24-3-2001
ANA TERESA PEREIRA
(n. 1958)
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UMA BIOGRAFIA LITERÁRIA
AINDA há autoras discretas, que não se promovem nem deixam muito que as promovam. Não caem nas malhas das estratégias de mercado a caminho do «best-seller», não aparecem em «cocktails» literários nem embarcam em «capelinhas». Ana Teresa Pereira é exemplo de tudo isto. Imagine-se
que, lá na sua ilha da Madeira, se limita a escrever, e a enviar-nos os
livros para que individualmente os descubramos nas livrarias. Nasceu no
Funchal, em 1958, deixou o estudo da Filosofia para se dedicar à prática
das Letras, tem já uma longa e variada carreira. Estreou-se
com um romance policial - Matar a Imagem - premiado pela Caminho em
1989. Nele encontramos irrelevantes ecos biográficos. A heroína chama-se
Rita e abandonou um curso de Filosofia para assumir a tarefa de escrever: «Havia
nela um medo feroz da escrita, de cair no poço sem fundo que era ela própria.
O medo não era muito intenso nas semanas em que escrevia o livro na mente
e as cenas e as personagens se formavam e desfaziam, e nem sabia se tinha
um livro ou não.» (pág.11). Rita vai casar com David, apesar
das animosidades: «Sentiu naquele instante que o detestava
profundamente. A ele e ao que representava: um caminho certo, traçado,
paralelo aos outros.» (pág.15) - uma recusa que definirá todas as
suas heroínas. Para o evoluir desta história de morte e amor, com
vampiros e anjos, vai ser fundamental uma casa antiga, o mar, e o
nevoeiro. Para todas as outras também. |
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Na
obra de Ana Teresa Pereira repetem-se os cenários, e ainda os gestos, situações,
sentimentos. Há obsessões que se vão misturando, se tocam e trocam
refazendo-se noutras histórias, ou contando outra vez a mesma de outra maneira
- como a questão do duplo, mais evidenttte em As Personagens de 1990
(Caminho). O processo denuncia-se principalmente pelos nomes - vão surgir
Marisas, Dianas, Miguéis, vários David e Tom ou Charlie. Em A Última História
diz-nos sobre Patrícia: «Como se fosse escrever um livro e precisasse de
inspiração, de entrar num mundo oculto, desvelar a realidade por detrás da
pele das coisas. Tom ensinara-lhe que para escrever era fundamental afundar-se,
descer à cave. E não forçar nada, deixar o livro acontecer, formar-se por si.
Começar a escrever cedo de mais poderia originar um aborto. Uma massa informe e
repugnante na qual não se podia mais tocar.»(pág. 9) A metáfora da massa
a moldar associada à escrita será mais um «leitmotiv», que se expande e
inverte em textos posteriores.
Quanto
aos nomes, não respeitam géneros. Repetem-se numa colecção juvenil editada
entre 1991-92 (Caminho) que tem por base de título A Casa. São cinco: dos
Pássaros, dos Penhascos, do Nevoeiro, das Sombras, da Areia. Aventuras de
um pequeno grupo de cinco heróis - a invocar a famosa Enid Blyton: os irmãos
David e Cristina, a prima Mónica, o amigo João, e o cão Charlie. Os miúdos
desvendam mistérios por vários locais da ilha da Madeira. A mãe, Carla,
escreve livros. Em A Casa do Nevoeiro parece que se apaixona por um
pintor de anjos de nome Miguel.
Tom
é o protagonista de A Cidade Fantasma, passado em Londres (Caminho,
1993). Um escritor de policiais que vai casar com uma Patrícia. A mulher é
sempre «a mãe, a bruxa, a amante, a filha pequenina» como a psiquiatra
de Num Lugar Solitário, que lá mais para a frente se descobre chamar
Patrícia, ter uma irmã-duplo Micaela, e por paciente um pintor chamado Tom.
Uma história com capelas, a passar pelo Paul do Mar, como A Casa do Nevoeiro.
O
registo policial vai ser preterido nos livros seguintes. A Noite Escura da
Alma (Caminho, 1997) é o nome do terceiro e último conto que compõe o
volume. Juntam-se-lhe «O Anjo Esquecido» e «Sete Anos», a evoluírem para um
romance pautado pela música das Variações Goldberg. Personagens
principais - um Tom, aspirante a escritor, e Marisa, herdeiros de uma casa
antiga: «A presença da casa. A casa que os rodeava como uma concha,
observando cada um dos seus movimentos, ouvindo cada palavra.» (pág. 54).
A casa anima-se diante da paixão de Tom por Marisa. Esta tem um(a) duplo
chamado Patrícia. No conto final, uma Marisa-filha transfere a paixão pelo
pai-Tom para um namorado David.
A
envolver tudo em crescendo sub-reptício, o romantismo inglês e o universo pré-Rafaelita
naquilo que recuperam de medieval. Mas os ambientes sinistros e atmosferas
inquietantes evidenciam marcas e vestígios do gótico, às vezes transportados
para território nacional e tempos modernos, contaminados pelos filmes mais
recentes. Reveladas em epígrafe há as inspirações em Jorge Luis Borges,
Henry James, Truman Capote, Iris Murdock, Hitchcock - este último ironicamente
reinventado em «O Ponto de Vista das Gaivotas», um dos contos de Fairy
Tales (Black Son Editores, 1996), reeditado junto com Ghost Stories
em A Coisa que Eu Sou (Relógio d'Água, 1997). Uma experiência
interessante embora menos feliz, pois aqui, as redundâncias negativizam-se
podendo tornar alguns dos textos em rascunho de romances futuros. É demasiado
evidente a semelhança entre a anónima heroína de «Forget-me-not» e de As
Rosas Mortas. Para elas, e para Ana Teresa Pereira, escrever é «como
mergulhar as mãos em argila (algo de sensual e assustador), criar formas que
depois voltavam à massa amorfa, ao caos, ao início; e surgiam de novo, durante
algum tempo, revelavam-se, e desapareciam...» (pág.17).
Helena Barbas
EXPRESSO, 20-11-1998
ONDE MORA XERAZADE?
Um livro curioso, este que temos sobre a mesa: As Personagens, de Ana Teresa Pereira. E também intrigante. Vejamos: o autor, o narrador, a personagem, constituem uma tríade infernal, cada um deles deixando a cada passo de ser quem é para ser quem não é, ou, afinal, talvez seja. Porque, inclusivamente, a personagem que é, também, além de o ser, escreve e inventa as histórias nas quais entra, e delas também é possível que saia para dar lugar a outro inventor de histórias, que será igualmente narrador (e personagem!) numa história, inventada por essoutra primeira personagem, a qual previamente saíra do enredo para poder inventar a história...
Dito de outra maneira: uma personagem lê um livro, no qual se conta que uma segunda personagem está a ler um segundo livro, no qual se conta que outra personagem está a ler outro livro, que é talvez o livro da primeira personagem que estava a ler um livro, no qual... Um círculo irremediavelmente perfeito. Ou não? Seja como for, é toda a fascinante ambiguidade do texto literário que está em causa, é o mundo da imaginação e do imaginário que nos é revelado, conservando, todavia, todo o seu mistério, toda a sua labiríntica irresolubilidade. Claro, pensamos logo em Jorge Luis Borges e nas suas Ficções. Pois pensemos. Também em Xerazade e as suas arabian nights, claro! São referências da própria leitura. Como Henry James, aliás. Embora não referenciado, também por lá paira e estende a sua sombra tutelar um Ray Bradbury de fantasmática inquietação.
Se o leitor, durante ou após a leitura, se predispuser ao devaneio decorrente, poderá admitir que Xerazade, contadora e inventora de histórias que alguém por (para) ela escreveu, resolve desvairadamente entrar nelas e transfigurar-se em personagem, em Simbad, por exemplo, O qual, logo ali começa a contar a sua história, que é a história de Xerazade ela-própria a contar a história de Simbad o Marinheiro.
Todos nós somos personagens, afinal, cada um de nós não passando de mera projecção da imaginação de alguém no pérfido deserto da esquálida realidade. Existiremos nós porventura fora desse engenho matricial chamado Imaginação? Que o leitor, ao entrar neste texto-labirinto, deixe de fora a esperança de quaisquer certezas. Quem nasceu primeiro - a galinha ou o Ovo? Onde mora Xerazade?
Ana Teresa Pereira, que subscreve a presente obra, já foi por duas vezes laureada. Pensamos que bem mereceu.
F. B.
(Ana Teresa Pereira. As Personagens. Lisboa. Caminho, Col. O Campo da Palavra. 1990.)
Recenseado por Fernanda Botelho. in: Revista Colóquio/Letras. Livros sobre a Mesa, n.º 115/116, Maio 1990, p. 175.
Sobre Ana Teresa Pereira, Se eu Morrer antes de Acordar
Rui Magalhães
Rui Magalhães
Quando a ficção vive na e da ficção
Anabela Sardo
Três
Leituras de Ana Teresa Pereira, a propósito da publicação de
ATÉ QUE A MORTE NOS
SEPARE e
O
VALE DOS MALDITOS.
Ana
Teresa Pereira: histórias de solidão e amor
Anabela Sardo
A
Irredutibilidade da Imagem
Rosário Gamboa
As
Palavras de Tom
Rui Magalhães
Duarte Manuel Carvalho Pinheiro, Além-sombras: Ana Teresa Pereira. Tese. Universidade Fernando Pessoa, Porto, 2010. Lisboa, Fonte da Palavra, Novembro de 2011, ISBN 978-989-667-084-9
---. “Quando atravessares o rio: A surdez das pegadas.” Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Fernando Pessoa (n° 5), 2008: 344-346. Online aqui.
---. “O fantástico em Ana Teresa Pereira.” Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Fernando Pessoa (n° 6), 2009: 10-16. Online aqui.
---. “A linguagem dos pássaros: o turbamento de Villalilla.” Actas do VI congresso nacional Associação Portuguesa de Literatura Comparada/X Colóquio de outono comemorativo das vanguardas." 2009. Online aqui.
.---. “O fim de Lizzie e outras histórias.” Diário de Notícias (revista NS’) 3 de Abr. 2010: 56-57.
---. "Da outra margem do lago.” Semanário Grande Porto. 13 Mai. 2011: 47.
---. “Geis, a maldição de um regresso a casa.” Semanário Grande Porto. 08 Jul. 2011: 4. Online aqui.
Pode ver outras páginas deste site sobre a Autora aqui e aqui. Esta última contém um dossier com uma longa entrevista, extraídos do Público.
máxima
MÁXIMA n.º 232, Janeiro, de 2008, pags. 28 e 29
HISTÓRIAS SUBMERSAS
Apresentámos a autora às nossas leitoras após a sua premiada estreia literária, que ocorreu em 1989. Desde então, Ana Teresa Pereira tem-se dedicado apenas à escrita, criando um mundo singular e misterioso. Com A Neve, conquistou o Prémio Máxima de Literatura 2007.
Por Leonor Xavier
A Neve é um romance? Uma novela? Um conto? Uma prosa poética? A classificação do género deixa de ser importante quando o texto alcança a harmonia da beleza, dimensão superior do estilo literário. O livro de Ana Teresa Pereira, distinguido pela 15.ª edição do Prémio Máxima de Literatura, teve a unanimidade do júri pela qualidade literária da narrativa, pelo sugestivo desenho das personagens, pela harmonia do estilo, no alinhamento da linguagem, pelo puro prazer estético dos sons e sentimentos que oferece. Quem sabe se Ana Teresa terá sido inspirada pela sua terra de nascer, o Funchal, para a talentosa simplicidade com que integra as suas personagens no ambiente impressivo que as rodeiam. Na sua escrita, há as sonoridades que fluem, os elementos que escorrem entre terra e céu, a intensidade dos silêncios, a fertilidade da natureza.
Falante fluente de francês, inglês, espanhol, italiano, alemão, sueco, terá evoluído por variados cenários do mundo para a viagem interior que tão bem exprime na sua obra. Obra que tem sido disciplina de uma vida exclusivamente dedicada à escrita. São mais de 30 títulos de ficção publicados, e o romance de estreia, Matar a Imagem, distinguido em 1989 com o Prémio Caminho de Literatura Policial, pela dimensão do fantástico que envolve as suas personagens. Personagens como a misteriosa menina, parceira visível ou imaginária da protagonista de A Neve. A sensualidade está presente, intensa, na ficção de Ana Teresa.
Feliz pela edição do seu livro mais recente, Quando Atravessares o Rio, Ana Teresa Pereira fala-nos agora um pouco de si.
Tem uma vasta obra publicada. Para si, escrever é dor ou prazer? É disciplina ou arte? É um divertimento ou uma intervenção na realidade através da ficção?
No conto The Middle Years, Henry James escreve: “Trabalhamos no escuro, fazemos o que podemos, damos o que temos. A nossa dúvida é a nossa paixão e a nossa paixão é a nossa tarefa. O resto é a loucura da arte.” É assim que vejo o trabalho de um escritor. Acho que escrevi dois ou três livros que me justificam. O que é muito bom. Escrever como se cada livro fosse o último, aquele em que se joga tudo. E, quando estamos em perfeita sintonia com o livro, a realidade começa a ceder (são palavras de Borges). O mundo interior e o mundo exterior misturam-se de uma forma perturbadora. Quando comecei a escrever Se Nos Encontrarmos de Novo, compreendi muito cedo que o protagonista era o mesmo Byrne de Intimações de Morte. O que me alegrou, porque tinha a impressão de não saber quase nada a seu respeito (e eu tinha-me apaixonado por ele e pela Jane). Byrne, fisicamente, era o actor irlandês Gabriel Byrrne. Revi alguns dos seus filmes, procurei fotografias dele em revistas... Entretanto fui uns dias a Londres, queria passear nas ruas perto da casa de Ashley, passear junto ao rio de manhã cedo, ver os “meus” quadros, comprar livros na Marchpane. E uma noite fui ao teatro e o Gabriel Byrne sentou-se ao meu lado. Quando mais tarde lhe disse que no meu livro ele estava a escrever sobre Iris Murdoch, perguntou com naturalidade: “Tu leste The Sea, the Sea?” Foi uma das noites mais estranhas da minha vida, a noite em que encontrei a minha personagem... Depois não consegui escrever durante meses. Mas quando recomecei, o livro estava transformado e o final era diferente.
Como descreve/define a sua escrita? A sua obra?
Como um longo livro inacabado. Fragmentos de um palimpsesto. Há uma história submersa da qual tento aproximar-me, por vezes há algo que se revela e desaparece logo a seguir. É por isso que para escrever preciso de chegar a um estado que é quase de consciência alterada (um estado de graça?). Lembro-me de que passei meses a trabalhar em A Linguagem dos Pássaros e depois escrevi a primeira versão em cinco dias. E essa primeira versão era o livro que eu conhecia, e ao mesmo tempo era algo de novo, de desconhecido. Não sei bem se passei os meses seguintes a trabalhá-lo ou a tentar percebê-lo. Cada um de nós tem uma mão de cartas, e é com elas que joga eternamente. No meu caso, sempre repeti o nome das personagens, os cenários, as referências. É como se trabalhasse com um pequeno número de actores: dou-lhes papéis diferentes, os cenários mudam um pouco...
Um único livro?
Talvez por isso as repetições. Não me importava de reescrever inteiramente um livro, mudando só algumas palavras. Talvez uma única palavra. Mas se fosse a palavra certa... O meu cantinho, numa remota estante, numa remota sala da Biblioteca de Babel.
Pode dizer-se que o romance A Neve é prosa poética?
A Neve é um livro muito cinematográfico. Um filme parecido com um sonho: o espaço, o tempo e a identidade não têm qualquer consistência. É um livro sobre um jardim. Um jardim de que gosto muito, um lugar onde quase acredito na existência de Deus.
Porque se fala de mistério, a propósito da sua obra?
Talvez porque não separo a vida da literatura. Não me interessam os exercícios literários mas uma experiência visceral. Nos últimos livros falo da relação entre a literatura e o teatro (o cinema). Orson Welles disse numa entrevista que um escritor é como um actor, tem a faculdade de entrar na pele da sua personagem e de a transfigurar com o que pode dar de si mesmo. E, como uma personagem, o escritor pode seguir por caminhos muito estranhos: a vereda que leva à mansão de Sunset Boulevard, de Billy Wilder; as portas que se abrem para realidades diferentes, em Inland Empire, de David Lynch. Pode ser uma experiência limite, como em alguns filmes de Cronenberg: inventar uma realidade, vivê-la. E as personagens de Cronenberg não voltam (não querem voltar) da sua viagem interior. Acho que um escritor deve ter algo de suicida. Talvez só acredite nos escritores que “acabam mal”. A alucinação como viso do mundo. Lembro-me de uma noite, depois de terminar Se Nos Encontrarmos de Novo, em que sonhei com Byrne e com uma frase dele, “tu és escura como a noite, como Deus”. A impressão de passar a noite inteira a sonhar com essa frase...
Hã uma escrita feminina?
A questão não é muito importante. Um grande escritor, homem ou mulher, não se parece com ninguém.
Tem uma influência inglesa na sua obra. Porque nasceu na Madeira e essa cultura está próxima de si?
Não. Porque cresci no meio de livros ingleses. Os vales perdidos de Enid Blyton, as casas de campo de Jane Austen, a Cornualha de Daphne du Maurier, as ruas de Londres, escuras e cheias de nevoeiro, dos policiais de Conan Doyle e John Dickson Carr. Acho que sempre quis voltar a esses lugares. E o resultado é um mundo que não existe do lado da realidade mas onde as ruas e as casas têm nomes ingleses.
Em pequena, já escrevia? Queria ser escritora?
Aprendi a ler quando tinha cinco anos e foi por essa altura que os meus pais me deram o primeiro gato. Os livros e os animais. Escrevia histórias de todos os géneros, aventuras, policiais, westerns. E havia os filmes. Eu seria outra pessoa se não tivesse visto The Night of the Hunter, Gaslight, quando era criança. Os meus livros são os meus filmes.
Como foi o ambiente em que nasceu e foi criada?
Um pai que me comprava livros e gostava muito de cinema. Uma mãe muito bonita que gostava de flores.
Que significado tem para si o Prémio Máxima de Literatura?
Foi algo de inesperado, mas agradável. É bom que o nosso trabalho seja reconhecido..
Jornal de Letras, Artes e Ideias
Ano XXVIII / N.º 988
13 a 26 de Agosto de 2008
Ana Teresa Pereira
O outro lado do espelho
Maria Leonor Nunes
No Outono sairá O Verão Selvagem dos Teus Olhos, o novo livro que está a escrever e que agora “contamina” os seus dias. E até esta entrevista, feita por mail, como adianta, também ela implicada na ficção, resposta a resposta, ou no constante jogo de espelhos que é o mundo de Ana Teresa Pereira. Entretanto, publicou O Fim de Lizzie, duas histórias, o mesmo cenário, as mesmas personagens para um ponto de vista sobre a obra de uma das mais fantásticas escritoras contemporâneas.
Repetidas vezes, as personagens entram em cena nos seus livros, passando algumas de história para história. A sua escrita é um fabuloso teatro. De duplos, de identidades, de obsessões, de lugares comuns como a casa antiga, o mar ou o nevoeiro. Ana Teresa Pereira, 49 anos e mais de duas dezenas de títulos publicados em quase duas décadas, pensa mesmo em determinados actores quando cria as suas personagens. Os seus livros são cada vez mais feitos à imagem do cinema e inevitavelmente do seu próprio mundo. Nunca separou a sua vida do que escreve. Duke Ellington é a banda sonora do seu próximo romance, que se vai chamar O Verão Selvagem dos Teus Olhos, seguindo o verso do poeta irlandês Yeats.
O mundo de Ana Teresa Pereira não é, de resto, isento de qualquer coisa de insular. Nasceu em 1958, no Funchal, onde vive, afastada dos centros literários. Não vai em alardes promocionais, não é uma presença constante, nem sequer sazonal, nas páginas dos jornais e revistas. Não figurará no rol dos escritores mais ou menos malditos que se recusam a ser entrevistados e fotografados, mas não se livra de uma certa fama de bicho-do-mato. E a sua escrita é verdadeiramente uma ilha na ficção portuguesa. Estreou-se em 1989, com Matar a imagem, que ganhou o Prémio Caminho Policial, mas a sua obra cruza também o fantástico ou o western. Até mesmo uma incursão na Literatura Infantil, experiência qu hoje parece não rever com agrado. É sem falsas modéstias que afirma que o que escreve é em si “um género”. E assiste-lhe a razão.
Feliz o instante em que decidiu largar o curso de Filosofia para se dedicar inteiramente à escrita. E nunca quis outra coisa que não fosse escrever. Ao correr do tempo, criou uma obra singular e inquietante, um estilo claro e reconhecível, um lugar único na Literatura Portuguesa. As personagens, A Última História, Num Lugar Solitário, Fairy Tales, A Noite Mais Ecura da Alma, A Cidade Fantasma, A coisa que eu sou, As rosas mortas, O mar de gelo, O rosto de Deus, Quando atravessares o rio, Até que a morte nos separe, Se eu morrer antes de acordar são alguns dos seus livros. Recentemente acrescentou-lhes O Fim de Lizzie, uma edição da Relógio d’Água (144 pp, 8 euros), em que juntou duas histórias já anteriormente publicadas. Liga-as o mesmo elenco, o mesmo cenário e o mesmo clima de todas as narrativas de Ana Teresa Pereira que, aliás, já anseia voltar ao Kevin e à Lizzie, personagens dessas histórias, como a Kate ou o Tom, que vêm de outras, nesse eterno retorno de que se faz a sua literatura. E pelo caminho, quem sabe, poderá também escrever um livro sobre cinema. A epígrafe será de Truman Capote: “Gosto de ti porque és tonta e só sabes da vida o que aprendeste nos filmes.” Mas não faz planos, assegura, porque “cada escritor tem os livros contados”, como já escreveu num dos seus romances.
Jornal de Letras: Ao fim de 20 anos de Literatura e de duas dezenas de livros publicados, construiu um universo ficcional raro, singular, inquietante e reconhecível: Qual o seu mistério?
Ana Teresa Pereira: Há escritores que tentam reproduzir o mundo exterior, outros que têm um mundo próprio. Eu acho que sempre tive facilidade em aceder ao meu mundo interior. O outro lado do espelho. O tempo, o espaço e a identidade não têm qualquer consistência. As leis são as do inconsciente, a omnipotência do pensamento, a compulsão à repetição. O efeito pode ser “unheimlich”, algo que deveria ficar escondido mas vem à luz. Nunca separei a minha vida da escrita. Acho que o escritor deve dissolver-se naquilo que escreve. Nenhuma separação, ainda que se torne perigoso.
Em que sentido?
O livro que estou a escrever, O Verão Selvagem dos Teus Olhos, (um verso de Yeats), contamina a realidade, os meus sonhos, esta entrevista.
O escritor volta sempre ao local da criação, das histórias, das personagens que cria?
Sempre voltei aos livros e aos filmes. O vale maldito de Enid Blyton, a casa na árvore de A Harpa das Ervas, o banco de madeira que surge em vários contos de Henry James. A rua escura onde Lillian Gishe Robert Mitchum cantam o mesmo hino, a casa de Londres onde Ingrid Bergman enlouquece aos poucos, enquanto Charles Boyer se afasta no nevoeiro, o hotel de S. Francisco onde Kim Novak volta de entre os mortos para os braços de James Stewart. Acontece o mesmo com os meus livros.
O que a faz voltar sempre aos lugares da sua ficção?
Eu estava apaixonada por O Mar de Gelo, as personagens, os lugares, a atmosfera, e tinha de voltar. Estava apaixonada por Tom, queria vê-lo mover-se, agir, falar. Sentia a falta de Kate, a sua forma de andar, a sua paixão, até o seu perfume. E voltei àquele mundo em Quando atravessares o rio. Já tinha acontecido antes.
As duas histórias de O Fim de Lizzie já tinham sido publicadas? Por que razão as quis juntar neste livro? São a mesma realidade, a mesma história?
Gostava muito de Numa manhã fria. O prazer de contar uma história, na verdade duas histórias que se excluem uma à outra: se Kevin tem razão, a história de Lizzie é falsa, e vice-versa.
A questão é do ponto de vista?
Há duas realidades possíveis e nunca sabemos qual delas tem a ver com o mundo exterior. Eu mesma não o sei, ainda que tenha uma ideia. Como em A Volta do Parafuso, de Henry James, temos somente o ponto de vista de uma personagem, e não fazemos ideia do que está realmente a acontecer. Depois, escrevei O Fim de Lizzie. As mesmas personagens, o mesmo cenário, e de novo o ponto de vista de Kevin. Não sabemos a partir de que momento ele começa a alucinar. Mesmo se alguém está a enlouquecer, essa é a sua realidade. Posso continuar a escrever estas histórias indefinidamente. Também me interessa a fragmentação da identidade. Há quatro personagens, mas talvez sejam só três, ou duas, ou talvez Kevin esteja sozinho em Wistaria Hall e tudo o mais seja o seu sonho. Sozinho num mundo povoado pelas suas criaturas. Um mundo sem fronteiras visíveis entre a realidade e a alucinação.
O que lhe interessa na desdobragem ou na ideia de duplo, muitas vezes presente nos seus livros? A questão da identidade é para si central?
O duplo, a fragmentação da identidade, estiveram sempre lá. Nos meus últimos livros, O Mar de Gelo, Quando Atravessares o Rio, quando as personagens não estão a representar, não estão a escrever, não fazem a menor ideia de quem são. É quando estão a trabalhar, quando fingem ser outra pessoa, que têm um vislumbre de quem realmente são.
A impossibilidade do amor, é sobre isso que essencialmente falam as suas histórias? Ou na mesma medida da impossibilidade da realidade e da compreensão do mundo?
Eu não sei (não faço a menor ideia) de que falam as minhas histórias. Não me diz respeito. As personagens existem, e caminham, e perseguem-se, e procuram alguma coisa, a identidade perdia, a redenção, talvez. E depois há o inconsciente do livro, o livro é algo de vivo, com uma existência própria, atravessado por correntes subterrâneas. Eu limitei-me a escrevê-lo.
Tudo se joga sempre entre a realidade e o sonho? De outra maneira, entre a realidade e a ficção?
Orson Welles disse que um escritor é como um actor, entra na pele da sua personagem e alimenta-a por dentro. Quando estamos em total sintonia com o livro, a realidade começa a ceder. É de magia que estamos a falar.
Um jogo de máscaras
Há personagens que deambulam pelos seus livros, passam de história em história, e sendo as mesmas são outras e sendo outras são as mesmas? Porquê?
Em especial nos últimos anos, os meus livros são muito cinematográficos. Tenho um pequeno grupo de actores, e eles representam as personagens, de certa forma são as personagens. Kevin é Kevin Bacon, Lizzie é Michelle Pfeiffer no tempo de Os Fabulosos Irmãos Baker. Um pequeno grupo de actores que passam de um livro para o outro, como se trabalhassem num teatro, sempre o mesmo; de vez em quando lembram-se da peça que representaram antes; como o velho actor de The Dresser, pintam a cara de negro para representar o rei Lear. E vão continuar a representar, mesmo quando eu não estiver aqui. Talvez repitam as mesmas peças, noite após noite, após noite.
Será por
acaso que tem um livro chamado As personagens? As personagens são
fundadoras do seu universo literário? Que relação mantém com elas?
É uma relação estranha, a que tenho com as minhas personagens. Nos últimos
anos conheci dois actores que são actores nos meus livros. Gabriel Byrne e
Jeremy Irons. O primeiro de uma forma muito estranha, ficámos ao lado um do
outro num teatro de Londres, quando eu estava a escrever Se Nos Encontrarmos
de Novo, em que ele era o protagonista. E Jeremy Irons estava a representar
Embers quando escrevi Quando Atravessares o Rio. O livro já existia, a trama não
mudou nem um pouco, mas eu não consigo imaginá-lo sem o encontro com “o meu Tom”
na vida real.
Transfere para elas alguma coisa de autobiográfico?
É um lugar-comum, mas tudo o que escrevemos é autobiográfico. E se não temos os actores para representar os outros papéis, arrancamo-los de nós mesmos. É um jogo de máscaras e de espelhos, e é sagrado.
Qual foi a
primeira personagem da sua escrita? Ainda a visita?
Um homem velho numa biblioteca; uma rapariga que se perde nas ruas numa noite de
nevoeiro e encontra uma loja ainda aberta.
Há outras “personagens” que atravessam os seus livros: a casa, o nevoeiro… Porquê?
Há pouco tempo reli Rebecca, de Daphne du Maurier, e tive, mais uma vez, a impressão de voltar a um lugar que conheço muito bem: a alameda de rododendros, o quarto fechado onde alguém muda as flores das jarras todos os dias, a enseada com a casa de barcos. Acontece o mesmo com alguns dos meus contos. Há lugares que já existem dentro de nós, Gaston Bachelard escreveu sobre isso, nós subimos sempre a escada que leva ao sótão, descemos sempre a escada que leva à cave, o quarto no fundo do corredor tem sempre três degraus…
Em que medida são reflexo da sua geografia pessoal?
Estes lugares têm a ver com a infância. Se há neve, e nevoeiro, e casas misteriosas na nossa vida e nos nossos primeiros livros, ficamos marcados para sempre.
A ideia de criação é também muito presente: por que razão muitas das suas personagens escrevem, pintam? É um outro jogo de espelhos?
As minhas personagens fazem aquilo que me interessa, aquilo que compreendo melhor. E de certa forma criam-se umas às outras e ao que as rodeia, “they do it with mirrors”. Estão apaixonadas pela beleza das superfícies, mas conhecem profundamente o lado escuro das coisas.
É certo que se deve “amor” ao que se cria? É essa a relação com a sua escrita?
Quando era criança, só me interessavam os livros em que o autor gostava das personagens. O que me fazia gostar muito de Enid Blyton e detestar a Condessa de Ségur. Eu não mudei muito. É um dos motivos porque amo os “meus” escritores e desprezo quase toda a ficção portuguesa. Mesmo quando escrevemos sobre um criminoso ou um monstro, teos de sentir alguma ternura por ele, alguma compreensão, afinal ele está em nós.
Aprender com Borges
Por que é que a pintura ou a música são tão fortes no seu universo?
Pintura, música, cinema. Sempre foram.
Também pinta? Qual a sua relação com a pintura?
Não tenho qualquer talento. Mas quando o faço sou ainda mais obsessiva do que ao escrever.
A pintura de Kokoschka representa bem a sua atmosfera literária?
Gosto muito de Oskar Kokoschka. Acho que a mente de Kevin se parece com aquelas pinturas. Rothko, a certa altura. Whistler. Uma personagem de Quando Atravessares o Rio viajava para ir ver os quadros de Van Gogh em Amesterdão, os quadros de El Greco em Madrid. Eu compreendo isso.
E a música? Variações Goldberg são da sua preferência? Bach? Os outros? Ouve música enquanto escreve?
Nos últimos tempos, quando imagino os meus livros, é como se estivesse a preparar um filme. Há os actores (e quando um actor substitui outro, tudo muda à sua volta), os cenários e a banda sonora. Muitas vezes, são bandas sonoras de filmes. Em O Mar de Gelo a banda sonora de Million Dollar Baby, em Quando Atravessares o Rio a de Pride and Prejudice. No livro que estou a escrever agora, Duke Ellington.
Nos seus livros também há um rasto permanente de outros escritores.
De certa forma, queremos reescrever os livros que nos tocaram. No meu caso, A Aventura no Vale, A Intrusa, A Volta d Parafuso, A Árvore da Noite… E os filmes, A Noite do Caçador, Matar ou Não Matar, À Meia Luz, Vertigo… E como não é possível, a não ser que nos transformemos em Pierre Menard (e mesmo ele não conseguiu), criamos um mundo que nunca existiu antes, onde nos podemos oerder de novo, e ser felizes, ou infelizes, como fomos uma vez.
O seu lastro literário é essencialmente anglo-saxónico: porquê?
Borges dizia que tinha nascido numa biblioteca inglesa. Eu também. Não sei se é visível a importância que Borges teve para mim, aprendi com ele a escrever sobre livros que não existem, sobre filmes que não existem. Uma vez escrevi uma crónica sobre ele e mencionei um livro que não existia, e creio que ninguém deu por isso.
Já experimentou o policial, o fantástico, a literatura infantil: sente necessidade de experimentar diferentes registos? Qual aquele em que se sente mais à vontade?
Pode parecer pretensioso, mas acho que os meus livros constituem um género.
Há quem
detecte uma marca «gótica nos seus livros. Concorda?
Talvez. No filme Sunset Boulevard, quando William Holden segue pela alameda que
leva à mansão, está a passar para um mundo diferente. Acho que isso acontece nos
meus livros. Uma velha casa com um lago (ou uma piscina) à frente, duas casas
iguais em frente uma da outra, uma biblioteca com uma lareira acesa, duas ou
quatro personagens...
Também há quem a considere sobretudo uma escritora de policiais: assenta-lhe a classificação?
Eu gostava muito. Mas nunca poderia escrever um livro tão com como O Enigma da Cripta, de John Dickson Carr, A Mulher Fantasma, de William Irish, A Máscara da Desonra, de Minette Walters.
Livros feitos de tempo
Quando começou a escrever? Ainda na infância?
Não me lembro de um tempo em que não escrevesse. Comecei a ler muito cedo e escrevia aventuras, histórias policiais, westerns. Era um jogo como os outros.
O que a levou a estudar primeiro Filosofia? E depois a trocá-la definitivamente pela escrita?
Compreendi que tinha de fazer muitas coisas diferentes, ter experiências diferentes, antes de ser escritora. Mas sempre quis escrever.
Escreve sempre, todos os dias?
De forma alguma. Marguerite Yourcenar disse que o essencial não é a escrita, é a visão. Mas para merecermos a visão é preciso muito tempo. Os livros são feitos de tempo. Temos de ler, ver filmes, amar alguém ou alguma coisa, viajar, quem sabe encontrar as nossas personagens… e, acima de tudo, esperar. É preciso descer muito fundo para chegar ao lugar onde o livro se forma. Quando me sento para começar a escrever, o livro já está terminado mentalmente.
É a
literatura que a ajuda a «atravessar a noite?
Os livros, os filmes. Quando comecei a escrever, pensava que os meus livros iam
ficar, que iam ser traduzidos, enfim... Agora sei que isso não vai acontecer. O
Cristopher Hampton não vai escrever uma peça baseada num livro meu, o David
Cronenberg não vai fazer um filme... Talvez não passe o resto da minha vida a
escrever, mas a fazer outra coisa. Mas continuarei a ler Richmal Crompton e
William Irish, e a ver os filmes de Nicholas Ray e Hitchcock. Para atravessar a
noite.
Porque escolheu viver no Funchal?
Acho que viver no Funchal é melhor do que viver em Lisboa. Na verdade, gostava de passar o resto da minha vida noutro país, a Irlanda, por exemplo.
Parece
isolar-se deliberadamente na sua ilha, afastando-se da chamada vida literárias.
Parece também avessa a todas as artes do marketing, aos lançamentos e palestras:
porquê? É uma escritora enigmática ou simplesmente preza a discrição?
A vida é demasiado curta para fazer coisas que não me agradam."
A
ordem do caos AS ROSAS MORTAS, Relógio de Água, 1998 --- NESTE último livro de Ana Teresa Pereira, o seu primeiro romance pela extensão, e não policial pelo registo, culminam todas as obsessões e estratégias até aqui exploradas por esta autora, fértil pelo modo sempre diferente como no las apresenta.
A
inspiração britânica evidencia-se logo na capa - o quadro The Day
Dream (1880), onde Dante Gabriel Rossetti usou como modelo Jane Burdon,
depois Morris. A influência de Rossetti prolonga-se texto adentro, num
poema citado: «I have been here before» («Sudden Light») a
sugerir a ligação entre os amantes vinda de vidas anteriores. E começa
assim o primeiro capítulo: «É a primeira vez que nasço como mulher.
Há ainda em mim um rasto de bicho, um rasto de nevoeiro.» Esta é a
protagonista, pintora e modelo de si própria, também escultora: «Vesti
a T-shirt branca de trabalho e sem tomar duche fui para o atelier. Ao fim
de algumas horas, o ser que me saiu das mãos era o mais horrendo de
todos, e ao mesmo tempo o mais comovedor. Fiquei a olhá-lo durante algum
tempo e depois enterrei os dedos na massa mole até desfazer a figura por
completo» (pág. 67). Pela redundância da roupa e dos gestos,
entende-se que seja a figura do prólogo, onde a escultura se transforma
em bruxaria, ironizadas como duplicação do acto criador genésico: «A
mulher procurou qualquer coisa no bolso da camisola: uma minúscula bola
de pêlos de gato e duas penas de pássaro. Mergulhou as mãos na terra,
tirou um pedaço de lama e misturou-a com as folhas, as flores, os pêlos,
as penas. Os seus dedos ágeis amassaram por momentos aquela matéria, e
começaram a modelar uma figura» (pág. 13). Esta mulher que trabalha
o barro, acaba também a modelar à sua maneira os seres humanos e os seus
destinos. Chama-se Marisa. Conhece Paulo, aspirante a poeta, numa exposição
sua: «Ele ficou perturbado a primeira vez que o trouxe a casa. A minha
casa, no centro do meu jardim murado. Os hotéis (...) aproximam-se com
uma rapidez terrível, mas ela está ali, ainda sozinha, as árvores
protegem a sua intimidade. É enorme e parece-se com uma gravura antiga,
com manchas do tempo, com a beleza um pouco triste do tempo e do
abandono./ Um velho castelo» (pág. 26). Um castelo assombrado para
uma princesa-bruxa. Paulo começa a ser arrastado para o mundo de Marisa,
a mulher-elfo que se pinta envolta em nevoeiro, monstros e asas de pássaros.
«Os pássaros dormiam nos seus ninhos e os monstros no fundo das
cavernas, no ventre da terra. Tudo estava igual. Mas ele transformava-se,
lentamente... e tinha medo, tanto medo./ E não me acreditava quando lhe
dizia que devia deixar a metamorfose ir até ao fim» (pág.63). A fé
de Paulo não lhe dá forças para vencer o medo nem os monstros, e
recorre à ciência. Entrega-se nas mãos de Miguel, um psiquiatra com
nome de Arcanjo. Mas Miguel não reconhece a diferença entre «a doença
humana e o toque dos deuses» e, apesar do seu nome, não sabe falar
nem reconhecer a linguagem dos anjos e dos pássaros. Marisa define-o: «o
'sujeito suposto saber', o 'médico da alma', cheio de segurança, pronto
a perceber o amor e o ódio, a explicar o suicídio, a desfazer de uma
palhetada a existência de Deus ou o medo da morte, o 'sujeito suposto
saber' que tanto pode receitar um ansiolítico como electrochoques»
(pág. 201). Por oposição, parte deste romance ecoa e inverte a intriga
de Num Lugar solitário - em que Ana Teresa se debruça sobre a
relação médica-paciente durante e depois da análise. E também aqui
ataca a situação de «transfer», embora sendo outra a tónica, e mais
elaborado o modo.
Miguel
é casado com Helena, formando ambos o segundo par da história. Um casal
burguês exemplar, com vida, filhos e uma casa exemplares. Solar. Helena: «não
sonhava com répteis e serpentes, e se sonhava esquecia os sonhos, aquela
mulher não tinha nada a puxá-la para baixo, para o caos, vivia à superfície,
vivia na luz, na segurança» (pág. 91). E também eles vão ser
contaminados pelo mundo lunar de Marisa.
O
romance vai evoluindo a explorar - nunca de forma primária - a luta entre
o solar e o lunar, encenando os antagonismos entre duas ordens de valor
igual e sinal diferente; a impossível pretensão de o primeiro entender o
segundo com regras e normas suas; a força persistente do segundo em
exigir o cumprimento das suas leis inexoráveis. Mesmo a Marisa, que no
final invoca de novo a tradição inglesa, identificando-se agora com a
figura feminina da «Lady of Shalott» de Tennyson - a mulher encerrada na
torre do seu castelo, que só podia olhar o mundo por intermédio de um
espelho. Nele vê Lancelot, por quem se apaixona. Vira-se. O espelho
quebra-se, e cai-lhe em cima a maldição que a prendia, e que ela própria
ignorava qual era. E por aqui, o prólogo revela-se também como epílogo.
Dedicado
aos gatos, o livro apresenta-se dividido em quatro partes. Cada uma delas
vai buscar o nome a uma das cartas do Tarot: o Louco, a Grande
Sacerdotisa, os Amantes e a Lua. Um outro espelho. Ou a ordem possível ao
caos. HELENA BARBAS EXPRESSO – 15-8-1998 |
O desejo não resulta
A
literatura de quiosque paredes-meias com a erudição
Fátima
Maldonado
O
VALE DOS MALDITOS
de Ana Teresa Pereira
(Black
Sun Editores, 2000, 76 págs.)
Ana
Teresa Pereira é um caso bem interessante na literatura portuguesa, que vive de
enfatizações, equívocos e tragédias e cresce quase por inteiro à sombra das
instituições. Com ela passa-se tudo num plano aparentemente mais minimalista.
Mas o universo literário em que se desloca é de reflexos que se interpenetram
e desdobram e repartem até se estilhaçar o estanho que os conteve.
Deste modo
tudo se adensa, muito mais complexo do que ao primeiro relance poderia supor
alguém desprevenido. |
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A
sua estrada é recta pelo menos desde o primeiro livro que dela li, Matar a
Imagem, que em 1989 ganhou o Prémio Caminho de literatura policial. Já lá
estava tudo: a erudição (acaba por não irritar e até se torna bem compensatória
nesta casa do mundo onde à degradação comum se chama agora divertimento), a
neurose elegantíssima, a obsessão vampírica, a fixação no duplo, o snobismo
wildiano. E ainda o interesse pela cultura popular, que não é incompatível
com o resto, antes desejável num território tão contaminado pelas várias
burocracias da escrita. «E anos mais tarde lera o mais estranho dos policiais
(talvez porque não era um policial): Married a Dead Man, um jogo no qual os
dois jogadores perdem. Irish, infeliz e alcoólico, fechado no seu quarto
durante anos, Irish que queria escrever como Fitzgerald. Não fora um Fitzgerald
mas criara um universo que não se parecia com coisa nenhuma», conta em Matar a
Imagem.
Examinar
o percurso desta escritora de trás para diante, começando pelo policial e
acabando no que julgo ser o seu último livro, O Vale dos Malditos, Black Son
Editores, surpreende. Aconteceu-me já estar um pouco saturada dos livros em que
ela fazia suceder num alucinante projectar a casa eterna habitada por seres maléficos,
paixões deletérias, sangue e perfume de rosas e sempre a mesma narcisíssima e
anoréxica criatura. Mas quando, de repente, surge este «western» como deve
ser - capa a rigor de Paulo Scavullo -, com uma citação de William Blake a
abrir: (...) «Some are Born to sweet delight,/ Some are Born to Endless
Night», é uma delícia. Porque a
história é boa, tão boa que lembra ao longe Duelo ao Sol. Mas em O Vale dos
Malditos o casal proscrito ficará junto para sempre, de certeza para sua
infelicidade perpétua. Felizmente a boa rapariga morre, evitando assim que Tom
Stuart, o herói, se estabeleça e integre o rebanho. E há também um bandido
que não é o que se esperava e um clima de híbrida ascendência - Tom Stuart
é meio índio, como convém aos bons vilões e incapaz de afectos como também
é costume.
O
mais interessante de tudo isto prova a capacidade de Ana Teresa Pereira renovar
géneros inoculando-lhe sangue fresco. O que é entre outras uma das características
que a literatura exige para não desmaiar. E nesta pretensa obra revivalista,
ela consegue, sem quebrar a estrutura clássica do livro de «cowboys» que se
comprava por 25 tostões nos antigos quiosques, pôr o herói/vilão a ler
William Blake, invertendo-lhe o destino de rude macho e instilar já perto do
fim um clima donde os corvos de Edgar Poe não estão ausentes. Ou seja, obrigar
o romance popular a conviver paredes-meias com os suportes da literatura fantástica
sem quebras de ritmo ou dissonância. Grande lição para os paladinos da
literatura extática. E quem defende que a cultura popular é incompatível com
a erudição deveria limpar-se a este guardanapo, para acabar num registo vulgar
de Lineu, como se diz nos relatórios das autópsias.
EXPRESSO, 20-1-2001
A CEGUEIRA DOS SERES APAIXONADOS
A novela de Ana Teresa Pereira, “Até que a morte nos separe”, tem o sonho e a memória cinéfila dos amores malditos Até que a morte nos separe, novela de Ana Teresa Pereira, está para a literatura portuguesa como a doçaria para a culinária: à primeira vista, trata-se de um tipo de alimento pouco substancial; depois, quando se prova, descobre-se que teria mais calorias do que seria previsível. E não é apenas o valor alimentar que se evidencia na leitura. As sobremesas parecem simples de fazer, mas, como qualquer gastrónomo sabe, exigem verdadeiro talento. |
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A novela tem o ingrediente da simplicidade, mas daquela que é mais difícil de conseguir. O ambiente é do cinema negro americano, a chamada “Série B”, mas também o dos policiais de Raymond Chandler e dos diálogos poderosos de filmes como Johnny Guitar, Vitória Anarga, Cega Paixão, Ter ou não Ter, Difamação, etc. São estes os territórios em que se movem as criaturas etéreas da história, imagens a preto e branco que sustentam um livro onírico, em que o leitor é inundado de fortes e simples sugestões poéticas.
Tom Stuart, Tenente do Departamento de Homicídios, conhece uma mulher num bar e enamora-se dela: “Pareces um anjo. Um anjo negro”, diz Tom, que imagino como Robert Ryan, em On Dangerous Ground (Cega Paixão), o filme de Nicholas Ray (que a autora refere explicitamente no texto); ela, Patrícia (Ida Lupino?), também possui um segredo. Depois, há a filha cega do tenente e o mistério obscuro que envolve todas as figuras.
Enfim, o dispositivo de história policial entrelaça-se com a memória cinéfila. Esta novela melancólica encena personagens perdidas no labirinto do amor e no medo da morte dessa paixão cega. A imaginação da autora é visual, recheada de referências culturais a livros, pinturas e filmes. O excesso desses pormenores é, aliás, o defeito visível da obra. A repetição de personagens a ler livros ou a recordar películas, citando passagens dos mesmos, lembra um pouco a interferência do árbitro num bom jogo de futebol. Até que a morte nos separe é um texto suficientemente culto e sensível para dispensar metade destas demonstrações de erudição.
O defeito (que não passa, afinal, de uma impressão muito subjectiva deste leitor) torna-se quase irrelevante numa novela tão bem escrita. Os textos do prólogo e do epílogo são duas pequenas maravilhas, de grande beleza, quando se lêem em voz alta: “Agora sei que o amor existe, conheço o rosto dele, os seus olhos, o seu corpo, sei que me ama. E tenho medo dele, como sei que ele tem medo de mim, porque somos o lado negro um do outro, o rosto da morte um do outro”. Este é apenas um exemplo que mostra o cuidado da prosa. E muitas outras passagens podiam ter sido escolhidas.
Os diálogos são irrepreensíveis e recheados de frases conseguidas; as personagens possuem complexidade e espessura; a história flui e o texto lê-se sem esforço, apesar da profundidade das ideias. Enfim, o livro de Ana Teresa Pereira brilha de fantasia, num clima de fatalidade e sonho.
LUIS NAVES, em Diário de Notícias, 28-1-2001
A CASA DOS ESPELHOS
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Atual n.º 2088, de 3-11-2012
A escritora que na semana a passada viu o seu último livro premiado pela APE não é facilmente classificável
Texto Antonio Guerreiro
Ana Teresa Pereira, que ganhou este ano o Grande Prémio do Romance e da Novela da Associação Portuguesa de Escritores com o romance “0 Lago” (Relógio D’Agua, 2011), é um caso singular no panorama atual da ficção narrativa da literatura portuguesa. Servem-lhe, com justeza, estes predicados: prolixa - trinta livros desde 1989, eclética — cultiva uma pluralidade de géneros, obsessiva - nas referências, nos cenários e nas personagens que transitam, com o mesmo nome, de livro para livro. Nascida no Funchal, em1958, os lugares literários de Ana Teresa Pereira situam-se no entanto noutro lado — em Londres, na Escócia, em Dublin, em Amesterdão - e apresentam paisagens de características muito mais nórdicas, com montanhas, neves e lagos. Manifestamente, a paisagem física e intelectual da sua ficção não é reconhecível no seu espaço biográfico. Um dos raros livros onde descobrimos uma referência madeirense (o continente, esse, não existe em absoluto, na sua obra e, pelo que pudemos ler numa das suas raras entrevistas, também não tem grande. existência em qualquer outro plano) é “A Neve” (Relógio D’Agua, 2006)’, constituído por prosas breves, de carácter narrativo, que tem esta dedicatória: Para a Quinta do Palheiro Ferreiro, onde nasceram tantas histórias”. Tal quinta fica numa zona alta, já fora do Funchal, e é conhecida pelos seus belíssimos jardins. Ma os livros de Ana Teresa Pereira estão povoados por personagens com nomes quase sempre- ingleses, que parecem saídos de filmes (Hitchcock, por exemplo, fornece-lhe um manancial considerável de figuras) e de livros (Jane Austen, Henry James, Iris Murdoch e tantos outros, quase todos da literatura inglesa). Digamos, então, que a escritora parece mover-se no mundo da ficção como se ele fosse a sua realidade, ate ao ponto em que deixa de haver um interior e um exterior da literatura. A criadora deste mundo alucinado pode mesmo descrever filmes e livros que não existem. E, no entanto, não se trata de ‘literatice’, de uma escrita que entra no jogo de fazer da literatura o seu próprio e único objeto. Nada disso: nas narrativas de Ana Teresa Pereira, os livros, os filmes são um mundo habitado e habitável, do qual se alimenta o imaginário, a vida interior e a própria criação de mundos possíveis, com as suas histórias. E se, ao falarmos da sua obra, somos obrigados a falar não apenas de livros, mas também de filmes e porque a escritora faz apelo a uma vasta cultura cinematográfica (muitas vezes de. maneira explicita, as vezes veladamente). Há um diálogo entre as artes, sem hierarquias, que traz para a ficção de Ana Teresa Pereira a literatura, o cinema, o teatro, a pintura. E tudo isso como se fosse o único mundo real que existe.
Num altura em que assistimos a proliferação e ao triunfo desenfreado de um tipo de romance que já deixou de ser um género literário para se tornar um mero género editorial - um tipo de romance que parece saído das oficinas de “escrita criativa, com os seus truques pindéricos e os seus números de ‘ prestidigitação — as narrativas desta escritora situam-se noutro lado: do lado de um mundo interior obsessivo, inquietante, que não procura fazer piruetas para ir entretendo os leitores (acrescente-se, aliás, que a pessoa da autora também nunca foi vista a fazer piruetas e a oferecer os seus préstimos para animar a vida mundano-literária). E, talvez, por essa dimensão obsessiva, pelo valor da reiteração e da insistência em lugares e personagens, o universo literário de Ana Teresa Pereira ganha uma maior consistência, e torna-se mais interessante, se o acompanharmos no seu percurso, de livro para livro.
Por outro lado, ao contrário de uma vasta produção romanesca (o júri do prémio da APE tinha mais de cem romances para apreciar) que, em grande parte, parece não nascer de nenhuma memória literária, esta escritora, pelo contrário, parece movida por uma hipermemória literária - ou melhor, por um imaginário fornecido pela literatura e pelo cinema - que não dá no entanto origem a uma literatura exasperada.
Ana Teresa Pereira estreou-se em 1989 com um romance, “Matar a Imagem”, que ganhou um prémio de literatura policial. Alguns elementos e características do policial aparecem disseminados noutros livros, que só muito parcialmente aludem às regras de tal género. No entanto, a escritora cultivou sempre uma literatura de género, mesmo que de maneira impura e eclética o fantástico, o maravilhoso, o gótico, as ghost stories e até o western. Esta literatura de género é, geralmente, considerada uma literatura menor. Ora, Ana Teresa Pereira baralha completamente os dados, cruza literatura maior com literatura menor, literatura com cinema, e chega a um resultado em que tais classificações deixam de ser pertinentes. O que triunfa, isso sim, é a inclinação para um mundo em que até o que é próximo e familiar se torna inquietante (mas não é isso, precisamente, que Freud quis apreender com o conceito de Unheimliche?), um mundo de fantasmas e cheio de histórias de duplos, em que um Henry James e um Hitchcock surgem como demónios tutelares. E é de demónios que devemos falar porque a obra de Ana Teresa Pereira dirige-se com determinação para as zonas do sinistro, do sombrio, do diabólico. Habita-a muitas vezes silenciosamente, nos seus recantos -- o demónio da perversidade.