág 40).

Um poema de abertura coloca, aliás, todo o livro sob o signo de um fetichismo da materialidade do poema: «Um romance de amor por esta noite/ em lua nevoente - e uma máquina velha/ de escrever. Ingééénua e tão portátil,/ de imensa melodia desigual.// Ah, o prazer do verso em movimento/ lento, o til beijando em fogo a mancha/ do papel, que se arrepia ao longo/ de mil gralhas. O sentimento mútuo// e vagaroso: o 'um' feito com éle,/ o 'zero' a servir de ó, a letra que não sai,/ desesperada, por culpa de algum pó,/ que se intromete, negro de ciúme.» (Pág. 9).

Repare-se, no entanto, que a auto-referencialidade, em qualquer destes dois poemas (como, aliás, em muitos outros onde ela ocorre, ao longo de todo o livro), não é um modo de praticar aquele imanentismo que colocava a palavra poética num lugar de auto-interrogação , mas algo substancialmente diferente: aqui, trata-se simplesmente de pôr o poema a mirar-se a si próprio, de mostrar que esta poesia se alimenta das «imagens» da poesia, enquanto arsenal de figuras e recursos temáticos - a memória, a infância, a revisitação nostálgica - que trazem consigo uma dicção já pronta . Que é como quem diz: uma topologia já constituída, apta a ser habitada tranquilamente e que não é verdadeiramente um espaço de luta para o nascimento de um verso. É, antes, a inócua evocação de muitos versos anteriores ou o refúgio para uma poesia que brilha de complacência: «Só, na noite. O vazio do intrincado espaço/ da memória, teia quase perfeita de finos/ nervos. Como num bastidor, quebrou-lhe agulha,/ rompeu-se o fio de seda, ou lã macia./ Ou foi só o crepúsculo que, dissonante, entrou?// Só, na noite, no vazio intrincado do pensar./ Mas, se brilho na teia? Se segundo qualquer crepuscular/ à cabeceira, onde medicamentos/ e pequenas flores? Que olhar nos é negado?/ Alguém em limiar ou tempo ausente?» (Pág. 79).

A terminar, reitere-se uma observação necessária, sem a qual estaria a ser injusto: se o livro de Ana Luísa Amaral, Às Vezes o Paraíso, suscitou um comentário que tem muito o tom de uma argumentação «contra», é porque ele me levou a rejeitar também uma certa «ideia» de poesia e a extrapolar para um contexto que precisa de ser pensado.

ANTÓNIO GUERREIRO                            


EXPRESSO – Cartaz, 13/06/1998  

 

 Interrogar a esfinge

DEZ ANOS depois da sua estreia com Minha Senhora de Quê (1990), Ana Luísa Amaral lança o seu sexto livro - Imagens - a culminar um percurso de escrita. A maioridade de uma voz, o peso de um nome na nossa tradição literária foram-se afirmando com Coisas de Partir (1993), Epopeias (1994), E Muitos os Caminhos (1995), passando por Às Vezes o Paraíso (1998).

Em Imagens, os poemas breves e densos organizam-se como um todo, que se revela hesitante a partir do jogo com os respectivos títulos: ecoam-se estes numa pseudo-enumeração - «Primeira Imagem» (pág. 11) e «Primeiro Esboço de Imagem» (pág. 23), por exemplo - que subverte a ordem própria ao surgimento das representações, enviando-as pelo caminho inverso: em direcção ao vago, obrigando a forma a passar a um estado ou fase anterior da sua manifestação natural. Depois, aproximam-se do fim com um «Quase Epílogo», a três poemas de distância de um «Epílogo em Imagem», tendo começado com um «Prólogo de Imagem»: «Os leões insistiam-se,/ solenes, o seu rugido agudo sobre a esfinge/ (que deveria ser rugido rouco)./ 'Não quero', ela dissera./ Um só leão não chega e uma esfinge/ é tão pouco// 'Fazer algum juízo/ particular, exacto, destas coisas/ seria amedrontá-las/ até ao espaço oblongo/ da memória.// É esta a lei da história:/ os seus heróis:/ uma idêntica esfinge'» (pág. 9).  

 

 

Prólogo e epílogo funcionam como peças literárias suplementares, em particular quando se trata de um drama em verso. No caso dos gregos antigos, o «prologos» tomava o lugar de um primeiro acto explanatório em que uma personagem - por uso uma divindade - aparecia no palco vazio para explicitar os acontecimentos - a catástrofe - antes da actuação. No poema acima, a ppppersonagem em causa poderá bem ser (até pela reincidência) a Esfinge: entidade mitológica ela própria com corpo de leão e cabeça de homem. Sábia por excelência, não dá respostas, limitando-se a fazer perguntas.

Ligados entre si por uma grande unidade musical a dar o efeito das «labaredas calmas» da epígrafe, por vocábulos recorrentes de que a autora se apropriou, os poemas unem-se ainda por uma partição estrutural idêntica: os primeiros versos pertencem a um narrador anónimo, impessoal, que refere situações e acontecimentos de histórias provavelmente antigas, que sugere episódios associados aos nomes das lendas e mitologia gregas - Teseu ou Ulisses, Ariadne e Penélope - ou da tradição judaico-cristã (Jonas); a eles se contrapõem os últimos três/quatro versos de cada um, correspondendo a uma «resposta», um «comentário», uma «informação» dada por uma entidade feminina: «ela». Esta duplicidade transforma cada poema num pequeno diálogo, o qual, adicionando-se aos subsequentes, transformará os fragmentos num todo, num texto mais longo, garantindo-lhe ainda a dimensão dramática. À semelhança do sujeito da primeira parte, também a esta personagem feminina dos momentos finais, que chega por vezes a usurpar o espaço do narrador, ou da própria esfinge, raramente se poderá atribuir um nome: «Imagens/ que voltavam devagar,/ se encostavam a ela sem pudor./ E no silêncio, a esfinge impenetrável,/ sabendo-lhe de cor o coração:/ desistente dos barcos,/ depondo pelo chão de outros palácios/ as armas mais preciosas./ 'Não posso', acrescentara,/ sentindo aproximar-se a hora/ exacta» («A Hora Mais Exacta», pág. 47).

A qualidade prismática das representações, o difractar da re-presentificação, o sugerir de semelhanças entre passado e presente pela riqueza de sentidos criada por velhos vocábulos («palácio» e «armas preciosas», e ainda «bastidor» e «monstros e lendas», entre outros) estão à partida sancionados e congregam-se em torno do título do livro - Imagens -, um plural: uma palavra única a re-unir em si a multiplicidade.

Mas antes disso (ou depois), o(s) epílogo(s) - tendo por objectivo divertir o público e enviá-lo bem-disposto para casa - acaba(m) por cumprir aqui uma função diversa: por um lado, esclarecem a situação de dupla fala; por outro, desmascaram a preponderância do presente, arrastando para o aqui e agora do poema todo o passado, permitindo que o «eu» - ou o leitor - se aproprie de todas as experiências atribuídas a nomes outros, que torne suas todas as imagens.

 

(Campo das Letras, 2000, 58 págs.) 

HELENA BARBAS                           

EXPRESSO -  Cartaz,  12/01/2001

 

 

Entrevista à poetisa Ana Luísa Amaral: ordenar nos livros o que está desordenado

 

MARIA TERESA HORTA
 

Em "Coisas de Partir" (Gótica), mais do que noutros livros, há um maior contar de si mesma?

Não mais do que em todos os meus outros livros, parece-me. Vejo este Coisas de Partir organizado mais ou menos da mesma forma.

Com igual rigor?

Com um exacto rigor. Como faço sempre.

É uma mulher organizada?

Pelo contrário, sou profundamente desorganizada. Mas, por outro lado, sou obsessivamente organizada sempre que faço um livro. Talvez seja uma forma de controlar a minha desorganização.

Sempre que o escreve?

Sempre que o construo. Uma coisa é escrever poemas, outra coisa é construir livros. Para mim, dir-se-ia infinitamente mais difícil construí-los do que escrevê-los.

Um livro necessita de equilíbrio?

Sem dúvida, precisa de um centro, de coerência interna. De equilíbrio.

Um mesmo tipo de equilíbrio ao longo de toda a sua obra?

Na verdade, à excepção de Imagens, que de facto é um poema em vários pequenos fragmentos, todos os meus livros têm entre quatro a cinco partes. E cada uma delas dez ou onze poemas.

Acontece propositadamente?

Não, não é, de forma alguma, propositado. Não contabilizo os poemas que faço, nem quando os incluo em livro. A única coisa que sei é que quando este está pronto, esse número de poemas está lá.

Esse conjunto forma um todo uno?

Precisamente. É como se de forma compulsiva eu sentisse necessidade de imprimir ordem.

A poesia não será antes desordem?

Sem dúvida alguma. E construir rigorosamente os meus livros, penso que é uma forma de ordenar aquilo que está desordenado.

Que é visível de si própria na poesia que faz?

A minha filha. E, obviamente, as emoções.

Intactas ou cindidas?

Intactas, embora difusas ao longo dos poemas.

Que é mais importante na poesia: a razão ou o coração?

As duas coisas. Só assim os poemas estão completos.

Qualquer pessoa é capaz de escrever poesia?

Se calhar é uma visão romântica da poesia, mas eu não acredito, isto para o bem e para o mal, que qualquer pessoa seja capaz de escrever poesia. Ou melhor, qualquer pessoa é capaz de escrever poesia, mas nem toda a gente é poeta.

Qual é, então, a sua opinião sobre os cursos de escrita criativa?

Penso que podem ser úteis se há já apetência para a escrita.

Inspiração?

Não queria usar termos colados, digamos, ao romantismo, como dom, inspiração, seja o que for deste género. Mas posso dizer-lhe isto: eu pinto umas aguarelas. Gosto de as pintar, mas não sinto necessidade nenhuma de as pintar, posso bem passar dois ou quatro anos sem pintar...

E sem escrever poesia?

Precisamente, eu não posso passar sem escrever poesia.

A poesia ensina-se?

Quando muito tal como se ensina literatura.

Mas não como se ensina tabuada?

Nunca, nunca! Não acredito que a poesia seja só técnica. E depois, aí, encontramos as imitações todas. Por isso volto a dizer-lhe, sinceramente, que não acredito que os cursos de escrita criativa funcionem no sentido de produzir poetas. Não se produzem.

Os poetas acontecem?

Os poetas nascem. Mulheres e homens.

Na sua poesia não brinca muito com os estereótipos, com as chamadas prendas femininas?

Brinco e acho até que as desconstruo. Mas considero, também, que esse lado da minha poesia tem sido demasiadamente sublinhado. Eu diria até que não é o seu lado mais forte.

Não será, porém, o lado que tem vindo a sobressai mais?

Sim, creio que é aquilo que sobressai mais. O tricot, a cozinha, a maternidade... Que ironizo, também.

A brincar com o sentido das coisas e das palavras?

No fundo, a brincar. A brincar até com o próprio humor.

O humor, aliás, não é uma constante da sua poesia?

É, o humor é uma constante na minha poesia, e isso, sim, tem muito a ver com o facto de eu ser mulher.

O humor não será uma forma de encobrir a insegurança?

Justamente. Quando publiquei o meu primeiro livro tinha já 33 anos, e penso que o facto de ser mulher influenciou o ter demorado tanto a fazê-lo. Tinha muita insegurança em relação àquilo que escrevia.

Tinha medo do olhar dos outros?

Não no sentido de "irão gostar?". O meu medo tinha mais a ver com o facto de que aquilo que escrevia passava a estar à disposição de leituras que não podia controlar. Temia que isso fizesse perder alguma da inocência, da espontaneadade da minha poesia.

"CONSIDERO QUE A BANALIDADE TAMBÉM PODE SER POESIA"

Não terá medo de exposição?

Não completamente, porque não acredito que as pessoas escrevam para a gaveta. Os poetas, os escritores de uma maneira geral, gostam de ser lidos.

Se estivesse numa ilha deserta, não escrevia?

Ah, escrevia! Mas sempre com esperança que algum navio por ali passasse e me fosse buscar.

Escreve para um público vasto?

O público pode ser só de um. Mas é público para todos os efeitos.

Frente ao público não se sente vulnerável?

Sinto, sim. Quando oiço a minha poesia dita por outras pessoas, por exemplo, ou quando o vejo criticada.

Não é uma grande violência?

Bem, depende das leituras ou das críticas. Mas é realmente uma violência, no sentido em que o texto que os outros escrevem sobre os textos que eu escrevo, nunca podem ser, por mais que tentem, coincidentes com a minha intenção.

Publicar é sempre um risco?

Sim, a partir do momento em que o livro sai, eu sei que a minha intenção, eu sei que a mensagem que lhes pretendi transmitir, está, inevitavelmente, comprometida, desviada.

Aquilo que sabe e que os outros passam a saber desses seus poemas é diversa?

É diferente, claro. Eu sei, exactamente o que me levou a escrever cada um dos meus poemas. As circunstâncias, os momentos. Muitas vezes há um tu, que aparece completamente cifrado, mas eu sei a quem se refere. Depois, há todo um processo de fingimento, de máscara.

O poeta é um fingidor?

Exactamente, o poeta é um fingidor perante o olhar do outro.

O olhar do outro não pode ser uma devassa?

Inevitavelmente. Mas pode ser, também, um enriquecimento, pois trará outras leituras aos poemas. Apesar de tudo, estou convencida de que depois do meu primeiro livro, intitulado Minha Senhora de Quê, nunca mais consegui aquela mesma inocência.

Quer dizer que publicar faz perder a inocência?

Sim, faz perder a inocência.

Na sua poesia mais espessa não há um grande trabalho de memória?

É verdade. Poemas que do ponto de vista biográfico me dizem mais. Poemas onde o sentimento e a emoção estão mais em carne viva.

Portanto há a interferência de quotidiano?

Há, claro que sim. Isso terá a ver com a maneira como eu pratico uma certa resistência perante a abstracção. E a um tipo de poesia demasiado conceptual. Não quero dizer com isto que a minha poesia não seja trabalhada.

Tenta transformar a banalidade em acto poético?

Tento. Até porque considero que a banalidade pode ser poesia.

Isso é um desafio?

É um desafio, até porque me era mais fácil escrever noutro registo.

Falar em estados de alma?

Precisamente. Mas é neste planeta que vivemos todos. E aquilo que nos rodeia faz parte da vida. Sendo assim, porque não pode o quotidiano transformar-se em experiência poética?

Isso não é uma forma de resistência?

Penso que sim. É possível ser-se poeta mesmo dentro da banalização que é hoje o quotidiano.


DN, 22-12-2001

 

DN 20 de Maio de 2005

 

Sendo no verso feminina gente


Há uma dialéctica entre o "perder" (o amor) e o "permanecer" (em verso) que interroga de modo muito pertinente a poesia amorosa

PEDRO MEXIA

  

Ana Luísa Amaral cultiva o excesso maneirista e o palimpsesto irónico. Creio que as suas ágeis desconstruções dos campos doméstico e literário são mais recomendáveis que o seu veemente barroquismo. De todo o modo, 15 anos após a estreia, Amaral tem sem dúvida uma poética amadurecida, que muito deve ao conhecimento da poesia anglófona e a uma arguta inteligência teórica.

A Génese do Amor é um livro menor de Ana Luísa Amaral, mais próximo de pequenos exercícios monotemáticos como o bizarro Imagias (2002), e menos de colectâneas substanciais como Às Vezes o Paraíso (1998). No entanto, uma sequência deste último, chamada "A Leste do Paraíso", prenuncia este novo poemário. O que está em causa é, como diz o título, a génese do amor, mas do amor na literatura (de onde todos retiramos muitas noções acerca do amor). Nesse sentido, Ana Luísa Amaral remete directamente para os mestres amorosos do cânone ocidental Dante, Petrarca e Camões. O livro tem alguns poemas iniciais, que diríamos de enquadramento, que parecem pastiches desinteressantes. Nesses textos, Ana Luísa Amaral apenas retoma tropos da poesia amorosa, como os olhos ou a noção de espelho, mas sem grande proveito. Mais importante é a noção de que é no verso, ou melhor, na palavra, que o amor literário se consubstancia. Embora A Génese do Amor não seja poeticamente muito estimulante, tem o indiscutível mérito de introduzir nesta temática uma perspectiva feminina e mesmo feminista. O que interessa a Ana Luísa Amaral é dar voz às musas, isto é, a quem foi cantado mas não cantou. E faz isso para, de certo modo, contestar a sua duvidosa posteridade. Assim, Beatriz diz a Dante "Mas, viva, / no teu desejo / não anseio por morrer: / morrendo no teu desejo / desejo, em carne, / viver // E se o viver se confunde, / assegurando a esperança, / toda a mudança pressente / o que a verdade não muda, / nem a carne representa, / nem abriga o maior tempo, / nem desabriga / a mudança // E, meu amado, o desejo: / o caminho mais suave / para o céu em que te sonho: / diz-me onde devo deter-me, / diz-me onde devo perder-me, / pois que perder- -te: / o inferno // Que a morte / não surja, doce, / nem chegue nunca / a chegar // Nestes versos / te mantenho, / neles / te faço viver // E para sempre serás, / mesmo se em carne / morreres // E, vivo, / no meu desejo, / desobrigarás a morte, / desobrigarás o tempo, / assegurando a esperança / do mais eterno presente: // o do céu / em que nos sonho // Por minha crença e vontade, / por meu amor e meus modos, / pelo abismo de amar-te" (págs. 29-30).

As musas vivem nos versos. Mas viver nos versos é de certo modo anular a sua existência concreta, transformar a coisa amada no amador "Mas como pode amor / ter nova arte, / se me roubaste o verso / e a palavra" (pág. 50). Mais: é transformar o amor, transitório por natureza, em suposta "eternidade" vocabular. Assim se perde o amor, a amada, a própria circunstância, vítimas do alto engenho: "Nunca eu por inteiro, / embora a meio, / assim me és: // tu, corpo, de verdade, / eu na verdade: // nada // Musa, se o for sequer, / ou coisa amada / que se deseja em verso, / mas não morre // Desejo a morte / que tu podes ter, / porque podes ser carne / e sangue, e pele / / Eu sou só essa / que sonhou aquele / que entre sonhos / e versos / me sonhou (...) " ("Natércia fala a Catarina", pág. 43). Há uma dialéctica entre o "perder" (o amor) e o "permanecer" (em verso) que interroga de modo muito pertinente a poesia amorosa. Ao ponto de, como vimos, pôr as mulheres (musas) em conversa umas com as outras. Cito do poema "Diálogo entre Natércia e Laura": "-De ti herdei / a feroz tradição / de ser cantada, // de não ser voz, / mas antes coisa amada / não amadora / a transformar-se em coisa // -Nunca te dei a mão: / a ele, sim, / cantou-a ele, em rima / mais cuidada / Tu nunca me tocaste: / ele ansiou-te, / na rima que falou / e outros ouviram / -E fomos sonho / dos que nos sonharam / e disseram de nós o que aprouvera / aos mais suaves rios / e às colinas // -E porque não existes, / minha amiga, / tal como eu sou a dúvida do sonho, / a matéria insensata / da palavra, / a coisa já cantada, // a unir-nos somente: / o destino comum / de sermos nada, // -Sendo, no verso, / feminina gente" (págs. 45-46). É por isso que as equívocas musas reclamam o que é seu: " (...) Dá-me outra vez, / em papel brando, / o mundo: // Eu: queimando por versos / um segundo, / tu, por um som, / ardendo eternidade" (pág. 58).

Inês Lourenço, em contrapartida, usa sempre o tom menor. É uma poesia rasa e discreta, que podemos aproximar da de Helga Moreira (embora menos elíptica). O risco que a poeta corre é cair no prosaísmo, acusação recorrente face a discursos poéticos mais comunicativos. Logros Consentidos não inova, nem isso era esperado temos mais uma vez um retrato do tempo comum, mergulhado na solidão, e atento aos novos tempos (emigrantes, strippers, condomínios, a boneca Barbie). E também o "precário poder do amor", luz negra ou fosca que preside a este poemário. Logro consentido, o amor é cada vez mais um catálogo de verbos úteis. E a poesia outro triste mas necessário logro "Contigo, leitor, celebro / esta união sem facto, abro / este habitáculo, algumas gavetas / secretas para demorar contigo emoções / e escárnios. És, talvez, como eu / uma alternadeira de palavras, destas / que vendem no papel, os objectos / trucidados pelo olhar em lençóis / de falsa transparência e ficção / furtiva. Outras, mais reais / e mais humanas, professam / uma devastada arte de amar / e nós um devastado amor / à arte dos versos que ninguém / lê. Só nós lemos / uns aos outros, tal como elas / se vigiam sobre o trottoir" (pág. 12). Há nestes poemas um discreto diálogo com autoras mais radicais como Adília Lopes e Clarice Lispector, mas só por remissão esta poesia é radical, preferindo a enumeração, a alusão, a ironia quase sempre muito fina. Assim, depois de um elenco cáustico sobre o uso moderno do domingo, Inês Lourenço remata "Ao menos hoje acontece / algo de bom em nome de Deus" (pág. 15).

EXPRESSO – Actual n.º 1738, de 18 de Fevereiro de 2006

A gramática da poesia

A escrita de Ana Luísa Amaral pode ser desconcertante na sua atitude analítica

ANTONIO GUERREIRO

Poesia Reunida (1990-2005)

de Ana Luisa Amaral

Quasi, 2005, 475 págs., €19,95

Seja-me permitido começar por algumas «impressões», bastante informais: na leitura das quase quinhentas páginas de poesia que correspondem aos dez livros que Ana Luísa Amaral publicou de 1990 a 2005 senti que fora submetido à decepção, ao desencanto, ao desconcerto e a outras figuras da negatividade; achei, por vezes, que me estava a ser ministrada uma certa dose de displicência; e que estava a atravessar uma poesia do menor, em tom menor, mas que não pode ser confundida com uma poesia menor. Trata-se, em suma, de uma poesia com um alto grau de inteligência de si mesma e dos efeitos que provoca, de tal modo que parece antecipar-se às reacções do leitor e indicar-lhe uma perspectiva, um movimento metódico que abre caminhos e submete o poema (e os seus utensílios) a uma cerrada autovigilância ou, até, à irrisão e ao esvaziamento, como no poema que termina com esta estrofe: «Faço eroticamente respiração contigo:/ primeiro um advérbio, depois um adjectivo, / depois um verso todo em emoções e juras./ E termino contigo em cima do poema, / presente indicativo, artigos às escuras» (pag. 109).

Começam, aliás, aqui os processos deceptivos: no movimento que desinflaciona, que anula a ênfase, que põe à distância e faz triunfar o segundo grau. Muitas vezes, o jogo não se limita ao interior de um texto, põe em conexão diferentes textos. Assim começa um poema do primeiro livro: «A minha filha partiu uma tigela/ na cozinha. / E eu que me apetecia escrever / sobre o evento, / tive que pôr de lado a inspiração e lápis, / pegar numa vassoura e varrer / a cozinha» (pág. 30). O poema chama-se ironicamente «A Verdade Histórica”. Mais de uma década depois, ele é retomado noutro livro para afirmar «Outras Verdades»: «A minha filha já não parte / tigelas na cozinha./ Nem usa borboletas no cabelo,/ nem veste certas roupas de brincar./ E onde vou arranjar agora o verso / sem tigelas partidas devagar?» (págs. 347/8). Esta poesia do menor aplica-se a usar estes momentos vazios da vida quotidiana sub specie aeternitatis. E nas representações da existência quotidiana encontra-se um jogo subtil entre o informal, a espontaneidade pré-reflexiva do que se move sem plano nem objectivo, e o amorfo, o que se situa no plano da estabilização rotineira, dos gestos habituais.

Deceptiva e desconcertante, esta poesia é-o na exacta medida da inteligência que tem de si e da história de poesia, de tal modo que, para dizer o amor, tem de o fazer por mediação de Camões e Petrarca. Nenhum primeiro grau é consentido, não há adesão sem máscara. Eis porque aquela que parece ser a mais íntima das poesias acaba por subtrair-se à confessionalidade. E aí temos outro factor de decepção.

Podemos admirar estas diferentes maneiras de criar uma perspectiva (no sentido literal da palavra, uma «vista através de»), deleitamo-nos com os seus jogos e desvios. Mas também podemos, ao mesmo tempo, achar que há aí uma certa esterilidade, que o tão apurado mecanismo labora no vazio, E quando digo «ao mesmo tempo» quero dizer que me sinto, enquanto leitor, sincronicamente dividido entre estes dois movimentos. Afinal, não é por acaso que a metáfora do «tricot” e do bordado é das mais recorrentes, nesta poesia, para representar o trabalho poético: um exercício de paciência.

Uma noção de experiência, tal como ela foi posta em relação com a poesia por Dilthey, no princípio do século XX, num célebre ensaio intitulado precisamente Experiência e Poesia (Das Erlebnis und die Dichtung), poderia ser convocada com pertinência para a leitura da poesia de Ana Luísa Amaral. Mas na condição de formularmos também esta questão suplementar que a sua poesia suscita: existe uma possibilidade, para a experiência vivida (a “Erlebnis” é geralmente traduzida por «experiência vivida«), de se separar, de se libertar de nós próprios? Ou, formulado de outra maneira: existe, para a escrita, um momento em que se pode instaurar uma separação, um desvio, entre aquele que escreve e si mesmo, enquanto objecto necessário da escrita?

Falar de quotidiano, de tom menor, das micrologias de diversas espécies (o «realismo» que nasce da atenção ao detalhe e ao contingente), aproxima-nos de um filão importante da poesia portuguesa recente. Mas a poesia de Ana Luísa Amaral situa-se num outro campo: em vez de um «realismo» que desconfia das imagens, a sua é uma poesia altamente imagética, para a qual, de resto, o mundo não é senão imagens; em vez de uma poesia descritiva, a sua é uma poesia analítica, sempre a decompor-se nos seus elementos, até ao ponto de se designar na sua materialidade verbal, como neste poema: «Ah, o prazer do verso em movimento / lento, o til beijando em fogo a mancha / do papel, que se arrepia ao longo / de mil gralhas. O sentimento mútuo // e vagaroso: o ‘um’ feito com éle, / o ‘zero’ a servir de ó, a letra que não sai (...)” (pág. 251). Esta atitude analítica traz a poesia para o espaço da imanência, rente à experiência da vida quotidiana e rente à própria experiência da escrita. Assim, em vez das tradicionais poéticas, temos aqui a preferência declarada pelas gramáticas da poesia.

 

                                              

PÚBLICO, Mil Folhas

27 de Maio de 2006-05-29

 

A memória, doce catástrofe

Pedro Sena-Lino

 

Poesia Reunida (1990-2005)

AUTOR Ana Luisa Amaral

EDITOR Quasi

473 págs., 19,95 €

 

Quando o tempo e a distância recompuserem os nexos cronológicos e temáticos que constituem o que é a geração de 1980 (a meu ver, os nascidos entre 1951 e 1960, ainda marcados pela centralidade do discurso literário na linguagem, e tendo nesse centro a poesia, a poesia personalíssima e dialogante de Ana Luisa Amaral (n. 1956) ocupará lugar de destaque nesse período. De facto, integrada na geração onde se incluem Adília Lopes (n. 1960), Isabel de Sá (n. 1951), Amadeu Baptista (n. 1953) ou Jorge de Sousa Braga (n. 1957) sem esquecer um muito esquecido Alexandre Vargas (n. 1953) distingue-se pelo tom serenamente trágico no diálogo com a memória. Acontecimentos, revisitações, recordações regressadas em tom de aparição concretizam-se numa espécie de anagnórise (reconhecimento) trágico mas assumidamente sereno, num encontro com uma parte de si mesma, simultaneamente revelação e compreensão:

O poema, lugar de encontro da dispersão da memória: esta integração de uma biografia da memó­ria, nunca em confessional exibicionismo, mas sempre num discurso-percurso questionador (“Minha Senhora de Quê?”) percorre os territórios dos espaços tempo perdidos: “Nada a quebrar o sol neste momento./ Nem chuva desviada de mil estrelas,/ nem vento de monção / Só tu que não!(...)A música quebrada / Nada a quebrar o sol neste momento/ (...) Chega para mil caos.

Chega para / miríades de vidro pelo chão / sem tecto, e em cada uma: / o teu anti-reflexo?. Incorporando uma dimensão de experiência formal e semântica (“espionagens verbais”), a poesia de Ana Luisa Amaral por vezes se espraia discursivamente (fazendo lembrar Álvaro de Campos ou Jorge de Sena), sobretudo quando percorre o quotidiano com uma ironia inteligente (os franceses diriam “pincez-sans-rire”), ou as escadas perdidas dos territórios do amor: “Hoje, a saudade de ti: punhalada / de tinta muito branca, / o cheiro do que é novo, o cheiro da / doença a alastrar”.

Poesia que dialoga com gerações anteriores da poesia portuguesa (Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, mas que se ancora na poesia anglo-saxónica pela sua contenção. E que, também, revisita lugares paralelos da lírica feminina portuguesa.

“Revisitar os sítios do pressentimento”: o espanto consigo, mordazmente terno, que traz a leitura da poesia de Ana Luísa Amaral.

 

 

Actual n.º 1847, de 21-3-2008

 

A IMAGEM E A VOZ

 

A poesia de Ana Luísa Amaral nasce de uma matéria que é a do sentimento e a da memória

 

 

Entre Dois Rios e Outras Noites

Ana Luísa Amaral

Campo das Letras, 2008, 128 pgs. € 10,50

 

Um motivo percorre este livro e determina o seu horizonte: o da escrita que regista a circunstância, que fixa a contingência como nota ou apontamento. Uma das secções chama-se mesmo “Apontamentos Desiguais”. A poesia que tem origem neste processo não aspira a projectar-se noutro tempo, foge de toda a essencialização e permanece numa linha rasa e plana, sem uma elevação que a venha interromper. Compreende-se assim o elogio da “música menor” que encontramos neste poema:

 

Até aquela letra me seduz:

a música menor

que lhe sustenta os pontos

quebrados pela tinta,

pela luz:

pousares certos da mão,

pensares incertos,

e carregadas pausas (pág. 24)

 

Há aqui uma atitude analítica que decompõe os gestos e as coisas e que nunca dá o salto para a síntese e para a totalidade. Daí que o “escrever” que muitos destes poemas tematizam  não seja mais do que um anotar aparentemente despretensioso, em que pode estar mesmo em causa o instrumento técnico que realiza esse exercício:

 

Seguro esta caneta,  escrevendo

por varanda de hospital. É bonita

a caneta, eu é que tenho estado

um pouco mal. Derramei-o por

sangue e tinta preta, reencontrei

o sol, as borboletas roçaram-me

o seu pólen de veneno, salvou-me

um balão de horas e formol (pág. 49).

 

É preciso reparar, além disso, que a digressão a que este registo convida acaba por se resolver num persistente regresso à intimidade,  a uma relação entre pensamento e afectividade e, até, a uma subjectividade romântica. O sonho,. a memória .e os dispositivos da evocação são uma máquina de produção poética , de emergência de um discurso imagético à medida da “rêverie” que está na base desta poesia. .Uma “rêverie» controlada, sem exasperações surrealistas, que remete para uma serena dramaturgia da vida  interior. Tudo isto sem ênfase, sem elemento trágico, num tom que joga com a intimidade, mas preservando a distância, isto é, sabotando-a. Em termos que chegam a ter um efeito quase irónico:

 

No livro de registos desta noite,

ficou assinalada uma visita

de três desavisadas toutinegras,

sapatos de pelica,

e um morfeu a quem elas inspiraram

a comprar capa preta,

e que eu, quase a dormir, vi transformado

em órfico poeta (pág. 23)

 

“Órfico poeta” é aquilo que Ana Luísa Amaral não é. Podemos mesmo dizer que, relativamente à sua poesia, trata-se de um modelo negativo. Na verdade, estamos nos antípodas de uma poesia órfica, Pelo contrário, estamos próximos de uma poesia que segue o percurso da experiência vivida, da sua contingência, das suas digressões, da sua matéria heteróclita.
O privilégio concedido ao sentimento e à memória assim como o triunfo da intimidade e das pequenas coisas podem ser bem escutados num poema que se chama “Unificações”:

 

Uma pomba passeia em Friedrichstasse,

numa Alemanha tocada

em unificação – e o que desejo unidos são retratos

de coisas passageiras.

 

O poema começa com uma referência histórica, mas imediatamente regressa a um nível do quotidiano e das evocações pessoais. Não podemos dizer que não haja aqui muita perícia e, sob um certo ponto de vista, um notável conseguimento. Mas há também, em igual medida,  um discurso que se esgota num efeito fútil.

 

António Guerreiro

 

 

 

EXPRESSO, Actual n.º 1935, 5 de Dezembro de 2009

 

Ana Luísa Amaral

Se Fosse um Intervalo

Dom Quixote, 2009, 102 págs.

 

A sintaxe é aqui a grande questão.

 

António Guerreiro

 

A poesia de Ana Luísa Amaral sofreu, neste livro, uma acentuada inflexão: tornou-se mais áspera, mais elíptica, e mais críptica. A sua matéria e os seus modos de representação já não se exercem, como antes, rente à experiência da vida quotidiana. Ela conduz-nos agora para um plano que nalguns momentos, podemos mesmo identificar com o surreal (há, aliás, uma secção de cinco poemas intitulada "Algumas Notas Surreais (Ou Não)". E, daí, a incidência no imagético portador de estranheza e que abre para um outro tempo que não é o do aqui e agora da contingência. Começa assim, um poema intitulado "Irei Agora carregar o Tempo":

 

Irei agora carregar o tempo

de mil relâmpagos,

tempestades de agosto

e algum rio.

E nele falarei sem sequer trovas

 

Habitarei as coisas de tal forma

como a lareira esguia do meu lado,

o tempo carregado de chamas e de mim".

 

Esta poesia conta histórias, tem uma forte dimensão narrativa, mas ao mesmo tempo aplica-se a sabotar a linearidade e a narratividade, E fá-lo, sobretudo, através de interrupções e quebras sintácticas, de tal modo que o trabalho poético consiste, em grande medida, numa espécie de desestruturação sintáctica e numa ordenação que não deixam que se formem frases. Um exemplo.

 

Aqui, do lado esquerdo, avesso a tal,

que ele seja de mim,

tanto glória e futuro,

como um imenso muro de interpretação.

Ou então, docemente,

em constatação leve e inocente:

 

o lado esquerdo muito bem timbrado (...).

 

Ora, estes processos são criadores de dissonância. Isso, que resulta numa poesia sintacticamente agreste, até poderia ser um factor interessante se não se tornasse um modo exasperado, uma produção vazia que, noutro plano, tem a sua correspondência em imagens como "luz diagonante" (pág. 9) e em versos que não conseguimos ler sem um tremor e sem a sensação de uma queda: "

 

Ser-se-iam decerto

mais atentas,

mais reparantes dos pequenos

brilhos" (pág. 93); "

 

Ou então docemente,

em constatação leve e inocente" (pág 26).; "

 

Restam batatas de moldura crua" (pág. 49).